Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
72/15.3GBVPA.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRECLUSÃO DO DIREITO
UTILIZAÇÃO ABUSIVA DO PROCESSO
SANCIONAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I - O prazo de 10 dias estabelecido no art. 68º, nº 2, do CPP, é peremptório – sujeito, pois, à regra geral do nº 2 do art. 107º, do mesmo código – pelo que o seu decurso preclude o direito de o ofendido se constituir assistente, por importar a caducidade desse direito «um dos pressupostos da admissibilidade do processo – que é independente e está para além do outro – o exercício do direito de queixa», segundo a interpretação acolhida no AUJ do STJ nº 1/2011, de 16/12/2010.
II - Perante o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência, embora não seja vinculativo, o sentido interpretativo alcançado por via da jurisprudência qualificada afirmada nos acórdãos uniformizadores, dado o seu valor reforçado, só pode ser arredado na concreta resolução de uma questão de direito, mediante uma fundamentação convincente, baseada, designadamente, no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, que, porventura, não tenham sido ponderados aquando da uniformização.
III - Por outro lado, na medida em que o ora recorrente se conformou, oportunamente, com o despacho judicial com que foi indeferido o seu pedido de constituição de assistente, por ter sido apresentado depois de esgotado esse prazo de 10 dias, tendo tal decisão transitado em julgado, não deveria o mesmo, agora, neste processo, pretender ressuscitar a questão assim decidida (e respectivos fundamentos), de que adveio a impossibilidade de perseguição penal da arguida pelos factos em questão, mas, tendo-o ele feito, impor-se-ia à Senhora Juíza declinar – como fez – a decisão sobre uma questão já resolvida.
IV - Nessa senda, logo se infere a conformidade constitucional da aludida interpretação, no sentido acolhido neste caso concreto: a necessidade de acatar a proibição do «duplo processo» sobre o mesmo facto, inerente ao princípio ne bis in idem, anda de mãos dadas com as razões que subjazem à eficácia do caso julgado de uma decisão anteriormente produzida, que se harmonizam, inteiramente, com o processo penal, em cuja especificidade tem todo o cabimento a imposição de efectivar a certeza do direito e a prevenção do risco da decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva, e, por essa via, garantir também o prestígio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2º da Constituição.
V - E o instituto do caso julgado, que se forma quando de uma decisão judicial se não pode já recorrer ou reclamar, por via ordinária, tem como fundamento razões de justiça, naturalmente, mas, sobretudo, da segurança ou paz social, da certeza e segurança jurídicas, visando evitar situações de instabilidade, atribuindo-se assim força vinculativa ao determinado por um tribunal, que definiu uma questão em dados termos, nos seus aspectos factuais e jurídicos.
VI - Posto isto, deve considerar-se que o recorrente fez do processo um uso muito reprovável, a justificar, plenamente, a sanção prevista no nº 5 do art. 277º do CPP, porque, depois de se se conformar com o indeferimento da sua constituição como assistente no anterior processo, procurou contornar os efeitos daí advindos – o arquivamento desses autos pelos factos neles denunciados –, para o que “renovou” a queixa que deu origem a tal processo, omitindo a sua existência, assim pondo em causa o valor público da boa administração da justiça, pelo menos, com negligência grave.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

Nos autos de inquérito (actos jurisdicionais) n.º 72/15.3GBVPA, que correm termos na Procuradoria da Instância Local de Vila Pouca de Aguiar, da Comarca de Vila Real, a Sra. Juíza de Instrução, em 11/03/2016, proferiu decisão, abstendo-se de conhecer da nulidade invocada pelo (assistente) António M – por considerar que este, notificado, em 6/11/2015, da decisão de arquivamento do inquérito, optou por requerer, não a fase de instrução, mas o controlo interno dessa decisão, o qual culminou na reafirmação da mesma, não podendo o juiz de instrução declarar, durante o inquérito, a invalidade de actos processuais presididos pelo Ministério Público – e condenando este na multa de 8 UC´s, por utilização abusiva do processo, nos termos do disposto no artigo 277º, nº 5, do CPP. Relativamente ao sancionamento por utilização abusiva do processo, a Senhora Juíza, além do mais, ponderou o seguinte (sic):
(…) Quanto à questão da preclusão do direito à constituição como assistente, em procedimento dependente de acusação particular, uma vez decorrido o prazo a que alude o artigo 68.º, n.º 2 do CPP, não vislumbramos qualquer censura ao juízo formulado pelo Ministério Público. E precisamente porque a questão foi controvertida foi proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que pôs termo à querela jurisprudencial e doutrinal em torno de tal matéria: o AUJ do STJ n.º 1/2011, cuja argumentação o assistente persiste em ignorar.
