Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
79/10.7TAVVD
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AUTONOMIA DA ACÇÃO
REGIME APLICÁVEL
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) A circunstância de não terem ficado provadas com exactidão algumas das datas em que ocorreram episódios de agressões físicas e psíquicas à mulher do arguido, não configura nulidade de sentença, uma vez que, o que é essencial é a descrição dos factos concretos imputados e praticados pelo arguido, ainda que de forma sintética, na medida em que isso será suficiente para a organização da defesa constitucionalmente garantida no artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
II) Com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, no que ao crime de maus tratos respeita, houve um alargamento do tipo, verificando-se a autonomização do crime de violência doméstica (artigo 152.º), passando o crime de maus tratos a estar previsto no artigo 152.º-A.
III) Em face da nova redacção introduzida pela citada lei o crime de violência doméstica pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
1. Nestes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 79/10.7TAVVD, a correr seus termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, o arguido Manuel M..., já melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, após o que foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, o Tribunal decide:
1.º condenar o arguido Manuel M... pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º n.º 1 a), n.º 2, n.º 4 e n.º 5 do Código Penal numa pena de três anos e seis meses de prisão;
2.º condenar o arguido Manuel M... pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido nos termos dos artigos 86.º n.º 1 c), 90.º, 93.º e 94.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2.º n.º 1 x) e ae) e 3.º n.º 1 l) e n.º 4 a) numa pena de um ano e seis meses de prisão;
3.º condenar o arguido Manuel M... pela prática de um crime de falsidade de declaração, previsto e punido nos termos do artigo 359.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal numa pena de oito meses de prisão;
4.º em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido Manuel M... na pena única de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, sob condição de o Arguido se submeter a regime de prova, cujo plano individual de readaptação social será determinado e acompanhado pelo Instituto de Reinserção Social, devendo nomeadamente o Arguido responder a convocatórias do técnico de reinserção social, receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como qualquer deslocação superior a 8 dias e sobre a data do previsível regresso.
5.º Condena-se ainda o arguido Manuel M..., ao abrigo do disposto no artigo 152.º n.º 4 e n.º 5 do Código Penal na pena acessória de proibição de contacto com Maria das M..., incluindo o afastamento do prédio onde a mesma reside, e proibição de uso e porte de armas por um período de quatro anos e seis meses.
6.º Condena-se o arguido Manuel M..., ao abrigo do disposto no artigo 152.º n.º 4 e n.º 5 do Código Penal na pena acessória de frequência de um programa específico de prevenção da violência doméstica, a iniciar no prazo máximo de seis meses.
7.º Declaram-se perdidas a favor do Estado as armas designadas «Star» e «Colt», mais bem identificadas a folhas 148 e 149 dos autos.
8.º Após o decurso do período de proibição de uso e porte de arma referido em 5.º será ordenada a restituição ao arguido da espingarda mais bem identificada a folhas 149 dos autos.
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Condena-se o arguido no pagamento de 5 UCs de taxa de justiça e dos respectivos encargos – artigo 8.º n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais.»

2. Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso, concluindo a sua motivação nos termos seguintes (transcrição):
«I - O Tribunal Recorrido cometeu erros notórios na apreciação da prova produzida em audiência;
II - Fundamentou a sua convicção apenas no depoimento da assistente e de dois dos seus quatro filhos, as testemunhas Luís M... e Fernando M...;
III - O Tribunal desvalorizou completamente o depoimento produzido em audiência pela filha da assistente e das demais testemunhas;
IV - Mais, essa desvalorização foi feita com base em juízo de valores negativos relativamente às testemunhas referidas no número anterior ao mesmo tempo que o Tribunal ignorava que as duas testemunhas de acusação tinham declarado estar de relações cortadas com o próprio pai, o aqui arguido;
V - Nos factos dados como provados alguns ocorreram há mais de 40 anos e outros há cerca de 40 anos (na infância das testemunhas quando, segundo declararam tinham 5/6 anos) o que ao serem utilizados como justificação da condenação ofende o art° 29° do C.R.P.;
VI - É o caso dos factos supra referidos sob os n°s. 3, 4, 5 e 6.
VII - Também não podia o Tribunal fundamentar a sua convicção nos factos descritos de forma genérica e indefinidos temporalmente o que, de igual modo, constitui uma nulidade;
VIII - É manifesta a contradição dos depoimentos quer da assistente quer das testemunhas Luís M... e Fernando M... sobre os factos referidos nos n°s. 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 17;
IX - Tais factos reportam-se a ações alegadamente praticadas nos dias 24 e 25 de Fevereiro e 1 de Julho de 2010;
X - Mesmo que esse conjunto de factos vierem a ser considerados como provados, nunca preencheriam no seu todo, o tipo legal de crime de violência doméstica.
XI - O Tribunal não só se equivocou na factualidade que deu como provada como errou na apreciação e valoração dos documentos juntos aos autos;
XII - Efetivamente não tendo Tribunal qualquer competência especifica para comparar um relatório médico com um relatório dum psicólogo, desvalorizando o teor daquele em função deste último em matéria de exclusiva reserva médica;
XIII - Também o Tribunal não atendeu ao circunstancialismo, de resto amplamente documentado nos autos, em que decorreu a busca das armas, a detenção do arguido, a circunstancia em que prestou declarações ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal e à sua posterior retratação relativamente aos seus antecedentes criminais.
XIV - Por isso são absolutamente excepcionais e, por isso também ilegais, as penas parcelares em que o arguido foi condenado, bem como o respetivo cúmulo e penas acessórias.
A sentença recorrida violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
- Art° 26° da Constituição da República Portuguesa;
- Art°s 152° e 359° do Código Penal;
- Art°s 86°, 90° e 93 da Lei 5/2006;
- Art° 410° do Código de Processo Penal.
Os depoimentos prestados em audiência são incindíveis pelo que devem
ser renovados em toda a sua extensão designadamente quanto à assistente,
ao arguido e às três testemunhas Luís M..., Fernando M... e Isabel M....
Por todas as razões expostas entende o Recorrente, que a decisão proferida em 1ª Instância deve ser revogada e substituída por outra que, atendendo às circunstâncias de facto e de direito que o Venerando Tribunal não deixará de atender, fará a esperada Justiça.»

3. O Ministério Público e a assistente Maria M... responderam ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.
4. Nesta instância, o Ministério Público teve vista do processo nos termos do n.º 2 do artigo 416.º do Código de Processo Penal.
5. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«Resultou provado que:
Manuel M... contraiu casamento com a assistente Maria M... em 15 de Agosto de 1966, tendo nascido de tal união quatro filhos, Luís M..., nascido a 16 de Março de 1967, Isabel M..., nascida a 16 de Março de 1967, Fernando M..., nascido a 10 de Julho de 1970, e António M..., nascido a 10 de Julho de 1970.
Desde o início do casamento o arguido e a assistente sempre residiram em habitações situadas em Vila Verde e ultimamente residem na P... Outubro, em Vila Verde.
Uns dias antes da realização do casamento o arguido desferiu bofetadas e murros na cabeça, nos braços e nas costas da assistente, provocando-lhe dores nas partes do corpo assim atingidas, o que ocorreu numa residência situada em Nevogilde, Vila Verde.
Após o casamento, em diversas ocasiões que não foi possível apurar, no interior da referida última residência do casal, o arguido desferiu bofetadas, murros e pontapés no corpo da assistente ao mesmo tempo que a apodava de “puta”, “vaca”, “vadia”, o que ocorria na presença dos filhos do casal, à data ainda menores.
Também por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, a assistente pediu ao arguido dinheiro para fazer face às despesas do dia-a-dia, ao que aquele lhe retorquia “puta, vaca, vadia, sua vagabunda, vai trabalhar sua puta que te tenho mantido há muitos anos”.
Ainda após o casamento, em outras ocasiões, que não foi possível circunstanciar temporalmente, o arguido disse à assistente que a iria matar.
No dia 24 de Fevereiro de 2010, ao início da tarde, o arguido substituiu as fechaduras da entrada principal da residência do casal, enquanto a assistente permanecia no seu interior, assim impedindo que esta saísse da referida residência.
Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido desferiu pontapés, sobretudo na zona da barriga, provocando dores à assistente.
Após, o arguido abriu a porta principal da residência, deslocou-se para o exterior da mesma, fechou a referida porta, deixando no seu interior a assistente que assim ficou impedida de sair da referida residência, não lhe tendo entregue a chave da nova fechadura.
No dia seguinte (25 de Fevereiro de 2010), pelas 08h30, a assistente dirigiu-se ao arguido e questionou-o acerca da mudança de fechadura, tendo de imediato o arguido desferido murros na cabeça e estalos nos ouvidos da assistente, empurrou-a contra as grades do aquecimento central, o que provocou a sua queda e, com esta no chão, pontapeou-a, incidindo sobretudo na zona abdominal.
Em virtude de tais agressões a assistente teve que ser assistida medicamente no Hospital da Misericórdia de Vila Verde.
Como consequência das agressões descritas sofreu a assistente as seguintes lesões: escoriação linear na hemiface esquerda, com 1,5cm de comprimento, equimose violácea na face antero-lateral do antebraço direito, terço distal, com 2 x 1 cm de maiores dimensões e equimose azulada, na face posterior do braço esquerdo, terço médio, com 1,5cm de diâmetro.
As lesões supra referidas causaram à assistente 7 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
Em virtude dos factos descritos a assistente passou desde data não concretamente apurada a fechar a porta do espaço onde habita à chave, de forma a impedir que o arguido aí se introduza e continue a praticar actos idênticos aos descritos.
Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre Março e Maio de 2010, na porta de acesso aos apartamentos onde habitam, o arguido apontou um berbequim à cabeça da assistente, querendo assim dar a entender que seria capaz de perfurar a sua cabeça com tal instrumento.
Após o dia 24 de Maio de 2010 o arguido, por diversas vezes, quando encontrou a assistente nas escadas do prédio onde residem, disse-lhe de forma séria “põe-te a pau comigo.
No dia 1 de Julho de 2010, no período da tarde, no Tribunal de Família e Menores de Braga, o arguido dirigiu-se à assistente e aos filhos e disse em voz alta “sois todos uns filhos da puta, tenho que me livrar dessa mulher que é um empecilho”.
Ao proferir as expressões injuriosas acima descritas, dirigidas à assistente, o arguido sabia que a atingia na sua honra e consideração pessoal, o que quis.
O arguido agiu ainda com o propósito, concretizado, de agredir fisicamente a assistente, bem sabendo que causava dores e lesões no corpo desta assistente, o que quis.
Ainda com as condutas descritas, em especial com as ameaças proferidas, o arguido pretendia que a assistente ficasse privada da sua liberdade pessoal e com medo que aquele a voltasse a agredir e até a matar, o que conseguiu.
Em consequência das condutas do arguido, a assistente sentiu humilhação, ansiedade e medo permanentes, na medida em que não sabia o que esperar do arguido, nomeadamente, se iria recomeçar a sequência das agressões, ameaças e insultos inclusive na presença dos filhos menores.
O arguido quis actuar do modo descrito, sabendo ainda que infligia maus tratos à assistente e que, assim, a molestava física, moral e psicologicamente, com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder, sabendo que o fazia a coberto da privacidade da residência onde habitavam e na presença de menores filhos do casal.
No dia 24 de Maio de 2010 o arguido detinha, no interior do prédio onde o mesmo habita (Praça 5 de Outubro, em Vila Verde), os seguintes objectos, que foram apreendidos:
a. uma pistola da marca Colt Automatic (arma de fogo curta e semiautomática), de cor preta, calibre .25, com o número de série 173884, com coldre em pele de cor castanha e um carregador da pistola Colt Automatic com 5 munições 6.35mm, no interior de um cofre, no estabelecimento comercial, situado no rés-do-chão;
b. uma pistola (arma de fogo transformada) de marca Star, de cor preta, calibre 6.35mm, sem número de série, adaptada para deflagração de munições 6.35mm, com coldre em pelo de cor preta, contendo no seu interior um carregador da pistola Star, de cor preta, calibre 8mm-FT, com 5 munições 6,35mm, encontrando-se municiada, no interior do quarto do arguido;
As armas referidas em a) e b), não se encontram manifestadas, não tendo o arguido licença de uso e porte de tais armas.
O arguido tinha em seu poder as mencionadas armas, carregadores e munições que, pelas suas características, sabia ser de detenção e uso proibidos por lei, uma vez que não possuía licença de uso e porte das mesmas.
Sabia ainda o arguido que uma vez que não possui licença de uso e porte de tais armas não se encontrava também autorizada a possuir as munições/carregadores referidos.
No dia 24 de Maio de 2010, pelas 17h45, o arguido foi interrogado nesta qualidade, no âmbito do presente inquérito, que corre termos neste Tribunal, em primeiro interrogatório judicial de arguido, audiência presidida pelo Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal Dr. António F.....
Nessa altura foi previamente advertido pelo Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal, que o interrogou como arguido, de que estava obrigado a responder com verdade sobre a sua identidade e antecedentes criminais, bem como de que a não veracidade das respostas a tais perguntas o faria incorrer em responsabilidade criminal.
Perguntado então sobre o seus antecedentes criminais, nomeadamente se já esteve preso, quando e por que motivos, e se já tinha sido condenado pela prática de algum crime, o arguido respondeu que nunca respondeu em Tribunal.
Ora, o arguido omitiu as condenações que havia sofrido anteriormente nos seguintes processos, conforme resultava do seu certificado de registo criminal:
a. no processo n.º 198/01.0GBVVD, que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Verde, pela prática do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, praticado em 18/05/2001, pelo qual foi condenado em 21/10/2002 na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €10,00, transitada em 11/11/2002.
b. no processo n.º 1121/04.6TABRG, que correu termos no Tribunal Judicial de Braga, pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, praticado em 16/09/2004, pelo qual foi condenado em 6/11/2006 na pena de 200 dias de multa à taxa diária de €10,00, transitada em julgado em 4/02/2008.
O arguido quis omitir os supra referidos antecedentes criminais, consciente da sua obrigação legal de responder com verdade sobre todos os seus antecedentes criminais e das consequências de tal conduta.
O arguido sabia sempre que a sua conduta era proibida e penalmente punível e, por isso, censurável.
O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
1.º no processo sumário n.º 198/01.0GBVVD do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde foi condenado em pena de multa pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, por factos ocorridos em 18 de Maio de 2001 e decisão de 21 de Outubro de 2002;
2.º no processo comum singular n.º 1121/04.6TABRG do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga foi condenado em pena de multa pela prática do crime de difamação, por factos ocorridos em 16 de Setembro de 2004 e decisão de 06 de Novembro de 2006;
O Arguido possui três apartamentos, uma vivenda e um estabelecimento comercial, três veículos comerciais e um ligeiro de passageiros, aufere um rendimento mensal sempre superior a mil euros e paga uma prestação mensal de € 850,00 à mulher.
Tem o 4.º ano de escolaridade.»
1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):
«MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
No dia 22 de Março de 2010, o arguido, no interior da última referida residência do casal, torceu o braço da assistente e empurrou-a contra o corrimão das escadas, causando-lhe dores nas partes do corpo assim atingidas.
Não obstante, em data que não foi possível apurar, o arguido, dotado de uma ferramenta que não foi possível identificar, deslocou-se até junto da porta da residência da assistente e começou a furar a fechadura, para tentar abri-la, tendo sido demovido de o fazer pelos filhos de ambos, que entretanto se dirigiram ao local.
O arguido repetiu a conduta descrita em 16) por diversas vezes, tendo a última ocorrido pelas 11h30 do dia 20 de Maio de 2010, quando o arguido tentou mais uma vez entrar no apartamento onde a assistente habita.
No dia 31 de Maio de 2010 o arguido encontrou novamente a assistente nas escadas do prédio onde habitam e mais uma vez disse-lhe em tom sério “põe-te a pau comigo”.»

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«Relativamente ao crime de violência doméstica, a convicção do Tribunal fundou-se, desde logo, nas declarações prestadas em audiência de julgamento pela ofendida e testemunhas Luís M... e Fernando M..., corroboradas pelos documentos de folhas 24 a 27, 36 e 42 a 44.
A Assistente apresentou uma postura débil, notando-se pelas hesitações e períodos de silêncio que está também emocionalmente muito debilitada. Não se recordou de alguns dos episódios de violência e teve muita dificuldade em situar no tempo aqueles que relatou.
Descreveu com precisão a primeira agressão de que foi vítima, ocorrida em casa dos seus pais, enquanto os mesmos estavam na cozinha e a vítima na sala. Instada quanto ao facto de ter casado não obstante ter sofrido uma agressão 8 dias antes de casar, disse que nada fez por vergonha e depois de expressamente instada acabou por revelar que já estava grávida nessa altura.
Relatou que as agressões físicas ocorriam, em média, todas as semanas, ao início na presença dos filhos menores, quando estes começaram a crescer na sua ausência. As agressões ocorriam com a mão, aberta ou fechada, ou com qualquer objecto que estivesse próximo e ainda com pontapés. Normalmente não recorria a assistência médica por vergonha, uma vez que se trata de uma família muito conhecida na Vila, chegou a recorrer aos serviços de saúde dizendo que tinha tido uma queda ou um acidente.
Relativamente à motivação das agressões ou das discussões a assistente disse que as mesmas ocorriam sem qualquer motivo, aparentando o arguido ser louco.
O Tribunal conferiu credibilidade ao discurso da assistente atendendo, desde logo à sua postura contraída e tímida, não aparentando ser pessoa com capacidade intelectual para inventar e manter os relatos que fez, denotando dificuldades de memória. Por outro lado, o Tribunal atentou no relatório médico de folhas 24 e seguintes, datado de Julho de 2009, no qual se concluiu existir uma preocupação excessiva em corresponder à sociedade e em agradar aos outros, no sentido de ser estimada pelos próximos. Ainda nos termos deste relatório concluiu-se ter a assistente um baixo nível de agressividade e uma baixa hostilidade, uma vez que raramente manifesta a sua agressividade de uma forma directa e explosiva, preferindo retê-la para si. Por outro lado, também se conclui que está mais implicativa e crítica com o arguido. Acresce que a assistente, segundo o relatório que temos vindo a referir, evita o conflito, optando por se calar quando tem uma opinião diferente.
Nesse relatório são também vertidas conclusões no que respeita ao discurso da assistente e que o Tribunal verificou em sede de audiência de julgamento, designadamente: «constatou-se um discurso desorganizado e um pouco lento, com algumas hesitações por nem sempre encontrar as palavras adequadas para exprimir o que pretende», manifestou uma capacidade de cálculo e de raciocínio bastante lentos, «a memória a longo prazo mostrou-se bastante deteriorada».
O arguido negou os factos, admitindo apenas chamar «besta» ou «estúpida» à assistente, mais disse que tudo isto não passa de uma orquestração movida por interesses económicos, sendo que a assistente padece de doença do foro psiquiátrico e tem alucinações, pois que quando viviam juntos ela dizia-lhe que ouvia barulhos inexistentes.
Foi feita referência, não só pelo arguido, mas também por algumas testemunhas a um relatório médico segundo o qual fora diagnosticada uma psicopatia à assistente. Tal relatório consta a folhas 229 e está datado de Janeiro de 2007 diagnosticando uma psicopatia crónica endógena à assistente. Tal diagnóstico, em confronto com o relatório de folhas 24, não confere credibilidade à versão da defesa, a de que era o arguido a ser agredido, ou de que a assistente tem alucinações e se auto mutila. Aliás, o diagnóstico é feito por um médico de medicina interna e conclui que não há definição de doença, enquanto que o relatório de folhas 24 é feito por uma psicóloga, tendo a assistente sido encaminhada pelo serviço de psiquiatria, por outro lado foi expressamente pedido um estudo de deterioração intelectual e de personalidade, pelo que caso fosse detectada uma psicopatia teria a mesma sido referida, o que não aconteceu.
Pelas testemunhas Luís M... e Fernando M... foi referido que haveria algum interesse em fazer passar a imagem de que a assistente estaria louca, com o fito de a internar ou interditar, António M..., irmão do arguido, disse ter aconselhado o irmão a ir à internet informar-se sobre a alegada psicopatia da assistente. De facto, houve uma tentativa por parte do arguido e das testemunha Isabel M... e António Rodrigues de, alicerçados no relatório de folhas 229, fazer crer que a assistente sofre de uma psicopatia que levaria à total invenção dos factos descritos na acusação.
Isabel M... encontra-se desavinda com os irmãos, chegando a demonstrar uma raiva incontida pelo irmão Luís, disse que os irmãos sempre se deram mal e que sempre falaram mal uns dos outros, davam-se mal com a assistente, e agora são muito «amiguinhos», mas que a única coisa que os move são interesses económicos.
O depoimento desta testemunha não mereceu qualquer credibilidade por parte do Tribunal, desde logo pela sua postura em julgamento, de desafio, de desconfiança, respondendo às perguntas que objectivamente lhe foram feitas com juízos de valor. Ainda que os factos descritos na acusação fossem de todo falsos não é comum que a filha do casal se apresente impávida e serena, pois quando muito estaria certamente afectada pelas alegadas mentiras da mãe. Disse que o pai é uma pessoa tolerante, mas quando instada se o viu bater de cinto nos irmãos respondeu de imediato que se o fez foi porque mereceram.
Luís M... apresentou uma postura retraída, tímida, aliás havia requerido que o arguido fosse afastado da sala de audiências durante o seu depoimento, contudo à falta de factos concretos que pudessem alicerçar tal pretensão, foi a mesma indeferida, não deixando o Tribunal de notar o seu retraimento. A testemunha não estava à vontade, tinha uma postura encolhida e um olhar nervoso direccionado à sua Ilustre Mandatária. De todo o modo o seu depoimento foi coerente e objectivo.
Fernando M... foi a testemunha que depôs com maior espontaneidade, dizendo que a mãe era tratado como uma coisa pelo pai e que por nada já o pai batia nos filhos e na mãe de cinto. A mãe era humilhada ao ter que pedir dinheiro ao arguido, nomeadamente dirigindo-se à loja, onde era feita esperar às vezes uma hora até que o arguido lhe desse dinheiro.
João S..., Paula C..., António M... e Maria A... não privaram de modo diário com o casal, alegando nunca ter visto desentendimentos. Maria A... referiu que no início do casamento arguido e assistente viveram em casa dos seus pais, sendo que a testemunha os ia visitar aos fins-de-semana, sendo que a assistente se metia no quarto, pelo que mal a via.
Isabel M... referiu que haveria interesses económicos no apoio dos filhos Fernando e Luís à mãe, contudo, o que mais transpareceu em Tribunal foi o apoio económico que o arguido presta a algumas das testemunhas por si arroladas, ou que estão indirectamente na sua dependência económica. Note-se que a assistente vive da pensão que o arguido lhe dá, auferindo uma reforma de cerca de € 300,00, já o arguido gere o negócio que efectivamente dá rendimentos que é o estabelecimento comercial. João S... é marido da testemunha Isabel e concomitantemente fornecedor do estabelecimento comercial do arguido. Paula C... é mulher da testemunha Fernando M..., encontrando-se em processo de divórcio litigioso, sendo o arguido sua testemunha nesse processo de divórcio, recebe ajuda financeira do arguido. Carlos S... e Carlos C... são funcionários do arguido. Com efeito, resulta dos autos que se alguma testemunha tem interesse em defender uma das «partes» seria exactamente alguma das testemunhas do arguido.
Carlos C... também não mereceu qualquer credibilidade por parte do Tribunal porque disse que a assistente ia para a loja «disparatar» com o arguido, ouvindo este dizer que «não são coisas para se falar aqui», mas quando instado a concretizar o que é que a assistente dizia não o fez, por outro lado, quando novamente instado disse que via a assistente encostada a um canto da loja durante muito tempo, em silêncio.
Relativamente ao episódio de 24 de Fevereiro o arguido admitiu ter mudado a fechadura com o fito de ir arrombar a fechadura do apartamento de cima para se mudar para lá, numa altura em que o seu filho Luís lá tinha os seus pertences guardados. Instado quanto ao facto de a assistente não ter autonomia financeira o arguido disse que lhe dava uma «mesada».
Relativamente à detenção das armas também resultou da prova produzida que as mesmas eram detidas pelo arguido, aliás esse facto foi confessado pelo mesmo. Relativamente à pistola encontrada na loja disse que foi um tio seu que veio ao funeral da esposa e lhe pediu para a guardar sendo que depois se esqueceu de a levar. Instado a dizer à quanto tempo era possuidor da arma disse que há dois meses, mas quando instado quanto à data da morte da tia disse que fora há dois ou três anos. Quanto à pistola de marca «Star» era do seu pai e ficou com ela de recordação; não obstante o arguido já não residisse no apartamento onde foi encontrada esta pistola, a mesma estava dentro de um quarto de que só o arguido tinha a chave.
A assistente e as testemunhas Luís, Fernando e Isabel fizeram referência à existência das armas, afirmando que as mesmas pertenciam ao arguido, inclusivamente a assistente disse que ele chegou a disparar tiros em direcção a uma casa que ainda hoje se lá vêem as marcas.
O Tribunal atendeu ainda ao auto de busca e ao auto de exame de folhas 148 e 149.
Relativamente ao elemento subjectivo, o Tribunal teve em conta as regras da experiência e da normalidade, uma vez que é do conhecimento comum que não é qualquer pessoa que pode ter armas em seu poder, sendo necessárias licenças e autorizações, aliás o arguido bem sabia de tal facto pois que possuía ainda um,a espingarda devidamente licenciada.
No que respeita ao crime de falsidade de declaração disse que estava em pânico e por isso não se lembrou das anteriores condenações, no que não se mostrou credível, porque não são factos que facilmente se esqueçam e porque relativamente aos restantes factos fez o relato que fez também em audiência de julgamento, pelo que não há qualquer indício de pânico, antes pelo contrário.
O Tribunal atendeu ao auto de interrogatório judicial onde consta a advertência feita ao arguido.
O Tribunal concatenou todos estes elementos de prova com as regras da normalidade e da experiência, sendo que o silêncio da assistente durante 40 anos é o espelho da sociedade em que a mesma está inserida, aliás o silêncio da mesma acerca da primeira agressão de que foi vítima também é consequência dos preconceitos sociais, pois que iria fazer a assistente grávida a uma semana do casamento? A denúncia da situação seria um enxovalho para a sua honra e para a da sua família, preferindo assim fazer aquilo que socialmente, há 40 anos atrás, se esperaria dela. Acresce que, para além da educação e do preconceito social estamos perante uma família conhecida na Vila, pelo que as idas frequentes ao Hospital ou ao Centro de Saúde seriam notadas e faladas, sendo logo alvo de comentários e especulações, por isso se compreendendo o silêncio da assistente, que quando interposto o divórcio deixou de sentir a necessidade de ocultar socialmente os factos.
No que se refere à intenção que moveu o Arguido nas diversas actuações, ela resulta das regras da experiência comum e dos resultados que, efectivamente derivaram dessas actuações.
O Tribunal atentou no relatório social de folhas 414 e seguintes, pese embora a superficialidade do mesmo.
O Tribunal atentou ainda no certificado de registo criminal do arguido que, só por si, contradiz a opinião trazida pelas testemunhas defesa de que o arguido é pessoa tolerante e pacífica.
Relativamente às condições actuais do arguido o Tribunal atendeu às suas declarações concatenadas com as das restantes testemunhas.»
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2. Apreciando.
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal( - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso( - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.).
Assim, atento o teor das conclusões formuladas pelo recorrente( - Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar – Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 335; Daí que se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões – Simas Santos e Leal Henriques, obra citada, pág. 107, nota 116.), são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- erro notório na apreciação da prova;
- violação do artigo 29.º da CRP;
- nulidade por fundamentação da convicção em factos descritos de forma genérica e indefinidos temporalmente;
- preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica;
- medida das penas.
2.1. Do erro notório na apreciação da prova.
(…).
2.2. Da violação do artigo 29.º da CRP.
Alega o recorrente que alguns dos factos dados como provados ocorreram há mais de 40 anos e outros há cerca de 40 anos, o que ao serem utilizados como justificação da condenação ofende o artigo 29.º da CRP.
O crime de violência doméstica, com excepção das situações excepcionais em que o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito, pressupõe uma reiteração das condutas que integram o respectivo tipo objectivo e que são susceptíveis de integrar, quando singularmente consideradas, outros tipos de crime, nomeadamente ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação.
De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime as condutas que integram o tipo de ilícito não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos sobre cônjuge.
Neste contexto, entre o crime do artigo 152.º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que podem integrar o crime de violência doméstica.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.
O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo( - Cfr., designadamente, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., págs. 998-999 e Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, págs. 546/547, citados no Acórdão da Relação do Porto de 5/11/2003, in CJ, Ano XXVIII, Tomo III, pág. 219.).
Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.
Esta compreensão, patente à luz do tipo de maus tratos no Código Penal de 1995, é a que resulta também da nova redacção conferida ao artigo 152.º pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, posto que, tanto no regime anterior como no actual, é o estado de agressão reiterado que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio de poder, proporcionada pelo âmbito familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.
O inciso da lei nova “de modo reiterado ou não” não deixa agora qualquer dúvida quanto à posição afirmada pelo legislador de pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial sobre a existência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação necessária, exigindo o tipo de crime, designado de “violência doméstica”, a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral – de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana( - Cfr. Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, n.º 8, 1º semestre de 2008.).
Nesta perspectiva, que temos como a correcta, não faz sentido invocar a violação do artigo 29.º da Lei Fundamental, como o faz o recorrente, posto estarmos perante um crime duradouro ou de execução reiterada, não relevando, autonomamente, as condutas parcelares que conformam o comportamento reiterado típico quer porque não integram, em si mesmas, um comportamento típico, quer porque não são juridicamente valoradas como crimes autónomos.
Improcede, portanto, esta questão.

2.3. Da nulidade por fundamentação da convicção nos factos descritos de forma genérica e indefinidos temporalmente.
O recorrente alega também que o tribunal não podia fundamentar a sua convicção nos factos descritos de forma genérica e indefinidos temporalmente o que constitui uma nulidade.
Em matéria de nulidades rege o princípio da legalidade: a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando for expressamente cominada na lei – artigo 118.º, n.º 1.
Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular – n.º 2 do mesmo preceito legal.
As nulidades da sentença são só as previstas no artigo 379.º, n.º 1, para as quais está previsto um regime específico de arguição, podendo as mesmas ser arguidas em recurso (artigo 379.º, n.º 2).
As demais nulidades devem ser arguidas perante o tribunal onde foram cometidas, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 120.º, ou, se não houver norma especial, no prazo de 10 dias indicado na norma geral do artigo 105.º, n.º 1, que se contará a partir do conhecimento da ocorrência da nulidade, sendo que, naturalmente, a arguição nunca poderá ser posterior ao trânsito em julgado da sentença.
No caso em apreço, dir-se-á que não se vislumbra, nem o recorrente especifica, qual a norma da lei do processo que haja sido violada ou inobservada pelo tribunal a quo ao fundamentar a sua convicção nos factos a que alude o recorrente na conclusão VI.
É certo que não ficaram provadas com exactidão algumas das datas em que ocorreram episódios de agressões físicas e psíquicas à mulher do arguido, o que não surpreende dado o grande espaço de tempo em que ocorreram e a frequência com que ocorreram.
O que se afigura essencial é a descrição dos factos concretos imputados e praticados pelo arguido, ainda que de forma sintética, na medida em que isso será suficiente para a organização da defesa constitucionalmente garantida no artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
O facto de se terem provado agressões físicas (bofetadas, murros e pontapés) e agressões verbais (chamando-lhe “puta” e outros nomes do mesmo jaez) praticadas amiúde pelo arguido contra a mulher, sem se ter conseguido apurar a data exacta da respectiva prática, não impede o direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado na medida em que os factos essenciais – as agressões – já constavam da acusação e as datas exactas da prática das mesmas são factos que não são indispensáveis para a concretização do crime.
Por conseguinte, a sentença recorrida não padece da nulidade que lhe é assacada pelo recorrente, improcedendo o recurso quanto a este fundamento.

2.4. Do preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica.
Sustenta o recorrente que o conjunto de factos ocorridos nos dias 24 e 25 de Fevereiro e 1 de Julho de 2010, ainda que viessem a ser considerados como provados, nunca preencheriam, no seu todo, o tipo legal de crime de violência doméstica.
Sob a epígrafe “Violência doméstica”, estabelece o artigo 152.º do Código Penal:
«1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau, ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.»
Na anterior redacção do Código Penal (anterior à Lei n.º 59/2007, de 4/9), o artigo 152.º dispunha relativamente ao crime de maus tratos (“quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos ou o tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144.º do mesmo diploma”).
Com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, no que ao crime de maus tratos respeita, houve um alargamento do tipo, verificando-se a autonomização do crime de violência doméstica (artigo 152.º), passando o crime de maus tratos a estar previsto no artigo 152.º-A.
Até à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9 (que manteve a incriminação e a moldura penal respectiva), o crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas.
Em face da nova redacção introduzida pela citada lei o crime de violência doméstica pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito( - Cfr. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, págs. 106/107; Acórdãos do STJ de 24/4/2006, Proc. 06P975, in www.dgsi.pt/jstj.).
Conforme se refere na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, de 4/9, «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.»( - Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 10, de 18/10/2006.).
Em suma, para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge.
O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental –, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge( - Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332.).
Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal.
O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos( - Plácido Conde Fernandes, idem, pág. 305.).
No crime de violência doméstica as condutas típicas podem integrar diversos tipos legais, nomeadamente o crime de ofensa à integridade física simples, o de ameaça, o de injúria e o de difamação.
Por toda a matéria de facto subsumível à norma especial do artigo 152.ºdo Código Penal caber inteiramente no âmbito mais vasto da norma geral (artigos 143.º, 153.º, 180.º e 181.º do Código Penal, entre outros possíveis tipos), existe uma relação de especialidade entre a primeira norma e esta última, prevalecendo, por essa razão aquela sobre esta.
Neste sentido, salienta o Prof. Pinto de Albuquerque que «o crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. Tratando-se de crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos, a violência doméstica encontra-se numa relação de subsidariedade expressa (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”)»( - Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, páginas 406 e 407.).
Já anteriormente às alterações do Código Penal introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, perante o crime de maus tratos previsto no artigo 152.º do Código Penal, o Prof. Taipa de Carvalho esclarecia que «as condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.)( - Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 333.).
Na verdade, pode acontecer que realizada a audiência de julgamento as condutas típicas provadas não revelem o especial desvalor da acção pressuposto pelo crime de violência doméstica. Neste caso, resta a punição por aplicação das normas penais gerais, que representam um “minus” em relação ao crime de que o arguido vem acusado ou pronunciado.
Revertendo ao caso dos autos, no conspecto fáctico que importa ter em consideração, ainda uns dias antes da realização do casamento (15/8/1966), o arguido desferiu bofetadas e murros na cabeça, nos braços e nas costas da assistente, provocando-lhe dores nas partes do corpo assim atingidas, o que ocorreu numa residência situada em Nevogilde, Vila Verde.
Após o casamento, em diversas ocasiões que não foi possível apurar, no interior da última residência do casal, o arguido desferiu bofetadas, murros e pontapés no corpo da assistente ao mesmo tempo que a apodava de “puta”, “vaca”, “vadia”, o que ocorria na presença dos filhos do casal, à data ainda menores.
Também por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, a assistente pediu ao arguido dinheiro para fazer face às despesas do dia-a-dia, ao que aquele lhe retorquia “puta, vaca, vadia, sua vagabunda, vai trabalhar sua puta que te tenho mantido há muitos anos”.
Ainda após o casamento, em outras ocasiões, que não foi possível circunstanciar temporalmente, o arguido disse à assistente que a iria matar.
No dia 24 de Fevereiro de 2010, ao início da tarde, o arguido substituiu as fechaduras da entrada principal da residência do casal, enquanto a assistente permanecia no seu interior, assim impedindo que esta saísse da referida residência.
Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido desferiu pontapés, sobretudo na zona da barriga, provocando dores à assistente.
Após, o arguido abriu a porta principal da residência, deslocou-se para o exterior da mesma, fechou a referida porta, deixando no seu interior a assistente que assim ficou impedida de sair da referida residência, não lhe tendo entregue a chave da nova fechadura.
No dia seguinte (25 de Fevereiro de 2010), pelas 08h30, a assistente dirigiu-se ao arguido e questionou-o acerca da mudança de fechadura, tendo de imediato o arguido desferido murros na cabeça e estalos nos ouvidos da assistente, empurrou-a contra as grades do aquecimento central, o que provocou a sua queda e, com esta no chão, pontapeou-a, incidindo sobretudo na zona abdominal.
Em virtude de tais agressões a assistente teve que ser assistida medicamente no Hospital da Misericórdia de Vila Verde.
Como consequência das agressões descritas sofreu a assistente as seguintes lesões: escoriação linear na hemiface esquerda, com 1,5cm de comprimento, equimose violácea na face antero-lateral do antebraço direito, terço distal, com 2 x 1 cm de maiores dimensões e equimose azulada, na face posterior do braço esquerdo, terço médio, com 1,5cm de diâmetro.
As lesões supra referidas causaram à assistente 7 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
Em virtude dos factos descritos a assistente passou desde data não concretamente apurada a fechar a porta do espaço onde habita à chave, de forma a impedir que o arguido aí se introduzisse e continuasse a praticar actos idênticos aos descritos.
Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre Março e Maio de 2010, na porta de acesso aos apartamentos onde habitam, o arguido apontou um berbequim à cabeça da assistente, querendo assim dar a entender que seria capaz de perfurar a sua cabeça com tal instrumento.
Após o dia 24 de Maio de 2010 o arguido, por diversas vezes, quando encontrou a assistente nas escadas do prédio onde residem, disse-lhe de forma séria “põe-te a pau comigo.
No dia 1 de Julho de 2010, no período da tarde, no Tribunal de Família e Menores de Braga, o arguido dirigiu-se à assistente e aos filhos e disse em voz alta “sois todos uns filhos da puta, tenho que me livrar dessa mulher que é um empecilho”.
Em face dos factos descritos dúvidas não restam de que o arguido atentou, de forma reiterada, contra a saúde física, psíquica, emocional e moral da assistente Maria M..., sua mulher.
O quadro fáctico supra descrito é bem elucidativo acerca do tratamento desumano infligido pelo arguido ao seu cônjuge, ao longo do casamento, nele pontificando as humilhações, provocações, ameaças e agressões físicas, psicológicas e morais.
Evidencia-se, assim, uma actuação patentemente violentadora da dignidade e integridade pessoal da ofendida que se configura como integrante do tipo objectivo previsto no artigo 152.º, nºs 1, a) e 2 do Código Penal.
Tendo o arguido agido sempre livre, voluntária e conscientemente, ciente que, ao actuar das formas descritas, molestava física, moral e psicologicamente a assistente, sua mulher, com o propósito de exercer, de forma abusiva, uma relação de poder, sabendo que o fazia a coberto da privacidade da residência onde habitavam e na presença de menores filhos do casal, preenchido está também o tipo subjectivo do tipo legal em causa.
Assim, tendo presentes os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime previsto e punido pelo artigo 152.º, nºs 1, a) e 2 do Código Penal, não merece qualquer censura a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica.
Improcede, portanto, também esta questão.

2.5. Da medida das penas.
Sustenta o recorrente que as penas parcelares em que foi condenado bem como o respectivo cúmulo e penas acessórias são absolutamente excepcionais e, por isso, também ilegais.
Sabido que o arguido se constituiu autor, em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, de um crime de detenção ilegal de arma e de um crime de falsidade de declaração pelos quais foi condenado, o que incontroversamente decorre do factualismo apurado em julgamento, importa apreciar se as penas principais e acessórias que lhe foram concretamente aplicadas se mostram, ou não, ajustadas quanto à sua medida.
A escolha e a determinação da medida da pena envolvem diversos tipos de operações.
Na parte que agora interessa, o julgador, perante um tipo legal que admite, em alternativa, a aplicação das penas principais de prisão ou de multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa de liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.
Tais finalidades, nos termos do artigo 40.º do mesmo diploma, reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina, em seguida, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
Assim, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, o tribunal deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa.
Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção( - A escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial – Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 70.º do Código Penal.) ( - A escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, 2ª edição actualizada, pág. 266.).
O artigo 70.º do Código Penal opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa.
No caso em apreço, a moldura abstracta da pena do crime de detenção ilegal de arma é a de prisão de um a cinco anos ou a de multa de 10 a 600 dias, a do crime de falsidade de declaração é a de prisão de um mês a três anos ou a de multa de 10 a 360 dias e a do crime de violência doméstica é a de prisão de dois a cinco anos, tendo o tribunal recorrido optado pela aplicação de pena privativa de liberdade relativamente aos crimes de detenção ilegal de arma e de falsidade de declaração, o que não vem posto em causa pelo arguido.
A determinação da medida concreta da pena faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71.º do Código Penal, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Criminal, quais sejam, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal – sem esquecer que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – n.º 2 deste artigo.
A partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena no sentido de que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18.º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995( - Cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento, Sentido e Finalidade da Pena Criminal, 2001, págs. 104 a 111.).
No mesmo sentido se orienta o Supremo Tribunal de Justiça ao referir que «se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que - dentro, claro está, da moldura legal -, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social»( - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/1/2000, Processo n.º 1193/99.).
Dito de outro modo, face ao disposto nos artigos 71.º, n.º 1 e 40.º, nºs 1 e 2 do Código Penal, «logo se vê que o modelo de determinação da medida a pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.
Por conseguinte, constituem a culpa e a prevenção os dois termos do binómio com que importa contar para delineamento da medida da pena»( - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/3/2001, CJ, ACSTJ, Ano IX, Tomo I, pág. 245.).
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa( - O mínimo da pena, como já ficou dito, é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, ou seja, nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados.), elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção geral de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República consagra( - Cfr. Figueiredo Dias, ibidem, págs. 105 a 106.).
Por outro lado, a pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação( - Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 88 e 232.).
Daí que a determinação da pena acessória deva operar-se mediante recurso aos critérios gerais consignados no artigo 71º do Código Penal com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita na medida em que a mesma tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral.
Revertendo ao caso dos autos, diga-se que não merece reservas a elencagem de factores de medida da pena a que procedeu a decisão recorrida relativamente a cada um dos crimes cometidos pelo arguido.
O tribunal recorrido teve em atenção todos os elementos disponíveis no processo que interessavam em sede de graduação da pena, sendo avaliada a conduta do arguido em função dos parâmetros legais, que foram respeitados, nada havendo a acrescentar relativamente aos argumentos já aduzidos na fundamentação utilizada para a determinação da medida da pena por cada um dos crimes, que justifique a respectiva alteração, pois que as mesmas se mostram criteriosas e equilibradas, adequadas e proporcionais.
Em favor do arguido militam apenas as suas condições pessoais e económicas, apesar do seu valor diminuto, não se encontrando nem no seu comportamento anterior, nem no seu comportamento posterior, quaisquer circunstâncias que devam ser valoradas a favor do recorrente pois que, apesar de ter assumido a sua falta relativamente ao crime de falsidade de declaração, os autos não evidenciam quaisquer sinais de arrependimento e interiorização do sentido negativo de todas as suas condutas sendo que a este respeito também nada consta da matéria de facto provada.
Por outro lado, em desfavor do arguido, avultam o elevado grau de ilicitude emergente dos factos no que concerne ao crime de violência doméstica dada a persistência na conduta criminosa ao longo dos anos, sendo de grau médio no que respeita aos crimes de detenção ilegal de arma e de falsidade de declaração, o modo de execução dos factos relativamente ao crime de violência doméstica traduzido em agressões físicas e verbais, a relativa gravidade das suas consequências tendo em conta as consequências resultantes para a ofendida, as fortes necessidades de prevenção geral, inclusivamente na sua vertente de prevenção geral negativa ou de intimidação, relacionadas com os crimes de violência doméstica, a elevada intensidade do dolo na forma de dolo directo presente em todas as condutas do arguido e ainda as exigências de prevenção especial tendo em conta as duas anteriores condenações do arguido, embora por factos de diferente natureza, o que denota uma personalidade algo desconforme com a pres­su­posta pela ordem jurídico-penal e há-de ser tomado em consideração quanto à possibilidade de reincidência que no crime de violência doméstica é recorrente.
Deste modo, observados que foram os critérios legais no que respeita aos factores relevantes para a determinação da medida da pena, não se estando perante uma desproporção da quantificação efectuada, nem face a violação das regras da experiência comum, são de manter as penas parcelares aplicadas ao arguido.
O mesmo se diga das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da residência, e de proibição de uso e porte de armas assim como de obrigação de frequência de um programa específico de prevenção de violência doméstica no âmbito do regime de prova.
Como refere a sentença recorrida, quer a conduta do arguido, de tal modo grave, quer a sua personalidade, de tal modo indiferente aos factos, não só justificam, como impõem, a aplicação das referidas penas acessórias durante o período de suspensão de execução da pena de prisão.
A pena única do cúmulo, também chamada pena conjunta, de acordo com o artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, sendo que a diferente natureza das penas em concurso mantém-se na pena única – n.º 3 do citado artigo.
Segundo preceitua o n.º 1 do referido artigo, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão-só, a quantificar a pena única a partir das penas parcelares cominadas.
A primeira observação a fazer face ao regime legal da punição do concurso de crimes é a de que o nosso legislador penal não adoptou o sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo), nem o sistema da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e os singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), tendo mantido todas as opções possíveis em aberto, desde a absorção – aplicação da pena mais grave – ao cúmulo material, passando pela exasperação.
A segunda observação a fazer é a de que a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente.
Como refere Figueiredo Dias, tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique( - Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 421, pág. 291.).
Assim, importante na determinação concreta da pena conjunta será a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso( - Cfr. Acórdão do STJ de 14/02/2007, Proc.º n.º 4100/2006, que aqui acompanhamos de perto.).
Quanto à personalidade do arguido, tendo presente as anteriores condenações pelos crimes de ofensa à integridade física simples e difamação bem como os factos perpetrados e o respectivo contexto, poder-se-á concluir que o ilícito global não permite considerar a existência de uma tendência criminosa.
Por outro lado, não tendo ficado provada a existência de uma relação entre o crime de violência doméstica e os crimes de detenção ilegal de arma e de falsidade de declaração, dever-se-á concluir que os factos não se encontram estreitamente conexionados.
Assim, tudo ponderado e tendo ainda presente o tipo e número de crimes perpetrados, bem como as penas parcelares aplicadas, entende-se ser de manter a pena única de quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, necessariamente acompanhada de regime de prova, bem como as penas acessórias aplicadas, tudo nos termos definidos pelo tribunal a quo.
Improcede, portanto, esta questão.
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 6 de Fevereiro de 2012