Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1297/09.6TBVVD.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: ÁGUAS
PREOCUPAÇÃO
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Para se considerar que os AA são proprietários das águas dos Ribeiros a que aludem na acção, caberia a eles provar, conforme exigência do art.º 1386.º, al. d), do Código Civil, que as adquiriram, por preocupação, até 21 de Março de 1868.
II – Não tendo os AA provado a propriedade das águas, não têm eles também direito à servidão de aqueduto sobre o prédio do R - para condução daquelas águas -, uma vez que a servidão de aqueduto pressupõe o direito à água que se quer conduzir.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1297/09.6TBVVD
Comarca de Braga
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Desembargadora Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Desembargador João Diogo Rodrigues *
António S, Maria S, Rosa R, Domingos E, Adelina P, Plácido R, Maria F, Lino R, Teresa R, António M, Adelaide M, Adelino J, Deolinda S e Maria R intentaram contra Paulo A a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário na qual pedem a condenação do Réu a: reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os prédios que alegaram pertencerem-lhes; reconhecer o direito de propriedade dos Autores às águas de Riobom e Presa do Fareja conforme foi alegado pertencerem a cada um; reconhecer o direito de servidão de aqueduto a céu aberto, implantado no prédio que agora é seu; repor o aqueduto, que abusivamente transformou em subterrâneo, em aqueduto a céu aberto, com capacidade para toda a água de Riobom e Presa do Fareja, como sempre aconteceu, no estado em que o encontrou; construir uma abertura no seu muro, onde começa o aqueduto e outra, a seguir, na parede onde o aqueduto termina, na sua propriedade; destruir a “caixa” que construiu sobre o aqueduto; destruir tudo o que tenha feito e que prejudique a servidão de aqueduto e o acompanhamento das águas; indemnizar os Autores do que se vier a liquidar em execução de sentença.
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Alegam, para tanto e em síntese, que são donos e legítimos possuidores dos prédios rústicos que identificam, estando cada um deles, há mais de 20, 30 e 50 anos, por si e pelos seus antecessores, na sua posse, ininterrupta, pública, pacífica e de boa fé.
Além disso, dizem que também são donos e legítimos possuidores da água do Ribeiro de Santa Marinha, também denominado de Riobom, e da água do Ribeiro de Oriz, ou água da Presa do Fareja, sendo ambos os ribeiros afluentes do Rio Homem e correntes de água pública, não navegável nem flutuável, cuja propriedade foi por eles adquirida por preocupação.
Ou seja, dizem que em tempos imemoriais, há mais de 150 anos, antes da entrada em vigor do Código Civil de 1867, os ante possuidores dos prédios que hoje são dos Autores fizeram o aproveitamento das águas daqueles ribeiros, derivando-as para os seus prédios através de um aqueduto a céu aberto, com uma extensão de cerca de 1.800m2 e talhadouros, que sempre estiveram, desde então até agora, perfeitamente visíveis para toda a gente, e que por eles foram permanentemente mantidos, conservados, reparados e limpos, passando por vários prédios de vários proprietários, antes das águas atingirem os prédios dos Autores.
Os AA aproveitam essa água para rega e lima dos seus prédios, nos dias e meses do ano que indicam, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem violentar ou constranger ninguém, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que são seus proprietários e que não lesam o direito de outrem.
O referido aqueduto a céu aberto atravessava a parte rústica (logradouro) do prédio do Réu, o qual era acompanhado por um carreiro com cerca de 70 centímetros de largura para acompanhamento da água, como acontece em todo o percurso, desde a captação das águas até cada um dos prédios que rega.
Acontece que no mês de Fevereiro de 2009, o Réu decidiu murar todo o seu prédio, impedindo os Autores de acompanharem a água, e transformou o aqueduto a céu aberto em aqueduto subterrâneo, em tubo de plástico cuja dimensão os AA desconhecem, mas que já se revelou insuficiente para a passagem da água que passava pelo aqueduto a céu aberto, que, em consequência, esborda pela parede do aqueduto, junto ao seu início, escorrendo, depois, pelo caminho público.
Acresce que o Réu construiu também uma “caixa” no local por onde passava o aqueduto a céu aberto, estando a conduzir águas domésticas para o aqueduto subterrâneo.
Em consequência da sua atuação, o Réu obriga os AA, para poderem acompanhar as águas, a terem de percorrer cerca de 700 metros.
Além disso, os Autores não puderam regar os seus prédios como o faziam antes, pelo que a produção dos produtos agrícolas, sobretudo feijão e milho, para consumo humano e silagem, foi muito inferior à dos outros anos.
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O Réu contestou, impugnando parte dos factos alegados pelo A., e alegando ainda que quando foi morar para o dito lugar do Rego deparou-se com o aqueduto numa parte a céu aberto e noutra parte subterrâneo, com claros sinais de abandono, pelo que a água saía do aqueduto e inundava o seu prédio, tendo abalado o muro que vedava a propriedade.
Tal facto levou o Réu a realizar obras de conservação, reparação e limpeza do aqueduto em causa, tendo colocado um tubo de plástico apenas na parte subterrânea do mesmo, com vista à estanquicidade da água dentro dele, e construiu ainda uma caixa de visita no seu prédio, com vista à limpeza do tubo, atenta a sua extensão, evitando assim o seu entupimento.