(…) Discutir agora a valia dos argumentos da decisão em apreço seria pôr, indevidamente, em questão a força da decisão unificadora da jurisprudência.
Ao demais, da própria versão apresentada pelo assistente se extrai que o mesmo apresentou nova queixa para obviar aos efeitos do arquivamento do crime de natureza particular, mercê do indeferimento da constituição como assistente na primitiva queixa. Entende o assistente ter direito à revalidação da queixa, e ter omitido a existência do primeiro processo por mera desatenção. À semelhança da posição sustentada pelo Ministério Público não acompanhamos a conclusão extraída pelo assistente de que existe um direito à revalidação do direito de queixa, por repetição de uma nova queixa pelos mesmos factos.
O Código de Processo Penal vigente não define ou consagra, de forma explícita, a figura do caso julgado nem da litispendência, que assentam no pressuposto da repetição da mesma causa relativa aos mesmos sujeitos processuais (…). Apesar da aludida omissão sistemática, no Código de Processo Penal vigente existem disposições dispersas sobre o caso julgado, em sede de admissibilidade de recursos e de execução das decisões penais – cfr. designadamente a conjugação dos artigos 396.º, n.º4; 399.º; 400.º; 411.º; 427.º; 432.º; 438.º; 447.º, n.º1; 449.º, n.º1; 467.º; 487.º: 492.º; 498.º, n.º3. Por outro lado, a proibição de repetição de processos/julgamento sobre os mesmos factos, relativamente ao mesmo agente, para além de elementares razões de economia processual, resulta desde logo do basilar princípio “non bis in idem”. (…) da proibição do duplo julgamento decorre a impossibilidade de duplo processo com o mesmo objeto. Até porque, além de colocar em causa elementares princípios de segurança jurídica, constituiria um ato inútil abrir um segundo processo precisamente com o mesmo objeto de um outro, anterior, quer esteja ainda a correr termos quer tenha sido já objeto de decisão final. Assim o artigo 29.º, n.º 5 da CRP, ao proibir o mais – duplo julgamento – proíbe o menos, ou seja, a existência de um duplo processo, uma dupla acusação ou pronúncia do mesmo arguido, pelos mesmos factos. A proibição de ne bis in idem tem uma intenção de garantia do arguido exatamente como proibição do «duplo processo» (sobre o mesmo facto) - Cfr. DAMIÃO DA CUNHA, em O Caso Julgado Parcial, Publicações da UC, 2002, p. 485-486. A proibição do duplo julgamento envolve a proibição do “duplo processo”, sendo o duplo julgamento constituído não só pela sentença como pelo despacho de arquivamento que se pronuncie sobre o objeto do processo, rebus sic stantibus (…).
No caso, o assistente duplicou a queixa que deu origem ao processo 22/15.7GBVPA, claramente com o intuito de obstar ao arquivamento dos factos naqueles autos denunciados suscetíveis de integrar a prática de crime de natureza particular. Fê-lo para obviar aos efeitos do indeferimento da sua constituição como assistente naqueles autos. Apresentou nova queixa no Posto da GNR de Felgueiras, onde exerce funções como Guarda Principal. Omitiu qualquer referência ao processo primitivo e ao seu arquivamento. (…) se atuasse de boa fé, impunha-se-lhe que na denúncia que deu origem aos presentes autos, no mínimo, desse conhecimento da existência de inquérito anterior, o que não fez. Por outro lado, se não concordava com os fundamentos do indeferimento da constituição como assistente no primeiro inquérito era nele que deveria suscitar a questão, recorrendo desse despacho. Deve, por isso, considerar-se que o ora assistente, nos termos em que apresentou esta nova denúncia, fez um uso bastante censurável do processo ou dos meios processuais legalmente ao seu dispor, de modo a conseguir um fim indevido (uma reapreciação dos factos anteriormente denunciados e objecto de despacho de arquivamento com força de "caso decidido") (…)».

Inconformado com a referida decisão, o assistente interpôs recurso, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«1º) A conduta processual do recorrente mostra-se legítima e encontra-se sustentada na Lei maxime nos artigos 68º, nº 2, 246º, nº 4 do C.P. Penal e 115º do C. Penal e, por isso, ao contrário do doutamente decidido não há desvio dos fins do processo em prejuízo de outrem, não assumindo, por isso, o grau de reprovação sancionatório que o nº 5 do artigo 277º, do C.P. Penal visa tutelar.
2º) O prazo estabelecido no artº 68º, nº 2 do C.P. Penal, não é de caducidade nem é preclusivo ou extintivo, no sentido de ficar vedada a constituição de assistente se requerida dentro do prazo aludido no artº 115º do Código Penal, daí que nada obstará a formulação dentro do prazo de seis meses de queixa por factos anteriormente participados e que foram objecto de arquivamento por ausência do requisito de procedibilidade previsto nos artigos 68º, nº 1 alínea b) do C.P. Penal e 246º, nº 4 ambos do C.P. Penal como aconteceu no caso concreto sem prejuízo da apensação dos inquéritos por duplicação de queixas nos termos do artigo 29º do C.P. Penal ou usando uma linguagem civilista por litispendência.
3º) Ao contrário do que sucede com o disposto no artº 115º do CP (que estabelece o prazo de extinção do direito de queixa), o artº 68º, nº 2 do CPP não estabelece qualquer consequência para a não observância do aí mencionado prazo de dez dias a contar da declaração referido no artº 246º, nº 4 do C.P. Penal, o que significa que o intérprete, sob pena de incorrer em vicio de inconstitucionalizado, desde já invocado, por limitar de forma excessiva e desproporcionada dos direitos do ofendido ( artigos 18º, nº 2, 20º, 32º, nº 7 das CRP) ,não se pode substituir ao legislador, nem contrariar a própria vontade do legislador, criando uma nova causa de extinção do procedimento criminal, o que sucederia se interpretasse aquele prazo de 10 (dez) dias e referido no artº 68º, nº 2 do C.P.Penal, como um prazo de caducidade ou de extinção da prática do acto (constituição assistente).
4º) Por isso queixa formulada nos presentes autos foi formulada dentro do prazo a que alude o artigo artº 115º, nº 1 do Código Penal e o arguido encontra-se por despacho jurisdicional a intervir nos autos na qualidade de assistente encontram-se reunidos os pressupostos de procedibilidade previstos nas disposições conjugadas dos artigos 115º a 117º do Código Penal e 68º, nº 2 e 246º, nº 4 do C.P. Penal e, porque assim é o o douto despacho do Ministério Público de 29.10,2015 de fls. 27 a 29 proferido no inquérito nº 72/15.3 GBVPA que determinou o arquivamento do inquérito por inadmissibilidade legal do procedimento criminal nos termos do disposto no artigo 277º, nº 1 alínea c) do C.P.Penal e concomitantemente promoveu a aplicação da multa a que alude o nº 5 do artigo 277º do referido diploma legal por utilização abusiva do processo, padece de invalidade, nos termos do disposto no artigo 119º do C.P.Penal por contrariar as disposições dos artigos 115º a 117º do Código Penal e 68º, nº 2 e 246º, nº 4 do C.P.Penal, considerando-se a interpretação que vem emprestada à referido norma do artigo 68º, nº 2 do diploma legal em questão como inconstitucional por limitação excessiva e desproporcionada dos direitos do ofendido consagrado nos artigos 18º, nº 2, 20º, 32º, nº 7 da CRP.
5º) Encontram-se violados entre outros os artºs 18º, nº 2, 20º e 32º, nº 7 da CRP; 1115º e 117º do C.Penal e 68º, nº 1 alº b) e nº 2 e 246º, nº 4 do C.P. Penal.».
O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 132.

O Ministério Público apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso, alegando em suma, que a interpretação feita na decisão sob recurso das normas em causa não é contrária à vontade do legislador nem inconstitucional, encontrando-se a decisão fundamentada na utilização abusiva que o recorrente fez do processo. E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada a decisão recorrida, por não suscitar qualquer reparo, revelando-se sensível às exigências e às determinações vigentes e conformes à Constituição sobre o sancionamento do abuso do processo penal, na vertente de denúncia ilegítima.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP, tendo o arguido/recorrente apresentado resposta, defendendo a legitimidade da sua conduta.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscita-se neste recurso a questão de saber se, contrariamente ao decidido, a conduta processual que o recorrente adoptou se encontra sustentada pela lei, não assumindo um grau de reprovação que legitime a sanção por que foi condenado, porquanto: sob pena de o art. 68º, nº 2, do CPP ser interpretado em desconformidade com a CRP (arts. 18º, nº 2, 20º, 32º, nº 7), o decurso do prazo nele estabelecido não obsta ao exercício do direito de queixa (dentro do prazo de seis meses aludido no art. 115º do CP) por factos anteriormente participados e que foram objecto de arquivamento por ausência do requisito de procedibilidade previsto nos arts. 68º, nº 1, al. b) e 246º, nº 4, ambos do CPP, sem prejuízo da apensação dos inquéritos por “litispendência”.
*
Foram os seguintes os elementos fácticos considerados na decisão recorrida:
1) O ora recorrente/assistente apresentou, em 4/04/2015, no Posto da GNR de Pedras Salgadas, uma queixa que veio a desencadear o inquérito nº 22/15.7GBVPA, por factos passiveis de consubstanciarem, além do mais, um ilícito de natureza particular.
2) Nesse inquérito 22/15.7GBVPA, o mesmo foi notificado, nesse dia 4/04/2015, para se constituir assistente, o que apenas veio a fazer em 30/07/2015, pelo que, nessa sequência, foi-lhe notificado no dia 18/09/2015 o despacho judicial de 15/09/2015, indeferindo o pedido de constituição de assistente, por ter sido apresentado depois de esgotado o prazo de 10 dias.
3) Posteriormente, em 1/10/2015, o recorrente apresentou, no Posto da GNR de Felgueiras (onde exerce funções como Guarda Principal), a queixa de fls. 3 e seguinte, que originou os presentes autos (72/15.3GBVPA), pelos factos que já denunciara, no dia 4/04/2015, no aludido inquérito 22/15.7GBVPA, sem ter feito qualquer menção a este processo preexistente.
4) No âmbito dos presentes autos (72/15.3GBVPA), o denunciante fez novo requerimento para constituição de assistente, tendo sido admitido a intervir nessa qualidade.
5) A Sra. Procuradora-Adjunta, em representação do Ministério Público, no despacho de 1/10/2015 (fls. 27-29), determinou o arquivamento deste inquérito e requereu a condenação do assistente em multa, nos termos do disposto no artigo 277º, nº 5, do CPP, por utilização abusiva do processo.
6) Notificado pessoalmente, em 6/11/2015, desse despacho de arquivamento, o ora recorrente reclamou dele hierarquicamente, para o superior da Sra. Procuradora-Adjunta no Ministério Público.
*
Importa apreciar e decidir a acima enunciada questão, para o que releva o antecedentemente relatado.

O decidido e a sua excelente fundamentação merecem a nossa inteira adesão, razão pela qual nos limitaremos a uma síntese com brevíssimas ponderações suplementares.
O entendimento do recorrente quanto ao alcance do prazo estabelecido no art. 68º, nº 2, do CPP, não pode ser acolhido por contender, frontalmente, com a seguinte interpretação fixada pelo Acórdão do STJ nº 1/2011, de 16/12/2010 ( P. 966/08.2GBMFR.L1–A.S1, Isabel Pais Martins, in DR I de 26/1/2011.): «Em procedimento dependente de acusação particular, o direito à constituição como assistente fica precludido se não for apresentado requerimento para esse efeito, no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º do Código de Processo Penal».
Ora, como se sabe, o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência e, por consequência, da unidade interpretativa e aplicativa do direito ( Cf. art. 8º nº 3 do CC.) recomenda que sobre questões objecto de controvérsia jurisprudencial seja estabelecida a interpretação a perfilhar pelos tribunais. Embora não seja vinculativo, o sentido interpretativo alcançado por via dessa jurisprudência qualificada, afirmada nos acórdãos uniformizadores, dado o seu valor reforçado, só pode ser arredado na concreta resolução de uma questão de direito, mediante uma fundamentação convincente, baseada, designadamente, no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, que, porventura, não tenham sido ponderados aquando da uniformização e susceptíveis de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada ou tornar, assim, patente que a evolução jurisprudencial e doutrinal alterou significativamente o consenso formado ( Neste sentido, os Acs. do STJ de 12/5/2016 (982/10.4TBPTL.G1-A.S1 – Abrantes Geraldes) e de 11-09-2014 (3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1 – Bettencourt Faria), este, com o sumário: «Não basta não se concordar com o entendimento de um acórdão uniformizador. Para decidir em sentido contrário é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa».).
Por outro lado, o ora recorrente conformou-se, oportunamente, com o despacho judicial de 15/09/2015, com que foi indeferido o seu pedido de constituição de assistente, por ter sido apresentado depois de esgotado o prazo de 10 dias ( Como lembrou a Senhora Juíza, se o então requerente não concordava com os fundamentos do indeferimento da constituição como assistente no primeiro inquérito era nele que deveria suscitar a questão, recorrendo desse despacho.). Tendo tal decisão transitado em julgado, não deveria o mesmo, agora, neste processo, pretender ressuscitar a questão assim decidida (e respectivos fundamentos), de que adveio a impossibilidade de perseguição penal da arguida pelos factos em questão ( Na verdade, dada a oficialidade do processo penal, está atribuída ao Ministério Público a iniciativa e a prossecução processual (art. 219º, n.º 1, da CRP), mas a legitimidade de tal Órgão para o fazer tem as restrições constantes dos artigos 49º e seguintes do CPP, entre as quais a prevista no seu art. 50º, respeitante a crimes particulares, que radica no relativamente reduzido relevo criminal e na elevada disponibilidade do bem jurídico: «Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular».). Mas, tendo-o ele feito, impor-se-ia à Senhora Juíza declinar – como fez – a decisão sobre uma questão já resolvida ( Como refere DAMIÃO DA CUNHA, na ob. citada pela Senhora Juíza (“O Caso Julgado Parcial”, Publicações da UC, 2002), p. 59, «O caso julgado penal em relação a futuros processos) penais) teria um efeito meramente negativo – a obrigação, para o juiz, de declinar a decisão sobre a questão já resolvida».).
Na verdade, a necessidade de acatar a proibição do «duplo processo» sobre o mesmo facto, inerente ao princípio ne bis in idem – tão bem evidenciada na decisão recorrida pela Senhora Juíza –, anda de mãos dadas com as razões que subjazem à eficácia do caso julgado de uma decisão anteriormente produzida, que, segundo também nos parece, se harmonizam, inteiramente, com o processo penal, em cuja especificidade tem todo o cabimento a imposição de efectivar a certeza do direito e a prevenção do risco da decisão inútil, impedindo que se reproduza ou contradiga uma decisão já tornada definitiva, e, por essa via ( Dispõe o art. 4º do CPP: «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderam aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal».), garantir também o prestígio dos tribunais, valores que colhem o seu fundamento nos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2º da Constituição. Em relação a este instituto, muito antigo e conhecido, pode dizer-se, sucintamente, que se forma caso julgado quando de uma decisão judicial se não pode já recorrer ou reclamar, por via ordinária, e tem como fundamento razões de justiça, naturalmente, mas, sobretudo, da segurança ou paz social, da certeza e segurança jurídicas, visando evitar situações de instabilidade, atribuindo-se assim força vinculativa ao determinado por um tribunal, que definiu uma questão em dados termos, nos seus aspectos factuais e jurídicos.
Na senda do exposto, logo se infere a conformidade constitucional da interpretação da questionada norma de processo de que resulte que a não apresentação do requerimento no prazo de 10 dias preclude o direito de o ofendido se constituir assistente, na medida em que se trata de um prazo peremptório, sujeito à regra geral do nº 2 do art. 107º, do CPP, cujo decurso importa a caducidade «do direito de constituição como assistente – um dos pressupostos da admissibilidade do processo – que é independente e está para além do outro – o exercício do direito de queixa – não sendo adequado que, numa confusão dos dois pressupostos processuais, se invoque, como consequência (indesejável) da não observância do prazo para constituição como assistente, a perda (caducidade) do direito à queixa, quando o direito de queixa já foi exercido (logo não caducou), pressupondo, precisamente, o prazo para requerer a constituição de assistente o seu prévio exercício», como se afirmou no supra citado AUJ.
