Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
128/08.9TAVN-C.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: REVOGAÇÃO SUSPENSÃO PENA
INCUMPRIMENTO CONDIÇÃO SUSPENSÃO
VIOLAÇÃO GROSSEIRA
ARTº 56º
DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Cai na previsão da alínea a), do artigo 56.nº1, o comportamento do arguido/condenado que não revelou o mínimo esforço por corresponder positivamente à oportunidade que o tribunal da condenação lhe facultou ao decidir-se pela suspensão da execução da pena.
II) O que se mostra bem patente no facto de ao longo dos cinco anos do período da suspensão não se ter esforçado por cumprir a obrigação que sobre ele impendia, ainda que parcialmente.
A “espada” que recaía sobre si e que lhe valeu a liberdade, impunha-lhe que colocasse como prioridade o cumprimento da condição a que ficou vinculado, por pouco que fosse o montante que lograsse juntar para a cumprir, ainda que tal lhe implicasse sacrifícios, designadamente abdicar de visitar a família mensalmente, como referiu, e despender com tal deslocação a quantia de 300,00€.
III) O não pagamento da quantia em apreço ou de parte dela, ainda que em montante reduzido - note-se que não se tratava propriamente do pagamento de qualquer prestação “anómala”, mas tão somente da devolução às assistentes de metade da quantia com que ilicitamente se locupletou enquanto estava ao serviço das mesmas - obsta à reposição da violação do bem jurídico protegido com a incriminação e à inerente tutela dos interesses das assistentes/ofendidas que o caso impõe.
IV) O comportamento adoptado pelo arguido ao longo do período da suspensão é indesculpável e inaceitável aos olhos do cidadão comum.
V) A sua conduta configura, na verdade, uma infracção grosseira e repetida do dever que sobre si impendia, evidenciando que desmereceu totalmente o juízo de prognose favorável contido no acórdão condenatório.
VI)Transigir com tal comportamento significaria descredibilizar a suspensão da execução da pena, enquanto verdadeira pena autónoma, de substituição, susceptível de, por si, realizar as finalidades da punição.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira.

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
No âmbito do processo comum coletivo, com o nº128/08.9TAVNC-C, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Juízo Central Criminal de Viana do Castelo (Juiz 2) por despacho proferido em 22/1/2020, ao abrigo do disposto no artigo 56º, nº1, do C.Penal, foi revogada a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão aplicada ao arguido J. J..
Posteriormente à prolação deste despacho foi proferido um outro, em 14/2/2020, no âmbito do qual foi determinada a notificação ao arguido do mencionado despacho de revogação para a morada constante do TIR com prova de depósito.

2.
Não se conformando com tais despachos, o arguido recorreu dos mesmos, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
No que respeita ao recurso interposto em 15/6/2020, do despacho proferido em 22/1/2020, o recorrente concluiu nos seguintes termos:
« a) O Recorrente considera a decisão de revogação da suspensão da pena de prisão é injusta, por não se encontrar devidamente fundamentada e se fundar num erro notório de apreciação da prova segundo as regras da experiência e livre convicção do Tribunal a quo.
b) Estamos perante um despacho decisório que, em termos práticos, equivale, analogicamente, à determinação de uma sentença.
c) Como tal deverá observar os requisitos estabelecidos no artigo 374° do Código Processo Penal, entre eles, o dever de fundamentação.
d) Sucede que o despacho ora posto em crise é desprovido de qualquer fundamentação, não enunciando sequer as concretas razões de facto em que baseia a decisão de revogar a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão imposta ao arguido.
e) Ora, tal omissão ainda se torna mais grave quando está em causa um despacho que ao determinar uma alteração in pejus do conteúdo decisório da sentença condenatória, poderá implicar a perda da liberdade do condenado.
f) Qualquer decisão que determine a pena de prisão — revista ela a forma de sentença ou de despacho — deve elencar de forma escrupulosa todas as razões de facto e de direito que conduziram à sua aplicação.
g) Desta forma, e salvo melhor entendimento, não tendo o Tribunal a quo indicado as provas que serviram para formar a sua convicção, nem tendo efectuado um exame crítico de tais provas, existe insuficiente fundamentação do despacho que decidiu revogar a suspensão da execução da pena de prisão ao arguido, pelo que deverá ser determinada a sua nulidade, nos termos do artigo 379°, n° 1, alínea a), com referência ao artigo 374°, 1102, ambos do CPP.
h) Não obstante, o Tribunal a quo não apurou as reais e efectivas condições pessoais e económicas do arguido para cumprimento da obrigação.
i) Apesar de sempre se manter firme na intenção de querer resolver a questão pendente no processo, pagando a indemnização às assistentes, o arguido não dispôs em algum momento de condições reais e sérias para efectuar o pagamento de qualquer quantia.
j) O Arguido possui um conjunto de encargos associados à sua vida quotidiana e tem um histórico económico complicado.
k) Em meados de 2012, em virtude das dificuldades de mercado e da situação macroeconómica do país, a entidade empregadora do Arguido — Casa …, SA. viu-se obrigada a prescindir dos seus serviços.
l) Entre 2012 e 2013, o Arguido inscreveu-se no centro de emprego a fim de obter a antecipação da totalidade do fundo de desemprego (36 meses) e criar a sua própria empresa na área da consultoria e formação - X - formação e Consultoria, Unip., Lda.
m) Foram tempos difíceis e a altura para criar a empresa também não foi a melhor, isto porque em plena crise as empresas não estavam abertas a gastar em formação e consultoria.
n) Nesta altura o arguido recorreu a ajuda de familiares e prestou serviços regulares em regime de avença numa empresa têxtil em Balazar - Y Têxteis, Lda.- com uma avença mensal de 1.000 euros.
o) No início de 2014 surgiu a oportunidade de ir trabalhar para a Hungria, para uma empresa especializada em transferência de actividades financeiras para centros de serviços partilhados.
p) Porém, durante o período de suspensão da pena o arguido teve sempre várias despesas fixas para suportar, designadamente as rendas das casas em Portugal e na Hungria, as propinas da filha mais velha, o sustento das duas filhas, as viagens mensais a Portugal e outras despesas gerais como água, electricidade, gás e alimentação.
q) Por outro lado, o Arguido não possui qualquer património que lhe permita realizar liquidez para pagar às Assistentes.
r) A Assistente W Portugal, S.A. instaurou execução contra o Arguido com vista ao pagamento das quantias a que este foi condenado nestes autos.
s) No âmbito dessa execução, que correu termos no Juízo de Execução de V.N. Famalicão - Juiz 1, com o n.°2340/13.OTB3CL, foi penhorada a casa de do Arguido, sita em Esposende, a qual viria a ser vendida nesse processo, revertendo porém a totalidade do valor da venda para o credor hipotecário Banco …, que havia reclamado o seu crédito.
t) Correu ainda contra o Arguido execução para pagamento de quantia certa, com o n.° 2021/17.5TBCL1, em que é exequente E. R., sendo a quantia exequenda de 35.844,88 euros.
u) A verdade é que o Arguido apesar de trabalhar assiduamente, não dispôs em algum momento de condições reais e sérias para efectuar o pagamento de qualquer quantia às Assistentes.
v) O despacho ora posto em crise não só não coloca em causa as razões invocadas pelo Arguido como justificação para o incumprimento da sua obrigação junto das Assistentes, como também reconhece que “compreendeu as dificuldades que o arguido teve durante estes vários anos para conseguir gerir a sua vida em termos económicos”.
w) O próprio Arguido nunca escondeu as dificuldades que iria enfrentar para cumprir com a obrigação que lhe foi imposta como condição da suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão.
x) O Tribunal a quo ouviu a ex-mulher do arguido que também confirmou as dificuldades económicas sentidas por este nos últimos anos e o apoio que este prestou e tem vindo a prestar a si e à família.
y) Ora, salvo melhor entendimento, tal decisão viola frontalmente o princípio jurídico “ad impossibilita nemo tenetur”, isto é “ninguém é obrigado a fazer coisas impossíveis”.
z) Ainda sem conceder, nos termos do artigo 560, n° 1 do Código Penal, “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social “.
aa) O comportamento do arguido durante o tempo da suspensão da pena não consubstancia uma infracção grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos, desde logo porque em momento algum tal infracção resultou de descuido ou leviandade do Arguido, mas sim apenas e exclusivamente uma manifesta e clara impossibilidade de fazer face a tal encargo.
bb) Por outro lado, a transcrição de excertos de dois Acórdãos e a simples constatação por parte do Tribunal a quo de que “durante todo este tempo o arguido não entregou 1 cêntimo que fosse às assistentes, não tentou, junto destas, ir procedendo ao pagamento de uma quantia ainda que pequena” é, com o devido respeito por opinião diversa, manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão de revogação da suspensão da pena de prisão ao Arguido.
cc) A culpa no incumprimento da obrigação por parte do arguido não se pode presumir, tem de resultar de factos ou elementos concretos.
dd)A possibilidade económica do arguido tem de traduzir-se numa maior certeza, numa possibilidade efectiva, isto é, o Tribunal a quo deveria apoiar-se não em hipotéticas possibilidades, mas na real situação do arguido.
ee) Só com base nesta situação efectiva poderia ou deveria concluir pela existência de culpa no cumprimento bem como pela culpa grosseira, sendo necessário antes de mais, demonstrar que o arguido tinha condições económicas para efectuar o pagamento, ou, então, que voluntariamente se colocou na situação de não poder pagar.
ff) O referido incumprimento não se deveu à falta de sacrifícios levados a cabo pelo Arguido.
gg)O Arguido teve de emigrar e separar-se da sua família, o que até então nunca acontecera.
hh)Entende o Recorrente que não seria de todo justo impor-lhe o sacrifício de, estando emigrado, não se deslocar a Portugal e assim se afastar da sua família.
ii) Principalmente, se for tido em conta que para além de ter cá a sua mulher (agora ex-mulher) e filhas, a mãe do Arguido, com 88 anos, vive sozinha, dado que o pai e o irmão do Arguido já faleceram.
jj) Como é relatado nos relatórios sociais juntos aos autos, o Arguido manteve-se firme na intenção de querer resolver a questão pendente no processo, pagando a indemnização às Assistentes.
kk)De qualquer forma, a situação em análise podendo configurar alguma culpa no incumprimento — desde logo porque o Recorrente não cumpriu — não configura nunca um incumprimento grosseiro da condição imposta pela suspensão.
ll) Não existiu qualquer ato voluntário pré-determinado ou consciente do Arguido com vista ao não pagamento da indemnização às Assistentes, antes uma manifesta e clara impossibilidade de fazer face a tal encargo.
mm) Face ao exposto, entende o Recorrente que face às concretas razões de facto e de direito enunciadas nos pontos C) e D), a decisão do Tribunal a quo em revogar a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão deve ser revogada».

Já no que respeita ao recurso interposto em 18/6/2020 do despacho proferido em 14/2/2020, concluiu nos seguintes termos:

«A. O Recorrente não concorda com a sua notificação por via postai simples do despacho de revogação da suspensão da pena de 5 anos de prisão.
B. Estamos perante um despacho decisório que revoga a suspensão da execução da pena de prisão, aplicando, por sua vez, a pena efetiva de prisão.
C. Em termos práticos, tal equivale, analogicamente, à determinação de uma sentença, sem que, porém, haja lugar à sua leitura na presença do arguido.
D. Assim, deverá ser igualmente aplicável a notificação pessoal do condenado.
E. Apenas caso a notificação pessoal se revele impossível se deverá efetuar, para todos os efeitos legais a notificação do condenado por via postal registada, por meio de carta ou aviso registados, no uso do determinado pelas alíneas a) e b) do n° 1 e n° 9 do artigo 113° do CPP, sem prejuízo da notificação do advogado ou defensor nomeado.
F. O legislador teve de estabelecer máximas cautelas à prolação da decisão que implique quer a revogação da suspensão da execução da pena, quer a modificação dos deveres, regras de conduta e outras obrigações impostas ao arguido na sentença condenatória, exigindo para tal, e entre o mais, a prévia audição do condenado.
G. É entendimento do Recorrente que tais cautelas devem ser extensíveis à notificação das mesmas decisões, como pressuposto indispensável para garantir, de urna forma efetïva e real, todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, tal como constitucionalmente consagradas no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa.
H. Neste sentido, defende o Sr. Dr. Juiz Conselheiro António Pires Henriques da Graça que “Se o condenado deve ser ouvido para eventuais efeitos da revogação da suspensão da execução da pena — que não é automática — por maioria de razão, deve ter conhecimento directo, pessoal, da decisão final subsequente, por contender efectivamente com a sua (eventual privação de) liberdade, sendo certo que do conhecimento pessoal dessa decisão emerge ainda, directa e indirectamente, para o seu destinatário, o interesse ou não em agir na impugnação da mesma decisão.”
I. Com o devido respeito por opinião diversa, entende o Recorrente que o despacho que lhe determinou a notificação, por via postal simples, da revogação da suspensão da pena de prisão, viola o disposto no artigo 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa.
J. Pelo exposto, deve ser revogado o despacho recorrido e ordenada a notificação pessoal do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão ao arguido.

TERMOS em que deve o presente recurso ser julgado procedente como é de JUSTIÇA.»

3.
A Exma Procuradora da República na primeira instância respondeu aos recursos, concluindo pela sua improcedência.

No que concerne ao recurso interposto do despacho de 22/1/2020, concluiu nos seguintes termos:

«I. O douto despacho recorrido não carece de insuficiência de fundamentação, obedecendo aos requisitos do art.97º, n.º 5 do CPP, por referência ao n.º 1, al. b) e n.º 2 do mesmo normativo.
II. O art. 374, n.º 2 do CPP aplica-se às sentenças ou acórdãos.
III. O arguido violou grosseira e repetidamente a obrigação/dever a que estava sujeito, como condição da suspensão, não pagando qualquer quantia ao longo de mais de 5 anos.
IV. Sendo que teve rendimentos para vir a Portugal todos os meses, gastando cerca de €300,00 mensais, bem como suportando despesas das duas filhas, maiores, e da ex-mulher.
V. Ou seja, ao manter o mesmo nível de vida ou próximo do que tinha, agiu também com culpa, mostrando que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam ser alcançadas, já que dos autos resulta que utilizou dinheiro das assistentes alegadamente para outra empresa, como durante estes mais de 5 anos utilizou dinheiro que ganhou noutros fins, que não fosse o de devolver às assistentes parte da quantia com que se locupletou.
VI. O arguido ficou obrigado a devolver metade da quantia com que se locupletou, tão só € 355.243,03 !!! e nem um euro devolveu».

No que respeita ao recurso interposto do despacho de 14/2/2020, invocou a doutrina fixada no Acórdão nº 6/2010 e no Acórdão do Tribunal Constitucional nº109/2012, proferido no âmbito do processo 730/2011.

4.
As assistentes vieram responder a ambos os recursos concluindo nos seguintes termos:
Quanto ao recurso interposto do despacho revogatório, concluíram:
A. A decisão recorrida foi notificada ao mandatário do arguido via Citius em 23-01-2020 e ao próprio arguido em 18-02-2020, para a morada por este indicada no T.I.R. que prestou em 29-11-2019. O presente recurso foi interposto em 18-06-2020, ou seja para além do prazo legal – mesmo admitindo a suspensão de prazos determinada no âmbito das medidas “Covid 19” - sem que o arguido tivesse pago (ou lhe fosse exigida) qualquer multa. O recurso é por isso extemporâneo e não deveria ter sido admitido.

Caso assim não se entenda:
B.Alega o Recorrente não ter sido cumprido o dever de fundamentação a que se refere o artigo 374º do CPP e o seu nº2 donde decorreria a sua nulidade, no que não tem qualquer razão, uma vez que esta norma é específica para a fundamentação da sentença penal e não se confunde com o dever geral de fundamentação imposto ao julgador para outros atos decisórios, o qual decorre da norma do artº 97º, nº 5 do mesmo CPP que é neste acaso a aplicável e que a decisão recorrida cumpre adequada e suficientemente visto que se basta com uma referência sumária aos factos e à sua motivação.
C. Tanto mais que nela é explicado o iter do raciocínio do julgador de forma perfeitamente compreensível e justificada, o qual foi bem entendido pelo Recorrente como mostram vários passos das suas alegações (cfr. conclusões v), y, e zz)-bb) não enfermando a decisão de qualquer nulidade por falta ou insuficiência de fundamentação.
D. É falso que o Tribunal recorrido não tenha apurado ou não tenha tido em consideração as reais e efetivas condições pessoais e económicas do arguido para cumprimento da obrigação (Conclusão h), como falsas são as afirmações sobre esta matéria que constam nas Conclusões i) a y), seja por não se apoiarem em factos que o arguido teve várias oportunidades para documentar - sem que nuca o tenha feito – seja por serem contrariadas pelos poucos documentos que ele mesmo ofereceu.
E. Comprovou-se que o arguido, antes ou após 2014, isto é, durante os 5 anos a partir do trânsito da sentença condenatória, não só nada pagou às assistentes embora tenha tido possibilidades materiais de o fazer (ainda que parcialmente), como nenhuma satisfação lhes deu ou tentou dar, enfim que nada fez, e nada fez porque não quis, apesar de saber da preocupação das assistentes em recuperar algum do dinheiro por ele subtraído, ao referir (Conclusões r) e s) que estas se tentaram ressarcir, embora sem nenhum sucesso, através de processo executivo cível contra ele promovido (2340/13.0TBBCL do Juízo de Execução de V.N. Famalicão), no qual foi apreendido pelo credor hipotecário um imóvel que não era a habitação do arguido pois estava arrendado a terceira pessoa (cfr. documentos anexos ao requerimento das assistentes de 08-04-2019), o que teria sido mais uma razão a impor ao arguido a necessidade de lhes dar alguma satisfação, situação para a qual foi chamada a sua atenção sucessiva e reiteradamente pelos Serviços de Reinserção Social, (cfr. mostram os Relatórios juntos aos autos e datados de 19.03.19, 29.10.2018, 03.01.2018 e 27.10.2016).
F. Os autos mostram que o arguido mentiu e continua a mentir sobre as suas condições económicas e despesas pessoais a partir de 2014, nomeadamente ao afirmar que tinha de suportar despesas fixas na Hungria com o seu alojamento, alimentação e viagens – onde passou a trabalhar a partir de Maio de 2014 – quando o certo é que em quatro ocasiões distintas declarou perante as Técnicas dos Serviços de Reinserção Social que tais despesas eram pagas pela empresa para a qual trabalhava na Hungria (Relatórios de 27-10-16, 04-01-2018, 29-10-2018 e de 20-03-2019), afirmando agora o contrário, seja na Motivação deste recurso (pág. 5 e Conclusão p), seja quando foi inquirido pela Mmª Juiza.
G. Apesar das muitas e insistentes oportunidades que lhe foram dadas pelo Tribunal recorrido, o Recorrente não forneceu ao Tribunal os elementos documentais que lhe foram repetidamente solicitados e que permitiriam comprovar adequadamente a sua situação pessoal, rendimentos e despesas e os poucos documentos que veio oferecer demonstram, pelo contrário, que mentiu ou escondeu essas condições pessoais.
H. Após vários pedidos de prorrogação de prazos, o arguido lá veio juntar em Declarações de IRS dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 onde constam apenas rendimentos da sua ex-cônjuge (sem despesas e exceto € 4.365 do arguido no ano de 2015) das quais apenas se pode inferir que o rendimento mensal bruto desta rondaria os € 3.000,00 o que é incompatível com a afirmação de que aufere apenas € 200,00 ou € 300,00 mensais e sobretudo com a proclamada necessidade que o Recorrente diz ter de lhe entregar mensalmente os valores para a renda de casa, propinas da filha mais velha, para água, eletricidade e gás, ou até da pensão para a filha mais nova (€ 200) de que não foi apresentado qualquer documento apesar do divórcio ter sido alegadamente decretado em Maio de 2019.
I. O arguido foi de novo expressamente notificado pela Mmª Juiz em 04/10/19 e em 11/10/219 para vir (na data da sua inquirição) “acompanhado dos documentos respeitantes ao seu vencimento, rendas de casa e outras despesas invocadas” e para “apresentar as suas declarações fiscais de rendimentos em Portugal e no estrangeiro (Hungria) desde o ano de 2012 até ao presente” – mas o arguido não o fez, apesar de como economista e Contabilista Certificado (inscrito na respetiva Ordem cfr. ofício de 11.10.19), não ser crível nem admissível que não disponha dos documentos básicos que lhe foram pedidos relativamente às suas despesas e rendimentos. Não as apresentou, nem ao Tribunal, nem aos Serviços de Reinserção Social, muito simplesmente porque os quis esconder, tendo confiado em que o Tribunal de 1ª instância primeiro e agora Vossas Excelências, manteriam a indulgência que conduziu à suspensão do cumprimento da pena.
J. O que o Recorrente alega nas Conclusões k), l), m), e n) reporta-se aos anos de 2012 e 2013 e não tem relevância para apreciar a sua situação posterior ao trânsito da sentença condenatória.
L. Atreve-se o Recorrente a alegar (págs. 9, 3º parág.) que depois das despesas fixas (em Portugal - e na Hungria !!) “o que sobrava era utilizado para fazer face às dívidas financeiras que o arguido ainda tem, nomeadamente à CREDORA ... e ao Banco...”, sendo verdade que o arguido deu prioridade ao reembolso de dívidas que contraíra junto da Credora ..., do Banco ... e do Banco ..., nomeadamente até ao ano de 2016 (Credora ...), até Agosto de 2018 (Banco ..) e até Janeiro de 2017 (Banco ...), conforme mostram os documentos da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal que ele mesmo juntou aos autos. Deu prioridade a esses pagamentos em detrimento de qualquer ressarcimento às lesadas e ao cumprimento, ainda que mínimo, da condição suspensiva da pena. Também por esta razão não causa qualquer surpresa que a decisão recorrida tenha considerado que o não ressarcimento de “um cêntimo sequer” às assistentes tenha constituído uma infração grosseira do cumprimento da pena, visto que o arguido colocou o pagamento de dívidas civis antes de obrigações que devia saber que tinham maior relevo.
M. Contrariamente ao que o Recorrente alega nas Conclusões h), j) u), e z)-cc)-dd)-cc)-ee)-ff)-kk) e ll) não é verdade que o tribunal não tenha apurado as reais e efetivas condições pessoais e económicas do arguido. O tribunal de 1ª instância foi tão longe quanto a colaboração do arguido, ou a falta dela, lho permitiram. Os encargos económicos que o arguido afirma ter são em grande parte indocumentados e falsos, como é falso que o arguido não tenha disposto “em momento algum” – contrariamente ao que diz em u) – de “condições reais e sérias para efetuar o pagamento de qualquer quantia às Assistentes”.
N. O arguido auferia mensalmente cerca de € 2.700, não tinha na Hungria encargos com alojamento, alimentação e viagens, e ainda que pudesse pagar algumas despesas domésticas da sua ex-mulher e filhas em Portugal (cerca de € 1.110 segundo a ex-mulher) tal ter-lhe-ia permitido pagar nem que fosse € 100 ou € 200 euros por mês às assistentes para demonstrar de alguma forma a sua efetiva vontade de cumprir a sentença que benevolamente acreditou que a simples ameaça da pena seria suficiente para ressocializar o arguido e o fazer agir em conformidade com o direito.
O. Ao invés disso o arguido fez outros pagamentos de dividas civis “com o que lhe sobravapor não interiorizar o desvalor da sua conduta penal, a gravidade da burla qualificada que cometera abusando da confiança que nele depositaram pela sua condição de Contabilista Certificado e por igualmente desvalorizar a oportunidade que lhe fora dada com a suspensão da pena por 5 anos.
P. – Ao contrário do alegado, não só não se verifica qualquer erro na apreciação da prova, como a decisão recorrida não assentou em “hipotéticas possibilidades” ou em “presunções de culpa” de falta de cumprimento do dever do arguido que teve a efetiva possibilidade de o cumprir parcialmente.
Q. As declarações transcritas na motivação do recurso nada adiantam para a sua boa decisão, sendo certo que nenhuma prova o arguido fez ou pretendeu fazer não só sobre os seus rendimentos e situação económica, como sobre o que alegou acerca da sua mãe, sobre a pensão que disse pagar a uma das filhas (após o divorcio) ou sobre as viagens mensais a Portugal que teria feito (à razão de € 300 cada !) e que são inteiramente desconformes com a situação de carência de meios que invoca.
R. Em suma, o arguido, com o rendimento que disse auferir, teve a possibilidade de durante os últimos 5 anos cumprir a condição de suspensão da pena ainda que fracionada e parcialmente mostrando dessa forma o acatamento da sentença com que foi punido o crime grave que cometeu e o seu reconhecimento pela oportunidade que lhe foi dada e que desvalorizou e desprezou.
S. O tribunal instou repetidamente o arguido para apresentar prova sobre a eventual impossibilidade objetiva de cumprimento, e tendo-se feito prova do seu contrário, ou seja de que o arguido teve a possibilidade de cumprir parcialmente e não o fez porque não quis, não restava à Mmª Juiza outra decisão que não fosse a de revogar a suspensão da pena de prisão face ao disposto no nº 1 al. a) do artº 56º e no artº 55º al. d) ambos do C.P., normas estas que foram corretamente aplicadas in casu.
T. Por todas as razões expostas a infração grosseira e intencional pelo arguido da obrigação que foi condição de suspensão da pena não merece qualquer complacência, devendo a sentença recorrida ser inteiramente mantida.

E quanto ao recurso interposto do despacho de 14/2/2021:

1. O Rte. omite censuravelmente, que antes da revogação da suspensão da pena, foi pessoalmente inquirido pelo Tribunal em audiência realizada no dia 29-11-2019, na qual declarou que estava a residir e trabalhar na Hungria (sem especificar o local) e que a Mmª Juiz teve o cuidado de determinar, por despacho de 04-11-2019, a prestação de novo Termo de Identidade e Residência, que o arguido efetivamente prestou nesse mesmo dia 29-11-2019 declinando como sua residência o local para onde veio a ser remetido por depósito postal o despacho de revogação da suspensão da pena, aí recebido em 18/02/2020.
2. Ao prestar o T.I.R. em 29-11-2019, o arguido foi advertido das obrigações constantes do nº 3 do artº 196º do C.P.P. e nomeadamente que quaisquer notificações posteriores lhe seriam feitas por via postal simples para a residência por ele indicada, imposição que corresponde a uma medida de coação.
3. O nº 2 do artº 196º do C.P.P. prevê expressamente que a residência indicada no T.I.R. seja utilizada para quaisquer notificações posteriores por via postal simples a efetuar ao arguido, tal como foi determinado no despacho recorrido.
4. O despacho mostra-se inteiramente conforme ao disposto nos nºs 2 e 3 do artº 196º e ao nº 1, al. c) do artº 113º do C.P.P., tal como foi decidido e interpretado no no A.U.J. do S.T.J nº 6/2010 de 21.05 (in www.dgsi.pt).
5. Nem se verifica qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do artº 32º nº 1 da C.R.P., tanto mais que o Tribunal Constitucional também já se pronunciou sobre a constitucionalidade das referidas normas e forma de notificação no Ac. T.C. nº 109/2012, pub. no DR, nº 72, Série II de 2012-04-11).
6. No seu recurso o arguido alega contra lei expressa e omite fatos que são do seu conhecimento, pelo que deve ser condenado em multa por litigância de má fé.

5.
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.

6.
Cumprido o disposto no artigo 417º,nº2, do Código de Processo Penal, o arguido veio reiterar o teor das suas alegações de recurso.

7.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objecto do Recurso

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.
Todavia, no caso vertente, impõe-se apreciar, como questão prévia, a tempestividade do recurso interposto do despacho revogatório da suspensão da execução da pena, levantada pelas assistentes na sua resposta.
Porém, sem qualquer razão.
Vejamos.
Resulta dos autos que o despacho datado de 22.01.2020 foi notificado ao Exmo mandatário do arguido em 23.01 e que relativamente ao arguido tal notificação foi levada a efeito através de carta enviada em 17.02, com prova de depósito, este ocorrido em 18/2.
Ora, considerando-se a notificação efectuada ao arguido no 5º dia posterior ao depósito, temos que a mesma ocorreu no dia 23/2, data a partir da qual se iniciou a contagem do prazo de 30 dias de interposição do recurso.
Todavia, tendo em conta o que em matéria de suspensão dos prazos decorreu das Leis 1-A/2020 de 19/3 e 16/2020 de 29/5, publicadas no âmbito das medidas Covid, de acordo com as quais tal suspensão verificou-se no período que mediou entre 9/3/2020 e 2/6/2020, temos que até ao dia 8 de março decorreram 14 dias do prazo de 30 dias de interposição do recurso, contagem essa que reiniciando-se no dia 3 de junho (correspondente ao 15º dia), culminou no dia 18 de junho.
Assim, coincidindo o 30º dia com o dia 18 de junho de 2020, data da interposição do recurso, claro está que nenhuma multa se impunha liquidar, sendo o recurso tempestivo.

Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente as questões a decidir são as seguintes:

Relativamente ao recurso interposto do despacho de 22/1/2020:
- se o despacho recorrido que revogou a suspensão da execução da pena padece de nulidade por falta de fundamentação;
- se o incumprimento da condição da suspensão – obrigação de pagar às assistentes a quantia global de 355.243,03 - configura uma infração grosseira da mesma, susceptível de conduzir à revogação da suspensão da execução da pena de prisão e consequente cumprimento efectivo da pena.

Quanto ao recurso interposto do despacho proferido em 14/2/2020, está apenas em causa saber se a notificação ao arguido do despacho revogatório, por via postal, na morada constante do TIR, com prova de depósito, viola as garantias de defesa do arguido (artigo 32,nº1 da C.R.P.,

B) Dos despachos recorridos:

Despacho de 22/1/2020
«O arguido J. J. foi condenado como autor de um crime de burla qualificada, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova com obrigação de pagar às assistentes a quantia global de €355.243,03, quantia esta que corresponde a metade da quantia com que se locupletou.
A decisão transitou em julgado em 28/01/2014 e, decorrido o prazo de suspensão, o arguido nada pagou.
Encetaram-se as diligências tendentes à extinção /revogação da pena. Solicitaram-se vários elementos documentais ao arguido que este, apesar de ir protelando as entregas, lá cumpriu.
Ouvimos o arguido pessoalmente e, por sugestão das assistentes, ouvimos ainda a ex-mulher do arguido.
O arguido deu várias explicações relativamente aos motivos pelos quais nada pagou às assistentes: desde a crise que abalou o país, à situação de emigração, ao suporte financeiro que tem dado à ex-mulher e às filhas, sendo o único familiar directo da mãe, que já conta mais de 80 anos.
Na verdade, o tribunal compreendeu as dificuldades que o arguido teve durante estes vários anos para conseguir gerir a sua vida em termos económicos.
Porém, o tribunal não pode esquecer-se que o arguido cometeu um crime de burla qualificada, tendo locupletado com mais de €700.000,00 e que foi condenado ao cumprimento de uma pena de prisão de 5 anos, suspensa por igual período, com a condição de pagar metade daquele valor às assistentes.
Quer a Sr.ª Procuradora, quer as Assistentes manifestaram-se no sentido de revogação da suspensão. O arguido defendeu posição contrária.
Apreciando.
Preceitua o art. 56º nº 1 do CP que “1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social;
Como se pode ler no Ac RP de 10.05.2017, “No caso do incumprimento de deveres impostos como condição de suspensão da execução da pena de prisão, o tribunal deve limitar-se a aferir a natureza culposa do incumprimento ou a sua infracção grosseira. Na verdade, o Código Penal distingue entre o incumprimento culposo e a infracção grosseira dos deveres impostos ao condenado em prisão cuja execução seja suspensa. Perante a violação culposa desses deveres, o tribunal tem várias opções: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações; impor novos deveres, ou prorrogar o prazo da suspensão (art. 55º do CP). Perante a infracção grosseira ou repetida desses mesmos deveres, o tribunal pode revogar a suspensão da execução da pena de prisão (art. 56ºdo CP).
Resulta do exposto que a revogação da suspensão da execução da pena só é aplicada em último caso, quando o tribunal esteja perante uma infracção grosseira, isto é, uma elementar violação dos deveres impostos. A violação de tais deveres, ainda que culposa, tem consequências menos gravosas”.
O princípio Jurídico contido no brocardo “ad impossibilita nemo tenetur” significa que “ninguém é obrigado a fazer coisas impossíveis”, ou seja, se o conteúdo de uma obrigação se tornar objectivamente impossível de cumprir para quem se encontra sujeito ao seu cumprimento se verifica uma situação de impossibilidade objectiva, salvo se o obrigado se tiver conscientemente colocado na condução de tornar impossível o seu cumprimento.
Como se escreve no AC RP de 16.01.2019 - Para apurar da razoabilidade, proporcionalidade e exigibilidade do cumprimento de um determinado dever imposto como condição da suspensão da execução de uma pena de prisão importa ter em conta a gravidade do crime em apreço e os prejuízos deste decorrentes que devem ser reparados. II - É óbvio que a gravidade desse crime e prejuízos tornam exigíveis razoáveis e proporcionais sacrifícios a que não estão sujeitas pessoas que não cometeram esses crimes nem causaram prejuízos, os quais são um corolário da própria pena e das suas finalidades. III - Nestes casos, e em atenção a essa gravidade, justifica-se que o condenado reduza significativamente o trem de vida a que estava habituado e que corresponde ao seu estatuto social, sem que seja atingido o nível mínimo imposto pelo respeito pela dignidade humana. IV - Assim sendo, não pode aceitar-se que o pagamento da indemnização dos danos causados pelo crime só se torne exigível depois de satisfeitas as despesas habituais do condenado, sejam elas quais forem.
Aqui chegados, podemos com segurança afirmar que o arguido não teve capacidade económica para cumprir na totalidade a condição da suspensão.
Porém, também podemos concluir que durante todo este tempo o arguido não entregou 1 cêntimo que fosse às assistentes, não tentou, junto destas, ir procedendo ao pagamento de uma quantia ainda que pequena.
Nada.
Durante 5 anos da suspensão da execução da pena o arguido não pagou nada e, não obstante manter o discurso de que pretende remediar a situação, a verdade é que as suas atitudes contrariam o seu discurso.
Não sendo possível a prorrogação do período da suspensão por impossibilidade legal – art. 55º al d) do CP – e considerando que o incumprimento do arguido constitui uma infracção grosseira dos deveres impostos como condição da suspensão, decide-se revogar a suspensão da pena de 5 anos de prisão.
Notifique e após trânsito, passe os competentes mandados».

Despacho de 14/2/2020:

«Nos processos em que estão em causa a aplicação de uma pena de prisão subsequente à sentença, designadamente por revogação da suspensão, temos entendido que as consequências de tais decisões – que implicam o ingresso do condenado no estabelecimento prisional – porque tão graves implicavam, necessariamente, a notificação pessoal ao arguido.
Temos vindo a fazer um pouco tábua rasa do Acórdão de fixação de jurisprudência STJ 6/2010 no sentido de que: i - Nos termos do n.º 9 do artigo 113.º do Código de Processo Penal, a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão deve ser notificada tanto ao defensor como ao condenado. ii - O condenado em pena de prisão suspensa continua afecto, até ao trânsito da revogação da pena substitutiva ou à sua extinção e, com ela, à cessação da eventualidade da sua reversão na pena de prisão substituída, às obrigações decorrentes da medida de coacção de prestação de termo de identidade e residência (nomeadamente, a de «as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada»). iii - A notificação ao condenado do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão pode assumir tanto a via de «contacto pessoal» como a «via postal registada, por meio de carta ou aviso registados» ou, mesmo, a «via postal simples, por meio de carta ou aviso» [artigo 113.º, n.º 1, alíneas a), b), c) e d), do Código de Processo Penal].
Na verdade, concordamos com as versões constantes dos votos de vencidos aí exaradas, sendo certo que não temos outros argumentos, mais válidos, para contrariar a Jurisprudência fixada.
Deste modo, determino se notifique o arguido nos termos doutamente promovidos».

C) Apreciando

Começando pela apreciação do recurso interposto do despacho de 22/1/2020 que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, vejamos primeiro se tal despacho padece de nulidade por falta de fundamentação.
Enunciando o preceito legal contido no artigo 97º,nº1 do C.P.P. que os atos decisórios dos juízes podem tomar a forma de sentenças (quando conhecerem a final do objecto do processo) ou despachos (quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na al.a)), estando em causa um despacho e não uma sentença ou acórdão final, temos que os requisitos da fundamentação a observar são os previstos no nº5 do preceito legal citado e não, como invoca o recorrente, os mencionados no artigo 374 do C.P.P, estes apenas estatuídos para as sentenças ou acórdãos finais.
Ora, estatui o nº5 do citado art.º 97.º, do Código de Processo Penal, que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Preceito que se apresenta em conformidade com a exigência constitucional vertida no art.º 205.º, n.º 1, da C.R.P.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, a fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina (Curso de Processo Penal, Vol. III, pág.294).
Compulsado o despacho recorrido, fácil é concluir que o mesmo não padece da invocada falta de fundamentação, a qual a verificar-se também nunca configuraria o vício da nulidade, mas antes mera irregularidade.
Com efeito, atento o princípio da legalidade e da tipicidade prevenido no nº1 do art.º 118º do Código de Processo Penal, não sendo a lei a cominar expressamente aquele vício com nulidade do acto, nos termos do seu nº2, o acto ilegal é irregular (neste sentido, Acórdão do STJ de 21/2/2007, proferido no âmbito do processo 3932/06, in dgsi.pt).
No que toca à decisão de revogação da suspensão da execução da pena, esta tem de ser fundamentada com base nos seguintes motivos: infracção grosseira ou repetida dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção social ou cometimento de crime durante o período de suspensão.
De acordo com o despacho recorrido a revogação assentou na infração grosseira dos deveres impostos como condição da suspensão.
E a tal conclusão chegou a Mma Juiz de forma fundamentada, de facto e de direito, quer se concorde ou não com a fundamentação aduzida.
Na verdade, após ter enunciado as diligências probatórias a que procedeu com vista a aferir das razões do incumprimento por banda do recorrente da condição que lhe foi imposta, explicou a razão pela qual, não obstante a sua falta de capacidade económica para cumprir a totalidade da condição da suspensão, considerou que em face postura assumida ao longo do período da suspensão o seu incumprimento consubstanciava uma infração grosseira para os efeitos do invocado artigo 56º,nº1, do C.Penal, apoiando-se em jurisprudência que citou a tal propósito.
Por tudo o exposto, satisfazendo o despacho recorrido a exigência de fundamentação a que alude o citado artigo 97º,nº5, improcede neste segmento o recurso.

Passemos agora à apreciação da segunda questão supra enunciada, a qual se prende em saber se o incumprimento da condição da suspensão - obrigação de pagar às assistentes a quantia global de 355.243,03 - configura uma infração grosseira da mesma, susceptível de conduzir à revogação da suspensão da execução da pena de prisão e consequente cumprimento efectivo da pena.

O ora recorrente foi condenado por acórdão de 28/11/2012, transitado em julgado em 28/1/2014, como autor de um crime de burla qualificada, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, com obrigação de pagar às assistentes, nesse período, a quantia global de €355.243,03.
Tal quantia corresponde a metade da importância indevidamente apropriada, sem contabilização de quaisquer juros, no período de cinco anos.
Sobre a razoabilidade da imposição de tal condição pronunciou-se este Tribunal da Relação, em 11 de julho de 2013, na sequência do recurso interposto pelo arguido do acórdão da primeira instância.
Como ai se referiu, embora seja difícil admitir-se como certa uma efetiva melhoria de condições de vida do recorrente que lhe permita satisfazer a condição imposta no período dos cinco anos da suspensão, a verdade é que na ponderação dessa melhoria, importa considerar a natureza da sua profissão, director financeiro em empresas, e que o salário real atinente a essa profissão, em termos de normalidade e de experiência comum, não se afasta de um montante mensal de cinco mil euros.
Concluiu-se assim, em tal acórdão, que o montante fixado na condição da suspensão não era atentório de modo chocante ou evidente contra as regras da razoabilidade e proporcionalidade perante a natureza dos factos apurados e por que o recorrente foi condenado.
Resulta dos autos, mais concretamente do acórdão condenatório proferido em primeira instância, que o arguido, a essa data, encontrava-se desempregado.
Contudo, à data da elaboração do Plano de Reinserção Social, junto aos autos, datado de 13/6/2014, já se encontrava a trabalhar há cerca de um ano, tendo, para o efeito, criado um gabinete de consultadoria na área financeira (“X”), prestando serviços para várias empresas, algumas delas localizadas em Espanha e para onde se deslocava temporariamente.
A essa data residia num apartamento arrendado pelo valor de 480,00 €, integrando o agregado familiar composto pela mulher, a qual explorava um comércio de artigos de banho e ambientadores para o lar, e pelas duas filhas com idades de 9 e 19 anos, ambas estudantes.
Compulsados os relatórios de execução que foram sendo juntos aos autos ao longo do período da execução da medida de suspensão da execução da pena, datados de 21/1/2015, 8/3/2016, 27/10/2016, 3/1/2018 e 29/10/2018 e, bem assim, o relatório final de 19/3/2019, resulta dos mesmos que o arguido conservou o enquadramento familiar e profissional referido no Plano de Reinserção Social, tendo, no entanto, em termos profissionais, alargado a sua área de prestação de serviços em regime de subcontratação a uma empresa multinacional, com sede em Budapeste, na Hungria, mas com instalações em Lisboa e noutras partes da Europa, actividade que, segundo declarações do próprio, lhe permitiu auferir um rendimento médio variável entre €2500,00 a €3.000,00, sendo as despesas de alojamento, alimentação e viagens suportadas pela empresa multinacional.
Mais deles resulta que a mulher do arguido continuou a explorar a loja de artigos de casa, cujo rendimento foi permitindo assegurar as despesas do quotidiano familiar, auferindo lucros por ocasião do Natal.
Já como despesas mensais médias do seu agregado familiar, fez-se também constar de tais relatórios, por indicação do arguido, 400 € com a renda de casa, 80 € de despesas correntes, 90€ de propinas com a filha mais velha e 200€ de combustível em deslocações da mesma para o estabelecimento de ensino superior onde se encontrava a estudar e localizado no Porto.
No que toca às condições pessoais de vida do arguido durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, pode então concluir-se, com base em tais relatórios, que o arguido manteve sempre uma situação financeira estável, sendo que a nível familiar integrou o agregado familiar constituído pela esposa e duas filhas, o qual visitava com uma periodicidade mensal.
Pese embora tivesse comparecido a todas as entrevistas para as quais foi convocado, estivesse consciente do dever que sobre si recaia de proceder ao pagamento da quantia imposta e se encontrasse sensibilizado para arranjar soluções alternativas de acordo com a sua disponibilidade financeira, a verdade que o arguido, escudando-se sempre em dificuldades económicas, nunca procedeu à entrega de qualquer quantia às assistentes.
Dificuldades essas que voltou a invocar aquando da sua audição, trazendo à liça as despesas mensais fixas que tinha que suportar, o sustento das filhas, as viagens mensais a Portugal, a existência de outras dívidas e a inexistência de património, tendo ainda feito referência à execução que lhe foi movida pelas assistentes, no âmbito da qual a casa que possuía em Esposende veio a ser vendida, revertendo a totalidade do produto da venda para o credor bancário hipotecário.
Insurge-se agora o recorrente com o facto da Mma Juiz a quo sendo conhecedora do seu histórico económico e financeiro e afirmando compreender as dificuldades que atravessou nos últimos anos, considerou o seu comportamento uma infracção grosseira dos deveres impostos como condição da suspensão e, consequentemente, decidiu revogar a suspensão da execução da pena.

Ora, dispõe o art. 56º do C. Penal, que:

1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades de que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.

São, pois, dois, os fundamentos da revogação: o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres ou regras impostos ou do plano de reinserção social ou; o cometimento de crime e respectiva condenação.
Em qualquer um “ estamos perante situações limite, onde o condenado, através da intensidade do grau de culpa posto na sua conduta, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou” (Acórdão da Relação de Coimbra de 30/1/2019, proferido no processo 127/17.0GAMGR-A).
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág.202, “O critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado.
Com efeito, a condição prevista na parte final da al.ª b) do n.º 1 (“e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”) refere-se a ambas as causas de revogação da suspensão previstas nas duas alíneas”.
Também para Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1º vol. 1995, pág.481, “as causas de revogação não devem ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O réu deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena” e que a revogação “só deverá ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as providências que este preceito [o actual art. 55º] contém”.

No caso vertente, está em causa o primeiro fundamento.

Como é entendimento pacífico na jurisprudência, de que é exemplo o Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/10/2012, proferido no âmbito do Proc. nº 91/07.3IDCBR.C1, in www.dgsi.pt, a violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, a que se alude no transcrito preceito legal, “há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação”.
No entanto, como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, in obra citada, pág. 201/202, a infracção grosseira “não tem de ser dolosa, sendo bastante a infracção que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade (…). A infracção repetida “é aquela que resulta de uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo, isto é, que não se esgota num acto isolado da vida do condenado, mas revela uma postura de menosprezo pelas limitações resultantes da sentença condenatória.”

No caso vertente, na senda do entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido, afigura-se-nos que o comportamento do arguido/condenado, ora recorrente, cai na previsão do citado preceito legal, porquanto não revelou o mínimo esforço por corresponder positivamente à oportunidade que o tribunal da condenação lhe facultou ao decidir-se pela suspensão da execução da pena.
O que se mostra bem patente no facto de ao longo dos cinco anos do período da suspensão não ter feito qualquer esforço por cumprir a obrigação que sobre ele impendia, ainda que parcialmente.
Nem tampouco propôs qualquer solução alternativa, designadamente, um pagamento parcial e faseado da quantia em causa, isso sim já evidenciador de alguma boa vontade em cumprir a condição que lhe foi imposta.
Como referimos, e convém não olvidar, os autos revelam que o arguido usufruiu ao longo do período da suspensão da execução da pena, e desde o ano de 2013, de uma situação financeira estável, tendo sempre mantido uma actividade profissional que lhe proporcionou um rendimento que oscilou entre €2.500 a €3.000 - como foi referindo ao longo do período da suspensão, porquanto nunca o comprovou/declarou, sendo até de antever à luz das regras da experiência e da actividade que exercia que até fosse superior – rendimento esse que, com franqueza, lhe permitia cumprir, ainda que só parcialmente e em montante reduzido, a obrigação pecuniária emergente da condenação.
Porém, o arguido não o fez.
Como salientou a Mma Juiz no despacho recorrido, “o arguido não entregou 1 cêntimo que fosse às assistentes, não tentou junto destas ir procedendo ao pagamento de uma quantia ainda que pequena”.
Em suma, o arguido limitou-se a destinar o rendimento do seu trabalho – muitíssimo superior à média de qualquer cidadão português – à satisfação dos seus proveitos e dos seus familiares, a que acresce que para as despesas do agregado familiar contribuiu também o rendimento obtido pela sua mulher na actividade comercial que explorava, actividade essa que, pelo menos, de acordo com o vertido nos relatórios supra referidos, permitia assegurar as despesas do quotidiano familiar.
É certo que, como qualquer cidadão, teve despesas mensais que foi suportando.
Ainda que se admita como fixas as despesas que indicou à técnica de reinserção social e que constam dos relatórios de execução e, bem assim, que enviasse mensalmente para a mulher mil euros mensais, sendo certo que quando se encontrava fora de Portugal as suas despesas de deslocação, alojamento e alimentação eram suportadas pela empresa multinacional, cremos que bem podia o arguido ter utilizado parte do seu rendimento à satisfação, ainda que parcial e na medida do que fosse conseguindo poupar, da condição a que se encontrava vinculado.
Como referiram as assistente na sua resposta ao recurso, o vencimento auferido pelo arguido, não obstante as despesas que suportava, “ter-lhe-ia permitido pagar nem que fosse €100 ou €200 euros por mês às assistentes para dar uma satisfação e demonstrar de alguma forma a sua efetiva vontade de cumprir a sentença que benevolamente acreditou que a simples ameaça da pena seria suficiente para ressocializar o arguido e o fazer gir em conformidade com o direito”.
A “espada” que recaia sobre si e que lhe valeu a liberdade, impunha-lhe que colocasse como prioridade o cumprimento da condição a que ficou vinculado, por pouco que fosse o montante que lograsse juntar para a cumprir, ainda que tal lhe implicasse sacrifícios, designadamente abdicar de visitar a família mensalmente, como referiu, e despender com tal deslocação a quantia de 300,00€.
Alega o recorrente nas alíneas hh) e ii) que “não seria de todo justo impor-lhe o sacrifício de estando emigrado, não se deslocar a Portugal e assim se afastar da sua família, principalmente, se for tido em conta que para além de ter cá a sua mulher (agora ex-mulher) e filhas, a mãe do arguido com 88 anos, vive sozinho, dado que o pai e irmão do arguido já faleceram”.
Não deixa de ser estranho que o arguido considere injusto tal sacrifício, comum aliás a tantos emigrantes que às vezes nem uma vez por ano conseguem deslocar-se a Portugal para visitar os seus familiares, quando o que está em causa é a devolução às assistentes de metade da quantia com que ilicitamente se apropriou.
Era isso, de facto, que se impunha ao arguido ter feito, ou seja, fazer todos os sacrifícios possíveis para ser merecedor da oportunidade que o tribunal lhe concedeu.
Injusto é, na verdade, nada ter devolvido às assistentes.
Ainda que se admita que não lograsse conseguir cumprir a condição em cinco anos, apenas com base no seu rendimento, a verdade é que o arguido também não tentou reunir esforços por outras vias para o fazer, ainda que parcialmente, recorrendo ao crédito por exemplo ou à ajuda de terceiros.
É certo que foi transmitindo à DGRSP a sua intenção em encontrar alternativas que visassem o cumprimento parcial da dívida.
No entanto, ficou-se por ai, pois não apresentou qualquer proposta séria com vista a tal cumprimento, tendo certamente confiado (mal) que com as suas idas às entrevistas agendadas pela DGRSP, o cumprimento do Plano de Reinserção Social e a mera promessa de arranjar forma de restituir as quantias às assistentes bastavam para que a suspensão não lhe fosse revogada.
Alegou ainda o arguido que a impossibilidade de cumprimento da condição resultou igualmente da existência de outras dívidas.
Porém, mal andou ao dar prioridade a tais pagamentos, ao invés de ressarcir as assistentes em cumprimento da condição imposta pelo tribunal.
Em suma, temos para nós também que o comportamento adoptado pelo arguido ao longo do período da suspensão é indesculpável e inaceitável aos olhos do cidadão comum.
A sua conduta configura, na verdade, uma infracção grosseira e repetida do dever que sobre si impendia, evidenciando que desmereceu totalmente o juízo de prognose favorável contido no acórdão condenatório.
Com efeito, o não pagamento da quantia em apreço ou de parte dela, ainda que em montante reduzido - note-se que não se tratava propriamente do pagamento de qualquer prestação “anómala”, mas tão somente da devolução às assistentes de metade da quantia com que ilicitamente se locupletou enquanto estava ao serviço das mesmas - obsta à reposição da violação do bem jurídico protegido com a incriminação e à inerente tutela dos interesses das assistentes/ofendidas que o caso impõe.
Nessas circunstâncias, resulta claramente infirmado o juízo de prognose favorável que presidiu à suspensão da execução da pena de prisão que no âmbito destes autos foi aplicada ao arguido, já que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não foram suficientes para acautelar as finalidades da punição, pois que incumpriu grosseira, repetida e voluntariamente, e de forma indesculpável, a condição que lhe foi imposta no acórdão condenatório.
Cremos pois que transigir com tal comportamento significaria descredibilizar a suspensão da execução da pena, enquanto verdadeira pena autónoma, de substituição, susceptível de, por si, realizar as finalidades da punição.
Por tudo o exposto, improcede o recurso interposto do despacho revogatório.

- Volvendo-nos agora na apreciação da questão levantada no recurso interposto do despacho proferido em 14/2/2020, entende o recorrente que o despacho que determinou a sua notificação por via postal simples, com prova de depósito, da revogação da suspensão da pena de prisão, viola o disposto no artigo 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, porquanto põe em causa as suas garantias de defesa, pelo que deve ser revogado e ordenada a sua notificação pessoal.
Salvo o devido respeito, não assiste razão ao recorrente.
No caso vertente, resulta dos autos que o mandatário do arguido foi notificado em 23/1/2020 do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão e que tentada a notificação pessoal do arguido através da autoridade policial competente, a mesma não foi possível, pelos motivos constantes do ofício datado de 3/2/2020 (cfr. doc. junto a fls. 76 deste apenso), mais concretamente, por o ora recorrente ai não se encontrar e ter sido obtida a informação que se encontrava a viver algures na Hungria, razão pela qual veio a ser determinada, na sequência de promoção do Ministério Público, a sua notificação por via postal simples, com prova de depósito, para a morada constante do TIR.
Notificação esta que veio a ser efectuada na morada constante do TIR, através de carta enviada a 17/2/2020, tendo o depósito ocorrido em 18/2.
Quer o recorrente concorde ou não, tal notificação não pode deixar de considerar-se válida e regular, porquanto se mostra efectuada de acordo com o entendimento perfilhado no Acórdão de fixação de jurisprudência, nº6/2010 de 15/4/2010, publicado no DR, 1ª Série, nº99, de 21/5/2010, do qual decorre a obrigatoriedade de notificação da decisão revogatória tanto ao condenado, como ao respectivo defensor, mas também que a notificação feita ao primeiro pode assumir a forma de notificação pessoal, notificação por carta ou aviso registado ou, mesmo, notificação por via postal simples, com depósito no receptáculo correspondente à morada fornecida aquando da aplicação do termo de identidade e residência ou outra que posteriormente tenha escolhido e comunicado de modo processualmente válido, de acordo com o previsto nas alíneas a), b) , c) e d), do nº1, do artigo 113º, do C.P.P..
Ora, tendo o condenado, bem como o seu Exmo mandatário, sido notificados, nos termos em que o foram, da decisão revogatória, tal mostra-se suficiente, como foi, para desencadear o prazo dos meios de reação contra o despacho revogatório, não violando assim o disposto no artigo 32,nº1, da C.R.P..
Aliás, no sentido de que tal forma de notificação do despacho revogatório não viola a nossa Lei Fundamental, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal Constitucional 109/2012, publicado no DR nº72/2012, Série II, de 11/4/2012, em que foi Relator o Conselheiro Vitor Gomes, já trazido à liça pelo Ministério Público e pelas Assistentes, nos termos do qual foi decidido “não julgar inconstitucional a norma dos artigos 113º,nº3 e 196º,nº3, alíneas c) e d) do C.P.P., interpretados no sentido de que a notificação do despacho revogatório da suspensão ao arguido, por via postal simples, com depósito na morada fornecida aquando da prestação do termo de identidade e residência, a par da notificação ao defensor nomeado, é suficiente para desencadear o prazo dos meios de reacção contra o despacho revogatório, não viola o disposto no nº1 do artigo 32º da Constituição”.
Como ai se consignou “…subsiste para o arguido condenado em pena suspensa a obrigação jurídica de manutenção da residência declarada e de comunicação da sua alteração em termos de aí poder ser encontrado, bem como os efeitos da advertência de que as notificações lhe serão feitas por via postal simples para a morada indicada.
Admitida a sua existência (…) a imposição desse dever ou compromisso por via legislativa e as implicações que daí legalmente derivam no capítulo das notificações que ao condenado devam ser feitas não se afiguram desproporcionadas. O condenado numa pena suspensa (…) sabe que a sua relação com o tribunal não fica definitivamente encerrada com a sentença condenatória. A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta (artigos 51.º e 52.º do CP) – como no caso ocorreu – e fica sempre ex lege dependente do não cometimento, durante o período de suspensão, de crimes que revelem que as finalidades que estiveram na base da prognose favorável que ditou a suspensão não puderam ser alcançadas (artigo 56.º do CP). Há um juízo necessário de verificação da ocorrência ou não ocorrência de motivos que possam conduzir à revogação e, portanto, uma necessidade de comunicação com o arguido e de determinação do seu paradeiro que ele conhece por virtude da sentença condenatória. Os deveres de comunicação do lugar onde o condenado possa ser notificado e de permanente atenção às comunicações efetuadas por via postal pelo tribunal da condenação no âmbito desse processo são um correspetivo da confiança na sua ressocialização sem necessidade de cumprimento efetivo da prisão que é pressuposto da aplicação de pena suspensa.
E, sobre ser uma medida congruente com as finalidades da punição e com a valoração que subjaz à escolha dessa pena, tem custos moderados para o indivíduo condenado e uma utilidade evidente para a efetividade da justiça penal, satisfazendo as três máximas (ou subprincípios) do princípio da proporcionalidade.
Efetivamente, a imposição desses deveres apresenta-se como um meio idóneo a garantir que as comunicações que a escolha desse modo de punição necessariamente desencadeia entre o condenado e o tribunal possam fazer-se pela via menos onerosa em meios materiais e humanos e processualmente mais célere. E não se traduzem em encargo desproporcionado, porque não são um meio que possa considerar-se demasiado oneroso para quem se colocou em situação de merecer a aplicação de uma pena de prisão, mas beneficiou da prognose de que a ameaça da execução da pena, acompanhada ou não de deveres ou regras de conduta, será suficiente para garantir as finalidades da punição e, por esse modo, escapa ao cumprimento da pena de prisão. O condenado em pena de prisão cuja execução ficou suspensa sabe que as suas contas com a justiça penal não ficam definitivamente acertadas com a sentença condenatória e que, em grau variável consoante as regras de conduta que lhe forem impostas e a sua conduta no período de suspensão, haverá necessidade de posteriores contactos com o tribunal no âmbito desse mesmo processo.
Ora, observados os referidos deveres de comunicação por parte do condenado, as cautelas que rodeiam a emissão da carta para notificação por via postal simples com prova de depósito (n.ºs 3 e 4 do artigo 113.º do CPP) tornam esta forma de notificação um meio adequado, segundo a comum experiência, a garantir o conhecimento ou pelo menos a cognoscibilidade da convocatória ou do ato comunicado por parte do destinatário. Acresce que o interessado pode sempre ilidir a presunção de notificação mostrando que não tomou conhecimento da comunicação por motivos alheios ao incumprimento dos deveres em que, nos sobreditos termos, ficou constituído.
Efetivamente, as exigências de celeridade processual, que têm igualmente dignidade constitucional (artigo 31.º, n.º 2,da C.R.P) e de um nível de efetividade da justiça penal compatível com o princípio do Estado de Direito impuseram a opção legislativa pela notificação por via postal simples com prova de depósito, com determinadas cautelas.

A propósito da idoneidade desta modalidade de notificação, disse o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 17/2010 (publicado no Diário da República, II série, de 22 de fevereiro de 2010), o seguinte:

“Ora, a solução normativa da notificação por via postal simples, se não é capaz de assegurar, com uma certeza absoluta, que o arguido teve conhecimento da data designada para a realização do julgamento, oferece garantias suficientes de que o respectivo despacho é colocado na área de cognoscibilidade do arguido em termos de ele poder exercer os seus direitos de defesa
Na verdade, não se pode dizer a respeito desta forma de notificação que a mesma não é idónea a transmitir o acto notificando ao conhecimento do destinatário.
E muito menos se pode dizer que a notificação em questão seja realizada relativamente a arguidos que nem sequer conhecem formalmente a pendência de um procedimento criminal contra si – como, aliás, sucedeu na maioria dos casos acima referidos que foram submetidos ao crivo do TEDH.
Pelo contrário, tenha-se presente que a solução legal da notificação por via postal simples pressupõe sempre o prévio contacto pessoal do arguido com o processo, consubstanciado, pelo menos, na respectiva constituição como arguido e na respectiva sujeição a termo de identidade e residência.
Por outro lado, o receptáculo postal para o qual é remetida a notificação pelo funcionário judicial e no qual é realizado o depósito pelo distribuidor postal é exclusivamente escolhido e indicado pelo próprio arguido.
É certo que não ficam cobertas as situações em que o arguido, por qualquer motivo (v.g. por ter mudado de residência, por se ter ausentado temporariamente, por desleixo) deixa de aceder ao referido receptáculo postal, sem que previamente comunique essa situação ao tribunal.
Mas o não conhecimento pelo arguido do acto notificado nestas situações é imputável ao próprio arguido, uma vez que, a partir da prestação do termo de identidade e residência, passou a recair sobre ele o dever de verificar assiduamente a correspondência colocada no receptáculo por si indicado e de comunicar ao tribunal qualquer situação de impossibilidade de acesso a esse local
Se o Estado está obrigado a diligenciar pela notificação dos arguidos, nesta modalidade, estes também têm de tomar as providências adequadas a que se torne efectivo esse conhecimento.
Este é um dever compatível com o seu estatuto de sujeito processual, não podendo esta solução ser acusada de estabelecer um ónus excessivo ou desproporcionado que seja imposto aos cidadãos suspeitos da prática de crimes, atenta a facilidade do seu cumprimento, perante a importância dos fins que visa atingir.
Além disso, faz-se notar que o depósito da carta pelo distribuidor postal não gera nenhuma presunção inilidível de notificação em caso de erro do distribuidor postal e é rodeada de algumas cautelas processuais.”

Nos termos e pelos fundamentos expostos, sem necessidade de mais considerações, porquanto despiciendas, improcede o recurso, nenhum reparo merecendo o despacho recorrido que determinou a notificação do arguido da decisão revogatória da suspensão da execução da pena por carta registada simples, com prova de depósito, para a morada constante do TIR.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido J. J., confirmando-se os dois despachos recorridos.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º,nº1 do C.P.P. e 8º,nº9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 8 de fevereiro de 2021