Deduziu ainda pedido reconvencional contra os AA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, alegando que as obras que levou a cabo são da responsabilidade dos autores, nas quais despendeu a quantia de € 1.000,00.
Além disso, o Autor Adelino destruiu as obras que o réu realizou à entrada do seu prédio, causando-lhe prejuízos no valor de € 1.000,00.
Acresce que a falta de manutenção e de limpeza do aqueduto determinou inundações do seu prédio, o que lhe causou desânimo, incómodos e transtornos, uma vez que se viu impossibilitado de cultivar a terra, tendo necessidade de usar galochas para poder percorrer o seu prédio.
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Os Autores replicaram, impugnando a matéria alegada pelo Réu.
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Tramitados regularmente os autos, foi proferida a seguinte decisão:
“Nestes termos e face ao exposto, julgo parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção e, em consequência:
a) Declaro que António S é proprietário e legítimo possuidor do prédio rústico identificado no ponto 1 dos Factos Provados;
b) Declaro que Rosa R é proprietária e legítima possuidora do prédio rústico identificado no ponto 2 dos Factos Provados;
c) Declaro que Domingos E e Adelina P são proprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos identificados nos pontos 3 e 4 dos Factos Provados;
d) Declaro que Plácido R e Maria F são proprietários e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no ponto 5 dos Factos Provados;
e) Declaro que Lino R e Teresa R são proprietários e legítimos possuidores dos prédios rústicos identificados nos pontos 6, 7 e 8 dos Factos Provados;
f) Declaro que Avelino J e Deolinda S são proprietários e legítimos possuidores de ½ do prédio rústico identificado no ponto 9 dos Factos Provados;
g) Declaro que Maria R é proprietária e legítima possuidora do prédio rústico identificado no ponto 10 dos Factos Provados;
h) Absolvo o Réu dos restantes pedidos formulados pelos Autores;
i) Absolvo os Autores do pedido reconvencional formulado pelo Réu…”.
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Não se conformando com tal decisão, vieram os AA dela interpor recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
1ª Os demandantes pediram a condenação do demandado no seguinte:
1. – a reconhecer o direito de propriedade dos demandantes sobre os prédios que se alegou, um por um, pertencerem-lhes;
2. – a reconhecer o direito de propriedade dos demandantes às águas de Riobom e Presa do Fareja conforme foi alegado pertencerem a cada um;
3. – a reconhecer o direito de servidão de aqueduto a céu aberto, implantado no prédio que agora é seu;
4. – a repor o aqueduto que abusivamente transformou em subterrâneo, em aqueduto a céu aberto, com capacidade para toda a água de Riobom e Presa do Fareja, como sempre aconteceu, no estado em que o encontrou;
5. – a construir uma abertura no seu muro, onde começa o aqueduto, e outra, a seguir, na parede onde o aqueduto termina, obviamente, na sua propriedade;
6. – a destruir a “caixa” que construiu sobre o aqueduto, ou nas suas propriedades;
7. – a destruir tudo o que tenha feito e que prejudique a servidão de aqueduto e o acompanhamento das águas e que só poderá verificar-se aquando da inspecção judicial ao local, pois os demandantes não têm qualquer espécie de acesso ao prédio do demandado;
8. – a indemnizar os demandantes do que se vier a liquidar em execução de sentença, conforme o alegado nos artigos 84º, 85º e 86º desta petição inicial.
2ª Realizado o julgamento o demandado foi condenado apenas no nº 1 da primeira conclusão, ou seja, a reconhecer o direito de propriedade dos demandantes sobre os prédios que se alegou, um por um, pertencerem-lhes, constando na douta sentença o que a seguir se transcreve:
3ª Ponderando criticamente o conjunto da prova produzida, cabe assinalar que os depoimentos das testemunhas não permitiram ir para além daquilo que resulta das certidões prediais juntas aos autos, nomeadamente, identifica com suficiente precisão os prédios que são referidos na Petição Inicial e existência não resulta da prova documental.
4ª As testemunhas também revelam desconhecer os concretos termos em que as águas eram repartidas entre os vários "consortes" - ou seja, os concretos "giros" da água -, razão pela qual nada se apurou a tal respeito. Mais importante do que isso, constatou-se que o horizonte temporal a que se referem as testemunhas não permite ao Tribunal concluir pela alegada ocupação das águas em causa nos autos em data anterior à entrada em vigor do Código de 1886, apenas se podendo obter uma conclusão segura para as últimas sete décadas, tendo em consideração o depoimento da testemunha Manuel Coelho, que é quem conhece os prédios há mais anos. Mais nenhum elemento de prova designadamente, escritos - permitiu demonstrar a ocupação com a antiguidade alegada que, deste modo, não se demonstrou.
5ª Também não se demonstrou a alegada aquisição de um prédio ou mais por parte do Réu, sendo certo que, estando em causa a aquisição derivada, o translativo da propriedade apenas se poderia provar por meio de documento autêntico - v.g., certidão da respectiva escritura, notarial ou certidão do registo predial. Nenhum desses documentos foi junto, apesar de notificação para o efeito dirigida pelo Tribunal.
6ª Os depoimentos das testemunhas permitiram conhecer os termos em se procedia o acesso e condução da água pelo terreno cuja vedação foi fechada pelo Réu, resultando do auto de inspecção ao local quais as actuais condições de acesso ao terreno e de acompanhamento dessa água. Nenhum desses meios de prova permitiu concluir pela condução de águas domésticas para o aqueduto, que não foi constatada por qualquer testemunha e não resultou da inspecção ao local.
7ª Os prédios referidos em 1 a 10 são servidos pela água do Ribeiro de Santa Marinha, também denominado de Riobom; e da água do Ribeiro de Oriz, ou água da Presa do Fareja; juntando-se a água do Riobom à da Presa do Fareja, junto a esta e no seu exterior e Ribeiros que são, ambos, afluentes do Rio Homem (pontos 19, 20, 21 e 22 da sentença).
8ª Há mais de 70 anos, os antepossuidores dos prédios referidos em 1 a 10 fizeram o aproveitamento da Água do Riobom e da Água da Presa do Fareja; derivando-as dos ribeiros para os seus prédios através de um aqueduto a céu aberto, aqueduto que existe construído há mais de 70 anos; e que, durante esse tempo, sempre esteve, desde então até agora, visível para toda a gente, e por eles permanentemente mantido, conservado, reparado e limpo; passando por vários prédios de vários proprietários, antes das águas atingirem os prédios referidos em 1 a 10 (pontos 24, 25, 26, 27, 28 e 29 da sentença).
9ª Águas que utilizam e aproveitam para rega e lima dos prédios referidos em 1 a 10, há mais de 70 anos; à vista de toda a gente; ininterruptamente; sem violentar ou constranger fosse quem fosse; sem nenhuma oposição de quem quer que fosse; na convicção de que são seus proprietários, que não lesam o direito de outrem (pontos 30, 31, 32, 33, 34, 35 e 36 da sentença).
10ª Há mais de 80 anos, os antepossuidores dos prédios referidos em 1 a 10 construíram um aqueduto a céu aberto para conduzirem as águas para esses prédios; através de vários prédios e de diversos proprietários, aqueduto que é visível, por onde conduzem e repartem as águas, que mantêm permanentemente conservado e limpo, o que fazem comunitariamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente, designadamente dos proprietários dos prédios onde o aqueduto está implantado; sem oposição de quem quer que seja; sem constranger ou violentar seja quem for; na convicção de que não lesavam, nem lesam, o direito de outrem (pontos 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44 e 45 da sentença).
11ª Ao longo de dezenas e dezenas de anos, nunca existiu qualquer problema quer entre os utilizadores das águas quer com os proprietários dos prédios onde está implantado o aqueduto a céu aberto.
No mês de Fevereiro de 2009, o Réu executou obras de reparação do muro que vedava uma área de terreno sito na rua do Rego, nº 14, da freguesia de Oriz (S. Miguel) do concelho de Vila Verde, onde se encontra implantada uma casa de habitação, sem deixar qualquer passagem para os Autores acompanharem a água.
O aqueduto a céu aberto já identificado, atravessava o terreno referido em 47;
Aqueduto que era acompanhado por um carreiro para acompanhamento da água.
O Réu transformou parte do aqueduto a céu aberto em aqueduto subterrâneo e esse aqueduto subterrâneo é insuficiente para a passagem da água que passava pelo aqueduto a céu aberto (pontos 46, 47, 48, 49, 50 e 51 da sentença).
12ª Que, em consequência, esborda pela parede do aqueduto, junto ao início do aqueduto subterrâneo e escorrendo, depois, pelo caminho público.
O Réu construiu uma “caixa” no local por onde passava o aqueduto a céu aberto.
Em consequência do referido em 47 da sentença, os Autores, para acompanharem a água, têm de percorrer pelo menos mais 150 metros.
Em consequência do referido em 47, os Autores têm menos água para regar os prédios referidos em 1 a 10 do que aquela que antes tinham (pontos 52, 53, 54, 55 e 56 da sentença).
13ª E, a seguir, diz mais: - no que concerne ao direito de propriedade das águas de Rio Bom e Presa do Fareja, cujo reconhecimento é pedido pelos Autores, cabe ter em consideração que, como estes reconhecem, se trata de águas originalmente públicas.
14ª Aquilo que os autores pretendiam era que o Tribunal reconhecesse aquilo que o legislador já fixou há dezenas de anos.
15ª Com efeito, todas as águas, não se sabe, em rigor, foram todas águas públicas; chafurdava na água quem queria… E, com o aumentar dos povos, tinha de aumentar a produção agrícola… quanto mais produção agrícola, mais água era utilizada…mais água passava ao domínio particular.
16ª No nosso país, com o Código Civil, que foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.344, de 25.11.1966, no artigo 1386 esclareceu logo o que eram – e são – águas particulares: São águas particulares (art. 1386 do C.C.):
a) As águas que nascerem em prédio particular e as pluviais que nele caírem, enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites do mesmo prédio ou daquele para onde o dono dele as tiver conduzido, e ainda as que, ultrapassando esses limites e correndo por prédios particulares, forem consumidas antes de se lançarem no mar ou em outra água pública;
b) As águas subterrâneas existentes em prédios particulares;
c) Os lagos e lagoas existentes dentro de um prédio particular, quando não sejam alimentados por corrente pública;
d) Às águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1868, por preocupação, doação régia ou concessão;
e) As águas públicas concedidas perpetuamente para regas ou melhoramentos agrícolas;
f) As águas subterrâneas existentes em terrenos públicos, municipais ou de freguesia, exploradas mediante licença e destinadas a regas ou melhoramentos agrícolas.
2. Não estando fixado o volume das águas referidas nas alíneas d), e) e f) do número anterior, entender-se-á que há direito apenas ao caudal necessário para o fim a que as mesmas se destinam.
17ª E já tinham direito às águas de uma corrente não navegável nem flutuável, adquirido por preocupação, e ressalvado pelo art. 438º do Cód. Civil de 1867 e art. 33º do Decreto nº 5787-IIII e 1386, nº 1, al. d) do Cód. Civil actual, os proprietários de certos prédios rústicos, quando se demonstre que por si e pelos seus antecessores, ininterruptamente, antes de 21 de Março de 1868, à vista e com o conhecimento de toda a gente e mediante regime estável da sua distribuição entre eles estabelecido, vêm aproveitando a água referida para rega e lima desses seus prédios, por meio de obras visíveis, designadamente presa, feita no leito da corrente pelos seus antepassados e seus sucessores permanentemente mantidas e reparadas para aquele efeito, à vista de toda a gente e sem oposição de quem nisso montra interesse.
18ª E também são águas particulares (art. 1387 do C.Civil):
1. São ainda particulares:
a) Os poços, galerias, canais, levadas, aquedutos, reservatórios, albufeiras e demais obras destinadas à captação, derivação ou armazenamento de águas publicas ou particulares;
b) O leito ou álveo das correntes não navegáveis nem flutuáveis que atravessam terrenos particulares.
2. Entende-se por leito ou álveo a porção do terreno que a água cobre sem transbordar para o solo natural habitualmente enxuto.
3. Quando a corrente passa entre dois prédios, pertence a cada proprietário o tracto compreendido entre marginal e a linha média do leito ou álveo, sem prejuízo do disposto nos artigos 1328.° e seguintes.
4. As faces ou rampas é os capelos dos cômoros, valados, tapadas, muros de terra, alvenaria ou enrocamentos erguidos sobre a superfície natural do solo marginal não pertencem ao leito ou álveo da corrente, mas fazem da margem.
19ª Guilherme Moreira e Lobão definiram a preocupação do seguinte modo: - como sendo a tomada por um particular, antes de qualquer outro (pré-ocupante, ocupar antecipadamente) e até 21 de Março de 1868, das águas de uma corrente não navegável nem flutuável, mediante a construção de obras permanentes de captação e derivação. Assim, ocupadas, as águas tornam-se particulares.
Essas obras tanto podem consistir numa presa ou açude, num canal ou engenho de derivação, entre outros.
20ª A preocupação conferia o direito de aproveitamento de águas públicas àqueles que realizassem obras de captação e derivação, desde que não prejudicassem outra levada já construída.
21ª É título legítimo de aquisição de águas qualquer meio legítimo de adquirir, prescrição e usucapião, mas a usucapião só é atendível se for acompanhada de construção de obras visíveis e permanentes.
22ª Pelos depoimentos das testemunhas, cujas passagens se nos pareceram mais significativas, que se juntaram na parte final do texto das alegações, verifica-se, à saciedade que o aqueduto atravessava o prédio rústico do demandado, de ponta a ponta.
23ª Esse aqueduto, como toda a gente sabia, sempre foi a céu aberto. E foi assim que o demandado o adquiriu, sendo bem visível que exercia uma servidão de aqueduto para conduzir a água para 1 a 10 prédios rústicos.
24ª Mas ele, sem consultar qualquer dos interessados, decidiu, em parte, passa-lo a subterrâneo.
25ª Com essa obra alterou o leito do aqueduto, de tal modo que não dava passagem a toda a água que ia do Riobom e da Presa do Fareja, com manifesto prejuízo, como a sentença o reconheceu.
26ª E fechou todas as entradas no prédio rústico não permitindo que os consortes daquelas águas as pudessem acompanhar, como faz toda a gente, em todos os locais, para evitar desperdício.
27ª A razão de ser da acção era exactamente o repor do aqueduto conforme ele estava quando o demandado adquiriu o prédio rústico e urbano.
28ª O Tribunal, não tendo em atenção que a posse das águas do Riobom e da Presa do Fareja foram adquiridas por preocupação, porque existe obra feita como o Mmº Juiz pôde verificar, que é a própria lesada,
29ª ou que foi adquirida e utilizada há mais de 70 anos, por usucapião.
30ª Pelo documento que chegou às mãos do signatário já refere a água do Fareja em 11 de Janeiro de 1873.
Pelo exposto
1. - a sentença recorrida violou, além do mais, os artigos 1386º, 1387º, 1390º, 1393º, 1397º, 1528º e 1529º do Código Civil;
2. – revogar a sentença recorrida, e condenando-se o demandado Paulo Alexandre da Silva Araújo nos termos constantes dos nºs 2, 3, 4, 5, 6 e 7 da 1ª conclusão.
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Pelo recorrido foram apresentadas contra-alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Mais pugna pela não consideração do recurso da matéria de facto, por falta de requisitos legais, assim como pela não admissão do recurso por ser extemporâneo.
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Foi já conhecida pela relatora a questão da admissibilidade do recurso da matéria de facto – que não foi admitido –, assim como da tempestividade do recurso.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se é de revogar a decisão recorrida, face à matéria de facto provada e às disposições legais aplicáveis.
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Foram dados como provados na 1ª Instância os seguintes factos:
1- Pela Ap. 10, de 1975/03/17, António S e Virgínia G têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo do Eido”, composto de oito leiras de lavradio, sito no lugar do Rego, freguesia de Oriz (S. Miguel), do Concelho de Vila Verde, a confrontar do Norte com Joaquim Leitão, de Sul com herdeiros de Domingos José Antunes e de Nascente e Poente com caminho público, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 311 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde, sob o n.º 295/20100802.
2- Pelas Ap. 55 de 2006/03/29 e 1797 de 2009/10/28, a Autora Rosa R tem inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo das Cerdeiras”, de lavradio, com a área de 2.900m2, sito no lugar de Rego, freguesia de Oriz (S. Miguel), do Concelho de Vila Verde, a confrontar do Norte com caminho público para o Rego, de Sul com António Faria Mendes, do Nascente com herdeiros de Domingos José Antunes e de Poente com João de Freitas Leitão, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 314 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 248/20060329.
3- Pela Ap. 4 de 2006/05/11, os Autores Domingos E e Adelina P têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Leira do Talho do Pereira”, com a área de 630m2, sito no lugar do Rego, freguesia de Oriz (S. Miguel), Concelho de Vila Verde, a confrontar do Norte com estrada pública, do Nascente com António Joaquim da Rocha Moreira e do Sul e Poente com Manuel Afonso da Torre, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 315 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 59/19881216.
4- Pela Ap. 3 de 2006/05/11, os Autores Domingos E e Adelina P têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Leiras da Veiga”, composto por três leiras de terra lavradia, com a área de 700m2, sito no lugar de Pedreira, freguesia de Oriz (S. Miguel), Concelho de Vila Verde, a confrontar de Norte com Maria Júlia da Rocha Moreira, de Sul e Poente com o caminho público para a estrada camarária e de Nascente com Manuel Joaquim Leitão, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 319 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 252/20060511.
5- Pela Ap. 1 de 1979/03/29, os Autores Plácido R e Maria F têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo do Souto”, de lavradio com árvores avidadas e oliveiras e borda de mato com carvalhos, sito no lugar do Rego, freguesia de Oriz (S. Miguel), Concelho de Vila Verde, a confrontar de Norte com caminho público para o lugar do Rego, do Sul com Maria Júlia da Rocha Moreira e herdeiros do Mendes, de nascente com Deolinda Mendes e Manuel Joaquim Leitão e do Poente com caminho público para o rego e Deolinda Mendes, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 316 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 294/20100802.
6- Pelas Ap. 52 de 2006/03/29 e 18 de 2007/11/22 os Autores Lino R e Teresa R têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo de Ervação”, composto terra de lavradio, com a área de 2.550m2, sito no lugar do Rego, freguesia de Oriz (S. Miguel), Concelho de Vila Verde, a confrontar de Norte com herdeiros de Domingos José Antunes, do Sul e Nascente com Manuel Joaquim Leitão e de Poente com herdeiros e António Faria Mendes, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 320 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 246/20060329.
7- Pela Ap. 52 de 2006/03/29 os Autores Lino R e Teresa R têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Leira de Via Sande”, composto de terra de lavradio, com a área de 1.160m2, sita no lugar do Rego, freguesia de Oriz (S. Miguel), Concelho de Vila Verde, a confrontar do Norte e Nascente com herdeiros de Domingos José Antunes e do Sul e Poente com Maria Júlia da Rocha Moreira, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 321 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 245/20060329.
8- Pela Ap. 20 de 2006/12/04 os Autores Lino R e Teresa R têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo do Portelo Vago ou Portela de Águeda”, composto por duas leiras, de lavradio, com a área de 768m2, a confrontar do Norte com herdeiros de Domingos José Antunes, de Sul com Manuel António Fernandes, de Nascente herdeiros de Maria Júlia da Rocha Moreira e de Poente com caminho público para a estrada camarária, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 318 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 256/20061204.
9- Pela Ap. 7 de 1966/12/26, os Autores Avelino J e Deolinda S têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição de 1/2 do prédio rústico denominado “Campo da Ervação”, composto por três leiras de lavradio, com duas oliveiras e árvores avidadas, com a área de 1.800m2, a confrontar de Norte com António de Faria Mendes, de Sul com o caminho público para a estrada camarária, de Nascente com herdeiros de Domingos José Antunes e do Poente com Manuel Joaquim Leitão, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 322 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 296/20100802.
10- Pela Ap. 56 de 2006/03/29, a Autora Maria R tem inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Duas Leiras da Penela”, de lavradio, a confrontar do Norte com Maria Júlia da Rocha Moreira, do Sul e Nascente com João Baptista Ferreira Moreira Chaves e do Poente com Manuel Joaquim Leitão, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 344 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º 250/20060329.
11- Cada um dos Autores, em relação aos prédios acima referidos, há mais de 20, 30 e 50 anos que, por si e pelos seus antecessores, está em seu poder, ininterruptamente.
12- Cultivando-os e colhendo os frutos que produzem.
13- Guardando-os e vigiando-os.
14- À vista e com conhecimento de toda a gente.
15- Sem oposição de quem quer que seja.
16- Sem constranger ou violentar seja quem for.
17- Na convicção, de cada um dos Autores, relativamente aos respectivos prédios, que são seus verdadeiros donos e legítimos possuidores.
18- Que não lesam direito de outrem.
19- Os prédios referidos em 1 a 10 são servidos pela água do Ribeiro de Santa Marinha, também denominado de Riobom.
20- E da água do Ribeiro de Oriz, ou água da Presa do Fareja.
21- Juntando-se a água do Riobom à da Presa do Fareja, junto a esta e no seu exterior.
22- Ribeiros que são, ambos, afluentes do Rio Homem.
23- Correntes de água pública, não navegável nem flutuável.
24- Há mais de 70 anos, os antepossuidores dos prédios referidos em 1 a 10 fizeram o aproveitamento da Água do Riobom e da Água da Presa do Fareja.
25- Derivando-as dos ribeiros para os seus prédios através de um aqueduto a céu aberto.
26- Aqueduto que existe construído há mais de 70 anos.
27- E que, durante esse tempo, sempre esteve, desde então até agora, visível para toda a gente.
28- E por eles permanentemente mantido, conservado, reparado e limpo.
29- Passando por vários prédios de vários proprietários, antes das águas atingirem os prédios referidos em 1 a 10.
30- Águas que utilizam e aproveitam para rega e lima dos prédios referidos em 1 a 10, há mais de 70 anos.
31- À vista de toda a gente.
32- Ininterruptamente.
33- Sem violentar ou constranger fosse quem fosse.
34- Sem nenhuma oposição de quem quer que fosse.
35- Na convicção de que são seus proprietários.
36- Que não lesam o direito de outrem.
37- Há mais de 80 anos, os antepossuidores dos prédios referidos em 1 a 10 construíram um aqueduto a céu aberto para conduzirem as águas para esses prédios.
38- Através de vários prédios e de diversos proprietários.
39- Aqueduto que é visível.
40- Por onde conduzem e repartem as águas.
41- Que mantêm permanentemente conservado e limpo, o que fazem comunitariamente.
42- À vista e com o conhecimento de toda a gente, designadamente dos proprietários dos prédios onde o aqueduto está implantado.
43- Sem oposição de quem quer que seja.
44- Sem constranger ou violentar seja quem for.
45- Na convicção de que não lesavam, nem lesam, o direito de outrem.
46- Ao longo de dezenas e dezenas de anos, nunca existiu qualquer problema quer entre os utilizadores das águas quer com os proprietários dos prédios onde está implantado o aqueduto a céu aberto.
47- No mês de Fevereiro de 2009, o Réu executou obras de reparação do muro que vedava uma área de terreno sito na rua do Rego, nº 14 da freguesia de Oriz (S. Miguel) do concelho de Vila Verde, onde se encontra implantada uma casa de habitação, sem deixar qualquer passagem para os Autores acompanharem a água.
48- O aqueduto a céu aberto já identificado, atravessava o terreno referido em 47.
49- Aqueduto que era acompanhado por um carreiro para acompanhamento da água.
50- O Réu transformou parte do aqueduto a céu aberto em aqueduto subterrâneo.
51- Esse aqueduto subterrâneo é insuficiente para a passagem da água que passava pelo aqueduto a céu aberto.
52- Que, em consequência, esborda pela parede do aqueduto, junto ao início do aqueduto subterrâneo.
53- Escorrendo, depois, pelo caminho público.
54- O Réu construiu uma “caixa” no local por onde passava o aqueduto a céu aberto.
55- Em consequência do referido em 47, os Autores, para acompanharem a água, têm de percorrer pelo menos mais 150 metros.
56- Em consequência do referido em 47, os Autores têm menos água para regar os prédios referidos em 1 a 10 do que aquela que antes tinham.
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Da questão da propriedade das águas:
Insurgem-se os AA contra a decisão recorrida, persistindo que “o Tribunal não teve em atenção que a posse das águas do Riobom e da Presa do Fareja foram adquiridas por preocupação, porque existe obra feita como o Mmº Juiz pôde verificar, que é a própria levada ou que foi adquirida e utilizada há mais de 70 anos, por usucapião”.
Mas sem razão, como é bom de ver.
Perante a matéria de facto provada, nenhum reparo temos a fazer à decisão recorrida, que considerou que os AA não lograram provar a propriedade que invocam sobre as águas dos ribeiros do Riobom e da Presa do Fareja e absolveu o Réu dos pedidos no que se refere àquela matéria.
Como decore daquela decisão, que acompanhamos integralmente e que ousamos transcrever, em parte, “No que concerne ao direito de propriedade das águas de Riobom e Presa do Fareja, cujo reconhecimento é pedido pelos Autores, cabe ter em consideração que, como estes reconhecem, se trata de águas originariamente públicas.
Estabelece o art.º 1385.º do Código Civil que “As águas são públicas ou particulares; as primeiras estão sujeitas ao regime estabelecido em leis especiais e as segundas às disposições dos artigos seguintes”.
Na verdade, nos termos do art.º 1.º, n.º 3, do Decreto n.º 5.787 – IIII, de 10.05.1919, são públicas “As valas e correntes de água não navegáveis nem flutuáveis bem como os respectivos leitos nos troços em que atravessarem terrenos públicos, municipais ou de freguesia”.
Mais recentemente, o art.º 5.º, al. c), da Lei n.º 54/2005, de 15.11, estabelece, em termos semelhantes, que são públicos os “Cursos de água não navegáveis nem flutuáveis, com os respectivos leitos e margens, desde que localizados em terrenos públicos, ou os que por lei sejam reconhecidos como aproveitáveis para fins de utilidade pública, como a produção de energia eléctrica, irrigação, ou canalização de água para consumo público”.
Ora, as águas públicas não podem ser objecto de direitos privados, nos termos do art.º 202.º, n.º 2, do Código Civil, o qual estabelece que “Consideram-se (…) fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual”.
Todavia, a aquisição do direito dos particulares ao aproveitamento de águas originariamente públicas, por via de pré-ocupação, era admitida antes da entrada em vigor do Código Civil de 1868, imputando-se aos §§ XI, XII e XIII do Alvará de 27 de Novembro de 1804 a consagração legislativa deste direito, embora, segundo Guilherme Moreira, se tratasse de doutrina que estava em conformidade com os princípios anteriormente adoptados – Cfr., As Águas no Direito Civil Português, Livro I, Coimbra, 1920, págs. 39 e 102.
Essa aquisição foi sendo sucessivamente ressalvada pelo art.º 438.º, do Código Civil de 1868, e pelo art.º 1386.º, al. d), do Código Civil actual, o qual estabelece que “São particulares (…) As águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1868, por pré-ocupação”.
Conforme refere Guilherme Moreira, op. cit., págs. 104 e 105, citando a doutrina de Lobão, “Diz-se tê-las preocupado aquele, que primeiro designou o lugar para a obra, que preparou os materiais para ela, que de alguma maneira lhe deu princípio, que declarou e protestou judicialmente fazê-la ou ainda extrajudicialmente por alguma outra convenção ou ajuste”.
E, prosseguindo, esclarece que, “Adquirido o direito de presa ou de derivar uma certa massa de água do rio público, essa água, logo que entrasse no prédio a cuja irrigação se destinava ou em que era aproveitada como motor, ou no canal ou aqueduto que a conduzia para o fim a que era destinada, deixava de ser pública. Era uma água que havia sido apropriada pela preocupação, uma água particular”.
Conclui, então, que “Pelo facto material da presa da água, que outra cousa não significava a preocupação, realizada por meio de adequadas obras, podiam ser apropriadas as águas públicas no direito anterior ao código civil”.
Essencial para que se reconheça a aquisição por pré-ocupação de águas originariamente públicas é que as obras de captação ou presa dessas águas tenham sido realizadas até 21 de Março de 1868 – Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, pág. 295.
Mais concretamente e como se considerou no Ac. da Relação do Porto, de 7.11.2002, C.J., Ano XXVII, t. V, pág. 165, não basta, para que se demonstre a aquisição por pré-ocupação, que as obras existam desde “tempos imemoriais” ou desde um lapso de tempo suficiente para a usucapião. Indispensável é que se prove que essas obras foram construídas até 21 de Março de 1868.
Ora, em face da matéria de facto provada, impõe-se concluir que os Autores não lograram provar que as obras a que aludem na Petição Inicial foram construídas até 21 de Março de 1868, apenas se provando que as mesmas existem há mais de 70 anos.
Nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Não tendo os autores logrado a demonstração dos factos constitutivos do direito de propriedade sobre as águas de Riobom e da Presa do Fareja, tem que ser julgado improcedente o pedido de reconhecimento desse direito”.
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Ora, não temos como discordar do que consta da decisão recorrida sobre a prova feita pelos AA quanto á propriedade das águas dos ribeiros em questão.
A matéria de facto provada permite tão somente concluir que há mais de 70 anos os ante possuidores dos prédios que hoje são dos AA fizeram o aproveitamento da Água do Riobom e da Água da Presa do Fareja, derivando-as dos ribeiros para os seus prédios através de um aqueduto a céu aberto, construído há mais de 70 anos.
Ou seja, provaram os AA que fizeram obras de derivação das águas daqueels ribeiros para os seus prédios.
E como tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência, a preocupação consistiu na apropriação de águas públicas, através de obras apropriadas de captação, represamento ou derivação, como presas nas correntes não navegáveis nem flutuáveis, aquedutos, canais ou levadas de irrigação de prédios (Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, I, 127; Guilherme Moreira, As Águas…, I, 2ª ed., 115 e Ac. da RP, de 12.11.98: CJ, 1998, V, 192).
Depois de derivadas, tais águas tornaram-se particulares.
Porém, para se terem como integradas no domínio privado, como bem se refere na decisão recorrida, é necessário que a preocupação (uma das formas de aquisição originária das águas, prevista no artº 1386.º, al. d), do Código Civil) se tivesse exercido até 21 de Março de 1868.
Ora, não ficou provado que o represamento, derivação e utilização da água dos ribeiros que vem sendo feita pelos AA e antecessores ocorre desde data anterior a 21.3.1868, o que pressupunha que a referência temporal constante dos factos 24 e 26 (há mais de 70 anos) se situasse há mais de 140 anos (148 anos, mais exactamente).
Não o tendo feito, o pedido formulado pelos AA quanto ao reconhecimento da sua propriedade sobre as águas provenientes dos ribeiros do Riobom e de Oriz (que terão adquirido por preocupação), tinha de improceder, improcedendo, consequentemente, o pedido por eles formulado quanto ao reconhecimento do direito de servidão de aqueduto para condução daquelas águas, implantado no prédio do réu.
Como se refere na decisão recorrida, que acompanhamos também neste segmento, “…No que concerne em particular à servidão de aqueduto, estabelece o art.º 1561.º, n.º 1, do Código Civil, que “Em proveito da agricultura ou de indústria, ou para gastos domésticos, a todos é permitido encanar, subterraneamente ou a descoberto, as águas particulares a que tenham direito, através de prédios rústicos alheios, não sendo quintais, jardins ou terreiros contíguos a casa de habitação, mediante indemnização do prejuízo que da obra resulte para os ditos prédios; as quintas muradas só estão sujeitas ao encargo quando o aqueduto seja construído subterraneamente”.
Do normativo acima transcrito decorre ser requisito essencial à constituição ou reconhecimento da servidão de aqueduto a existência de direito ao aproveitamento de águas particulares, de que a servidão não é mais que um acessório – Cfr., neste sentido, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.11.1974, proc. n.º 065263; Ac. da Relação do Porto, de 30.10.1990, proc. n.º 0123994; Ac. da Relação do Porto, de 19.01.99, proc. n.º 9520828; Ac. da Relação do Porto, de 22.09.97, proc. n.º 9651490; Ac. da Relação do Porto, de 23.03.99, proc. n.º 9820832; Ac. da Relação do Porto, de 4.04.2002, proc. n.º 0230411; Ac. da Relação do Porto, de 29.04.2003, proc. n.º 0020131, todos consultados em www.dgsi.pt.
Como se refere no último dos arestos citados, a servidão de aqueduto, porque se prende com a condução (conduz-se algo), carece da existência, prévia ou simultânea, de um direito à água que se quer conduzir.
Ora, no caso dos autos e atento o que já acima foi dito quanto à propriedade das águas de Riobom e da Presa do Fareja, afigura-se que também cumpre julgar improcedente o pedido de reconhecimento do direito de servidão de aqueduto invocado pelos Autores na Petição Inicial.
Na verdade, os Autores não lograram provar o seu direito às águas conduzidas pelo aqueduto descrito nos Factos Provados, sendo certo que a servidão de aqueduto pressupõe um direito à água que se quer conduzir – é o que resulta da expressa referência a águas particulares, constante da letra do preceito.
Deste modo, devem improceder os pedidos formulados pelos Autores sob os nºs 3 a 7 da Petição Inicial”.
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Também não vemos como discordar das considerações expendidas na decisão recorrida sobre a improcedência dos pedidos formulados pelos AA relacionados com a servidão de aqueduto a onerar o prédio do R.
Como refere José Cândido de Pinho (As águas No Código Civil, Almedina, 1985, pág., 193), a servidão de aqueduto “porque se prende com a condução (conduz-se algo) carece da existência, prévia ou simultânea, de um direito à água que se quer conduzir. Nesta perspectiva, a servidão é sempre um acessório do direito à água. A vida dela pressupõe a deste”.
Assim sendo, como bem entendeu o Tribunal a quo, não se tendo feito prova da aquisição das águas públicas em questão nos autos por preocupação, nunca poderia proceder o pedido referente à servidão de aqueduto.
Essa prova era essencial para a procedência da acção, não podendo o tribunal enveredar, como pretendem os recorrentes, por uma decisão baseada apenas no princípio da equidade, com desrespeito pelos princípios inerentes à prova, como os do dispositivo e do contraditório, inultrapassáveis, cremos, no caso dos autos.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso dos apelantes.
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Sumário do acórdão:
I – Para se considerar que os AA são proprietários das águas dos Ribeiros a que aludem na acção, caberia a eles provar, conforme exigência do art.º 1386.º, al. d), do Código Civil, que as adquiriram, por preocupação, até 21 de Março de 1868.
II – Não tendo os AA provado a propriedade das águas, não têm eles também direito à servidão de aqueduto sobre o prédio do R - para condução daquelas águas -, uma vez que a servidão de aqueduto pressupõe o direito à água que se quer conduzir.
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Decisão:
Pelo exposto, Julga-se improcedente o recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas da Apelação pelos recorrentes.
Guimarães, 15.10.2016.