Tal como o mesmo aresto constatou, essa é a interpretação que não só toma na devida conta as regras que se colocam no plano da (clara) letra da lei, do elemento racional ou teleológico – a preocupação de pôr termo à indefinida pendência dos processos por crimes particulares – e do elemento sistemático, como é, ainda, a que harmoniza os vários interesses ou direitos fundamentais em presença:
«É que esse prazo inicia-se, justamente, com o devido cumprimento, na dimensão já assinalada, do dever de advertência da obrigatoriedade de constituição como assistente e dos procedimentos a observar. Não se podendo, como tal, sustentar que o denunciante se encontre numa situação de falta de esclarecimento das consequências de uma, eventual, inacção, quando o prazo se inicia. E muito em razão disso, a preclusão do direito de o ofendido se constituir assistente, pelo não exercício do direito no prazo legal, não comporta uma restrição inadmissível ou desproporcionada do direito de o ofendido se constituir assistente.
O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição dispõe que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” (…). É indiscutível a existência de um legítimo interesse específico do ofendido se constituir assistente no processo penal, especialmente no âmbito dos crimes particulares (mas também, no âmbito dos crimes públicos) e que encontra a sua consagração no direito de acesso à justiça, tutelado no artigo 20.º, n.º 1. Este interesse é juridicamente protegido através do próprio instituto do assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção processual que a lei lhe reconhece.
Viria a revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro) a consagrar de forma mais explícita, no n.º 7 do artigo 32.º que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei”.
O n.º 7 do artigo 32.º da Constituição pretende dar legitimação constitucional ao direito do ofendido intervir no processo. Mas limita-se a consagrar, de forma ampla e genérica, o direito de o ofendido intervir no processo penal; diferentemente do que acontece em relação ao arguido, a lei constitucional não especifica as dimensões fundamentais do direito do ofendido intervir no processo, remetendo para a lei (“nos termos da lei”) essa tarefa.
Temos, assim, que o preceito constitucional atribui à lei ordinária a acção modeladora do direito de o ofendido intervir no processo, que passa necessariamente pela legitimidade de o ofendido se constituir assistente e pela definição do seu estatuto processual: delimitação dos direitos, deveres e ónus processuais inerentes.
É verdade que esta atribuição à lei ordinária da acção modeladora do direito de o ofendido intervir no processo não legitima o legislador a proceder a um “esvaziamento” do núcleo essencial da intervenção do assistente em processo penal ().
“Ora, a remissão para a lei, constante do n.º 7 do artigo 32.º, sendo compreensível, tendo em conta a particular ordenação do processo penal e as suas especiais características, não pode ser interpretada como permitindo privar o ofendido daqueles poderes processuais que se revelem decisivos para a defesa dos seus interesses (…)”.
Neste entendimento, temos por certo que a consideração do prazo do n.º 2 do artigo 68.º como prazo peremptório, com a implicada consequência de extinguir o direito de praticar o acto, não privando o ofendido de se constituir assistente nem limitando o exercício desse direito de forma desproporcionada, não comporta qualquer violação do direito constitucionalmente reconhecido ao ofendido pelo n.º 1 do artigo 20º e pelo n.º 7 do artigo 32º da Constituição.
E isto porque, relembra-se, o prazo é adequado ao exercício do direito, foi fixado, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com correspondência ao prazo geral para a prática de qualquer acto processual e em harmonia com o prazo máximo para a transmissão da denúncia ao Ministério Público, e só se inicia com o devido cumprimento do dever de advertência e esclarecimento, contido no n.º 4 do artigo 246.º
A solução da preclusão do direito de o ofendido se constituir assistente pelo não exercício do direito no prazo fixado no n.º 2 do artigo 68.º, não resolve, todavia, aquela outra questão de saber se, precludido o direito de o ofendido se constituir assistente, pode o ofendido apresentar nova queixa (pelos mesmos factos) e, a partir dela, requerer a sua constituição como assistente, assim gozando, de tantas prazos para a constituição de assistente quantas as queixa que lhe aprouver apresentar.
Uma resposta afirmativa, por vezes sustentada na linha jurisprudencial em que o acórdão fundamento se insere, pressupõe o reconhecimento da figura da “renovação da queixa”.
Ora, como vimos, o regime da queixa é, essencialmente, regulado no Código Penal, e, aí, não se contém qualquer norma que permita a “renovação do direito de queixa” já, antes, exercido. Por outro lado, quando o legislador quis consagrar a figura da “renovação da queixa”, fê-lo expressamente. Como é exemplo a Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, que criou o regime da mediação em processo penal. No artigo 5.º, n.º 4, deste diploma, prevê-se, expressamente, a possibilidade de o ofendido, caso o acordo não seja cumprido no prazo fixado, renovar a queixa no prazo de um mês.
Devendo, assim, concluir-se, com Paulo Pinto de Albuquerque (56), que “o legislador português propositadamente omitiu uma disposição que permitisse a “repropositura da acção penal” pelo mesmo facto, ao invés do artigo 359.º do Progetto Preliminare de 1978, correspondente ao artigo 345.º do CPP Italiano, que prevê a riproponibilitá dell`azzione penale no caso de mancanza di una condizione di procedibilità.».
Posto isto, deve considerar-se, para os efeitos previstos no citado nº 5 do art. 277º do CPP, que se verifica uma “utilização abusiva” do processo por parte de quem formula a denúncia (ou de quem exerce um alegado direito de queixa), sempre que o mesmo o faça com dolo ou negligência grave ( Ensinou o Prof. Alberto dos Reis (C.P. Civil Anotado, Vol. lI, p. 262 e ss.) que poderíamos estabelecer a seguinte hierarquia de lide: cautelosa; simplesmente imprudente; temerária; dolosa. Na lide cautelosa a parte esgotou todos os meios para se assegurar de que tinha razão. No 2º daqueles casos cometeu imprudência, mas imprudência levíssima ou leve. Na lide temerária incorreu em culpa grave ou/e erro grosseiro, pois foi para juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão. E, finalmente, na lide dolosa praticou um facto que merece censura e condenação (sabia que não tinha razão e, apesar disso, litigou.). ), por não ignorar ou não dever ignorar a falta de fundamento da denúncia (ou da queixa), ter alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a apreciação da causa, fazendo, enfim, do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Por conseguinte, estando em causa o valor público da boa administração da justiça, também a negligência grave, à semelhança do dolo, configura “utilização abusiva”.
Perante tal enquadramento, merece uma resposta linearmente negativa a questão suscitada no recurso. Com efeito, embora o recorrente se tenha conformado com o indeferimento da sua constituição como assistente naquele processo 22/15.7GBVPA, o mesmo procurou contornar os efeitos daí advindos, i. é, o arquivamento desses autos pelos factos neles denunciados e susceptíveis de integrarem a prática de um crime de natureza particular, para o que “renovou” a queixa que deu origem a tal processo, omitindo a sua existência. Ora, envolvendo factos do seu conhecimento directo, a analisada conduta e o respectivo resultado mesmo que este não lhe fosse imputável a título de dolo, como foi defendido no recurso, sê-lo-ia, necessariamente, a título de negligência gravemente grosseira.
Realmente, o julgado em 1ª instância quanto à qualificação do referido comportamento processual merece inteira confirmação, sendo certo que o recurso nada acrescenta que ponha em crise os seus fundamentos, tão patente é a sua falta de razão. Assim sendo, é claro que acompanhamos, sem tibiezas, a avaliação que a Senhora Juíza fez acerca do muito reprovável uso que o recorrente fez do processo, a justificar, plenamente, a moderada sanção imposta, no caso, uma multa de 8 UC´s, pouco acima do limite mínimo da respectiva moldura legal (6 a 20).

Assim, improcede o recurso.
*
Decisão:
Nos termos expostos, julga-se totalmente improcedente o recurso e decide-se confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.
Guimarães, 15/12/2016

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado