Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
51/18.9T8BGC-A.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: CONTRATO PROMESSA
CONTRATO DEFINITIVO
TÍTULO EXECUTIVO COMPOSTO
CONTRATO NULO
RENOVAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O título executivo criado pelo NRAU – art.º 14.º-A, com a redacção que lhe deu a Lei n.º 31/2012, de 14/08 -, é um título composto ou complexo formado pelo contrato de arrendamento conjuntamente com o comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida.

II- Apesar das partes terem denominado o contrato que celebraram como “contrato-promessa de arrendamento”, se nele acordaram as cláusulas típicas do contrato de arrendamento, designadamente: o prazo de vigência do contrato, o montante mensal das rendas, o regime de actualização, o regime das benfeitorias, e se o “promitente arrendatário” entra de imediato no gozo do imóvel prometido dar de arrendamento, ficando apenas a faltar a formalização do contrato pela escritura pública, tem de considerar-se estar perante um contrato de arrendamento e não perante um contrato-promessa de arrendamento já que o escrito contém todos os elementos essenciais do contrato de arrendamento.

III- O referido contrato, quando acompanhado da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, constitui título executivo para a acção executiva para pagamento de quantia certa.

IV- A renovação de um contrato nulo consubstancia um novo contrato. Assim, se um contrato de arrendamento para fins comerciais, celebrado em 05/03/1999, foi renovado em 06/03/2004, o novo contrato é formalmente válido se constar de documento particular, atento o regime introduzido pelo Dec.-Lei n.º 64-A/2000, de 27 de Fevereiro.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- Os executados “X, Ld.ª” e Outros deduziram oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que lhes movem os exequentes M. M. e Outros invocando a inexistência do título executivo e, subsidiariamente, a ineficácia do mesmo título. Mais invocaram a prescrição da dívida exequenda.
Justificam o primeiro fundamento da oposição - que foi o único que o Tribunal a quo conheceu - alegando que, sendo o título dado à execução composto por um contrato-promessa de arrendamento acompanhado de uma notificação judicial avulsa, ele não preenche os requisitos exigidos pelo art.º 14.º-A do NRAU, consagrado na Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Os Exequentes contestaram os embargos alegando, para o que ora interessa, que, como resulta do contrato junto, foi expressamente declarado pelas partes que lhe atribuem os efeitos de um arrendamento: eles, Exequentes, recebem a renda e os Executados “Recebem a posse imediata do Locado”, factos que foram participados ao Serviço de Finanças competente.
À data da instauração dos presentes autos havia entrado já em vigor a nova redação do referido art.º 7.º, conferida pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000 de 22 de Abril, segundo o qual “o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito” pelo que o contrato-promessa dos autos tem valor de contrato de arrendamento.
Dispensando a audiência prévia, foi proferido douto despacho saneador que, conhecendo da excepção de inexistência do título executivo, julgou-a procedente atenta a nulidade do contrato, e julgando procedentes os embargos, determinou a extinção da execução.
Inconformados, trazem os Embargados/Exequentes o presente recurso pedindo a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da execução.
Contra-alegaram os Embargantes/Executados propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos que se mostram os vistos legais, cumpre decidir.
**
II.- Os Apelantes/Embargados/Exequentes formularam as seguintes conclusões:

a) No Tribunal Judicial da Comarca de Braga foi intentado o processo de Execução (origem) aos Embargos, a requerimento dos Exequentes – Processo de Execução - Título contrato de arrendamento acompanhado da notificação judicial avulsa aos Executados, para comunicação de resolução do contrato, invocado como de arrendamento, com fundamento em falta de pagamento de rendas – conf. Resulta dos documentos juntos.- Titulo Executivo
b) Todavia, apresentaram os Executados Oposição à Execução, com dispensa da realização da Audiência prévia, foi pelo Meritíssimo Juiz proferida Sentença/Decisão, deferindo os Embargos, pela Inexistência de Titulo Executivo - Inexistência de contrato de arrendamento, pois o título apresentado consubstancia, para o Tribunal, um contrato promessa.
c) A Douta Decisão recorrida 25/09/2018 que decidiu, da Procedência dos Embargos, e indeferir liminarmente o requerimento executivo, com fundamento que: _ o documento que as partes assinaram foi por elas denominado "Contrato- Promessa de Arrendamento Comercial", configurando, dessa forma, uma promessa, decidiu em nosso entendimento, com devido respeito erroneamente, por não considerar devidamente os elementos juntos – Título Executivo
d) Relativamente a tal, e não obstante as partes terem identificado o contrato como "Contrato-Promessa de Arrendamento Comercial ", a verdade é que essa qualificação não vincula o Tribunal, uma vez que essa qualificação não define o regime legal a aplicar, sendo que este há-de resultar da própria factualidade que requer a aplicação do direito vigente.
e) A Decisão Recorrida, a manter-se tal como foi proferida viola: o correcto entendimento do disposto no n° 7 do artigo 9° e da alínea e) do n° 1 do artigo 15° do Novo Regime do Arrendamento Urbano, na medida em que deveria ter considerado que além do identificado contrato a notificação pessoal é meio para comunicar ao arrendatário a resolução do contrato de arrendamento por incumprimento da obrigação do preço e, uma vez cumprida com as formalidades legais e acompanhada com o contrato de arrendamento, é titulo executivo que serve de base à execução – pagamento de rendas vencidas.
f) O correcto entendimento do artigo 5.º do Código de Processo Civil, na medida em que deveria ter considerado que não está impedido de atribuir uma diversa qualificação jurídica à luz dos factos em que se traduzem as declarações negociais concernentes e do direito aplicável; e o correcto entendimento dos artigos 236° n° 1 e 238° n° 1 do Código Civil, na medida em que deveria ter considerado, à luz desses preceitos, que um declaratário normal, perante o contrato em análise e colocado na posição dos contratantes, deduziria que as partes teriam celebrado um contrato de arrendamento e não um contrato promessa.
g) No caso em apreço, o exequente e Apelante, na posição de senhorio, invoca a falta de pagamento de rendas e de indemnização legal pelo atraso no respectivo pagamento e a sua vontade de, com esses fundamentos, resolveu o contrato de arrendamento oportunamente comunicada ao arrendatário pelo meio Notificação Por Contacto Pessoal, mesmo, assim, o locado lhe fosse restituído, sendo que só no decurso dos autos Embargos os Executados procederam à efetiva entrega e tal documento resulta também do processo.
h) Na verdade, o documento invocado como título do arrendamento apresenta-se como "contrato-promessa de arrendamento comercial ", mas esta designação não é decisiva.
i) Ora, tem sido entendimento unânime da jurisprudência que um contrato denominado de contrato-promessa de arrendamento, em que alguém passa imediatamente a ocupar o local, mediante uma retribuição mensal, deve ser considerado um contrato de arrendamento.
j) Acresce ainda para ressalvadas dúvidas, o identificado contrato vai acompanhado da notificação por contacto pessoal, sendo este o meio próprio e adequado para comunicar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, conforme o imperioso que legitime o Título Executivo conf. NRAU e CPC.
Concluindo, a Douta sentença, não cumpre e viola os artigos, 5.º , 703.º, CPC, 236.º, 238.º 1022.º do C.C., assim como os artigos 7.º, 9°, 14.º A. e da alínea e) do n° 1 do artigo 15° do Novo Regime do Arrendamento Urbano, pelo que tal como impugnamos, a fundamentação de tal Decisão/Despacho Saneador Sentença com a consequente revogação do mesmo e a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento da execução – Considerando assim os pressupostos e Requisitos válidos do Titulo Executivo.
**
III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões acima transcritas a questão aí suscitada é a de saber se um contrato-promessa de arrendamento comercial, que foi celebrado em 05/03/1999, pode ser havido como contrato de arrendamento, constituindo o título executivo criado pelo art.º 14.º-A do NRAU (aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro).
**
B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- Substituindo-nos ao Tribunal a quo, a abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 665.º do C.P.C., consideram-se assentes os seguintes factos e incidências processuais:

1.- Os ora Apelantes alegam no requerimento executivo que:

a) “entre” eles e os Apelados/Embargantes “vigora o contrato de arrendamento, com efeitos desde 01 de Março de 1999”, no qual estes “assumem a condição de Inquilinos/Fiadores”;
b) “Ao mencionado contrato foi dada a forma escrita”, obrigando-se os Apelados/Embargantes “nos termos e cláusulas contratuais, conforme decorre do doc. n.º 1”;
c) Desde o mês de Janeiro do ano civil de 2012”, os Apelados/Embargantes “não procederam ao depósito e pagamento do valor das rendas, que entretanto se vão vencendo…”;
d) Os Apelados/Embargantes “devem” “72 meses de renda a que correspondem os meses de Janeiro de 2012 ao mês de Janeiro de 2018, perfazendo a quantia na presente data de 34.117,20 € (…) continuando a vencer até entrega efectiva do locado. A este valor acresce juros de mora pelo incumprimento quanto aos vencidos nesta data computam-se no montante global de 3.590€”.
2.- O “doc. n.º 1” referido em b), titulado de “CONTRATO-PROMESSA DE ARRENDAMENTO POR TEMPO LIMITADO”, está datado de 5 de Março de 1999, outorgado por L. P. (falecido marido/pai dos ora Apelantes), como “promitente senhorio” e os Apelados/Embargantes “X, Ld.ª” como promitente arrendatária, representada pelos seus sócios-gerentes T. P. e A. R., documento que, para o que ora interessa, contém os seguintes dizeres:
“O primeiro outorgante, na qualidade de seu proprietário, promete dar de arrendamento à Segunda outorgante, promitente arrendatária, a fracção autónoma correspondente à loja n.º 10, situada no rés-do-chão do prédio designado por “Galerias …”.

“O prometido contrato de arrendamento obedecerá às cláusulas dos artigos seguintes:

Artigo 1.º - A fracção autónoma a ser dada de arrendamento destina-se a nela ser exercida a actividade da arrendatária, que é de ministração de confecções de Bebé.
Artigo 2.º - O contrato de arrendamento prometido, celebrado ao abrigo do disposto no art.º 117º do RAU … tem início no dia 1 do mês de Março do corrente ano, pelo período ou prazo de cinco anos, a renovar-se por sucessivos prazos de ano enquanto não for denunciado por qualquer das partes.
Artigo 3.º - A denúncia do contrato por parte do senhorio deverá ser feita, por notificação judicial avulsa, com a antecedência mínima de seis meses ao termo do prazo inicial ou de renovação do contrato, e a denúncia por parte da inquilina deverá ser feita com a antecedência mínima de três meses, por carta registada com aviso de recepção.
Artigo 4.º - A renda anual inicial é de 1.140.00 a ser paga em duodécimos mensais 95.000.00, no domicílio do senhorio, ou de procurador seu nesta cidade, vencendo-se cada mensalidade no primeiro dia útil do mês a que diga respeito.
Artigo 5.º - A renda será actualizada no fim de cada ano de vigência do contrato, nos termos legais, com os coeficientes fixados pelo Governo.
Artigo 6.º - A inquilina não poderá fazer obras que alterem a estrutura e configuração do local arrendado sem autorização do senhorio …
Artigo 7.º - As obras de conservação do locado serão da responsabilidade da inquilina …
Artigo 8.º - No fim ou termo de vigência do contrato a inquilina deixará o locado em bom estado de conservação …
Artigo 9.º - Em tudo o omisso, o contrato reger-se-á pelas disposições legais supletivas ou imperativamente aplicável.”.
“Pela Segunda outorgante, representada pelos seus sócios e gerentes, é declarado que promete tomar de arrendamento a referida fracção autónoma, para nela ser exercida a sua finalidade estatutária, com as cláusulas descritas nos antecedentes artigos, que expressamente aceita.”.

“Mais foi contratado o seguinte, que reciprocamente aceitam:

A)- O prometido contrato de arrendamento será titulado por escritura pública quando qualquer das partes, promitente senhorio ou promitente inquilino, o exija, por carta registada e com aviso de recepção endereçada à contra-parte, mas só depois de o promitente senhorio ter a fracção objecto do contrato registada em seu favor na Conservatória do Registo Predial e obtenha licença de ocupação dela, actualizada, junto a Câmara Municipal.
B)- Não obstante, a promitente arrendatária fica desde já autorizada a tomar posse da fracção autónoma referida (… …) e a nela exercer a sua actividade.
C)- A promitente arrendatária, de posse da dita loja, obriga-se a pagar ao promitente senhorio a retribuição mensal espulada para o contrato de arrendamento, como se este prometido contrato se encontrasse já titulado por escritura pública.
D)- Os sócios e gerentes da promitente inquilina, dão a sua fiança à sociedade que representam, ficando com esta pessoal e solidariedade, responsabilizados, cada um deles, pelo cumprimento de todas as obrigações desta como inquilina, designadamente pelo pagamento das rendas que se vencerem, fiança que diz respeito não só às obrigações da inquilina depois de ser titulado por escritura o prometido arrendamento, em que expressamente darão a sua fiança, como também às inerentes obrigações e responsabilidades desde que a promitente arrendatária entre na posse da referida loja e enquanto a ocupar e fruir mesmo sem que esteja titulado o arrendamento pela forma legal.”.
3.- O referido documento encontra-se assinado pelos outorgantes, estando as assinaturas dos sócios-gerentes da sociedade comercial apostas sobre selos fiscais.
4.- Os ora Apelantes requereram uma notificação judicial avulsa pela qual notificaram os Apelados/Executados da sua decisão de resolverem “o contrato de arrendamento constante do documento anexo por falta de pagamento das rendas de Janeiro de 2012 a Agosto de 2014, bem como a desocupação imediata do locado”, notificação que foi efectuada.
**
V.- É pacífico que a enumeração dos títulos executivos que consta do art.º 703.º, n.º 1, do C.P.C. é taxativa.
Na alínea d) cabem todos os documentos que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

1.- O NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, atribuiu força executiva ao contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, “para a acção do pagamento de renda”, conforme dispunha o n.º 2 do art.º 15.º, na redacção original.
Entretanto, a Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, deu nova redacção ao art.º 15.º e introduziu o art.º 14.º-A, alargando o âmbito daquele título executivo “para a execução para pagamento de quantia certa” correspondente (não só) às rendas, (mas também) “aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
O título executivo, assim criado, é, pois, um título composto ou complexo formado por aqueles dois elementos: o contrato de arrendamento e a comunicação ao arrendatário do montante em dívida.
A redacção do referido art.º 14.º-A manteve-se desde então inalterada até à Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, que lhe introduziu o n.º 2, “estendendo” a força executiva dos contratos de arrendamento, acompanhados da respectiva comunicação, aos custos das obras no arrendado.
A única questão que constitui o objecto deste recurso é a de saber se o contrato-promessa acima transcrito pode ser havido como contrato de arrendamento, reunindo as condições para servir de título executivo nesta execução para pagamento de quantia certa, correspondente às rendas não pagas (os juros de mora, que também vêm pedidos, consideram-se abrangidos pelo título executivo, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 703.º do C.P.C.).
2.- À data em que foi celebrado o contrato-promessa, os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal tinham que ser reduzidos a escritura pública, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 7.º do RAU, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.
Ora, os contratos que não obedeçam à forma legal são nulos – cfr. art.º 220.º do Código Civil (C.C.).
Sem embargo, desde cedo se afirmou o entendimento jurisprudencial de que, apesar das partes terem denominado o contrato que celebraram como “contrato-promessa de arrendamento”, se nele acordaram as cláusulas típicas do contrato de arrendamento, designadamente, o prazo de vigência do contrato, o montante mensal das rendas, o regime de actualização, o regime das benfeitorias, e se o “promitente arrendatário” entra de imediato no gozo do imóvel prometido dar de arrendamento, ficando apenas a faltar a formalização do contrato pela escritura pública, tem de considerar-se estar perante um contrato de arrendamento e não perante um contrato-promessa de arrendamento já que o escrito continha todos os elementos essenciais do contrato de arrendamento – neste sentido, dentre outros, os Acórdãos do S.T.J. de 8/06/2006 (ut Proc.º 06A1483, in www.dgsi.pt); da Relação de Lisboa, de 15/01/2015 (ut Proc.º 5643/11.4YYLSB-A.L1-6, in www.dgsi.pt); da Relação de Coimbra, de 01/10/2013 (ut Proc.º 178/05.7TBYND-B.C1, in www.dgsi.pt).
Na situação sub judicio, fazendo a interpretação normativa do contrato, de acordo com as regras estabelecidas nos art.os 236.º e 238.º do C.C., não ficam dúvidas que as Partes quiseram celebrar um contrato de arrendamento comercial, estabelecendo todas as cláusulas típicas deste contrato: o fim a que se destinava o arrendado; o prazo de vigência do contrato, com início a quatro dias antes da data nele aposta; previram a renovação do contrato, estabelecendo novo prazo de vigência; as formalidades da denúncia do contrato; o montante da renda e o regime de actualização, local e data de pagamento; e o regime das benfeitorias, havendo ainda uma cláusula para os casos omissos.
A “promitente arrendatária” ficou desde logo autorizada “a tomar posse” do arrendado.
E a demonstração inequívoca do processo intencional das Partes está nas alíneas do segmento complementar ao contrato: A) os outorgantes (pessoalmente os ora Apelados/Embargantes) contrataram e “reciprocamente aceitam” que a eficácia, entre eles, do contrato não ficava dependente da escritura pública. Quem a pretendesse exigir teria de comunicar a exigência à outra parte “por carta registada e com aviso de recepção”; C) a “promitente arrendatária” obriga-se a pagar a renda mensal estipulada para o contrato de arrendamento “como se este prometido contrato se encontrasse já titulado por escritura pública; D) “Os sócios e gerentes da promitente inquilina” constituem-se fiadores desta, responsabilizando-se pelas “inerentes obrigações e responsabilidades desde que a promitente arrendatária entre na posse da referida loja e enquanto a ocupar e fruir mesmo sem que esteja titulado o arrendamento pela forma legal”.
O “senhorio” cumpriu a sua obrigação contratual – entregou o local arrendado -, e a “arrendatária”, Apelada/Embargante “X, Ld.ª”, pagou as rendas durante 12 (doze) anos e 9 (nove) meses, ou seja, desde 01/03/1999 até 31/12/2011, inclusive.
Posto que nenhuma das partes o invocou, é de considerar assente que nem o “senhorio” nem os ora Apelados/Embargantes alguma vez exigiram à contraparte a celebração da escritura pública – o que só se justificaria até à data da entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, ou seja, em 01/05/2000, que dispensou aquela forma solene, sujeitando os contratos de arrendamento para comércio ou indústria apenas à forma escrita, ou seja, a documento particular.
A exequibilidade do contrato em mérito, posto que acompanhado da comunicação do montante em dívida, tal como vem referido no A.U.J. n.º 3/2018, do S.T.J., em relação a um contrato de mútuo nulo por vício de forma, para além de ser a solução que “melhor se conforma com o interesse do legislador na actuação do princípio da economia processual”, também “não impede que o devedor tenha a possibilidade de infirmar o certificado de garantia da existência do direito conferido pelo título apresentado, questionando a existência do direito exequendo”, dado que, estando salvaguardada a possibilidade de oposição à execução, pode invocar qualquer fundamento que possa ser invocado como defesa no processo de declaração, nos termos do disposto no art.º 731.º do C.P.C. (in D.R. n.º 35/2018, Série I, de 19/02/2018).
3.- Acresce que mesmo com fundamento na declaração de nulidade do contrato, dado que a invalidade tem efeito retroactivo, considerado o disposto no art.º 289.º, n.º 1, do C.C., os ora Apelados/Embargantes sempre teriam de pagar as rendas em dívida, por representarem o valor correspondente ao gozo locativo do imóvel, que foi a prestação que recebeu e não é possível restitui-la em espécie.
4.- De qualquer modo, tendo o contrato sido celebrado em 05/03/1999, foi renovado em 06/03/2004 (findos os cinco anos do prazo inicial).
Ora, como refere CARLOS DA MOTA PINTO, “a renovação, nos contratos nulos, é um novo contrato”, operando a renovação “«ex nunc», mesmo que o fundamento da nulidade tenha desaparecido” (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª ed. actualizª, pág. 611).
Assim, à data da “celebração” do novo contrato, acima referida, os contratos de arrendamento para comércio ou indústria estavam apenas sujeitos à forma escrita, em documento particular, nos termos do Dec.-Lei n.º 64-A/2000, a que se fez já referência.
E, obviamente, em cada uma das renovações anuais, foi um contrato novo que foi celebrado, válido quanto à forma, por constar de documento particular.
5.- Por fim, a jurisprudência vem considerando actuar com abuso do direito a parte que invoca uma nulidade do contrato de arrendamento de que antes teve conhecimento e a aceitou.
Nos termos do art.º 334.º do C.C., é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
O instituto do abuso do direito, como refere HEINRICH EWALD HÖRSTER, “representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjectivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções” (in “A Parte Geral do Código Civil Português/Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina, 1992, pág. 283).
O abuso tem como pressuposto necessário que o excesso cometido seja manifesto, que haja “uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”, como ensina VAZ SERRA (in B.M.J., nº. 85º., pág. 253).
De acordo com o Acórdão do S.T.J. de 9/04/2013, “O instituto do abuso do direito relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça” e prossegue ainda, citando o Acórdão do mesmo Tribunal de 28/11/1996, “O abuso do direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito e casos em que se excede os limites impostos pela boa fé” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano IV, tomo III, págs. 118-121).
Dentre os tipos de actos abusivos releva, para a decisão, o «venire contra factum proprium», em que incorre quem contradiz o seu próprio comportamento. A doutrina dominante tem neste instituto uma manifestação da tutela da confiança.
Como ficou referido no Acórdão do S.T.J. de 24/03/2015, “A tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. O fundamento da proibição do comportamento contraditório é, justamente, a tutela da confiança, que mantém relação íntima com a boa-fé objectiva (ut Proc.º 296/11.2TBAMR.G1.S1, in www.dgsi.pt).
Como escreve MENEZES CORDEIRO, o venire contra factum proprium traduz em Direito “o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente”, contradição que, porém, “só o será quando não tiver nenhum factor que o justifique”.
Assim, esclarece, “só se considera como o venire contra factum proprium a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor, destarte se excluindo “a supressio, a actuação por conta própria, a situação dita tu quoque e a do chamado dolo inicial”, devendo ainda afastar-se, à partida, “a hipótese de o factum proprium, por integrar os pressupostos da autonomia privada, surgir como acto jurídico que vincule o autor: em termos de o segundo comportamento representar uma violação desse dever específico”, caso em que se devem accionar “os pressupostos da responsabilidade obrigacional, e não os do exercício inadmissível de posições jurídicas”.
O Acórdão do S.T.J. de 12/11/2013, refere que “o princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte” (ut Proc.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, in www.dgsi.pt).
Ora, na situação sub judicio, os Apelados, que invocaram a nulidade do contrato de arrendamento por sofrer de vício de forma, expressamente aceitaram que a celebração da escritura ficava dependente da exigência de qualquer das partes (cfr. alínea A) a que acima se fez referência), e nunca a exigiram, cumprindo com o contrato ao longo de mais de 10 anos.
Impõe-se, pois, conceder provimento ao recurso, determinando-se o prosseguimento da execução para apreciação dos outros fundamentos de oposição invocados.
**
C) DECISÃO

Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, e, revogando a decisão impugnada, julgar agora improcedente a excepção peremptória de inexistência do título, determinando-se o prosseguimento dos presentes embargos para conhecimento dos outros fundamentos de oposição à execução invocados
Custas da apelação pelos Apelados.
Guimarães, 31/10/2019

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho