Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2093/20.5T8VNF.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A privação do uso do veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, constitui um dano indemnizável quando o lesado, no período de indisponibilidade do bem, se propunha aproveitar, real e efectivamente, das respectivas vantagens ou utilidades.
2 – A privação da possibilidade de uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano, o qual só se pode dar como verificado, enquanto causa da obrigação de indemnizar, quando se apuram as privações concretas das vantagens que a coisa proporcionaria e que se frustraram.
3 – Provando-se a privação do uso do veículo, mas não se conseguindo quantificar objectivamente o valor do dano, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação.
4 – Caso se apure que as concretas vantagens que o veículo proporcionaria foram parcialmente supridas pela utilização de um outro veículo do lesado, deve operar-se uma redução da indemnização relativamente ao padrão quantitativo normalmente utilizado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. P. J. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Seguradora ..., SA, pedindo a condenação desta:
«a) A pagar ao autor a quantia de EUR 8 610,00 (oito mil seiscentos e dez euros), referente ao custo da reparação suportado pelo autor;
b) A pagar ao autor o valor de EUR. 12 400,00 (doze mil e quatrocentos euros), referente ao dano de privação do uso do veículo do autor.
c) às referidas quantias devem acrescer juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento».
Para o efeito, alegou ter sofrido danos patrimoniais em consequência do acidente de viação que descreve, consistente num embate entre o veículo de que é proprietário e um outro seguro pela Ré, cuja ocorrência imputa à conduta culposa do condutor deste último veículo.
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A Ré contestou, impugnando os factos relativos à dinâmica do acidente e às consequências do evento, concluindo que sobre si não recai a obrigação de indemnizar qualquer dos danos alegados na petição.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final, proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente e a condenar «a Ré, “Seguradora ..., S.A.”, a pagar ao Autor, P. J., a quantia de € 3.719,20, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, sobre o capital de € 3.719,20, à taxa legal de 4%».
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª não se concorda, com a decisão proferida, quer quanto à dinâmica do acidente, em causa nestes autos, considerada na sentença, quer quanto à matéria dada como provada e que fundamenta a dinâmica do acidente e daí se pretender a reapreciação da prova gravada, assim como a responsabilidade atribuída ao autor neste acidente, quer quanto ao montante fixado para o dano de privação do uso do veículo do Autor;
2.ª devem considerar-se não provados os factos apontados sobre os números 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 28 dos factos dados como provados na sentença.
3.ª Devem considerar-se como provados os factos alegados pelo autor nos artigos 12.º, 13.º, 16.º, 30.º, 36.º, da petição inicial, o que o tribunal considerou não provados.
4.ª o tribunal considerou provado os factos elencados em 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 28 dos factos provados da sentença quando na realidade não o poderia ter feito, porque a prova produzida em audiência aponta em sentido contrário.
5.ª com o devido respeito, parece-nos que é das regras da experiência comum que alguém que se encontra parado à direita numa via, porque se terá esquecido da carteira e por isso pretendia regressar a casa e, que de repente pretendendo inverter a marcha sinalizando apenas essa intenção quando arranca, não cumpre com aquilo que vem espelhado no código da estrada, nomeadamente no seu artigo 35.º:
6.ª Claramente se percebe, que a manobra que o A. M. realizou foi causadora deste acidente, pois não conseguiu ver quem seguia na sua retaguarda, pois tinha o retrovisor esquerdo embaciado e apenas sinalizou a sua marcha quando arrancou do sitio onde se encontrava parado á direita.
7.ª Fácil é de perceber que a condutora do veículo do autor não poderia contar com esta manobra repentina e desatenta do outro condutor.
8.ª Sobre a matéria impugnada respondeu a testemunha A. M., prestado em audiência de julgamento do dia 09/06/2021 com inicio às 9,30h, Registo de prova em suporte digital através da aplicação “H@bilus Media Studio”, por 30m: 57s., PROCESSO N.º 2093/20.5T8VNF GRAVAÇÃO N.º 20210609120054,
9.ª um depoimento que se apresenta coerente com as regras da experiência. E isto o tribunal recorrido não levou em conta, embora se tenha socorrido dos depoimentos dos peritos averiguadores, conclusivos, por não terem presenciado o acidente, para poder dar cobertura à tese que acabou por ser seguida na sentença e da qual não se concorda.
10.ª Pelo exposto, tendo por base o indicado depoimento, nas apontadas concretas passagens, bem como as regras da experiência, e tendo em conta que nenhuma prova ou indício aponta em sentido contrário, deve ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se provados os factos alegados pelo autor nos artigos 12.º, 13.º, 16.º., da petição inicial, sendo os mesmos retirados da matéria de facto não provada;
11.ª Em sentido inverso deverá ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se não provados os factos elencados nos pontos 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 28 dos factos provados constantes da sentença.
12.ª Alterando-se como se entende esta matéria, deverá também alterar-se a decisão em crise nestes autos, atribuindo-se a total responsabilidade por este acidente ao segurado da Ré e nunca, como fez a sentença, atribuir qualquer responsabilidade à condutora do veículo do autor, uma vez que esta não contribuiu com qualquer manobra perigosa, desatenta ou inadequada para a produção deste acidente.
13.ª Quanto ao dano de privação de uso de veiculo, o autor pediu, como se sabe e sob a alínea b), do seu pedido que a Ré fosse condenada a pagar ao Autor o valor de € 12.400,00 (doze mil e quatrocentos euros), referente ao dano de privação do uso do veículo do Autor;
14.ª Quanto à indemnização há duas teses – uma de que não basta a mera privação é necessário que ela provoque alguma diminuição ao nível da satisfação das necessidades globais do proprietário sendo necessário alegar e provar que ocorreu uma diminuição patrimonial em consequência da privação do uso e a outra – que se defende – entende que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável. Nesse sentido cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-11-2008 no processo n.º 08B2732 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2008 no processo 08B2662 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015.Quanto a este, veja-se, por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2010, em que foi relator Paulo Sá, no processo n.º 314/06.6TBCSC.S1, em que se refere que o proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa.
15.ª A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art. 62.º da CRP).
16.ª Ora, este último entendimento de que a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, em si mesmo, um dano patrimonial, uma vez que se revela pela lesão de um direito real de propriedade, pela impossibilidade de exercício de qualquer das faculdades previstas no art. 1305.º do Código Civil típicas do direito de propriedade, isto é, o uso e fruição da coisa. Assim, tal dano tem uma expressão pecuniária e, como tal, deve ser passível de reparação/indemnização. Aderindo a esta segunda tese, entendemos que a privação do uso de veículo é, em si mesma um dano indemnizável, bastando-se, consequentemente, com abstractamente o mesmo se revelar um dano.
17.ª Assim, e mobilizando os argumentos já expendidos supra nos citados acórdãos, deverá condenar-se a Ré em valor pela privação do uso que o Autor sofreu por violação do disposto no art. 762.º, n.º 2 do Código Civil, em quantia nunca inferior a EUR 10,00 (dez euros) diários e não EUR 1 (um) diário tal como consta da sentença ora recorrida
18.ª Lembrar ainda, que apesar do tribunal não ter dado como provado o facto do autor ter dificuldades para custear a reparação do seu automóvel, ninguém é obrigado a despender de dinheiro numa situação destas e ainda por cima atendendo ao valor da reparação destes autos;
19.ª contudo, tendo por base o relatado na sentença quanto aos depoimentos prestados sobre esta matéria, que constam da própria sentença, bem como as regras da experiência, e tendo em conta que nenhuma prova ou indício aponta em sentido contrário, deve ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se provados os factos alegados pelo autor nos artigos 30.º e 36.º
20.ª Enfim e neste particular, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que liquide um valor diário mínimo de EUR 10 (dez euros), pelo período, considerado provado, de privação do uso de veículo, que já consta dos autos, como forma de ressarcir o autor pelo dano da privação do uso de veiculo.

Nestes termos e nos melhores doutamente supridos por V.as Ex.as, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a decisão recorrida, que deve ser substituída por deliberação que:
1. considere provados os factos alegados pelo autor nos artigos 12.º, 13.º, 16.º., da petição inicial, sendo os mesmos retirados da matéria de facto não provada;
2. Em sentido inverso deverá ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se não provados os factos elencados nos pontos 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 28 dos factos provados constantes da sentença.
3. Alterando-se como se entende esta matéria, deverá também alterar-se a decisão em crise nestes autos, atribuindo-se a total responsabilidade por este acidente ao segurado da Ré e nunca, como fez a sentença, atribuir qualquer responsabilidade à condutora do veículo do autor, uma vez que esta não contribuiu com qualquer manobra perigosa, desatenta ou inadequada para a produção deste acidente;
4. tendo por base o relatado na sentença quanto aos depoimentos prestados sobre os meios ao dispor do autor para custear a reparação, que constam da própria sentença, bem como as regras da experiência, e tendo em conta que nenhuma prova ou indício aponta em sentido contrário, deve ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se provados os factos alegados pelo autor nos artigos 30.º e 36.º
5. Enfim e neste particular, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que liquide um valor diário mínimo de EUR 10 (dez euros), pelo período, considerado provado, de privação do uso de veiculo, que já consta dos autos, como forma de ressarcir o autor pelo dano da privação do uso de veiculo.».
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A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais, segundo os artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, delimitam o seu objecto, o Recorrente suscita as seguintes questões:

i) Erro no julgamento da matéria de facto, quanto aos pontos nºs 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 28 dos factos provados, que o Recorrente entende deverem ser considerados não provados, e aos factos alegados nos artigos 12º, 13º, 16º, 30º e 36º da petição inicial, que considera que devem ser levados aos factos provados;
ii) Em consonância com a modificação da matéria de facto preconizada pelo Recorrente, apurar da responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seguro na Ré pela produção do acidente de viação dos autos;
iii) Valor da indemnização relativo à reparação do veículo do Autor;
iv) Aumento do montante indemnizatório, fixado a título de privação do uso do veículo, para o valor de € 10,00 diários, desde a data do acidente até à data em que foi concluída a reparação.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

2.1.1. Na decisão recorrida considerou-se provada a seguintes factualidade:
«1- O Autor tem inscrita em seu nome no registo automóvel a propriedade do veículo passageiros, de marca Mercedes Benz, E 220 de matrícula XD.
2- No dia 14 de Fevereiro de 2018, pelas 9.35h, o veículo referido em 1 era conduzido pela sua companheira L. M., na Rua ..., Freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, na companhia da filha de ambos.
3- No dia, hora e local referidos em 2 estava a chover.
4- Atento o sentido Airão São João-E.N. 206 a Rua ... desenhava uma curva à direita, seguida de uma recta.
5- Cerca de 60 metros depois do fim dessa curva, atento, ainda, o sentido Airão São João-E.N. 206, existia na margem esquerda da Rua ..., considerando o mesmo rumo, a entrada para um prédio particular, mais precisamente o denominado “X”.
6- O dito estabelecimento comercial dispunha de uma entrada directa para a Rua ..., sem portão.
7- No interior do prédio onde se situava esse estabelecimento comercial existia um logradouro.
8- No troço que antecedia a referida entrada para o estabelecimento comercial “X”, atento o sentido Airão São João- E.N. 206, a Rua ... apresentava uma inclinação descendente, na ordem dos 2%.
9- Nesse local, a Rua ... tinha uma largura de 7,40m com duas vias de trânsito, uma em cada sentido.
10- O piso era betuminoso.
11- Nesse local a Rua ... era marginada por bermas em ambos os seus lados, sendo que a da direita tinha uma largura de 0,90 metros e a da esquerda a de 1 metro, atento, em ambos os casos, o sentido Airão São João- E.N. 206.
12- Quem circulasse pela Rua ... no sentido Airão São João-E.N. 206, conseguia avistar a faixa de rodagem dessa via situada junto da entrada do já falado estabelecimento, em toda a sua largura, a uma distância superior à de 60 metros.
13- Depois de descrever a referida curva à direita, qualquer utente da via que circulasse no sentido Airão São João- E.N. 206 conseguia avistar a faixa de rodagem à sua frente, em toda a sua largura, até à entrada do estabelecimento “X”, a uma distância não inferior à de 60 metros.
14- No local, a faixa de rodagem da Rua ... era marginada, em ambos os seus lados e de forma contínua, por casas de habitação e comércio, inserida na localidade de ..., processando-se aí, regularmente, tráfego de pessoas e viaturas.
15- Naquele dia e hora o veículo referido em 1 seguia no sentido Airão São João/... (EN 206) na Rua ..., Freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão.
16- À sua frente, seguia o veículo matricula HG.
17- O veículo matricula HG, propriedade de A. M., era por este conduzido pela Rua ..., em ..., Vila Nova de Famalicão, no sentido Airão São João- E.N. 206.
18- O A. M. imprimia ao HG velocidade inferior à de 20 km/h.
19- Fazia progredir esse veículo pela metade direita da Rua ..., atento o sentido Airão São João-E.N. 206.
20- O A. M. pretendia mudar de direção à esquerda, de forma a ingressar com o HG no logradouro do dito estabelecimento “X”.
21- Tendo chegado às imediações da entrada para o logradouro do estabelecimento “X”, o condutor do HG reduziu o andamento que imprimia àquele veículo.
22- Antes de chegar à entrada do estabelecimento, o condutor do HG, de forma gradual, aproximou esse veículo do eixo da Rua ....
23- E, quando chegou ao exato enfiamento da entrada para esse estabelecimento, acionou o dispositivo luminoso do pisca-pisca esquerdo desse veículo, mudou de direção à sua esquerda e avançou rumo ao dito logradouro.
24- Dessa forma, invadiu com o HG a metade esquerda da faixa de rodagem da Rua ....
25- Antes de iniciar a manobra o condutor do HG olhou para a sua frente, tendo confirmado que nenhum veículo se aproximava de si no sentido contrário.
26- Antes de iniciar essa manobra o condutor do HG olhou também para o espelho retrovisor esquerdo.
27- O condutor deste veículo não viu que alguém seguia à sua retaguarda.
28- A condutora do XD avistou o HG à sua frente quando este já se encontrava junto ao eixo da via.
29- A condutora do XD decidiu ultrapassar o veículo de matricula HG e, para isso, sinalizou a sua intenção abrindo o pisca da esquerda.
30- A condutora do XD virou o volante deste veículo para a sua esquerda, transpôs com esse veículo o eixo da via e invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu rumo, pela qual passou a circular.
31- Quando o XD se encontrava já lado a lado com o veículo HG, este virou para a sua esquerda, embatendo com a sua frente esquerda na lateral direita do veículo XD.
32- Essa colisão ocorreu a cerca de 1,6 metros do limite esquerdo da Rua ..., cerca de 2,10 metros para a esquerda do eixo dessa via, atento o sentido Airão São João- E.N. 206.
33- Fruto dessa colisão o HG ficou imobilizado na via de forma sensivelmente paralela ao eixo da Rua ....
34- O HG ficou parado com a sua parte lateral direita traseira a uma distância de 3 metros da berma direita e a parte lateral dianteira direita a uma distância de 3,4 metros dessa mesma berma, atento, em ambos os casos, o sentido Airão São João- E.N. 206.
35- Depois da colisão a condutora do XD perdeu o domínio desse carro, o qual enviesou para a esquerda.
36- E, em desgoverno, o XD foi colidir com a sua dianteira direita no muro de vedação do prédio onde se situava o estabelecimento “X”.
37- Esta última colisão provocou a derrocada e destruição do aludido muro, composto de pedras sobrepostas de granito, numa extensão de cerca de 5 metros, e ainda fissuras e desalinhamento, numa extensão suplementar de 10 metros.
38- Através da apólice de seguro n.º ........ foi transferida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula HG.
39- Em consequência do embate, o veículo XD sofreu danos na lateral direita e na sua frente, com preponderância na sua frente esquerda, devido ao embate no muro e ao toque do veiculo HG.
40- O veículo XD foi removido do local para a oficina “Electro F. J., Lda.”, sita na Rua....
41- Onde foi peritado pela empresa “Y” e, em 9 de Março de 2018.
42- O custo da reparação dos estragos sofridos pelo XD foi orçamentado, por estimativa e sem desmontagem, em € 14.953.45. 43- O veículo XD é um Mercedes Benz, E 220, com motor a gasóleo com 2.148 cm3 de cilindrada, primeira matrícula de 1 de Janeiro de 2003 e mais de 92.134 km percorridos à data do acidente.
44- O veículo XD valia, em 19 de Fevereiro de 2018, € 11.804,00.
45- No site “Stand…” foi encontrado um anúncio de um veículo à venda, da marca e modelo do XD, do ano 2004, com 147.000Kms, pelo preço € 15.000,00 (quinze mil euros).
46- Os salvados do XD valiam à data do alegado acidente e valem ainda hoje, pelo menos, € 4.175,00, valor da maior proposta apresentada para sua aquisição.
47- No dia 9 de Março de 2018 a Ré informou o autor do custo estimado da reparação do XD, do valor dos seus salvados e dos dados da entidade que oferecera a maior proposta para respetiva aquisição, através da carta que lhe remeteu e por aquele foi recebida, com o seguinte teor:
“Exm Sr
P. F.
RUA … Nº …
...
V/Refª.: Acidente em 14-02-2018 - Veículo XD
N/Refª.: Pº 9001883673 – Ap. ........
Exm Senhor
Vimos pela presente informar que foram apurados para o veículo em referência os seguintes valores que determinam estarmos perante uma Perda Total:
Estimativa da reparação: € 14953,45
Valor Venal do Veículo: € 9250,00
Entidades que apuraram o seu montante:Y / ELECTRO F. J. LDA
Valor do veículo danificado: € 4175,00
Entidade que valorizou o veículo danificado:
A2B
Avenida … Lisboa
Tel/Fax: ………/ ...@....pt
Assim, apura-se um montante de € 5075,00, tendo em conta a melhor valorização obtida para o veículo, já deduzido do valor que o mesmo tem danificado, que é garantido pela entidade supra referida até ao próximo dia 22.03.2018 e contra apresentação de cópia do Documento Único ou titulo de Registo de Propriedade/Livrete.
Aproveitamos a oportunidade para informar, no cumprimento do que está estipulado no nº7 do Artº 7 do Dec. Lei 64/2008, que na eventualidade do proprietário do veículo inutilizado pretender cancelar a matricula e o registo, deverá obrigatoriamente ser portador do certificado de destruição do veículo, obtido junto de um operador de gestão de resíduos licenciado nos termos do Regime dos VFV, aquando do pedido de cancelamento junto das entidades competentes.
Mais informamos que a falta de cancelamento da matricula e do registo, em viaturas que não venham a ser reparadas, poderá conduzir a onerações para o respectivo proprietário, nomeadamente fiscais nos termos do regime do código de Imposto de Circulação, se a entidade compradora do veículo for operador não licenciado para o efeito da emissão de certificados de destruição e não altere a respectiva titularidade registal.
Logo que a instrução do nosso processo se encontrar concluído, voltaremos à V/presença.
Com consideração, subscrevemo-nos,
Pela Seguradora”;
48- Em 21 de Março de 2018, a Ré comunicou ao Autor que não tinham ainda dados que permitissem assumir a responsabilidade pelo sinistro.
49- A esta comunicação o Autor respondeu através do seu mandatário, onde, entre outras coisas, disse não aceitar os valores propostos na missiva datada de 9 de Março, assim como a posição assumida na comunicação de dia 21 de Março.
50- O Autor apresentou um orçamento de reparação do XD no valor de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), que enviou à Ré na comunicação referida em 20, uma vez que era sua intenção ter o seu veículo reparado.
51- O Autor insistiu junto da Ré, mas esta, por comunicação enviada em 4 de Junho de 2018, veio a manter a sua posição, não assumindo a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização resultante do sinistro.
52- O Autor continuou a insistir pela alteração da posição da Ré, pois queria ver reparado o seu veículo.
53- Tendo a Ré respondido em 23 de Junho, com uma alteração da sua posição, mas sem assumir 100% da responsabilidade no sinistro.
54- Em Outubro de 2019 o Autor decidiu dar ordem de reparação do veículo XD, na oficina onde tinha recolhido o orçamento que enviou à Ré, no caso, a oficina “AUTO ... – M. & M. – Reparações de Automóveis, Lda.”, sita na Rua …, freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão.
55- Tendo a mesma sido concluída em 25 de Novembro de 2019 e tendo tido um custo de € 8.610,00 (oito mil seiscentos e dez euros), com IVA incluído, que o Autor liquidou junto da empresa reparadora. 56- O veículo XD era utilizado pelo Autor ou pela sua companheira em deslocações para o trabalho e pessoais.
57- Após o acidente, o Autor ficou privado do uso do veículo XD até ao dia 29 de Novembro de 2019, data em que o veículo foi levantado da oficina “AUTO ... – M. & M. – Reparações de Automóveis, Lda.”.
58- Desde a data do acidente, 14 de Fevereiro de 2018 até dia 29 de Novembro de 2019, teve o Autor de recorrer a outros meios de transporte.
59- Na data referida em 1 e desde 10.03.2016 até à presente data, o Autor teve inscrita em seu nome no registo automóvel a propriedade o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula JO, de marca BMW, modelo 525TDS, do ano de 1998, que teve sob sua plena e exclusiva disponibilidade.
60- Relativamente a esse veículo o autor celebrou e mantem ativo um contrato de seguro celebrado com a JO (apólice ...........00), contrato esse que teve início em 26.01.2013 e ainda se encontra em vigor, no qual declarou ser o condutor habitual do JO.
61- O Autor celebrou e mantem ativo um contrato de seguro celebrado com a W Seguros (apólice ..........90), relativo ao veículo ligeiro de passageiros com a matrícula NQ, de marca Toyota, modelo Corolla, do ano de 1990, contrato esse que teve início em 27/04/2017 e ainda se encontra em vigor, no qual declarou ser o condutor habitual do NQ.
62- Desde 16.02.2018 até à presente data encontra-se inscrita no registo automóvel a propriedade do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula NI, de marca Volkswagen, modelo Caddy, do ano de 2012 em da sociedade “ELECTRO F. J. LDA”, da qual o Autor é o sócio maioritário, com 90% do capital social, e gerente.
63- Em 25.05.2018, o Autor celebrou, em seu nome e como condutor habitual desse carro, um contrato de seguro (apólice ........08), o qual, com algumas interrupções, vigorou entre 16/02/2018 e a presente data.
64- Em 26.12.2019 o Autor celebrou um contrato de seguro celebrado com a K (apólice ..............59), relativo ao veículo ligeiro de passageiros com a matrícula TX, de marca Mercedes-Benz 180, do ano de 2017, contrato esse que teve início em 26.12.2019 e termo em 27.12.2019, no qual declarou ser o condutor habitual do NQ.
65- Mediante o uso, pelo menos, da viatura referida em 59, o Autor pôde e ainda pode realizar as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.».
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2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
«Artigo 12.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “seguia a uma velocidade nunca superior a 50Km/h”.
Artigo 13.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “sem olhar para os retrovisores, sem sinalizar a sua intenção” e “traseira”.
Artigo 14.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “apesar de acionar de imediato os travões”.
Artigo 18.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “traseira” e “totalidade da sua”.
Artigo 22.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “Perante esta comunicação o autor reclamou telefonicamente desta posição”.
Artigo 25.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 45 dos Factos Provados.
Artigo 30.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “o autor não conseguiu reunir meios para proceder à sua reparação”.
Artigo 31.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “conseguiu obter meios necessários”.
Artigo 33.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta dos pontos 43 e 56 dos Factos Provados.
Artigo 36.º da Petição Inicial.
Artigo 11.º da Contestação, na parte em que se diz “2,5%”.
Artigo 14.º da Contestação.
Artigo 17.º da Contestação.
Artigo 18.º da Contestação, na parte em que se diz “a Rua ..., em todo o seu traçado e extensão, situava-se dentro dos limites de placas indicativas de início e fim de povoação”.
Artigo 20.º da Contestação.
Artigo 21.º da Contestação, na parte em que se diz “já que tinha estado parado uns momentos e alguns metros antes”.
Artigo 25.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 23 dos Factos Provados.
Artigo 26.º da Contestação, na parte em que se diz “mantendo sempre acionado o pisca-pisca esquerdo daquele automóvel”.
Artigo 27.º da Contestação, na parte em que se diz “mantendo, ainda, o pisca-pisca esquerdo do HG acionado”.
Artigo 29.º da Contestação.
Artigo 31.º da Contestação, na parte em que se diz “para trás, isto é, para os lados de Airão São João”.
Artigos 32.º a 34.º da Contestação.
Artigo 35.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 31 dos Factos Provados.
Artigo 36.º da Contestação, na parte em que se diz “mediante incumbência e na prossecução de interesses dele”.
Artigos 37.º e 38.º da Contestação.
Artigo 40.º da Contestação, na parte em que se diz “e com o pisca-pisca esquerdo ligado”.
Artigo 41.º da Contestação, salvo na parte em que se diz “decidiu ultrapassar este automóvel”, que resulta do ponto 29 dos Factos Provados.
Artigo 42.º da Contestação.
Artigos 44.º a 47.º da Contestação.
Artigo 48.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 28 dos Factos Provados.
Artigos 49.º a 51.º da Contestação.
Artigos 56.º e 57.º da Contestação.
Artigo 58.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 31 dos Factos Provados.
Artigo 62.º da Contestação, na parte em que se diz “ainda mais”.
Artigo 67.º da Contestação, na parte em que se diz “mais precisamente em 23/03/2018.
Artigos 71.º e 72.º da Contestação.
Artigo 74.º da Contestação.
Artigo 92.º da Contestação, na parte em que se diz “o autor tinha e teve sob sua plena e exclusiva disponibilidade”.
Artigo 94.º da Contestação, na parte em que se diz “o autor tinha e teve sob a sua plena e exclusiva disponibilidade”.
Artigo 96.º da Contestação, na parte em que se diz “até à presente data, o autor tinha e teve na sua plena e exclusiva disponibilidade.
Artigo 97.º da Contestação, na parte em que se diz “mantem ativo” e “e ainda se encontra em vigor”.
Artigo 98.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 65 dos Factos Provados.
Artigo 109.º da Contestação.».
**

2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto – conclusões 1ª a 11ª
2.2.1.1. O Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que respeita aos pontos nºs 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 28 dos factos provados e aos factos alegados nos artigos 12º, 13º, 16º, 30º e 36º da petição inicial.

Pretende que:
i) Os pontos nºs 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 28 dos factos provados sejam considerados não provados;
ii) Os factos alegados nos artigos 12º, 13º, 16º, 30º e 36º da petição inicial sejam considerados provados.
*

2.2.1.2. Na audiência de julgamento prestaram depoimento as seguintes testemunhas:
- A. M. (condutor do veículo com a matricula HG, segurado pela Ré, interveniente no acidente de viação em causa);
- L. M. (companheira do Autor e condutora do veículo com a matrícula XD, interveniente no acidente de viação; trabalha numa empresa de reparação automóvel, oficina que só não faz a parte de chapa e pintura);
- J. C. (amigo do Autor desde criança e que trabalha numa oficina de automóveis como, no seu dizer, chapeiro – é especialista na parte de carroçaria e chaparia; elaborou o orçamento junto à p.i. como doc. nº 8, sendo que os documentos com o nº 11 – factura e recibo relativos à reparação do Mercedes do Autor – foram emitidos pela sua empresa, na qual foi efectuada a reparação);
- F. G. (foi colega do Autor na escola; trabalha no estabelecimento comercial frente ao qual ocorreu o acidente de viação; é o filho da testemunha J. G.);
- J. G. (é o dono do estabelecimento comercial “X”, frente ao qual ocorreu o acidente de viação, mas não estava no local aquando desse evento);
- N. F. (perito averiguador de sinistros que interveio, por conta da Ré, no apuramento das causas e consequências do acidente dos autos, tendo tirado as fotografias a cores que foram juntas à contestação; as que estão a preto e branco são as que integraram a participação do acidente de viação elaborada pela testemunha L. A. – Cabo da GNR);
- P. M. (coordenador de averiguações de sinistros numa empresa que presta serviços à Ré; coordenou a averiguação do acidente dos autos, tendo-se deslocado ao local onde ocorreu o acidente e também observou directamente o veículo de marca Mercedes e viu fotografias do Opel);
- A. P. (prestador de serviços para a Ré);
- L. A. (cabo da GNR que em Fevereiro de 2018 encontrava-se colocado no posto da GNR de ..., Vila Nova de Famalicão, e que esteve no local do acidente no exercício das suas funções e elaborou a participação de acidente de viação e o respectivo croquis, tendo ainda realizado o relatório fotográfico que acompanhou aquela participação);
- P. S. (perito avaliador que prestou serviços para a Ré).
O Autor P. J. prestou depoimento de parte.
No âmbito do recurso, o Recorrente invoca passagens dos depoimentos das testemunhas A. M., L. M. e J. C. (neste caso de forma indirecta, com base no que consta da própria sentença); a Ré, por sua vez, invoca o depoimento de parte do Autor e os depoimentos das testemunhas A. M., L. M., N. F., P. M. e L. A..
Procedemos à audição desses depoimentos (testemunhas e autor) e ainda à análise de todos os documentos juntos aos autos.

Na apreciação do recurso iremos seguir parcialmente a metodologia do Recorrente, embora desdobrando a impugnação em três núcleos factuais fundamentais (em vez de dois, como consta da apelação).
*

2.2.1.3. Pontos 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 28 dos factos provados e artigo 16º da p.i.
Os pontos de facto objecto da impugnação tem o seguinte teor:
16- À sua frente, seguia o veiculo matricula HG.
18- O A. M. imprimia ao HG velocidade inferior à de 20 km/h.
19- Fazia progredir esse veículo pela metade direita da Rua ..., atento o sentido Airão São João-E.N. 206.
20- O A. M. pretendia mudar de direção à esquerda, de forma a ingressar com o HG no logradouro do dito estabelecimento “X”.
21- Tendo chegado às imediações da entrada para o logradouro do estabelecimento “X”, o condutor do HG reduziu o andamento que imprimia àquele veículo.
22- Antes de chegar à entrada do estabelecimento, o condutor do HG, de forma gradual, aproximou esse veículo do eixo da Rua ....
23- E, quando chegou ao exato enfiamento da entrada para esse estabelecimento, acionou o dispositivo luminoso do pisca-pisca esquerdo desse veículo, mudou de direção à sua esquerda e avançou rumo ao dito logradouro.
24- Dessa forma, invadiu com o HG a metade esquerda da faixa de rodagem da Rua ....
28- A condutora do XD avistou o HG à sua frente quando este já se encontrava junto ao eixo da via.
16º da p.i. – O embate aconteceu devido à circulação do veículo ligeiro HG, realizada de forma desatenta e em violação das normas do código de estrada, não tendo acautelado a marcha do veículo que seguia à sua rectaguarda, tendo virado à esquerda na via sem garantir que o podia fazer em segurança.

Revistos integralmente todos os meios de prova produzidos sobre estes pontos de facto, e não apenas os mencionados pelo Recorrente, entendemos que o Tribunal a quo decidiu bem e que inexiste qualquer fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto.

A impugnação alicerça-se essencialmente no depoimento da testemunha A. M., que era o condutor do veículo de marca Opel, modelo Corsa, com a matricula HG, interveniente no acidente dos autos. O próprio Recorrente assim o enuncia na motivação do recurso: «iremos apenas apreciar o depoimento do condutor do veículo seguro pela Ré que é tão evidente e claro que, reapreciado, terá que levar a alteração sobre a matéria de facto dado como provada e não provada elencada anteriormente».
Ouvida a gravação do depoimento, é incontestável que a aludida testemunha produziu as afirmações que o Recorrente transcreve no seu recurso, com base nas quais pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto.
Caso o afirmado pela testemunha A. M. correspondesse inteiramente à realidade, a Kdade da impugnação, na parte referente aos factos relativos à dinâmica do acidente, deveria ser julgada procedente.
Liminarmente, importa referir que nos autos existem elementos objectivos que nos permitem ter uma ideia suficientemente precisa sobre as características do local do acidente, onde ficaram posicionados os veículos depois do embate entre ambos e os danos que estes sofreram. Para isso, é bastante a participação do acidente de viação (bem) elaborada pela Guarda Nacional Republicana, a qual contém a descrição das condições de tempo e lugar, a representação gráfica das posições dos veículos após o acidente, o registo fotográfico do local com os veículos ainda imobilizados, e as declarações prestadas por ambos os condutores logo a seguir ao embate. Complementarmente, existem registos fotográficos da rua onde ocorreu o acidente, de ambos os veículos (onde são visíveis os danos que apresentavam) e do muro destruído pelo veículo do Autor.
A testemunha A. M. afirma que parou e estacionou o seu carro (10m35s: «Estacionei do lado direito») na Rua ..., do lado direito da via, atento o sentido Airão São João-EN 206, para ir ao armazém “J. G.” aí existente (03m06s: «Eu parei para ir ao armazém»); como constatou que se tinha esquecido da carteira (03m27s: «mas esqueci-me da carteira e ia a casa buscar a carteira»), resolveu voltar a casa para ir buscar a carteira e, para concretizar essa sua intenção, precisava de inverter o sentido da marcha (03m35s: «Ia inverter a marcha»); estava na “valeta” (04m46s: «Eu estava na valeta»), o mesmo é dizer, o carro estava encostado ao pequeno passeio (segundo se vê nas diversas fotografias juntas aos autos, em especial as que integram a participação do acidente de viação elaborada pela GNR, sendo que a própria testemunha refere - 13m58s - que «a roda estava quase encostada ao passeio») que aí margina do lado direito a estrada; é dessa posição – estacionado (2) e na “valeta” – que inicia a manobra de inversão da marcha, para voltar a casa (05m41s: «Para inverter… para cima, eu ia para baixo e era para ir outra vez para casa»), a qual pretendia fazer de uma só vez (ou seja, sem necessitar de uma manobra adicional de marcha-atrás – 04m50s: «Eu virei de uma vez»); olhou “pelo espelho” (09m03s) e não viu qualquer veículo (08m59s: «Não vi veículo nenhum»; 03m44s: «eu olhei para o espelho e não vi»).
Quanto à sua manobra estradal propriamente dita, sabendo-se que olhou previamente pelo espelho retrovisor esquerdo (27m00s: «Do lado do condutor. Do lado esquerdo só») e não viu qualquer carro, a testemunha afirma que engrenou a 1ª mudança e, em simultâneo, arrancou e accionou a sinalização luminosa que dava a conhecer a sua manobra (26m30s: «Abri o sinal para arrancar»), traduzida no “pisca para a esquerda” (04m35s: «O pisca eu liguei»; perguntado «ligou quando?», respondeu – 04m40s: «Quando arranquei»; 05m31s: «meti a primeira e arranquei»; mais à frente, 14m21s: «E dei o sinal e tudo»); quando estava a executar essa manobra a uma velocidade reduzida (24m40s: «Eu arranquei em primeira, ia arrancar, portanto cinco à hora, não sei»), o veículo Mercedes do Autor bateu na roda do veículo da testemunha e seguiu em direcção ao muro que marginava a estrada do lado esquerdo, considerando o sentido de trânsito de ambos os veículos, onde embateu (04m00s: «O Mercedes bateu na minha roda e foi para o muro»; 05m54s: «eu arranquei e ela já não teve tempo de travar»).
No que respeita ao concreto local onde ocorreu a colisão, a testemunha A. O. refere ipsis verbis (13m13s): «Quando descer, no sítio onde estava parado e inverter o sentido a marcha, só que quando estava a chegar, faltava para aí um metro para chegar ao pé do J. G. a Sra. bateu-me. Ela não tinha já hipótese de passar, porque não tinha lugar nenhum para passar»). Segundo depreendemos desta parte do seu depoimento, a frente do veículo da testemunha estava a cerca de um metro do sítio onde se inicia o logradouro do estabelecimento comercial “J. G.”. Mais à frente, no seu depoimento, corrige essa versão, dizendo que já tinha passado o meio da estrada e que o seu veículo estava cerca de um metro na outra faixa de rodagem (14m59s: «Passei mais do meio. Ela bateu-me para lá do meio, já»; 14m04s: «Se calhar tinha ultrapassado metade do meio da via para lá. Para aí um.»). Esclarece que o seu carro, no momento do embate, estava atravessado na estrada, ou seja, quase na perpendicular (16m13s: «O meu carro estava atravessado a direito»; 16m21s: «Não estava 100%, mas estava mais ou menos atravessado») e que depois do embate ficou quase em posição paralela ao eixo da estrada (16m23s: «E ficou precisamente direito»; como se vê nas fotografias da participação do acidente de viação, não é “precisamente a direito”, pois existe uma diferença de 40 centímetros entre a frente e a traseira do veículo).

Ressalvada a devida consideração, esta versão é incompatível com os danos observados nas viaturas resultantes do embate entre elas, com a posição em que ficou o veículo Opel Corsa depois do embate e com o que A. M. declarou ao militar da Guarda Nacional Republicana logo a seguir ao acidente, tal como ficou exarado na participação elaborada pela testemunha L. A..

Em primeiro lugar, a veracidade da versão exposta pela testemunha A. M. é posta em causa pelo facto de logo a seguir à ocorrência do acidente ter dito que ia virar para o estabelecimento comercial J. G. (ou seja, para o logradouro situado à frente do estabelecimento e que integra o prédio onde este está implantado) e não que pretendia inverter a marcha. Com efeito, na altura declarou ao militar da GNR que foi chamado ao local onde ocorrera o evento o seguinte: «Quando ia a virar para o estabelecimento comercial J. G., tendo dado o sinal para a esquerda, alguém me bateu na frente do meu carro».
Sendo só posteriormente exprimida a versão de que pretendia inverter a marcha e não se descortinando uma razão para a não ter apresentado ao Sr. Cabo da GNR (L. A.) na altura, que era a própria, é difícil acreditar no que agora afirma, tanto mais que os elementos objectivos também a infirmam.

Em segundo lugar, os danos produzidos nos veículos em consequência do embate entre ambos (e desconsiderando os danos posteriormente produzidos pelo embate do veículo do Autor no muro, que afectou cerca de 15 metros deste, os quais permitem ter uma ideia de como ficaria o Opel se fosse efectivamente embatido quando se encontrava perpendicularmente à via), que se observam nas fotografias, são danos de raspagem (próprios de um embate de raspão), de fricção entre os carros, e não de embate da frente do Mercedes do Autor com a lateral do Opel da testemunha A. O..
A própria testemunha afirma que (13m58s) «eu saí da beira onde estava, a roda estava quase encostada ao passeio, eu dava a volta só de uma vez». Portanto, a testemunha diz que pretendia realizar a inversão da marcha com uma única manobra, ou seja, “de uma só vez”. Se assim fosse, no local onde se dá o embate (assinalado no croquis da GNR), situado na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu, já o seu veículo se encontraria colocado perpendicularmente ou quase perpendicularmente à via (Rua ...) e, nesse caso, nunca os danos resultantes do embate poderiam ser aqueles que se observam nas fotografias e que foram descritos sem discrepâncias dignas de registo pelas testemunhas que depuseram sobre tal matéria. No caso de o Opel se encontrar posicionado perpendicularmente relativamente ao eixo da estrada, os danos que se produziriam não evidenciariam uma raspagem lateral, nem teriam a reduzida expressão que efectivamente têm (especialmente no Opel: se o Mercedes, no dizer da testemunha N. F. – 23m25s -, «deitou abaixo cerca de 5 metros do muro, mas, devido ao impacto provocou mais 10 metros de danos», afectando um total de 15 metros de muro, é de deduzir que um embate directo – frontal ou próximo disso –, de interceptação, na zona da roda dianteira esquerda e respectivo guarda-lamas destruiria significativamente a frente do carro da testemunha). Compatível com os danos verificados é a versão que inicialmente a testemunha A. O. apresentou à GNR: pretendia entrar no logradouro do estabelecimento J. G. (não tinha intenção de fazer uma manobra de rotação de 180 graus, inflectindo a marcha, mas de apenas 90 graus, virando à direita depois de se ter aproximado do meio da via).

Em terceiro lugar, o veículo Opel, depois do acidente, encontrava-se posicionado sensivelmente em sentido paralelo à estrada (ao eixo da faixa de rodagem), sendo o desvio de apenas 40 centímetros entre a frente e a rectaguarda (a frente lateral direita encontrava-se a 3,40 m do limite direito da faixa de rodagem e a lateral direita traseira a 3 metros da mesma extremidade, ou seja, por referência ao início do passeio aí existente).
Ora, tal posição do veículo é igualmente incompatível com a versão da testemunha A. O., segundo a qual no momento do embate encontrar-se-ia quase na perpendicular ao eixo da faixa de rodagem. Se o veículo estivesse nessa posição não sofreria uma rotação de quase 90 graus para se posicionar como foi constatado pela GNR, sobretudo se atentarmos nos danos de pouca expressão que se produziram e de os mesmos evidenciarem apenas um embate de raspão, lateral, entre os veículos.
Por isso, afigura-se inteiramente legítima a conclusão do Exmo. Juiz, em consonância com a interpretação que também as testemunhas N. F. e P. M., enquanto pessoas com experiência profissional na matéria, fazem sobre a dinâmica do acidente.
Aliás, estamos perante uma sentença que fundamenta exemplarmente a decisão sobre a matéria de facto, sendo que na parte aqui em causa a motivação é inteiramente esclarecedora do bem fundado raciocínio lógico do Sr. Juiz:
«A dinâmica do acidente referida nos pontos 2 e 17 a 37 dos Factos Provados resultou demonstrada em face dos depoimentos das testemunhas A. O., L. M., F. G., N. F. e P. M., conjugados com os documentos juntos a fls. 9v.º a 12, 24, 40v.º a 45, 48v.º a 51 e 54v.º a 61.
No entanto, cabe dizer que o relato da testemunha A. O. – e, em parte, da testemunha L. M. – não lograram convencer o Tribunal na parte em que aquela testemunha refere que encostou o seu veículo ao lado direito da via, a fim de efectuar uma manobra de inversão do sentido de marcha – parecendo apontar no mesmo sentido o depoimento da testemunha L. M., quando diz que o outro veículo estava “quase a parar ou já encostado” –, já que tal se afigura incompatível com a posição em que o veículo de marca Opel ficou imobilizado após o embate.
Na verdade, tal como referido pelas testemunhas N. F. e P. M., tal posição leva a concluir que, antes do embate, tal veículo se encontrava junto ao eixo da via, tendo em particular consideração a distância da sua traseira direita relativamente ao limite direito da faixa de rodagem – 3 metros, segundo o documento junto a fls. 9v.º a 12 e 40v.º a 45, que se afigura incompatível com a manobra descrita pelo condutor, aliás, em termos que divergem das declarações pelo mesmo prestadas à autoridade policial e vertidas no mesmo documento.
Mesmo admitindo que, com o embate, esse veículo tenha sofrido alguma rotação no sentido dos ponteiros do relógio, não se afigura que a mesma pudesse ser de molde a deslocar esse veículo da posição perpendicular para uma posição sensivelmente paralela ao eixo da via, tendo em consideração que, tal como referem as testemunhas N. F. e P. M. e resulta dos documentos juntos a fls. 54v.º a 57, os danos apresentados pelos mesmo são danos de raspagem, sem grande expressão».

Pelo exposto, inexiste fundamento para alterar a decisão da matéria de facto no que respeita aos referidos pontos de facto, improcedendo as conclusões formuladas a esse respeito.
*

2.2.1.4. Artigos 12º e 13º da petição inicial dados como não provados

Os apontados artigos da p.i. têm o seguinte teor:
12º da p.i. – A condutora do veículo do autor, seguindo a uma velocidade nunca superior a 50km hora, decidiu ultrapassar o veículo que seguia à sua frente de matrícula HG, sendo que para isso sinalizou a sua intenção abrindo o pisca da esquerda.
13º da p.i. – Quando se encontrava já lado a lado com o veículo HG, este, sem olhar para os retrovisores, sem sinalizar a sua intenção e surpreendendo, com num gesto repentino, guinou para a sua esquerda, embatendo com a sua frente esquerda na lateral traseira do veículo do autor.
Ao pronunciar-se sobre os factos alegados nestes artigos, a decisão recorrida considerou não provado:
«Artigo 12.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “seguia a uma velocidade nunca superior a 50Km/h”.
Artigo 13.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “sem olhar para os retrovisores, sem sinalizar a sua intenção” e “traseira”».

No que respeita ao artigo 13º os meios de prova produzidos são absolutamente contraditórios, desde logo os dois depoimentos que o Recorrente invoca, prestados pelos dois condutores envolvidos no acidente. Enquanto a testemunha L. M. afirma que o condutor do Opel só sinalizou a manobra quando o veículo Mercedes (do Autor) estava quase lado a lado com aquele e que foi surpreendida por uma guinada para a esquerda, a testemunha A. M. afirma que, olhou pelo “espelho” retrovisor, sinalizou a manobra e arrancou, a partir do limite direito da estrada, em primeira velocidade e a cerca de 5 km/hora (portanto, devagar e não repentinamente).
Quanto à velocidade a que seguia o veículo do Autor, o Recorrente não invoca qualquer meio de prova produzido sobre tal matéria. Além disso, nem sequer aborda especificadamente a matéria relativa à velocidade do veículo Mercedes, pelo que nenhum argumento foi apresentado susceptível de ser demonstrado com base num concreto meio de prova. Em todo o caso, procedemos à análise dos elementos dos autos e concluímos que são inconclusivos sobre a velocidade a que seguia o veículo do Autor: se é certo que a testemunha L. M. afirma que o veículo por si conduzido seguia a uma velocidade de 40 a 50 km/hora, não deixam de impressionar os danos que o veículo Mercedes produziu no muro, que parecem indiciar que imprimia uma velocidade superior, além de que a testemunha P. M. também faz uma interpretação dos dados objectivos que contraria o afirmado pela condutora.

Por isso, afigura-se que o Tribunal recorrido procedeu a uma correcta apreciação da prova produzida, ao considerar que:
«De igual modo, nenhum meio de prova permitiu estabelecer, com um mínimo de segurança, qual a velocidade instantânea a que seguia o veículo tripulado pela testemunha L. M..
Assim e por um lado, se é certo que esta refere que circulava “a não mais que 40 a 50 Km/h”, afigura-se, contudo, ser o seu depoimento insuficiente para formar uma convicção segura a tal respeito, já que, à excepção desse pormenor, se trata de um relato bem mais impreciso, parecendo, assim, que a referência à velocidade instantânea se baseará numa estimativa impressionista da testemunha e não na leitura do velocímetro – que, de resto, seria pouco comum em plena realização da manobra de ultrapassagem.
Acresce que esta testemunha, além condutora do veículo na ocasião do acidente, é companheira do Autor, razão pela qual tem um menor distanciamento relativamente aos interesses em litígio, em termos susceptíveis de abalar a credibilidade a atribuir ao seu depoimento, tanto mais que o mesmo, como adiante se verá, em alguns aspectos se afastou da realidade.
Contudo e por outro lado, também não se afigurou possível concluir que o veículo do Autor circulasse a mais de 50km/h.
Neste particular, apenas a testemunha P. M. concluiu nesse sentido, fazendo-o com base nas seguintes premissas:
- A via tem visibilidade em toda a sua largura numa extensão de 60m, encontrando-se o veículo seguro a 60m depois da curva que antecede o local do acidente, pelo que, tendo o seu condutor olhado no espelho retrovisor sem que tivesse visto qualquer veículo a aproximar-se pela sua rectaguarda, tal significa que o veículo do Autor, nesse momento, ainda não tinha saído da curva;
- Entre o momento em que o condutor do veículo seguro olhou pelo espelho retrovisor e o momento do embate decorreram cerca de 3 segundos, que é o tempo normal para iniciar a manobra, pelo que o veículo do Autor terá percorrido os 60 metros entre a curva e o local do embate em 3 segundos, o que significa que circularia a uma velocidade de cerca de 70Km/h.
Todavia, o Tribunal não pode dar como assentes, sem mais, as premissas enunciadas pela testemunha.
Em primeiro lugar, se é certo que o condutor do veículo seguro não viu o veículo do Autor quando olhou no retrovisor, tal não significa, necessariamente, que esse veículo ainda não tivesse saído da curva, já que existem várias outras explicações plausíveis para que o mesmo não fosse avistado pela testemunha.
A circunstância de, no local, ser possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa distância de 60m não pode fazer esquecer que a visibilidade de que um condutor dispõe através de um espelho retrovisor não é a mesma de que disfruta para a via que se estende à sua frente, já que, no primeiro caso, está em causa uma imagem da via reflectida numa pequena superfície espelhada, que, consoante a sua orientação, não permite a visão de determinados ângulos e que está mais exposta a factores de perturbação, como são a presença de humidade – constatando-se que a testemunha A. O. refere, embora com alguma hesitação, que o espelho retrovisor podia estar embaciado –, a que acresce a menor visibilidade natural decorrente do estado do tempo e a circunstância de o veículo do Autor ser de cor cinzenta.
Em segundo lugar, não podemos ter como seguro que tenham decorrido apenas 3 segundos entre o momento em que o condutor do veículo de marca Opel olhou no espelho retrovisor e o momento em que ocorreu o embate, afigurando-se que, a este respeito, a testemunha P. M. se baseia numa mera estimativa extraída da sua experiência profissional.
Deste modo, não resultou demonstrado o alegado no artigo 12.º da Petição Inicial, no que concerne à velocidade a que seguia o veículo do Autor, mas também não resultou demonstrado o alegado a tal respeito nos artigos 38.º e 42.º da Contestação».

Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre estas duas questões factuais.
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2.2.1.4. Artigos 30º e 36º da petição inicial dados como não provados

Estes dois artigos da petição inicial têm o seguinte teor:
30º da p.i. – «Tendo em conta que a Ré não assumiu a reparação, o autor não conseguiu reunir meios para proceder à sua reparação no ano de 2018 e até meados de 2019, o que forçou uma paralisação prolongada do veículo».
36º da p.i. – «Assim, a privação do uso do veículo por parte do autor causou ao mesmo prejuízos, incómodos e perdas de tempo, pelos quais reclama uma indemnização referente ao período entre o sinistro e a disponibilidade do veículo após reparação que não deverá ser inferior a EUR. 12 400,00 (calculado com base no valor diário do aluguer de uma viatura de substituição EUR 20,00 X 620 dias de paralisação)».
É de notar que na decisão recorrida deu-se como não provado o artigo 36º (na sua totalidade) da p.i. e o «Artigo 30.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “o autor não conseguiu reunir meios para proceder à sua reparação”».

O Recorrente sustenta que «tendo por base o relatado na sentença quanto aos depoimentos prestados sobre esta matéria, que constam da própria sentença, bem como as regras da experiência, e tendo em conta que nenhuma prova ou indício aponta em sentido contrário, deve ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se provados os factos alegados pelo autor nos artigos 30.º e 36.º» da petição inicial (v. conclusão 19ª).

Na motivação do recurso alega que «da sentença consta o seguinte:
A testemunha J. C. é chapeiro de automóveis e refere conhecer o Autor desde criança, conhecendo também o pai deste, mais referindo que recorre à oficina do Autor sempre que precisa de serviços de electricidade.
Confrontado com os documentos juntos a fls. 15v.º e 17, reconhece serem os mesmos da sua autoria, mais referindo que a reparação foi paga e que o Autor não lhe deve nada.
Relata que o Autor lhe pediu um orçamento porque a mulher tinha tido um acidente, explicando que se tentou poupar ao máximo, com peças da concorrência e usadas, o que demora mais tempo.
Mais refere que o Autor desabafou que não tinha dinheiro e que o recibo foi emitido na data em que o veículo foi levantado da sua oficina.
Pelo exposto, tendo por base o relatado na sentença quanto aos depoimentos prestados sobre esta matéria, que constam da própria sentença, bem como as regras da experiência, e tendo em conta que nenhuma prova ou indício aponta em sentido contrário, deve ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se provados os factos alegados pelo autor nos artigos 30.º e 36.º».

Apreciada a argumentação do Recorrente, conclui-se que não invoca uma concreta passagem da gravação do depoimento de qualquer testemunha para fundamentar o seu recurso. Trata-se de uma forma de impugnação da decisão da matéria de facto que invoca depoimento(s) sem cumprir o ónus estabelecido no artigo 640º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC, a cargo do recorrente e cujo incumprimento implica a rejeição da impugnação.
Aliás, cita um extracto da decisão em que o Tribunal recorrido se refere à testemunha J. C., mas depois invoca genericamente «o relatado na sentença quanto aos depoimentos prestados sobre esta matéria». Ou seja: o argumento está redigido no singular, por referência ao depoimento de uma testemunha indicada pelo Tribunal, e a conclusão no plural, referindo-se a depoimentos prestados.
Depois, o único elemento relevante é o facto de o Tribunal referir que uma testemunha disse que «o Autor desabafou que não tinha dinheiro» (3). Será que um tal “desabafo” de um cliente perante o encarregado da oficina onde mandou reparar o veículo é suficiente para se dar como demonstrado, conforme propugna o Recorrente, «os factos alegados pelo autor nos artigos 30.º e 36.º» da petição inicial?
Ora, desde logo, o extracto da sentença mencionado pelo Recorrente nem sequer aborda a matéria do artigo 36º da p.i., pelo que com base no mesmo não se pode dar como provado que «a privação do uso do veículo por parte do autor causou ao mesmo prejuízos, incómodos e perdas de tempo, pelos quais reclama uma indemnização referente ao período entre o sinistro e a disponibilidade do veículo após reparação que não deverá ser inferior a EUR. 12 400,00 (calculado com base no valor diário do aluguer de uma viatura de substituição EUR 20,00 X 620 dias de paralisação)». Sendo certo que a segunda parte do artigo contém um juízo conclusivo e matéria de direito, a testemunha, no aludido extracto, não se pronunciou sobre os prejuízos, incómodos e perdas de tempo alegados na primeira parte daquele artigo.
Versando apenas sobre a matéria do artigo 30º da p.i., julgamos que a mera verbalização do Autor, perante um encarregado de uma oficina, de que não tinha dinheiro, sem qualquer outro elemento substancial que permita aferir da veracidade do que foi dito a título de desabafo, é insuficiente para dar como provado que «o autor não conseguiu reunir meios para proceder à sua reparação no ano de 2018 e até meados de 2019, o que forçou uma paralisação prolongada do veículo».
Em todo o caso, parece-nos inteiramente pertinente a fundamentação aduzida pelo Tribunal recorrido para considerar não provada a matéria alegada no artigo 30º da petição inicial a respeito da disponibilidade de meios financeiros:
«Não foi possível apurar, com segurança, qual a situação económica do Autor por forma a saber se o mesmo tinha ou não condições financeiras para prover mais cedo à reparação do veículo: a documentação fiscal junta a fls. 134 a 141 respeita às declarações fiscais de IRS dos anos de 2017 e de 2019, sendo certo que esta última se encontra em erro, não corrigido pelo contribuinte; acresce que a circunstância de a entidade empregadora do Autor ser a sociedade de que o mesmo é sócio maioritário e gerente aconselha maiores reservas quanto às conclusões a extrair das declarações fiscais para efeitos de IRS».

Pelo exposto, não se vislumbrando qualquer erro de julgamento em matéria de facto, julga-se totalmente improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.2.2. Reapreciação de Direito
2.2.2.1. Da responsabilidade na produção do acidente – conclusão 12ª

O Recorrente estabeleceu, e bem, uma relação de dependência da modificação da sentença, no que respeita à responsabilidade na produção do acidente, relativamente à alteração da matéria de facto. Isso está bem patente na conclusão 12ª do recurso, onde consta: «Alterando-se como se entende esta matéria, deverá também alterar-se a decisão em crise nestes autos, atribuindo-se a total responsabilidade por este acidente ao segurado da Ré e nunca, como fez a sentença, atribuir qualquer responsabilidade à condutora do veículo do autor, uma vez que esta não contribuiu com qualquer manobra perigosa, desatenta ou inadequada para a produção deste acidente».
O quadro factual relevante com vista à subsunção jurídica da questão da responsabilidade na produção do acidente é exactamente o mesmo que serviu de base à prolação da sentença recorrida, à qual não é imputado, nas conclusões, um erro em matéria de direito, as quais incidem sobre o alegado erro em matéria de facto e as consequências, em matéria de direito, da preconizada modificação da matéria de facto.
Portanto, a eventual alteração da solução jurídica alcançada na decisão impugnada, quanto à defendida exclusividade da responsabilidade do condutor do veículo seguro na Ré, dependia, na sua totalidade, da modificação da matéria de facto, o que não sucedeu, pelo que se considera necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de alteração do decidido naquela decisão quanto à medida da responsabilidade de cada um dos condutores, nos termos do artigo 608º, nº 2, do CPC ex vi do artigo 663º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.
Não obstante, sempre se dirá que merece a nossa concordância o decidido na sentença sobre a proporção de responsabilidade dos condutores, que se fixou na percentagem de 40% para o condutor do veículo seguro na Ré e de 60% para a condutora do veículo do Autor, o que traduz uma correcta subsunção dos factos ao direito aplicável.
De acordo com o nosso regime jurídico, no domínio dos acidentes de viação a responsabilidade civil compreende quer a responsabilidade pela culpa, quer a responsabilidade pelo risco – cfr. nomeadamente o artigo 483º e segs., assim como o artigo 499º e segs., todos do Código Civil (CCiv.). No âmbito da responsabilidade a título de culpa ainda há que fazer a distinção entre culpa efectiva de algum ou ambos os intervenientes (ou de vários/todos os intervenientes se forem mais de dois) no acidente e culpa legalmente presumida do condutor de veículo por conta de outrem, a que alude o nº 3 do artigo 503º do CCiv.
Inexistindo qualquer facto que permita a caracterização a título de culpa legalmente presumida, o Tribunal recorrido considerou que os factos provados permitiam julgar gerada a responsabilidade dos condutores a título de culpa efectiva.
Na motivação das suas alegações, o Recorrente, embora pressupondo a modificação da decisão sobre a matéria de facto, argumenta que não se pode «atribuir qualquer responsabilidade à condutora do veículo do autor, uma vez que esta não contribuiu com qualquer manobra perigosa, desatenta ou inadequada para a produção deste acidente».
Sucede que, no nosso entender, ambos os condutores violaram deveres objectivos de cuidado e, com isso, contribuíram para a eclosão do embate entre os dois veículos.
Por um lado, o condutor do veículo seguro pela Ré mudou de direcção à sua esquerda quando o veículo propriedade do Autor já circulava lado a lado com o seu, ocupando a via onde este circulava, pelo que colocou em perigo a segurança dos demais utentes, violando o disposto nos artigos 3º, nº 2, e 35º, nº 1, do Código da Estrada. O primeiro preceito mencionado estabelece que «as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias», enquanto no segundo se dispõe que «o condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito».
Por outro lado, a condutora do veículo do Autor decidiu ultrapassar o veículo seguro pela Ré, que a precedia, quando este já se encontrava junto ao eixo da via, posição que, atenta a largura da faixa de rodagem, era de molde a fazer supor que este iria mudar de direcção à esquerda. Naquele circunstancialismo, era exigível que não iniciasse a manobra de ultrapassagem. Portanto, também a condutora do veículo do Autor violou o disposto nos artigos 3º, nº 2, e 35º, nº 1, do Código da Estrada.
No caso, a realização das manobras de mudança de direcção e de ultrapassagem, adoptadas por ambos os condutores sem observar o cuidado exigível, foi causal da colisão entre os dois veículos: podem imputar-se aos dois condutores concretos comportamentos causais concorrentes para a produção do acidente. Estando fora de qualquer dúvida (segundo a nossa valoração dos factos) que nenhum dos condutores dos veículos agiu com dolo, o modo de circulação estradal por eles adoptado constitui uma violação de preceitos do Código da Estrada e as regras de trânsito configuram deveres cuja violação pode servir de base à imputação a título de negligência.
Havendo nexo causal entre a ocorrência de uma violação ao Código da Estrada e o acidente, entende-se existir uma presunção juris tantum de negligência contra o autor da mesma. Como a matéria de facto provada não fornece o mínimo indício de que o acidente possa ter sido causado por algum caso fortuito, como uma avaria mecânica de algum dos veículos, ou por causa de força maior estranha ao seu funcionamento, presume-se a culpa efectiva de ambos os condutores.
Quanto à medida da contribuição da culpa de cada um dos condutores, importa atender às circunstâncias do caso concreto. É que a culpa e a graduação desta têm sempre de ser apreciadas com base no circunstancialismo da situação da vida real que é objecto de análise pelo julgador. Isto partindo da definição de que a culpa constitui um nexo de imputação subjectiva que exprime a ligação psicológica do agente com a produção do acidente e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merece.
Ora, como bem se refere na sentença, «a condutora do veículo do Autor dispunha de melhor visibilidade para toda a via, não podendo ignorar que a manobra de ultrapassagem envolve um risco especialmente elevado, dado que normalmente implica, em toda a sua execução, o emprego de maior velocidade e a utilização de um espaço superior na via. Como tal, ao iniciar essa manobra sem atentar à circunstância de o veículo seguro pela Ré já se encontrar posicionado no eixo da via, em termos que normalmente fariam prever a sua mudança de direcção, a condutora do veículo do Autor agiu de forma temerária, sendo maior a sua culpa, por comparação com o condutor do veículo seguro pela Ré».
Daí que nenhuma censura mereça a graduação da culpa em 40% para o condutor do veículo seguro na Ré e em 60% para a condutora do veículo do Autor.
Em decorrência de tal fixação, como a reparação do veículo do Autor importou num custo de € 8.610,00 (oito mil seiscentos e dez euros), com IVA incluído, a Ré responde na proporção de 40% pelo ressarcimento desse dano patrimonial, ou seja, pelo montante de € 3.444,00 (três mil, quatrocentos e quarenta e quatro euros), tal como bem se decidiu na sentença.
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2.2.2.2. Da privação do uso do veículo – conclusões 13ª a 20ª

A questão essencial do recurso em matéria de direito respeita à determinação da indemnização pela privação do uso do veículo do Autor.
Na sentença entendeu-se que «o Autor não logrou demonstrar ter suportado quaisquer despesas acrescidas ou ter deixado de auferir quaisquer ganhos em virtude da privação do uso do veículo, pelo que o seu dano se restringe à pura privação de uma parcela do gozo de um bem de que é proprietário. Por outro lado, provou-se que o Autor era proprietário de um outro veículo e que, mediante o uso deste, pôde realizar as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.
Deste modo, afigura[-se] que a fixação equitativa da indemnização pelo dano da privação do uso deve cingir-se a uma expressão mínima, que, no caso, se ficará pelo montante de € 688,00, correspondente a € 1,00 por cada dia de privação».
O Recorrente insurge-se contra este segmento decisório, alegando que a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, em si mesmo, um dano patrimonial, indemnizável independentemente da prova cabal da perda de rendimentos, pelo que deve a Recorrida ser condenada em quantia não inferior a € 10,00 diários e não € 1,00 por dia como consta da sentença recorrida.

A indemnização por privação do uso, em especial de um veículo danificado em acidente de viação por que outrem é responsável, visa ressarcir um dano que afecta um interesse pecuniariamente avaliável, que tem expressão patrimonial. Está em causa a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Como não é possível a reconstituição natural, a respectiva indemnização é fixada em dinheiro.
O que é objecto de controvérsia, no que respeita à indemnização por privação do uso, não é se essa privação é susceptível de ser indemnizada, mas sim a forma como se procede ao cálculo da sua indemnização. Tem, sobretudo, a ver com a prova do dano e o frequente recurso à equidade para determinar o valor da indemnização, com fundamento no disposto no nº 3 do artigo 566º do Código Civil.

Nas últimas três décadas a questão da indemnização pela privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, tem sido objecto de acesa discussão na doutrina e na jurisprudência, com múltiplas teses e correntes, tributária da progressiva autonomização de tal dano (4). Na jurisprudência, algumas das anteriores (sub)correntes acabaram por ser abandonadas ou ultrapassadas, cingindo-se actualmente a três principais, sendo que a terceira que aqui se aponta só esparsamente se vê defendida:

a) A privação do uso de um veículo gera obrigação autónoma de indemnizar, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação (5);
b) A mera privação do uso do veículo é insuficiente para gerar a obrigação de indemnizar, devendo ser feita prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à sua utilização, embora sem exigir a prova de danos efectivos e concretos (6);
c) Para que a privação seja ressarcível terá de fazer-se prova do dano concreto e efectivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem (7).

Em resumo, para a primeira corrente basta a demonstração da privação do uso, para a segunda, além dessa privação, tem de demonstrar-se um propósito real de o lesado proceder à utilização do bem, enquanto a terceira não dispensa a prova de concretos prejuízos de ordem patrimonial.
Embora na sua formulação teórica sejam bem distintas entre si, na respectiva aplicação prática as duas primeiras acabam por se confundir na Kdade das situações, pois, sempre que existe uma utilização quotidiana tendem ambas a considerar que existe dano, sendo a quantificação da respectiva indemnização feita com base em critérios norteados pela equidade.
Pela nossa parte, a apreciação da ressarcibilidade nunca pode ser dissociada da análise das circunstâncias que rodeiam a privação do uso, sendo de afastar teses que defendam a fixação da indemnização de modo automático e de forma abstracta, sem qualquer ligação à situação concreta. Basta pensar na situação de alguém que deixa o veículo estacionado na rua e segue para o estrangeiro para passar férias e durante a sua ausência o veículo é danificado e reparado. Como é evidente, tal pessoa não sofreu um dano por privação do uso, pois, não tinha intenção nem possibilidade de utilizar o veículo naquele período. Vários outros exemplos se poderiam apontar de situações em que o titular do bem, apesar da danificação deste, não sofre qualquer dano autónomo de privação do uso. No fundo, não há dano autónomo susceptível de indemnização quando o titular no período de indisponibilidade do bem não se propunha aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades.
Não basta o tolher da mera faculdade abstracta de utilização, pois, para existir dano ressarcível, tem de se verificar uma concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo do bem. Portanto, a privação da possibilidade de uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano, o qual só se concretiza, ou seja, só passa a existir, enquanto causa da obrigação de indemnizar, quando se apuram as privações concretas das vantagens que a coisa proporcionaria e que se frustraram.
Como bem se sintetiza no acórdão da Relação do Porto de 08.10.2018 (8), uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente com aquela, será a privação da possibilidade de uso. Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo digno de ser ressarcido, se realmente a pretendesse utilizar caso não ocorresse a impossibilidade de dela dispor. Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder fazer, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela um dano patrimonial indemnizável.
Por conseguinte, a privação da possibilidade de uso é apenas uma fonte possível de dano, mas não já em si um dano (9). A privação da possibilidade de uso só constitui dano ressarcível mediante a referenciação às concretas e efectivas utilidades atingidas e cuja fruição se frustrou, pois, só assim se concretizará tal dano em termos de susceptibilidade da medição através da teoria da diferença (10).
Não se pode perder de vista que, em consonância com as regras ou princípios que se retiram do disposto nos artigos 483º, nº 1, 562º, 563º e 564º do Código Civil, constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica. Sem dano, em qualquer uma das suas vertentes, não há responsabilidade civil. E não existem danos abstractos ressarcíveis: todos os danos são concretos; o dano não é um evento abstracto sem exteriorização prática. O dano patrimonial consubstancia sempre um resultado negativo na esfera jurídica do lesado em consequência do evento lesivo: se não fosse a lesão o lesado estaria numa situação melhor, ou porque os seus bens ou direitos não teriam sofrido um prejuízo ou porque não obteve os benefícios com que legitimamente podia contar. Se o evento lesivo gera no património do lesado uma desvantagem susceptível de avaliação pecuniária, então há dano patrimonial juridicamente relevante.
Assim sendo, o raciocínio que preside ao apuramento da obrigação de indemnizar desdobra-se em duas operações: na primeira verifica-se a existência de privação do uso nos termos atrás expostos e na segunda procede-se à quantificação da indemnização a apurar com base na teoria da diferença consagrada no artigo 562º do Código Civil.
Para se concluir que ocorreu privação do uso do bem, basta que resulte dos autos que o titular do correspondente direito o pretendia utilizar ou que normalmente o usaria, o que pode perfeitamente ser retirado através de presunções naturais assentes na factualidade provada.
Já quanto à quantificação da indemnização, o lesado não necessita de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, designadamente um acréscimo de despesa ou a frustração de um rendimento com o qual legitimamente contava. Aliás, estando concretamente demonstrados danos emergentes ou lucros cessantes nem sequer se precisa de recorrer à autonomização do dano de privação do uso.
O problema só se coloca devido às circunstâncias que caracterizam normalmente as situações de privação do uso, em que é patente a dificuldade de prova de alguns factos sobre a concreta utilização que iria ser dada ao veículo e quais as actividades ou acções que deixaram de ser praticadas por não se poder dispor de automóvel. Por exemplo, estando assente a utilização familiar de um automóvel, há sempre um conjunto de actividades que se desenvolvem sem planeamento antecipado ou que decorrem fruto de impulso ou de circunstâncias conjunturais, como sejam os passeios e outras deslocações para actividades de lazer, as visitas a familiares e amigos, entre muitas outras. Já no plano da utilização profissional ou comercial de uma viatura, por exemplo, tratando-se de um veículo pesado de passageiros, é difícil, se não impossível, saber concretamente quantas pessoas efectivamente teriam recorrido ao transporte (por exemplo, através da compra de bilhete), para que destinos, que despesas teriam sido realizadas nesses serviços, que despesas seriam feitas com combustíveis e outros imponderáveis vários; se for um veículo de transporte de mercadorias, também dificilmente se conseguem apurar em pormenor todos os serviços que deixaram de ser feitos.
Por isso, na falta de elementos concretos e detalhados sobre o prejuízo causado, o valor da indemnização dever ser fixado com recurso à equidade tendo por base algumas informações de carácter patrimonial. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011 (11), «a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC».

Enquadrada a questão e definida a nossa posição sobre a mesma, relevam para a sua apreciação os seguintes factos:

a) Em 14.02.2018, quando ocorreu o acidente dos autos, o veículo de matrícula XD, propriedade do Autor, estava a ser utilizado pela sua companheira e transportava a filha de ambos (ponto 2 dos factos provados);
b) O veículo XD era utilizado pelo Autor ou pela sua companheira em deslocações para o trabalho e pessoais (56);
c) Após o acidente, o Autor ficou privado do uso do veículo XD até ao dia 29 de Novembro de 2019, data em que o veículo foi levantado da oficina “AUTO ... – M. & M. – Reparações de Automóveis, Lda.” (57);
d) Desde a data do acidente, 14.02.2018, até ao dia 29 de Novembro de 2019, teve o Autor de recorrer a outros meios de transporte (58);
e) Desde 10.03.2016 até à presente data, o Autor teve inscrita em seu nome no registo automóvel a propriedade o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula JO, de marca BMW, modelo 525TDS, do ano de 1998, que teve sob sua plena e exclusiva disponibilidade (59);
f) Relativamente a esse veículo o autor celebrou e mantem ativo um contrato de seguro celebrado com a JO (apólice ...........00), contrato esse que teve início em 26.01.2013 e ainda se encontra em vigor, no qual declarou ser o condutor habitual do JO (60);
g) O Autor celebrou e mantém activo um contrato de seguro celebrado com a W Seguros (apólice ..........90), relativo ao veículo ligeiro de passageiros com a matrícula NQ, de marca Toyota, modelo Corolla, do ano de 1990, contrato esse que teve início em 27.04.2017 e ainda se encontra em vigor, no qual declarou ser o condutor habitual do NQ (61);
h) Desde 16.02.2018 até à presente data encontra-se inscrita no registo automóvel a propriedade do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula NI, de marca Volkswagen, modelo Caddy, do ano de 2012 em nome da sociedade “ELECTRO F. J. LDA”, da qual o Autor é o sócio maioritário, com 90% do capital social, e gerente (62);
i) Em 25.05.2018, o Autor celebrou, em seu nome e como condutor habitual desse carro, um contrato de seguro (apólice ........08), o qual, com algumas interrupções, vigorou entre 16.02.2018 e a presente data (63);
j) Em 26.12.2019 o Autor celebrou um contrato de seguro celebrado com a K (apólice ..............59), relativo ao veículo ligeiro de passageiros com a matrícula TX, de marca Mercedes-Benz 180, do ano de 2017, contrato esse que teve início em 26.12.2019 e termo em 27.12.2019, no qual declarou ser o condutor habitual do NQ (64);
k) Mediante o uso, pelo menos, da viatura de matrícula JO, o Autor pôde e ainda pode realizar as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia (65).

Em primeiro lugar, é para nós inequívoco, em face dos factos provados, que o Autor sofreu um dano patrimonial decorrente da privação do uso do seu veículo, embora não com a dimensão alegada na petição inicial. O Autor e a sua companheira utilizavam regularmente o veículo XD nas suas deslocações para o trabalho e de carácter pessoal; em virtude dos danos sofridos pelo veículo no acidente, deixaram de poder continuar a fazer essa utilização.

Em segundo lugar, verifica-se que no período em que esteve impossibilitado de usar o veículo XD o Autor era proprietário de um outro veículo (de matrícula JO), com o qual conseguiu suprir a necessidade de realizar as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia. É absolutamente irrelevante que a sociedade de que é sócio o Autor possua um veículo, pois o mesmo destinar-se-á, até pelas suas características (basta atentar que se trata do modelo Caddy da Volkswagen, inapropriado para deslocações familiares ou para uma utilização de lazer), ao desenvolvimento da actividade da sociedade (12).
Porém, como facilmente se percebe pelo facto de o veículo sinistrado ser utilizado regularmente pela sua companheira, como efectivamente o estava a ser no dia do acidente, tanto que até transportava a filha de ambos, essa parcela da utilização que era dada ao veículo não foi suprida por outro meio e é relevante para efeitos de indemnizatórios.
Mais problemática é a quantificação desse dano.
Todavia, devemos partir da consideração de que o valor diário de € 10,00 constitui o padrão indemnizatório predominantemente adoptado, nos casos em que não é possível quantificar o dano decorrente de o lesado ter que recorrer a outras alternativas para se fazer transportar a si e à sua família, desde que essa privação não seja (totalmente) suprível pelos meios próprios já disponíveis. É esse o montante que tem sido utilizado como referência na jurisprudência, como é o caso, entre muitos outros, dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.03.2012, no processo 86/10.0T2SVV.C1, relator Alberto Ruço, do Tribunal da Relação do Porto de 07.09.2010, no processo 905/08.0TBPFR.P1, relator Ramos Lopes, do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.06.2020, proferido no processo 1136/18.7T8PTL.G1, relator Alcides Rodrigues, e do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.03.2010, no processo nº 1247/07.4TJVNF.P1.S1, relator Alves Velho, de 28.09.2021, no processo 6250/18.6T8GMR.G1.S1, relator Oliveira Abreu; em todos esses acórdãos se fixou em € 10,00 diários a indemnização pela privação de uso do veículo.
Assim sendo, como o Autor conseguiu suprir parcialmente a necessidade de transporte diário com o recurso a outro veículo de que é proprietário, mas que o veículo sinistrado também era utilizado pela companheira, estando demonstrado o propósito de utilização no período em que o veículo permaneceu por reparar, entendemos que, recorrendo à equidade, o montante indemnizatório deve ser fixado no valor diário de € 5,00, operando-se uma redução para metade face ao padrão normalmente utilizado em virtude do concreto circunstancialismo dado como provado.
Portanto, o quantum indemnizatório global pela privação do uso do veículo importa em € 3.440,00, respondendo a Ré, atenta a proporção da responsabilidade do condutor do veículo seguro, pelo valor de € 1.376,00 (mil trezentos e setenta e seis euros).
Procede, desta forma, parcialmente, a apelação.
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2.3. Sumário

1 – A privação do uso do veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, constitui um dano indemnizável quando o lesado, no período de indisponibilidade do bem, se propunha aproveitar, real e efectivamente, das respectivas vantagens ou utilidades.
2 – A privação da possibilidade de uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano, o qual só se pode dar como verificado, enquanto causa da obrigação de indemnizar, quando se apuram as privações concretas das vantagens que a coisa proporcionaria e que se frustraram.
3 – Provando-se a privação do uso do veículo, mas não se conseguindo quantificar objectivamente o valor do dano, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação.
4 – Caso se apure que as concretas vantagens que o veículo proporcionaria foram parcialmente supridas pela utilização de um outro veículo do lesado, deve operar-se uma redução da indemnização relativamente ao padrão quantitativo normalmente utilizado.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando-se parcialmente a sentença no que respeita à indemnização pela privação do uso do veículo, condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 4.820,00 (quatro mil, oitocentos e vinte euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, mantendo-se em tudo o mais inalterada a sentença.
Custas na proporção do decaimento.
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*
Guimarães, 24.03.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. 10m47s: «Estacionei o carro do lado direito».
3. Corresponde à realidade que a testemunha produziu a aludida afirmação, conforme confirmamos durante a audição do depoimento da testemunha J. C..
4. A autonomização do dano não tem aqui o sentido de criação de um tertium genus, relativamente aos danos emergentes e aos lucros cessantes, que têm expressão legal no artigo 564º, nº 1, do Código Civil. Face ao nosso direito positivo tal tertium genus não existe. Um dano patrimonial só é susceptível de ser enquadrado nos danos emergentes ou nos lucros cessantes. A autonomização da questão do dano de privação do uso emerge fundamentalmente da dificuldade de avaliação de tal dano patrimonial, para a qual o sistema jurídico contém solução. É um problema conceptual que conduz à criação de teorias e correntes artificiais.
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018 (Abrantes Geraldes), no processo 176/13.7T2AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os outros citados, sem indicação da fonte, no presente acórdão. No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 07.02.2008 (Sousa Leite), na revista 4505/07 da 6ª Secção (que pode também ser consultado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90), e de 08.05.2013 (Maria dos Prazeres Beleza), no processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1.
6. Acórdão do de 03.05.2011 (Nuno Cameira), no processo 2618/08.06TBOVR.P1. V. ainda os acórdãos do STJ de 09.12.2008 (Moreira Alves) e de 09.07.2015 (Fernanda Isabel Pereira).
7. Esta era a posição considerada tradicional, mas que agora está em franco declínio.
8. Relator Jorge Seabra, processo 4031/15.8T8MTS.P1.
9. Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, Almedina, 2008, págs. 594-596 e 591.
10. Acórdão do STJ de 03.10.2013.
11. Proferido no processo nº 2618/08.06TBOVR.P1 – relator Nuno Cameira, já atrás citado.
12. É igualmente irrelevante que o Autor tenha, como tomador, dois contratos de seguro relativos a dois outros veículos. Não é o proprietário dos mesmos e justificou durante o seu depoimento de parte que o Toyota Corrolla é o veículo do seu pai.