Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
97/06.0IDBRG.G2
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Existindo embora alguma tensão dialética entre o dever de cooperação do contribuinte, na área do procedimento tributário, e o direito ao silêncio e a não facultar meios de prova, reconhecido ao arguido no processo penal, podem neste ser usados os documentos obtidos pelas autoridades fiscais ao abrigo daquele dever de cooperação.
II – Apesar das leis tributárias estabelecerem períodos diferentes para a realização do apuramento do valor do imposto deduzido, o montante de € 7500,00 referido na norma do nº 1 do art. 105 do RGIT, respeita a cada declaração a apresentar à administração tributária e não a cada período de 30 dias em que, abstratamente, cada prestação se pode decompor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

António M...foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelos arts. 105.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 05-06, e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de sete meses de prisão, substituída por igual período de dias de multa, ou seja, 210 dias, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz € 1.470,00, quantia essa que foi autorizado a pagar em 6 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira dez dias após trânsito e as restantes em igual dia dos meses seguintes.

Inconformado recorre o arguido, suscitando, em síntese, as seguintes questões nas suas excessivamente longas conclusões:

- nulidade da sentença por falta de fundamentação;

- proibição de valoração de prova no tocante a documentos obtidos no processo de inspecção tributária e ao depoimento do inspector tributário;

- vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º., nº.2, al. a) CPP);

- inconstitucionalidade da condenação do arguido pelas fracções da continuação criminosa correspondentes a trimestres, sem que se apurassem em concreto os montantes devidos mensalmente e se os mesmos excediam, ou não, € 7.500,00;

- tipo e medida da pena.

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O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

A requerimento do recorrente teve lugar a audiência.

Cumpre decidir.

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II- Fundamentação

Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (arts. 402º., 403º. e 412º., nº.1, todos do Código de Processo Penal e Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ nº.458, pág. 98), devendo conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões desenvolvidas no corpo da motivação que o recorrente pretende ver submetidas à apreciação do tribunal superior, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são, por exemplo, os vícios da sentença previstos no artigo 410º., nº. 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995).

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Da sentença recorrida

A) Factos provados

1- A sociedade arguida “P... — Confecção de Artigos Têxteis, Lda.” é uma sociedade por quotas, titular do cartão de pessoa colectiva n.° 504.239...., com sede no lugar de São Pedro, Póvoa de Lanhoso, que tem por objecto social a confecção de artigos têxteis para o lar (nomeadamente lençóis, atoalhados, coberturas para colchões) e comércio por grosso de tais produtos.

2- Por tal actividade, a que corresponde o C.A.E. (Classificação das Actividades Económicas)/C.I.R.S. 17400— fabricação de artigos têxteis confeccionados excepto vestuário, a arguida encontrava-se colectada no Serviço de Finanças de Póvoa de Lanhoso, como sujeito passivo do Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.).

3- A sociedade arguida possuía contabilidade organizada e, encontrava-se desde, pelo menos, o ano de 2002 até 01 de Janeiro de 2005, enquadrada, para efeitos de Imposto de Valor Acrescentado -IVA-, no regime normal de periodicidade trimestral, tendo, a partir desta última data, se enquadrado no regime de periodicidade mensal.

4- O arguido António M...foi nomeado em 31 de Julho de 2002, gerente único da sociedade arguida ‘PROTEXPOL”, assim permanecendo até 28 de Junho de 2005 (data em que deixou de ser gerente e de gerir a sociedade), cargo que exerceu em efectividade, competindo-lhe todas as tarefas inerentes à sua gestão e administração quer na parte administrativa, financeira e comercial, dando as ordens e instruções a ela atinentes, nomeadamente no tocante à retenção da fonte, ao pagamento dos impostos e salários, à contratação de trabalhadores e à negociação com fornecedores.

5- No exercício da sua descrita actividade a sociedade “PROTEXPOL - Confecção de Artigos Têxteis, Lda.” através do arguido António M..., que actuava no referido período, em nome e no interesse da mesma, procedeu à cobrança de I.V.A. aos seus clientes, pelas vendas de bens e prestações de serviços efectuadas aos mesmos e a quem foram emitidas as respectivas facturas, com a obrigação de o entregar nos cofres da Fazenda Nacional, a quem pertenciam os montantes liquidados a esse título.

6- Enquanto sujeito passivo de I.V.A. a sociedade arguida deveria apurar aritmeticamente, trimestralmente ou mensalmente, conforme se encontrasse no enquadramento trimestral ou mensal, o imposto devido ao Estado, deduzindo ao imposto por si facturado e incluído no preço dos bens que vendera e prestações de serviços efectuados, o imposto por si suportado nas aquisições de matérias-primas efectuadas, e sempre que o montante de I.V.A. por si facturado a terceiros fosse superior ao montante de I.V.A. pago pela arguida nas aquisições efectuadas, proceder à entrega à Fazenda Nacional da diferença até ao dia 15.° dia do segundo mês seguinte ao trimestre a que se refere a liquidação ou até ao 10º dia do segundo mês seguinte ao mês a que se refere a liquidação, na hipótese de periodicidade mensal.

7- O arguido não enviou ou entregou nos Serviços de Finanças de Póvoa de Lanhoso, ou em qualquer outro serviço da Administração Fiscal, os montantes liquidados e arrecadados, a título de I.V.A., nas vendas a dinheiro cobradas aos seus clientes, para os períodos abaixo mencionados.

8- Tal actuação contabiliza um montante de I.V.A. efectivamente liquidado, recebido e não entregue à Administração Fiscal, nos anos de exercício de 2003 a 2004, repartindo-se por cada período normal trimestral e mensal, nos quantitativos e períodos seguintes:

Terceiro trimestre de 2003, no valor de € 26.233,01, com data de constituição da obrigação em 15.11.2003 e de pagamento em 15.02.2004;

Quarto trimestre de 2003, no valor de € 9.077,10, com data de constituição da obrigação em 15.02.2004 e de pagamento em 15.05.2004;

Segundo trimestre de 2004, no valor de € 7.609,96, com data de constituição da obrigação em 15.08.2004, e de pagamento em 15.11.2004.

9- Deste modo, o arguido António M..., nos períodos de tributação supra referidos, liquidou IVA, apurando montantes a favor do Estado num total global de € 42.920,07, de imposto de I.V.A., que recebeu dos seus clientes e reintroduziu no giro comercial da sociedade (para pagamento de parte de salários, fornecedores e outras despesas uma vez que a 2ª arguida atravessava dificuldades económicas e financeiras, pelo menos desde 2002 por perda dos seus maiores clientes e crédito mal parado de outros, para além de falta de financiamento bancário e forte concorrência internacional, que culminou em 2004 num processo de recuperação de empresa) não os entregando à Administração Fiscal, nos termos e prazos atrás referidos, relativos aos períodos mencionados, nem nos 90 dias subsequentes ao termo do prazo legal de entrega da declaração periódica a que diziam respeito, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.

10- Cumprida a notificação prevista no art. 105, nº 4, al. b), do RGIT (actual redacção), a pedido do próprio arguido, não foi regularizada, no prazo de 30 dias, a situação tributária.

11- O arguido António M...trabalhava no sector de organização da exportação de uma empresa de Guimarães, a recibos verdes, auferindo um rendimento mensal de cerca de € 1.500,00, estando actualmente desempregado; recebe uma pensão de reforma que está parcialmente penhorada em execuções para pagamento de dívidas à Fazenda Nacional, à Segurança Social e outras dívidas a terceiros (bancos, algumas empresas, e particulares, etc., algumas delas em consequência de ter assumido encargos pessoais com a gestão da 2ª arguida); não tem filhos a seu cargo; o arguido é um gestor experiente e como tal reconhecido; é uma pessoa tida pelos seus amigos e familiares como uma pessoa responsável, gestor reconhecido, e pessoa de bem; não tem antecedentes criminais.

12- A segunda arguida está neste momento sem actividade (não laborando, sem funcionários e clientes), mas não foi extinta por qualquer forma, não havendo registo de qualquer condenação anterior no pagamento em penas de multa ou coimas.

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B) Factos Não Provados

Os demais factos constantes do despacho de pronúncia e da contestação nomeadamente os seguintes:

- Que o arguido não fosse o responsável pelo pagamento das prestações de IVA a partir de Janeiro de 2005.

- Que o arguido tenha sido gerente de direito e de facto da segunda arguida desde 28.6.2005 a Junho de 2006.

- Que o arguido tenha sido o responsável pelo não pagamento das prestações de IVA relativas aos meses de Maio de 2005, Julho de 2005 e Dezembro de 2005, nos montantes, respectivamente, de € 8.602,62, € 9.449,02 e € 7.922,96.

- Que valor de IVA mensal teria que ser liquidado nos três trimestres referidos na matéria de facto assente (ou seja, o valor do IVA “devido” em cada um desses nove meses).

- Que no período compreendido nas quatro prestações em falta todos os fundos da 2ª arguida, nomeadamente os resultantes das quantias não entregues a título de IVA e os que resultaram de responsabilidades pessoais assumidas pelo arguido, tivessem sido usados exclusivamente para pagamento de salários a fim de evitar despedimentos e situações de miséria.

- Que o arguido tivesse usado o valor do seu PPR para injectar capital na empresa.

- Que nos períodos em causa a 2ª arguida não tivesse recebido a totalidade do IVA liquidado.

- Que as empresas referidas no art. 27 da contestação tivessem ficado a dever à 2ª arguida as quantias, respectivamente, de € 75.000,00, € 13.000,00 e € 25.000.00.

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C) Motivação de Facto

O Tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, na conjugação das declarações do arguido com o teor dos depoimentos das testemunhas Joaquim G... e Fernando M..., inspectores tributários, e documentos juntos aos autos (elementos contabilísticos anexos, de fls. 170 a 228; elementos contabilísticos constantes dos anexos 1, II, III e IV; prints de fls. 11 a 17; 114 a 120, 236 a 247 e 258 a 261; informação de fls. 19 a 21 e certidão de matrícula de fls. 26 a 31).

As declarações do arguido foram relevantes para o apuramento dos factos que lhe são imputados dado que assumiu ser o gerente da 2ª arguida até 28.6.2005 e, nessa medida, o autor material da maior parte desses factos (independentemente das causas de exclusão da ilicitude e da culpa que alegou).

O arguido só não reconheceu ter qualquer responsabilidade na gestão da 2ª arguida quanto às prestações de Maio de 2005, de Julho de 2005 e de Dezembro de 2005.

Como não foi produzida qualquer prova quanto à participação do arguido em qualquer acto de gestão de facto da empresa nos referidos períodos [testemunhal (as já duas referidas testemunhas nada sabiam sobre isso e as outras ouvidas, Manuel A..., Jorge S..., Paulo M..., também não), documental (bem pelo contrário, dela resulta que o arguido deixou de ser “gerente de direito” desde Junho de 2005, conforme escritura junta a fls. 638 e acta nº 14 de fls. 635), pericial, ou qualquer outra], o tribunal só poderia dar como não provados esses factos.

Da defesa do arguido, o tribunal valorizou a utilização por ele das verbas não entregues a título de IVA no giro comercial da empresa (pagamento de todo o tipo de despesas, nomeadamente salários, fornecimentos, e outras) que estava a atravessar dificuldades de tesouraria (o que resulta com clareza do processo de recuperação de empresa de que foi objecto e que está devidamente documentado nos autos).

Nenhuma prova foi, contudo, feita quanto ao uso exclusivo dos fundos da empresa (destinados ao pagamento do IVA ou com origem no próprio património do arguido) para pagamento exclusivo de salários e evitar, por isso, a perda imediata de empregos e situações de miséria.

Da documentação junta com a contestação resulta que o arguido assumiu alguns encargos e efectuou pagamentos, a título pessoal, de dívidas da 2ª arguida (a fornecedores, ao fisco, etc), mantendo-se ainda algumas delas.

Mas dessa documentação, nem foi junta outra, não resulta a matéria de facto alegada no art. 27 da contestação, nomeadamente que a Hispanova tivesse ficado a dever à 2ª arguida cerca de € 75.000,00; que a S..., Lda. tivesse ficado a dever à 2ª arguida cerca de € 13.000,00 e que José M... Unipessoal Lda. tivesse ficado a dever à 2ª arguida cerca de € 25.000,00, sendo que o arguido não estabelece qualquer ligação entre esses clientes e o IVA liquidado nos trimestres em causa.

Nenhuma das testemunhas ouvidas referiu também estes factos especificamente.

Além disso, o próprio arguido na contestação não refere que a empresa não tenha recebido a totalidade do IVA nos trimestres em causa, tendo alegado esses factos como fundamento para os invocados estado de necessidade justificante, estado de necessidade desculpante e conflito de deveres.

Finalmente, quanto aos períodos referidos na matéria de facto assente, as informações da administração tributária, com base na análise da contabilidade da empresa, referem sempre que o IVA nesse período foi recebido na totalidade (cf. por ex. o ponto 5.2. do parecer de fls. 164 e documentação aí referida).

Relativamente ao uso do valor do PPR nenhuma prova documental foi feita e era ela absolutamente necessária, como é óbvio.

Irrelevantes se mostraram as vicissitudes que antecederam a aquisição das quotas do arguido até à cessação das suas funções de gerente, a que já se fez referência.

A administração fiscal foi notificada para vir indicar o montante do IVA que deveria ser entregue mensalmente nos três trimestres referidos na matéria de facto provada mas declarou não ser tal possível atento o regime de tributação escolhido pela 2ª arguida – cf. informação de fls. 858 e 859 e documentação junta de fls. 800 a 898.

O cumprimento do disposto no art. 105 nº 4 do RGIT está documentado a fls. 819 e ss., cumprimento esse que foi requerido pelo próprio arguido – cf. req. de fls. 800 e ss.

O Tribunal teve em conta as declarações do arguido quanto às suas condições sócio-económicas, abonando ainda algumas testemunhas o comportamento do arguido.

O CRC do arguido está a fls. 1009.

A cessação da actividade da 2ª arguida foi pelo arguido e várias testemunhas reconhecido, não existindo registos nos autos de condenações da arguida em penas de multa e coimas.

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Apreciando

1- Nulidade da sentença por falta de fundamentação

Esgrime o recorrente com a nulidade da sentença por falta de fundamentação. Para além de diversas alegações de cariz meramente genérico e conclusivo, invoca o mesmo que relativamente ao processo de recuperação de empresa que se encontrava em curso aquando da falta de pagamento dos períodos tributários em causa, nada se diz na sentença na parte relativa aos factos provados mas que tal circunstância foi referida como depondo a favor do arguido em sede de medida da pena.

Contudo, tal argumentação não colhe.

Desde logo porque no tocante à circunstância em concreto referida (processo de recuperação de empresa que se encontrava em curso), a mesma se encontra efectivamente dada como provada no ponto 9 da factologia apurada.

Depois porque a sentença recorrida cumpre efectivamente os ditames de fundamentação prescritos no nº2 do art. 374 CPP, não se evidenciando, por isso mesmo, a nulidade a que alude a al. a), do nº1 do art. 379º. CPP.

Como é sabido a norma do artigo 374º. do CPP corporiza exigência consagrada no artigo 205º., nº.1 da Constituição da República Portuguesa, ou seja, o dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.

Dever de fundamentação esse que, reportado à sentença, abrange a matéria de facto e a matéria de direito devendo ambas ser alvo de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa - importando ter bem presente esta nota referente à concisão a que alude o preceito que, aliás, se impõe observar em todas as peças processuais - dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas, para que tal peça processual contenha os elementos que, por via das regras da experiência ou de critérios lógicos, conduziram o Tribunal a proferir aquela decisão e não outra e, além do mais, porque só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso.

As acrescidas exigências de fundamentação decorreram, entre o mais, da jurisprudência Tribunal Constitucional Vd. por ex., o Ac. TC nº. 55/85 publicado no BMJ 360 (Suplemento) pág. 195. no sentido de que a fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz "ad quem", que procura, acima de tudo, tomar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - e que visa garantir, em última análise, a "transparência" do processo e da decisão.

Germano Marques da Silva escreveu a propósito que: “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando como meio de autocontrolo”.

Num outro local (“Registo da prova em processo penal”, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. 1, págs. 806-807, Coimbra Editora, 2002) diz ainda este mesmo Autor que “a eficácia do recurso depende substancialmente da fundamentação e da possibilidade de comprovação pelo tribunal ad quem dos pressupostos da decisão. Por isso que a decisão deve ser fundamentada, quer no que respeita à reconstituição do facto quer às motivações de direito… A sentença sem fundamentação é corpo sem alma”.

No tocante à fundamentação de facto exige-se não só a indicação das provas ou meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o art. 410º., nº.2.

Extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade.

Ora, no presente caso a peça recorrida cumpre manifestamente tais requisitos como resulta claro da respectiva leitura, não sendo, por isso mesmo, passível de qualquer censura nesta sede.

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2- Da proibição de valoração de prova

Suscita o recorrente a proibição de valoração de prova no tocante a documentos obtidos no processo de inspecção tributária e ao depoimento do inspector tributário Joaquim Guedes.

Em seu entender os meios de prova carreados para os autos através da inspecção tributária realizada à arguida Protexpol e o depoimento do inspector tributário, cujo conhecimento dos factos adviria de meios de prova obtidos ilegalmente em face do processo penal, devem ser julgados nulos ou quando assim não se entenda proibida a sua valoração, nos termos do disposto nos artºs 126º nº2 al. d) e e) e 3, 267º, 268º, 269º e 270º do Código de Processo Penal, por violação do princípio do nemo tenetur se ipsum accusare (direito à não auto-incriminação).

Invoca, além do mais, a inconstitucionalidade de tal procedimento por violação do princípio do Estado de Direito, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos actos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência, o princípio do processo equitativo e o princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. artºs 1º, 2º, 3º nº2, 18º nº2, 25º nº1, 26º nº1, 32º nº1, 4 e 8 e 34º nº1 da Constituição da República Portuguesa e 6º nº1 da CEDH.

Apreciando, começará por dizer-se que como é sabido, no processo penal comum o arguido goza do direito ao silêncio, da presunção de inocência e do direito à não auto-incriminação.

O princípio nemo tenetur se ipsum accusare - “ninguém tem que acusar-se a si mesmo”, “ninguém deve ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação” - tem como corolários o direito ao silêncio e o direito de não facultar meios de prova e reporta-se à dignidade da pessoa humana, à liberdade de acção e à presunção de inocência, encontrando o seu fundamento imediato nos artigos 20º, nº4 da CRP (que reconhece o direito a um processo equitativo) e 32º (que afirma as garantias da defesa no processo penal).

Sobre esta matéria suscitada no recurso que se pode traduzir no dever de colaboração do obrigado tributário com a autoridade tributária por contraposição com o direito ao silêncio, presunção da inocência e direito à não auto-incriminação, tem-se debruçado recentemente múltipla jurisprudência e, igualmente, alguns estudos jurídicos.

Assim, no Ac. Rel. Guimarães de 29-1-2007, pr. 1917/07-1, rel. Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt, decidiu-se que,

podem ser usados em processo penal os documentos validamente obtidos pela autoridade tributária na fase administrativa inspectiva ao abrigo do dever de cooperação.

Posteriormente, no Ac. Rel. Guimarães de 12-3-2012, pr. 82/05.9IDBRG.G1, rel. Ana Teixeira e Silva (no qual o relator do presente foi adjunto), igualmente disponível em www.dgsi.pt, sumariado da seguinte forma:

I) Podem ser usados em processo penal documentos validamente obtidos na fase administrativa inspectiva ao abrigo do dever de cooperação e depoimentos de quem procedeu a essa inspecção.

II) Tal utilização não viola os direitos consagrados do arguido, ao silêncio e à não “auto-inculpação”.

Escreveu-se o seguinte sobre a mesma questão abordada nos presentes autos:

“… A proibição de prova

Consideram os Recorrentes que os meios de prova carreados para os autos através da inspecção tributária realizada às arguidas “Construções F.D.F.M., Lda.” e “Tavares, Pereira & Carvalho, Lda.” - documentos Melhor identificados na Motivação, último § da respectiva fl. 14, fls. 1497vº dos autos, e Conclusão 13. e depoimento de Eduardo José de Oliveira Ferreira, cujo conhecimento dos factos adveio da inspecção que realizou à “FDFM, Lda.” – configuram prova “proibida” e devem ser “julgados nulos”.

A questão primordial é, assim, a de saber se podem ser usados em processo penal documentos obtidos em inspecção tributária ao abrigo do dever de cooperação e depoimentos de quem procedeu a essa inspecção; ou se tal utilização viola direitos consagrados do arguido, ao silêncio e à não “auto-inculpação”.

Antes de mais, há que precisar que o conhecimento dos factos revelado pela testemunha Eduardo F... não advém exclusivamente (talvez, maioritariamente) da inspecção que levou a cabo à “F.D.F.M.” Decorre do seu depoimento que se socorreu também de dados pré-existentes na Administração Fiscal..

Depois, sem sequer entrar no cerne do problema, é evidente a inaplicabilidade de grande parte das normas As quais, na sua esmagadora maioria, não são minimamente explicitadas, apesar de assim o impor o artº 412º, nº1, e 2, als. b) e c), do CPP. citadas pelos Recorrentes.

À partida, o artº 126º, nºs 2, als. d) e e), e 3, do CPP: não está demonstrado (nem foi alegado) que os documentos em apreço tenham sido conseguidos mediante “ameaça com medida legalmente inadmissível”, “com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto” ou “promessa de vantagem legalmente inadmissível”; ou ainda, mediante “intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.

Concomitantemente, não se vislumbra onde poderá residir a propalada violação do princípio constitucional da “igualdade” ou dos direitos “à integridade moral”, “à reserva da intimidade da vida privada”, da “inviolabilidade da correspondência” (artºs 13º, nº1, 25º, nº1, 26º, nº1, 34º, nº1, da CRP), menos ainda, das “garantias de processo criminal” consagradas nos nºs 4 e 8 do artº 32º da CRP.

Assim como se configura absolutamente incompreensível a convocação dos artºs 268º e 269º do CPP: é que nem as normas do processo penal exigem, na fase de inquérito, a intervenção do juiz de instrução para apreender documentos em empresas do tipo das aqui arguidas.

Mas passemos adiante.

Não oferece qualquer dúvida que, na área do procedimento tributário, o contribuinte está sujeito ao dever de colaboração ou cooperação (artºs 48º, nº2, do CPPT DL 433/99, de 26.10. e 59º, nº1, da LGT DL 398/98, de 17.12.).

E se é óbvio que à Administração Tributária interessa a arrecadação de receitas, estando dotada de várias prerrogativas de actuação V.g., o artº 63º, nº1, da LGT., não é menos certo que na actividade que desenvolve, está vinculada aos “princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários” (artº 55º da LGT).

Sobre a “tensão dialética” que por vezes se estabelece entre o direito do arguido ao silêncio no processo criminal fiscal e o dever de colaboração na fase administrativa de inspecção, começamos por transcrever breve trecho da posição já assumida por esta Relação:

“(…) entre nós vigora o princípio da presunção de inocência já que segundo o artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República, todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

Face a esta presunção compete à acusação a narração ainda que sintética, e a prova dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena em processo criminal.

Simplesmente, o recorrente parece esquecer um outro princípio fundamental: o dever de colaboração ou de cooperação fiscal por parte dos contribuintes expresso v.g. no artigo 59º, n.º 1 da citada Lei Geral Tributária (“Os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração mútua”) e no artigo 48º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro (“O contribuinte cooperará de boa fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”), colaboração que é no dizer de Salvator la Rosa “uma componente indispensável da determinação dos impostos” (apud Saldanha Sanches “Ónus da prova e deveres de cooperação”, in Fisco, n.º6, 15 Mar 1989, págs. 25-26) e não viola aquele princípio constitucional da presunção de inocência (como em Espanha o Supremo Tribunal já teve oportunidade de afirmar - cfr. Miguel Angel Montanés Pardo, La Presunción de Inocência, Aranzadi, 1999, pág. 136), embora entre um e outro, mais exactamente o direito ao silêncio do arguido no processo penal fiscal e o seu dever de cooperação, no processo administrativo de fiscalização, em certas áreas - que não as do caso em apreço - se estabeleça uma certa “tensão dialética”(na terminologia de Nuno Sá Gomes, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º177, 1997, págs. 371-314)” Ac. da RG de 29/01/2007, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho no proc. 1917/07-1, in www.dgsi.pt..

No que aos elementos probatórios ora impugnados concerne, também nós sufragamos, sem reticências, tal entendimento.

Vejamos porquê.

O direito tributário hodierno é naturalmente complexo, composto por inúmeras leis, e não pode ser interpretado senão de uma forma compreensiva e global, em conjugação com outras normas de direito positivo (como as do processo penal) e maxime, com a nossa Lei Fundamental.

Ora, na argumentação expendida, os Recorrentes olvidam toda a fundamentação do sistema fiscal (por natureza, também dos procedimentos tributários) e principalmente, outros valores constitucionais, que àquele estão associados.

Desde logo, a tarefa fundamental do Estado estatuída na al. d) do artº 9º da CRP: “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”; ou a incumbência prioritária, no âmbito económico e social, definida na al. b) do artº 81º: “promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal”.

“A importância concedida ao Direito Fiscal, em boa parte resultante do papel desempenhado pelo imposto no financiamento das actividades públicas, fez com que se criminalizassem, com maior ou menor artificialismo, comportamentos tendentes a frustrar as receitas tributárias do Estado. Ora, relativamente às normas fiscais de pendor punitivo, não se encontram razões que nos permitam afastá-las, no que à tutela dos destinatários diz respeito, das normas penais em geral. Contudo, por este passo não se pode pretender que sejam atribuídas ou reconhecidas às normas de Direito Fiscal garantias que não se acham justificadas pela respectiva natureza jurídica. Reconhecemos, portanto, uma autonomia entre ambos os ramos do Direito que se afirma em duplo sentido” Nuno Pombo, A Fraude Fiscal, Almedina, p. 25..

“O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (artºs 103º, nº1, e 104º, nº3, da CRP), pelo que é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária e sustentada pela lei fundamental, reclama para a sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria seriamente comprometida, integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos impostos naquilo que se apelida de «delinquência patrimonial de astúcia»” Ac. do STJ de 31/05/2006, proc. 1294/06-3, in www.dgsi.pt - embora produzido a propósito de caso concreto diverso, certo é que estas considerações de ordem geral têm plena aplicação em muitos outros e designadamente, no que ora nos ocupa. .

“As receitas tributárias, na sua vertente fiscal, são o principal instrumento de financiamento do Estado, recaindo sobre todos quantos preencham a previsão da respectiva norma de incidência, o dever fundamental de pagar o imposto, que pode ser visto, de resto, de um ponto de vista económico, e seja-nos permitido o excesso, como um preço, aquele que devemos suportar para podermos desfrutar da sociedade, tal como a vivemos. Ainda que seja, como é, um dever, a criminalização da conduta ilegítima em que se traduzem a fraude e a evasão fiscais, funda-se, a final, nesta violação intolerável dos mais elementares deveres de cidadania. Ora, a entender o tributo, numa perspectiva orçamental, como o quantum que a cada um é pedido para se fazer face às despesas do Estado, o sacrifício exigido a cada um será tanto maior quanto mais expressiva for a dimensão dos comportamentos evasivos. Daí que se possa sustentar, sem hipóteses de erro, que do sucesso do combate a estes fenómenos depende a possibilidade de conciliar a manutenção dos níveis prestativos do Estado com a sensível e efectiva diminuição da carga tributária a suportar por cada um dos contribuintes” Nuno Pombo, ob.cit., pp. 268-269..

Os impostos são uma das poucas obrigações públicas dos cidadãos constitucionalmente consagradas Artºs 103º e 104º da CRP; Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 1º vol., 1984, pp. 461 e ss.. O dever de pagar impostos é um dever fundamental de conteúdo cívico-político, que tem como característica fundamental a de ser um dever dos cidadãos para com o Estado, estando aqueles geralmente relacionados com a própria existência e funcionamento da colectividade política organizada; dada essa natureza, reveste a forma de obrigações, cujo cumprimento está rigorosamente regulado pela lei.

Assim se vê que os direitos pretensamente esmagados na óptica dos Recorrentes não são os únicos com assento constitucional e a sua supremacia não pode ser afirmada sem qualquer outra justificação.

Os direitos fundamentais não são um compartimento isolado dentro da Constituição, antes fazem parte integrante da ordem constitucional global, organicamente ligados aos restantes domínios constitucionais. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 109.

Ora, um direito fundamental pode estar em conflito com outros direitos ou com bens constitucionalmente protegidos. O fenómeno da colisão ou conflito de direitos fundamentais verifica-se quando o seu exercício colide, por exemplo, com a defesa e protecção de bens da colectividade e do Estado constitucionalmente protegidos (conflito entre direitos e outros bens constitucionais) Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 135..

Na verdade, o que os Recorrentes fazem é o apanágio da vigência irrestrita e sem quaisquer limitações do direito à não auto-incriminação e do direito ao silêncio; o que se não pode aceitar por representar a prevalência sem quaisquer limitações do princípio nemo tenetur se ipsum accusare sobre os valores constitucionais de tutela do sistema fiscal Veja-se o artigo de Helena Magalhães Bolina, “O direito ao silêncio e o estatuto dos supervisionados”, Revista do CEJ, 2º semestre 2010, nº14, pp. 383 e ss. – apesar de o respectivo objecto ser “o processo de contra-ordenação no âmbito do mercado de valores mobiliários”, grande parte do argumentário teorético ali defendido pela Autora tem também aqui plena aplicação..

Mesmo considerando que os direitos à não auto-incriminação e ao silêncio têm fundamento imediato nas garantias processuais que a CRP impõe (artº 32º) e na exigência constitucional de um processo penal equitativo (artº 20º, nº4) e que as garantias de defesa são extensíveis a qualquer processo onde possam ser aplicadas sanções de carácter punitivo, incluindo não penal, esta vigência alargada não impede que tais direitos possam ser legalmente restringidos no âmbito do ordenamento jurídico português Figueiredo Dias e Costa Andrade, apud Estudo cit. de Helena Magalhães Bolina, p.418.

Ora, tais restrições existem justamente no quadro do desempenho pelo Estado, via Administração Fiscal, de funções de apuramento da situação tributária dos contribuintes, atento o carácter primordial dessa vigilância-fiscalização e simultaneamente, a repercussão na esfera colectiva (no conjunto de utilidades prestativas do Estado, da polícia às forças armadas, passando pelos hospitais, escolas e estradas…) e individual (de cada um dos cidadãos pagadores de impostos).

Os documentos e elementos recolhidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes, ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, não constituem prova proibida.

E sendo validamente recolhidas no âmbito da fase administrativa (inspectiva), tais provas deverão ser tomadas em consideração no processo criminal em que sejam arguidas as pessoas que entregaram esses elementos.

Aliás, não faria qualquer sentido que um agente tributário, no desenvolvimento de uma acção inspectiva, deparasse com uma infracção criminal, que está obrigado a denunciar V.g., os artºs 242º, nº1, al. b), do CPP, e 62º, nºs 1 e 2, al. j) do DL 413/98, de 31.12 (Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária). , e não pudesse suportá-la com os meios de prova entretanto obtidos ao abrigo do dever de colaboração.

Os deveres de informação e de colaboração a cargo dos contribuintes são instrumentos indispensáveis para o funcionamento efectivo e eficaz da máquina fiscal, indispensável à prossecução de outros interesses constitucionalmente protegidos.

O dever de colaboração constitui uma restrição do princípio da não auto-incriminação, justificada pela necessidade de assegurar a incumbência constitucional da tutela do sistema fiscal e legítima por expressamente prevista na legislação tributária ordinária.

Tais elementos podem ser sempre amplamente contraditados Como o foram, efectivamente, no caso em apreço, quer na fase de julgamento quer na de instrução, requerida pelos Recorrentes. no âmbito do processo criminal que venha a ser instaurado, nele operando naturalmente, com total amplitude, todas as garantias de defesa Como nestes autos também vem acontecendo..

Posto, naturalmente, que se não tenha ultrapassado o ponto de compressão dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados encontrado na salvaguarda do direito a não prestar depoimento contra si próprio, núcleo essencial do direito à não auto-incriminação e conteúdo do direito ao silêncio (artº 61º, nº1, al. d), do CPP).

O que nestes autos não aconteceu, como infra melhor se esclarecerá V. 3.2..

Por conseguinte, as provas documental e pessoal mencionadas não configuram “métodos proibidos de prova” nem enfermam de nulidade insanável…”.

Tal acórdão esteve na génese do Ac. TC nº 340-2013, publicado no DR de 11-11-2013, no qual pode ler-se:

“… neste recurso deve proceder -se à fiscalização da norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto -Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte.

Segundo o Recorrente, a interpretação normativa que é objeto do presente recurso é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do direito à integridade moral e à reserva da intimidade da vida privada, do princípio das garantias de defesa, do princípio da tutela jurisdicional dos atos instrutórios e de inquérito, da inviolabilidade da correspondência, do princípio do processo equitativo e da dignidade da pessoa humana, consagrados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 32.º, n.os 1, 4 e 8 e 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 6.º, n.º 1, da CEDH.

Apesar de invocar a violação de múltiplos parâmetros constitucionais, o Recorrente centra a discussão na violação dos direitos do arguido ao silêncio e à não autoincriminação, tendo também sido esse o modo como a decisão recorrida enquadrou a questão de constitucionalidade.

O direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de Direito modernos, encontrando também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cf. artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da ONU).

Intimamente ligado ao direito ao silêncio está o direito do arguido à não autoincriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare. É facilmente explicável a relação deste direito com o direito ao silêncio, uma vez que, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter -se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar -se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.

A Constituição da República Portuguesa não consagra expressis verbis este princípio, mas, não obstante essa não consagração expressa, tanto a doutrina como a jurisprudência têm defendido que o nemo tenetur se ipsum accusare tem assento constitucional, sendo considerado um direito constitucional do processo penal não escrito…

… Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra -se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.

Tal princípio intervém no processo penal sob duas formas distintas: preventivamente, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação e repressivamente, obrigando à desconsideração de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.

Mas tem sido também reconhecido que o direito à não autoincriminação não têm um caráter absoluto, podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias (v.g. a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade).

O critério sob fiscalização neste recurso não respeita a um dever de entrega de documentos autoincriminatórios, no decurso de um processo penal, mas sim à utilização como prova nesse processo de documentos que foram anteriormente facultados pelo arguido à administração estadual, em cumprimento de um dever de colaboração.

Se, em regra, o direito à não autoincriminação, no que respeita à utilização de prova documental em processo penal, não obstaculiza a que possam ser valorados documentos disponibilizados para outros efeitos pelo arguido em data anterior à do início do procedimento criminal, uma vez que nessas situações não está em causa a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo, há situações, como a que ocorre com o critério normativo sub iudicio, em que essa disponibilização é efetuada no cumprimento de deveres de cooperação com entidades administrativas que reúnem meros poderes de inspeção e fiscalização com poderes de investigação criminal, não deixando de existir uma interligação entre o processo inspetivo e o processo criminal…

… Ora, esta documentação e informação cedida pelo contribuinte à administração tributária, no cumprimento dos aludidos deveres de cooperação, é utilizável, não apenas no processo de inspeção, que poderá dar lugar à correção da situação tributária, mas também num eventual processo de natureza sancionatória penal, que venha a ser instaurado na sequência ou no decurso da inspeção.

Uma vez que o incumprimento dos deveres de cooperação pode dar lugar a responsabilidade penal ou contraordenacional, o contribuinte pode ver -se na contingência de, caso se recuse a colaborar com a administração tributária, sujeitar -se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima ou de, caso aceite colaborar, dar lugar a que a administração consiga obter, à sua custa, elementos de prova que venham a sustentar a acusação por crime fiscal.

É justamente devido à circunstância de o contribuinte poder ver-se colocado perante esta alternativa que, neste âmbito, podem surgir tensões com o direito à não autoincriminação, colocando -se a questão de saber se a conjugação do referido dever de colaboração com a possibilidade de utilização dos documentos facultados à administração tributária, no cumprimento do referido dever, como prova em procedimento criminal deduzido com fundamento nos resultados da referida inspeção, implica uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare...

… Sendo certo que a imposição aos contribuintes de deveres de cooperação com a administração tributária, que poderá incluir a entrega, a solicitação desta, de documentos que, depois, num processo de natureza sancionatória penal, possam ser usados contra esses próprios contribuintes, constitui uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que se traduz numa restrição não desprezível daquele princípio, importa apreciar se tal restrição é ou não constitucionalmente aceitável.

A resposta a essa questão terá de passar pela verificação dos pressupostos enunciados no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, como condição da admissibilidade de restrições a direitos, liberdades e garantias: estarem essas restrições previstas em lei prévia e expressa, de forma a respeitar a exigência de legalidade e obedecerem tais restrições ao princípio da proporcionalidade, tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que extrai os direitos ao silêncio e à não autoincriminação no direito ao processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, já tem ponderado a aplicação desses direitos em situações semelhantes à do presente recurso (analisando esta jurisprudência, Ana Paula Dourado/ Augusto Silva Dias, em “Information duties,aggressive tax planning and the nemo tenetur se ipsum accusare in light of Article 6 (1) of the ECHR”, Kofler, G., Maduro, M., Pistone, P. (eds.), em Taxation and Human Rights in Europe and the World, pág 131 e seg, ed de 2011, da IBFD Publications, e Joana Costa, em “O princípio nemo tenetur na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na Revista do Ministério Público, Ano 32 n.º 128, pág. 117 e seg.).

Nos casos Funke v. França (Acórdão de 25 de Fevereiro de 1993), J.B. v. Suíça (Acórdão de 3 de Maio de 2001) e Shannon v. Reino Unido (Acórdão de 4 de Outubro de 2005), o TEDH sustentou que a aplicação de sanções à falta de colaboração de contribuintes na entrega de documentos ou na prestação de informações, sobre os quais já recaía a suspeita da prática de ilícitos criminais violava o artigo 6.º da Convenção.

E no caso Saunders v. Reino Unido (Acórdão de 17 de Dezembro de 1996), na mesma linha, se decidiu que violava o mesmo artigo 6.º da Convenção, a utilização em processo penal de prova recolhida em investigação não judicial, mediante a colaboração do arguido, obtida sob coerção da aplicação de sanções, quando sobre ele já recaíam suspeitas da prática do crime pelo qual viria a ser acusado.

Já este Tribunal, no Acórdão n.º 461/11 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), relativamente à utilização em processo contraordenacional de elementos recolhidos pela Autoridade da Concorrência nas suas atividades de fiscalização e supervisão, entendeu estarmos perante uma restrição admissível do princípio da não auto-incriminação, tendo contudo, na sua argumentação valorado especialmente a circunstância de estarmos perante a possibilidade de aplicação de meras sanções contraordenacionais.

O mesmo concluíram Figueiredo Dias, Costa Andrade e Costa Pinto, relativamente a documentos recolhidos pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, posteriormente utilizados como prova em processo contraordenacional, movido pela mesma entidade (em pareceres publicados em “Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova”,Almedina, 2009).

Apesar de neste caso estarmos perante a utilização como prova de documentos em processo penal, o resultado da admissibilidade da compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare não deve ser diferente.

Assim, e começando pelo primeiro dos aludidos pressupostos de admissibilidade dessas compressões, dúvidas não restam no sentido de que as restrições em análise resultam de previsão legal prévia e expressa, com caráter geral e abstrato, como acima se revelou, mostrando -se por isso respeitadas as exigências decorrente do princípio da legalidade.

Por outro lado, e no que respeita ao segundo dos pressupostos, as restrições em causa são funcionalmente destinadas à salvaguarda de outros valores constitucionais. Com efeito, como é sabido, nas sociedades modernas, o direito tributário reveste -se de enorme complexidade, sendo que o sistema fiscal e as normas relativas ao procedimento tributário têm em vista a realização de tarefas fundamentais do Estado e a salvaguarda de outros valores constitucionais. É aliás, o que resulta do artigo 103.º, n.º 1, ao estabelecer que o sistema fiscal tem como finalidade a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. E é justamente essa importância do sistema fiscal que leva a que, no âmbito da fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais, se estabeleçam os referidos deveres de cooperação dos contribuintes, dos quais poderão resultar a compressão de alguns direitos destes, compressão essa que é entendida como necessária no sentido de evitar que aquela superior e pública finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida. Ou seja, tais restrições estão previstas no quadro das funções exercidas pela administração tributária destinadas ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, sendo que não se poderá deixar de reconhecer a importância e necessidade dessa fiscalização, sendo imprescindível quer a imposição de deveres de cooperação aos contribuintes, quer a possibilidade da posterior utilização dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificação de indícios de infração criminal.

Na verdade, no domínio tributário, a necessidade da imposição de deveres de cooperação é não só perfeitamente justificada, como dificilmente prescindível…

… Por outro lado, como a aplicação duma sanção penal exige a prova da prática do ilícito imputado ao arguido, a inutilização dos elementos recolhidos durante a inspeção à situação tributária conduziria a uma quase certa imunidade penal, como resultado da colaboração verificada na fase inspetiva. Parafraseando Costa Pinto (na ob. cit. pág. 107): o cumprimento da lei na fase de inspeção acabaria por impedir o cumprimento da lei na fase sancionatória, não sendo possível que um sistema jurídico racional subsistisse com uma antinomia desta natureza.

E a restrição em causa respeita o critério da proporcionalidade, sendo adequada, isto é, constituindo um meio idóneo para a prossecução e proteção dos referidos interesses merecedores de proteção constitucional, e necessária, em virtude da mesma corresponder quer a um meio exigível no sentido de obter o fim da eficiência do sistema fiscal, objetivo esse que não se mostra que seria alcançável através de mecanismos alternativos que se revestiriam de excessiva onerosidade para a administração tributária, quer pelo dispêndio de recursos e de tempo, quer pelo risco de ineficácia, face à complexidade, dimensão e multiplicidade de atividades e situações a que têm de responder os modernos sistemas fiscais, no quadro de uma “Administração de massas”.

Acresce ainda que as referidas restrições respeitam a proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que se podem considerar equilibradas, visto que contém mecanismos flanqueadores que salvaguardam uma adequada ponderação dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, entre o direito que é objeto de restrição e dos valores ou interesses que justificam a restrição.

Com efeito, apesar da absoluta necessidade de cooperação dos contribuintes nas tarefas da administração tributária, não está completamente vedada a estes a possibilidade de recusar tal colaboração. De acordo com o artigo 63.º, n.º 4, na redação originária da LGT (a que, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro, corresponde atualmente, com pequenas alterações, o n.º 5) é legítimo ao contribuinte não cooperar na realização das diligências previstas no n.º 1, quanto as mesmas impliquem:

a) O acesso à habitação do contribuinte;

b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional, bancário ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado, salvo os casos de consentimento do titular ou de derrogação do dever de sigilo bancário pela administração tributária legalmente admitidos;

c) O acesso a factos da vida íntima dos cidadãos;

d) A violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei.

E na previsão desta última alínea não deixam de estarem incluídas as garantias de defesa em processo penal, designadamente o direito à não autoincriminação, o qual, como já vimos, é extensível à fase inspetiva tributária, havendo ainda quem sustente ser igualmente aplicável o disposto na alínea c), do n.º 2, do artigo 89.º, do Código de Procedimento Administrativo, ex vi do artigo 2.º, da LGT, na qual se reconhece legitimidade à recusa em colaborar sempre que isso implique a revelação de factos “puníveis, praticados pelo próprio interessado, pelo seu cônjuge ou por seu ascendente ou descendente, irmão ou afim dos mesmos graus” (Cf. Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, na ob. cit., pág. 56).

E, em caso de oposição do contribuinte com fundamento nestas circunstâncias, «a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária» (n.º 5, do artigo 63.º, da LGT, na redação originária, correspondente ao atual n.º 6, por força de renumeração operada pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro).

Significa isto que, nas situações previstas no artigo 63.º, n.º 4, da redação originária da LGT (atual n.º 5), o contribuinte não está colocado, pura e simplesmente, perante a alternativa de cumprir o dever de cooperação, dando lugar a que a administração tributária venha a obter, à sua custa, a prova que sustenta a acusação por crime fiscal, ou de recusar a colaboração, sujeitando -se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima por essa falta de colaboração, podendo legitimamente recusá -la, nos casos e termos acima referidos, o que constitui uma primeira válvula de escape que atenua as exigências decorrentes do dever de colaboração.

Além disso, assistirá também ao contribuinte sujeito a fiscalização, o direito a requerer a sua constituição como arguido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a comprovar a suspeita da prática de um crime, nos termos do artigo 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que permitirá que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto, designadamente o direito à não autoincriminação …

Pelo exposto, há que concluir que a interpretação normativa em questão não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o direito à não autoincriminação, incluído nas garantias de defesa do arguido em processo penal, asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer dos restantes direitos constitucionais invocados pelo Recorrente.

Neste mesmo sentido vão, igualmente, o Ac. Rel. Porto de 27-2-2013, pr. 15048/09.1IDPRT.P1, rel. Ernesto Nascimento, in www.dgsi.pt, no qual se concluiu que nada impede que possam ser utilizados em processo penal, os documentos validamente obtidos na fase administrativa inspectiva ao abrigo do dever de cooperação, pois que não viola os direitos consagrados do arguido, ao silêncio e à não “auto-inculpação ou o estudo “Especificidades na recolha da prova e a sua valoração em julgamento. Dever de colaboração do obrigado tributário versus direito ao silêncio do arguido”. Des. António Gama, em acção de formação no CEJ, Junho e Julho de 2012, no âmbito do Curso de Especialização Temas de Direito Fiscal Penal.

Igualmente, o Des. Cruz Bucho no seu estudo “Sobre a recolha de autógrafos do arguido: natureza, recusa, crime de desobediência v. direito à não auto-incriminação”, de 5-10-2013, disponível no site desta Relação de Guimarães, aborda aprofundadamente a problemática em questão, nomeadamente a págs. 24 a 28, concluindo da mesma forma:

“…Assim, à semelhança do que sucede com o direito ao silêncio também o princípio do nemo tenetur não constitui um princípio absoluto pelo que comporta restrições justificadas.

Como bem refere Maria Elizabeth Queijo “A inexistência do dever de colaborar, em todos os casos, redundaria em uma concepção do nemo tenetur se detegere como direito absoluto, aniquilando, em determinadas situações, por completo, a possibilidade de desencadeamento da persecução penal ou de dar seguimento a ela.

Em outras palavras: equivaleria, em diversos casos, à consagração da impunidade”.

Também o Tribunal Supremo espanhol em recente aresto, de 29 de Janeiro de 2013, proferido no conhecido caso “Marta Castillo” assinalou que “El ejercicio de las garantías procesales, comprensivo de los derechos a no declarar contra uno mismo y a no confesarse culpable, en ningún modo confiere al encausado un derecho absoluto, del que pueda hacer un uso omnímodo en términos de defensa cuando ello lesiona gravemente otros bienes jurídicos igualmente dignos de protección”.

No direito português podem mencionar-se, entre outras, as seguintes limitações ou restrições ao direito ao silêncio e ao direito à não auto-incriminação:

- a obrigação do arguido responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade (artigo 61.º, n.º3, al. b) do CPP);

- a obrigatoriedade de realizar determinados exames, por exemplo de alcoolemia ou de substâncias psicotrópricas, no domínio rodoviário (cfr. artigos 152.º e 153.º do Código da Estrada;

- a obrigatoriedade de sujeição a exames no âmbito das perícias médico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciária competente, prevista pela Lei n.º45/2004, de 29 de Agosto (artigo 6.º);

- os deveres de cooperação perante a administração tributária impostos pela Lei Geral Tributária (artigo 59.º) e pelo Regime Complementar de Procedimento de Inspecção Tributária, aprovado pelo Dec-Lei n.º 413/98, de 31 de Dezembro;

- os deveres de cooperação perante a Autoridade de Concorrência previstos na Lei da Concorrência (artigos 17.º n.º1 als, a) e b) , 18.º e 43.º, n.º3 da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho);

- os deveres de protecção perante a CMVM, previstos no CVM...”.

Daí que, continuando a subscrever-se tal jurisprudência, improceda esta parcela do recurso.

*

3- Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º., nº.2, al. a) CPP)

Invoca o recorrente que a sentença padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º., nº.2, al. a) CPP), já que da mesma não consta que a arguida recebeu as quantias de IVA em causa antes do termo dos prazos dos respectivos pagamentos, Discorrendo, além disso, acerca do valor probatório da documentação constante dos autos. quando é certo que se vem entendendo que só se verifica o crime de abuso de confiança fiscal por não entrega de IVA à administração tributária relativamente a quantias a tal título efectivamente recebidas nos períodos tributários a que se referem.

Pugna, por isso, pelo reenvio dos autos à 1ª instância para investigação e produção de prova no tocante à matéria de facto constante dos pontos 7 a 9 dos factos provados e 7 dos não provados.

O MP na respectiva resposta pronunciou-se sobre a matéria, entendendo falecer razão ao recorrente e invocando, entre o mais, o seguinte:

“… analisando as facturas e recibos constantes dos anexos I, II, II e IV, verifica-se que a totalidade dos recibos emitidos têm data correspondente à data de vencimento da factura.

Assim, de acordo com os documentos constantes nos anexos, a empresa arguida recebeu os montantes constantes das facturas na data de vencimento, incluindo o montante do IV A (conforme descriminado nas notas de lançamento efectuadas nas facturas onde descrimina o valor a creditar na conta clientes e o valor a creditar na conta de IVA).

Argumenta o recorrente que se deveria verificar a documentação contabilística de posse da arguida, a que, aliás, o arguido já não tinha acesso aquando do início do processo.

Os documentos constantes dos autos são documentos da própria contabilidade da empresa arguida que, para todos os efeitos, retrata os movimentos efectuados pela mesma. Ora, a contabilidade não produz nada. É elaborada de acordo com a informação fornecida pela empresa, quer em termos de facturação, quer em termos de recebimentos. A contabilidade só não reflecte a realidade dos movimentos de uma empresa quando estamos perante situações fraudulentas…”.

Apreciando

A questão aqui colocada reporta-se ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova”.

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou o julgamento, ou documentos juntos aos autos, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos”.

A insuficiência a que se reporta a citada al. a) é um vício que ocorre quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz.

Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo, ou seja, ocorre quando a conclusão extravasa as premissas por a matéria de facto provada ser insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo indispensável para se verificar que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão.

Sendo certo também que este tipo de vícios - como tantas vezes tem sido referido - não podem ser confundidos com eventuais divergências entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida e a convicção que, nos termos prevenidos no art. 127º do CPP e com respeito, designadamente, pelo disposto no art. 125º do mesmo diploma, o Tribunal a quo alcançou sobre os factos.

Ora, percorrendo o texto da sentença recorrida, é evidente que se não verifica o pretendido vício, sendo destituída de fundamento a invocação de que da matéria apurada não consta que o arguido recebeu as quantias de IVA em causa antes do termo dos prazos dos respectivos pagamentos, tal qual flui de forma clara dos trechos a negrito a seguir discriminados:

“7- O arguido não enviou ou entregou nos Serviços de Finanças de Póvoa de Lanhoso, ou em qualquer outro serviço da Administração Fiscal, os montantes liquidados e arrecadados, a título de I.V.A., nas vendas a dinheiro cobradas aos seus clientes, para os períodos abaixo mencionados.

8- Tal actuação contabiliza um montante de I.V.A. efectivamente liquidado, recebido e não entregue à Administração Fiscal, nos anos de exercício de 2003 a 2004, repartindo-se por cada período normal trimestral e mensal, nos quantitativos e períodos seguintes:

Terceiro trimestre de 2003, no valor de € 26.233,01, com data de constituição da obrigação em 15.11.2003 e de pagamento em 15.02.2004;

Quarto trimestre de 2003, no valor de € 9.077,10, com data de constituição da obrigação em 15.02.2004 e de pagamento em 15.05.2004;

Segundo trimestre de 2004, no valor de € 7.609,96, com data de constituição da obrigação em 15.08.2004, e de pagamento em 15.11.2004.

9- Deste modo, o arguido António M..., nos períodos de tributação supra referidos, liquidou IVA, apurando montantes a favor do Estado num total global de € 42.920,07, de imposto de I.V.A., que recebeu dos seus clientes e reintroduziu no giro comercial da sociedade (para pagamento de parte de salários, fornecedores e outras despesas uma vez que a 2ª arguida atravessava dificuldades económicas e financeiras, pelo menos desde 2002 por perda dos seus maiores clientes e crédito mal parado de outros, para além de falta de financiamento bancário e forte concorrência internacional, que culminou em 2004 num processo de recuperação de empresa) não os entregando à Administração Fiscal, nos termos e prazos atrás referidos, relativos aos períodos mencionados, nem nos 90 dias subsequentes ao termo do prazo legal de entrega da declaração periódica a que diziam respeito, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei”.

Resulta, por isso, falha de qualquer estribo válido semelhante invocação, sendo irrelevante, além do mais, nesta sede o esforço efectuado no tocante à tentativa de demonstração da particular convicção adquirida pelo recorrente no tocante a quaisquer documentos constantes dos autos.

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4- Inconstitucionalidade da condenação do arguido pelas fracções da continuação criminosa correspondentes a trimestres, sem que se apurassem em concreto os montantes devidos mensalmente e se os mesmos excediam, ou não, € 7.500,00

Tão pouco tem razão o recorrente no que se reporta a esta questão.

Recorde-se o que, a propósito, se escreveu na peça recorrida:

“… Em síntese, diremos que sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT; é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida.

Além disso, foi também cumprida a notificação prevista no art. 105 nº 4, al. b), do RGIT e a situação fiscal não foi regularizada.

No n.º 7 do referido preceito legal, o legislador opta claramente pelo critério da declaração individualizada, assente que o delito se consuma com a não entrega das prestações relativas a cada período.

Por aqui se conclui que a lei estabelece a obrigação de entrega dentro de um certo período.

No caso do IVA, a entrega à Fazenda Nacional deve ser feita até ao dia 15º dia do segundo mês seguinte ao trimestre a que se refere a liquidação ou até ao 10º dia do segundo mês seguinte ao mês a que se refere a liquidação, na hipótese de periodicidade mensal.

E o limite de € 7.500,00 fixado no art. 105, nº 1 do RGIT não pode ser interpretado da forma como o arguido o interpretou (cf. requerimento de fls. 800 e ss.) ou seja por referência apenas a um período de trinta dias (decompondo em abstracto os trimestres em meses a fim de despenalizar a conduta nos meses em que o IVA “idealmente devido” fosse inferior a € 7.500,00).

O limite de € 7.500,00 é para todo e qualquer período fixado na lei, naturalmente, não vislumbrando o tribunal qualquer violação como diz o arguido “dos princípios do Estado de Direito, da segurança jurídica, da tutela do confiança, da proporcionalidade, da igualdade e da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável” previstos nos arts. 2º, 13º nº1, 18º nº2 e 3 e 29 nº 4 d CRP.

Sobre a conformidade do art. 105, nº 7, do RGIT e quanto aos princípios da legalidade criminal e da igualdade já se pronunciou o Tribunal Constitucional, em acordão de 23 de Março de 2011, Ac. nº 146/2011, tirado por unanimidade, para cujos fundamentos, no essencial, remeto…”.

E, por seu turno, no Ac. TC nº 146/2011, de 22-3-2011, sumariado da forma que segue:

“I- O disposto no artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias descreve o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime, nomeadamente qual a prestação cuja não entrega é sancionada penalmente, não prejudicando a remissão contida no seu n.º 7 para as diversas leis tributárias, a necessária compreensão integral pelos cidadãos da conduta aí descrita, pelo que o seu conteúdo não atenta contra o princípio da legalidade em matéria penal.

II- A adopção do critério de que o valor que não foi entregue ao Estado pelo agente é aquele que deveria constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, nos termos determinados pela legislação aplicável a cada imposto, é perfeitamente justificado, uma vez que, residindo este crime na omissão de entrega de determinada quantia respeitante a imposto deduzido ou repercutido, o montante desta só pode ser aquele cuja entrega era devida e que devia constar da respectiva declaração informativa”

pode ler-se, entre o mais, o seguinte:

“… Na sentença recorrida entendeu-se que o critério adoptado pelo artigo 105.º, n.º 7, do RGIT, para a determinação do montante da prestação não entregue, também violava o princípio da igualdade. Considerou--se que a utilização dos valores referentes a cada declaração a apresentar à administração tributária, tal como previsto no referido preceito, para efeitos de delimitação da incriminação, introduz um elemento discriminatório, sem qualquer suporte material, pois que subverte a própria norma incriminadora visto que torna decisivo para efeitos da incriminação, não os valores efectivamente retidos e de entrega legalmente obrigatória mas, de outro modo, os valores resultantes do regime de periodicidade da entrega das declarações fundada em razões de índole meramente burocrática. Argumentou-se que o referido critério conduz, no limite, ao resultado insustentável de tratamento diferenciado para efeitos de incriminação, entre contribuintes que, tendo deduzido em cada um dos meses de certo trimestre o mesmo valor de IVA e estando obrigados a entregar um mesmo valor ao Estado, façam a entrega da sua declaração mensal ou trimestralmente, isto sempre que o valor em causa não exceda aquele definido como penalmente relevante (actualmente € 7500), pois que num caso (entrega da declaração trimestral) haveria crime e no outro (entrega mensal) já não.

Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, que assume maior relevo para apreciação do presente caso, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que se é verdade que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impede, contudo, qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.

O legislador ordinário, utilizando uma ampla margem de liberdade no exercício da sua actividade de criação e conformação dos tipos legais de crime, por razões de política criminal, na tipificação do crime de abuso de confiança fiscal estabeleceu um limite mínimo para o valor do imposto não entregue ao Estado pelo sujeito passivo – € 7 500.

Ora, a adopção do critério de que o valor que não foi entregue ao Estado pelo agente é aquele que deveria constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, nos termos determinados pela legislação aplicável a cada imposto, é perfeitamente justificado, uma vez que, residindo este crime na omissão de entrega de determinada quantia respeitante a imposto deduzido ou repercutido, o montante desta só pode ser aquele cuja entrega era devida e que devia constar da respectiva declaração informativa.

O acto omitido foi o da entrega ao Estado dessa prestação e não dos diversos valores parciais que a integram, pelo que é precisamente o montante dessa prestação que deve relevar para se apurar o valor do imposto não entregue e a consequente dimensão da ofensa ao bem jurídico tutelado pela incriminação aqui em causa.

Se é verdade que os diferentes períodos estabelecidos pelas leis tributárias para a realização de um apuramento do valor do imposto deduzido ou repercutido que deve ser entregue ao Estado pelo sujeito passivo, podem facilitar ou dificultar que as respectivas prestações atinjam o limite previsto no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, isso não retira ao critério estabelecido o seu fundamento material evidente acima apontado, não sendo possível qualificá-lo de arbitrário.

E, no caso particular dos períodos estabelecidos no artigo 41.º do CIVA, a que devem respeitar as declarações periódicas de liquidação do IVA pelos sujeitos passivos, acresce ainda que, com excepção dos casos em que se verificou uma opção por um regime diferente, aqueles que estão sujeitos a um periodicidade mensal são os que têm um maior volume de negócios (igual ou superior a € 650 000 anuais), a que normalmente corresponderão também maiores valores de IVA a entregar ao Estado, enquanto os que estão sujeitos a uma periodicidade trimestral são os que têm um menor volume de negócios (inferior a € 650 000 anuais) e, portanto, em regra, também menores valores de IVA a entregar ao Estado, pelo que a diferente periodicidade acaba por contribuir para uma maior igualação das circunstâncias em que se encontram os sujeitos passivos relativamente à possibilidade de incorrerem na prática de um crime de abuso de confiança fiscal.

No caso limite indicado na argumentação da sentença recorrida não é possível dizer que as duas situações eram idênticas, porque no caso em que o sujeito passivo estava obrigado a entregas mensais, estamos perante três comportamentos individualizados de omissão de entrega de quantias inferiores a € 7500, enquanto o sujeito passivo obrigado a entregas trimestrais tem um único comportamento de omissão de entrega de uma quantia superior a este valor. Esta dissemelhança é fundamento suficiente para um tratamento diverso que resultaria para o primeiro na prática de três contra-ordenações previstas no artigo 114.º do RGIT, e para o segundo na prática de um crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º do RGIT.

Perante esta análise conclui-se que a norma recusada também não viola o princípio constitucional da igualdade.

Não se revelando que o disposto no n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, desrespeite qualquer parâmetro constitucional…”.

Por tais razões improcede, igualmente, esta questão.

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5- Tipo e medida da pena

Nesta sede invoca, basicamente, o recorrente que tendo em conta a prevalência dada pela lei à pena de multa e a factologia apurada, se imporia a aplicação de uma pena de multa (e já não de prisão substituída por multa tal qual se decidiu na peça recorrida) e, por outro lado, deveria tal pena tomar, desde logo, em consideração a parcela do crime que deixou de constar da condenação nesta segunda sentença proferida após acórdão da Relação anulatório da primitiva.

No tocante a esta matéria tem razão o recorrente.

De facto, tal qual já se acentuara no primitivo acórdão desta Relação “tão pouco justificou o Tribunal a quo a sua opção pela pena de prisão que aplicou em detrimento da de multa perante o circunstancialismo referido na sentença e o princípio consignado no art. 70º. CP quanto ao critério de escolha da pena no caso de aplicação ao crime de penas alternativas”.

Ora, a peça recorrida - tal qual faz notar o recorrente - justificou agora a opção pela pena de prisão, em concreto, com razões de prevenção geral (considerando que são hoje muito consideráveis atentas as dificuldades de financiamento que o País atravessa) o que manifestamente não pode colher, uma vez que os factos aqui em causa remontam a 2003 e 2004 e não ao presente em que o país está intervencionado.

Daí que deva antes optar-se por uma pena de multa já que a mesma no presente caso, perante a factologia apurada, se nos afigura suficiente à realização das finalidades da punição.

Multa essa, naturalmente, a graduar de acordo com o circunstancialismo a que alude o art. 71º. CP e na definição da qual, em qualquer caso, o Tribunal a quo deveria igualmente ter tido presente a parcela que foi eliminada da condenação (aproximadamente 1/5).

Ora, sendo certo, tal qual se escreveu na peça recorrida, que:

“… A conduta do arguido António M...integra a moldura penal prevista no n.º 1 do seu art. 105.º, sendo-lhe aplicável uma pena de prisão de um mês a três anos ou pena de multa de 10 até 360 dias (art. 12.º, n.º 1).

A infracção mais grave que integra a continuação criminosa é a falta de entrega da prestação de € 26.233,01 (o que é um valor muito significativo).

A infracção menos grave é a falta de entrega da prestação de € 7.609.96.

A estas acrescem, entre aqueles valores, mais 1 prestação (ao todo são 3).

A quantia total não entregue, ascende a € 42.920,07.

Tendo isto em conta, temos contra o arguido:

O grau relativamente elevado de ilicitude do facto.

O grau médio de culpa do agente.

A intensidade do dolo directo.

O número total de cotizações em falta (3) e o montante total em dívida já referido (que é muito significativo, repete-se).

A seu favor temos:

A integração social e familiar.

A ausência de antecedentes criminais.

A data da prática dos factos e a sua idade.

A circunstância de as quantias em falta terem sido usadas no giro da empresa para pagamento de parte de salários, fornecedores e outras despesas.

A circunstância de o arguido ter assumido pessoalmente o pagamento de algumas das dívidas da empresa para com várias entidades (bancos, fornecedores e administração fiscal, entre outros) …”.

Afigura-se-nos adequado fixar tal pena de multa em 170 dias, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz € 1.190,00, mantendo-se a autorização para que a mesma seja paga em 6 prestações mensais e sucessivas (as 4 primeiras de € 198,00 e as 2 últimas de € 199,00) vencendo-se a primeira 10 dias após trânsito e as outras em igual dia dos meses seguintes.

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III- Decisão

Nos termos expostos, na parcial procedência do recurso, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em, revogando nesta sede a sentença recorrida, condenar o arguido António M...pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, nºs. 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 5-6, e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz € 1.190,00, que se autoriza sejam pagos em 6 prestações mensais e sucessivas (as 4 primeiras de € 198,00 e as 2 últimas de € 199,00), vencendo-se a primeira dez dias após trânsito e as restantes em igual dia dos meses seguintes.

Sem tributação.