Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
787/14.3T8GMR.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANO DE PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1. Depois de apensados dois processos, a tramitação de ambos passa a ser única. Porém, a estrutura objectiva e subjectiva individual de cada uma das acções respectivas permanece autónoma.

2. Questionando-se, no recurso da sentença final, a decisão relativa ao pedido formulado numa delas, é em função do valor fixado à causa e da sucumbência respectivos que, nos termos do artº 629º, nº 1, do CPC, deve aferir-se a sua admissibilidade.

3. Cabendo aquele na alçada do tribunal recorrido e sendo o desta inferior a metade da mesma, a decisão é irrecorrível.

4. No recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, o ónus de especificar a decisão que, no entender do recorrente deve ser proferida sobre os pontos de facto por ele impugnados, tem de ser cumprido nas conclusões, por integrar o pedido recursivo (alínea c), do nº 1, do artº 640º, CPC).

5. Não se fundamentando, nas alegações de tal recurso, com elementos concretos que defluam dos meios probatórios especificados e em conexão com cada um dos pontos questionados, a existência de um preciso erro de julgamento, nada obsta a que os Juízes da Relação secundem ou corroborem a decisão e a motivação da 1ª instância, se esta corresponder à sua própria convicção.

6. Pelo dano biológico consequente a acidente de viação (ocorrido em 02-11-2013), mostra-se adequado o valor indemnizatório de 140.000€ (fixado em 18-12-2017, na 1ª instância) e não o de 60.000€ (pretendido pela seguradora), uma vez que a lesada tinha, então, 42 anos; era e é administradora de empresa; recebia o salário de 3.836€ e subsídio de alimentação de 85,40€ (por mês) e, ainda, subsídios de férias e de natal; sofreu diversas lesões (entre elas, fractura cervical), cujas sequelas, avaliadas pericialmente em 12 pontos, são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional mas implicam esforços acrescidos, designadamente: cefaleias fronto-temporais, síndrome cervico-braquial esquerdo, omalgia esquerda, mobilidade cervical limitada; queixas dolorosas de grau 4 (pescoço, ombro e braço esquerdo), com repercussão nas actividades desportivas, de lazer e sexual; síndrome depressivo e ansioso pós-traumático; cansaço fácil, insónias, dificuldades em sair à rua e passear; subir e descer escadas, dobrar-se ou permanecer de pé, não podendo correr, carregar pesos ou fazer movimentos repentinos com o braço esquerdo; necessitando de usar colar cervical e cadeira específica (prescrita pelo médico) no exercício da sua profissão.

7. Não deve ser alterado para 10€ o valor, fixado na sentença, em 30€/dia, para compensar a privação do uso do veículo sinistrado, se, além de a apelante se limitar a discordar deste sem fundamentar aquele, está em causa um veículo Volvo, destruído, utilizado em deslocações, entre outros locais, a repartições, clientes e fornecedores e no transporte destes, atentos os valores conhecidos no mercado para tal gama e o que ela própria pagou pelo aluguer de um semelhante (cerca de 60€/dia).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A autora CARLA intentou, em 16-10-2014, no Tribunal de Guimarães, contra as rés X – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, e COMPANHIA DE SEGUROS Y, SA, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.

Pediu a condenação destas a pagar-lhe, solidariamente, a quantia total de €277.963,87), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, e juros.

Alegou, em síntese, que, no dia 02-11-2013, pelas 22h30m, em Fafe, o veículo de matrícula PA, por si conduzido, foi embatido pelo veículo de matrícula CF. Este, por sua vez, tinha já colidido no veículo de matrícula SZ. Ambos circulavam com velocidade excessiva e o SZ estava a fazer uma manobra proibida de marcha-atrás. Em consequência do embate, sofreu danos corporais. Destes resultaram sequelas determinantes de uma incapacidade permanente de 29 pontos. Sofreu danos morais, além de outros prejuízos patrimoniais.

No processo apenso «A» (acção declarativa comum nº 463/14.7TBFAF), pela autora W – ELECTROBOMBAS SUBMERSÍVEIS, SA, intentado, em 26-03-2014, no Tribunal de Fafe, contra as duas referidas rés X e Y, pediu aquela a condenação solidária destas a pagarem-lhe, a título de danos patrimoniais, pela perda total do veículo sinistrado, a quantia de €12.000,00; a título de danos patrimoniais pelo aluguer do veículo de substituição, a quantia de €2.151,38; e a título de danos patrimoniais, pela privação de uso do veículo sinistrado, uma indemnização calculada à razão diária de €100,00. Além dos juros.

No processo apenso «B» (acção declarativa comum 1013/14.0TBFAF), intentado, em 29-07-2014, no Tribunal de Fafe, pela autora MARIA também contra as mesmas rés, pediu aquela a condenação destas a pagar-lhe a quantia €1.332,50 e juros, pela reparação dos estragos sofridos no seu veículo TJ, embatido pelo SZ, por culpa do condutor deste ou do CF, e pela privação dele.

Atribui à causa, na petição, o valor de 1.332,50€, confirmado pela X, não contestado pela Y, e assim fixado por despacho de 05-11-2014 (fls. 63 desse apenso).

Ainda no apenso «C», o CENTRO HOSPITALAR pediu a condenação da ré X a pagar-lhe a quantia de €2.521,82, relativa a cuidados de saúde prestados à autora Carla.

Cada uma das rés, em todas as acções, além de impugnar os danos reclamados, imputou à outra a responsabilidade pelo acidente: a X sustentando que o veículo SZ estava a efectuar a manobra repentina de marcha atrás (sendo ele o causador e culpado do evento); a Y alegando que foi o condutor do CF que, circulando com velocidade excessiva, não se apercebeu imediatamente do SZ e não teve tempo de reduzir aquela, de molde a evitar a colisão.

Em termos similares, contestaram ainda o pedido deduzido, em 23-02-2015, pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP, de reembolso de subsídios por doença pagos à beneficiária CARLA, no montante total de € 23.125,80 (mais tarde rectificado para €25.862,00.

Por despacho de 19-03-2015 (fls. 170 a 172), proferido na acção principal, foi dispensada a realização da audiência prévia, proferido saneador tabelar, fixado em 277.963,87€ o valor dessa causa, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Foi realizada perícia médico-legal, com esclarecimentos complementares.

Por despacho de 13-11-2015 (fls. 356 a 357), foi determinada a apensação da acção com o n.º 463/14.7TBFAF, à qual, por sua vez, já se encontravam apensas as acções n.ºs 1013/14.0TBFAF e a injunção com o n.º 72324/14.2YIPRT.

A Autora CARLA ainda deduziu articulado superveniente, a fls. 415 a 416, já no decurso da audiência de julgamento, tendo tal sido admitido, o que determinou nova realização de avaliação do dano corporal (fls. 418 a 420, 429 a 430, 441 a 445 e 467 a 468).

Teve lugar a audiência de julgamento, nos termos e com as formalidades narradas nas actas respectivas (fls. 410 a 412, 418 a 420 e 495 e ss).

No seu decurso da audiência, a autora W comunicou que, como foi indemnizada pela Ré X no valor que reclamou da perda do veículo no montante de €12.000,00, nessa medida reduzindo o pedido.

Por fim, com data de 18-12-2017, foi proferida a sentença (fls. 501 a 517) que culminou na seguinte decisão:

“Em face do exposto, julgo a ação parcialmente procedente, e, em consequência:

a) Condeno a Ré X - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar:

1. À Autora CARLA, a título de danos patrimoniais, a quantia de €3.351,49 (três mil trezentos e cinquenta e um euros e quarenta e nove cêntimos), sobre a qual acrescem juros de mora desde a citação, até integral pagamento, à taxa legal de 4%, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;
2. À Autora CARLA, a título de perda de capacidade de ganho futura, a quantia indemnizatória de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros), sobre a qual incidem juros de mora, desde a presente data, à taxa legal de 4%, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;
3. À Autora CARLA, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), sobre a qual incidem juros de mora, desde a presente data, à taxa legal de 4%, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;
4. À Autora CARLA, a título de perdas salariais, a quantia de €16.248,00 (dezasseis mil duzentos e quarenta e oito euros), sobre a qual incidem juros desde a citação até integral pagamento, à taxa de juros de 4%, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;
5. À Autora W, SA, a quantia de € 4.551,38 (quatro mil quinhentos e cinquenta e um euros e trinta e oito cêntimos), incidindo juros de mora, à taxa legal de 4%, sem prejuízo de posterior alteração legislativa, desde a citação efetuada no apenso «A» sobre a quantia de €2.151,38 e desde a presente data sobre a quantia de € 2.400,00;
6. Ao ISS, IP, a quantia de € 25.862,00 (vinte e cinco mil oitocentos e sessenta e dois euros);
7. À Autora MARIA a quantia de €772,50 (setecentos e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos), sobre a qual incidem juros de mora contados desde a citação efetuada no apenso «B», até integral pagamento, à taxa legal de 4% (sem prejuízo de ulterior alteração legislativa);
8. Ao CENTRO HOSPITALAR a quantia de € 2.521,82 (dois mil quinhentos e vinte e um euros e oitenta e dois cêntimos), desde a citação efetuada no apenso «C» até integral pagamento, à taxa legal de juros de 4% (sem prejuízo de ulterior alteração legislativa);
b) Absolvo a Ré X - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., do restante peticionado.
c) Absolvo a Ré Y - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., do pedido.
As custas da presente ação são da responsabilidade das Autoras CARLA, W, MARIA e da Ré X na proporção do respetivo decaimento (cfr. artigo 527º/1,2, do CPCiv).
Registe e notifique.

A ré X não se conformou, apelou e das suas alegações concluiu:

1- A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, porquanto na mesma não houve uma apreciação correta dos pressupostos de direito e de facto constantes dos presentes autos.
2- Relativamente á matéria de facto, considerou o tribunal a quo, como provados, os factos nºs 5, 6 e 11, o que a Recorrente não concorda, tendo em conta a prova documental e testemunhal, cujos depoimentos encontram-se transcritos na fundamentação do recurso.
3- Não é verdade que o condutor do veículo seguro circulava a uma velocidade superior a 70Km/h (facto nº 5) porque, resulta da prova testemunhal que o mesmo imobilizou o veículo seguro nos semáforos colocados antes do acidente, pelo que, seria impossível atingir aquela velocidade.
4- Ao contrário da tese do tribunal a quo, do lado direito da Rua do Luxemburgo, na altura do acidente, existiam veículos estacionados, nomeadamente, uma carrinha branca que impedia a visibilidade total para o entroncamento, tendo em conta o sentido de marcha percorrido pelo condutor do veículo seguro.
5- Nas fotografias juntas pela A. Carla a 19 de Outubro de 2015 (fotografia nº 9) observa-se uma carrinha branca estacionada no lado direito da Rua do Luxemburgo, assim como, fotografias juntas com a P.I da A. W.
6- Nas imediações do Café V. o estacionamento estava cheio.
5- Considerou como facto não provado o seguinte facto o facto nº 53 o que a Recorrente discorda, tendo em conta a prova testemunhal, cujos depoimentos encontram-se transcritos na fundamentação da sentença
6- Entende a Recorrente que a culpa na produção do acidente dos autos só pode ser imputada ao condutor do veículo de matricula SZ por violação do disposto no art.º 47 al b) e d) do Código da Estrada.
7- Não pode a Recorrente aceitar a suposição do juiz a quo de que, como os ocupantes do veículo SZ pretendiam ir ao Café V., é natural que procurassem estacionamento perto desse café, não havendo necessidade de fazer uma manobra de marcha atrás, ignorando o tribunal a quo que a Rua do Luxemburgo não tem saída, estavam veículos estacionados em ambos os limites direito e esquerdo daquela rua e era sábado á noite num local com cafés e frequentado por muitos jovens.
8- É do senso comum realizar-se uma manobra de marcha atrás ao aceder-se a uma rua sem saída e sem possibilidade de se estacionar.
9- Não faz sentido a tese de que o condutor do veículo SZ é embatido quando se aproxima do entroncamento, tendo em conta, inclusive, os danos verificados naquele veículo.
10- Era natural que o condutor do veículo SZ executasse uma manobra de marcha-atrás pois a referida rua encontrava-se bloqueada, tendo em conta o depoimento testemunhal transcrito na fundamentação da sentença.
11- Foi referido por várias testemunhas, tal como é indicado na sentença, que decorriam obras naquele local.
12- Não é verdade que se o condutor do veículo seguro circulasse a uma velocidade normal, muito provavelmente teria conseguido imobilizar aquele veículo, perante o aparecimento do veículo SZ, uma vez que existia pouca visibilidade para o entroncamento, face á carrinha branca que estava estacionada no limite direito daquela rua junto ao entroncamento, pelo que, era impossível ao condutor do veículo seguro prever o aparecimento, súbito, do veículo SZ na sua faixa de rodagem.
13- O depoimento de José merece pouca credibilidade, não só por ser vizinho da A., conhecia a A., como também alegadamente só apercebe do momento do segundo embate, no veículo conduzido pela A. Carla, pelo que não pode atestar a velocidade do veículo seguro antes do acidente.
14- A testemunha José, que estaria a caminhar em direção ao Café V., a descer a Av. dos Bombeiros Voluntários, percorrendo o sentido do veículo seguro, no passeio, já não se apercebe, contudo, da manobra do veículo SZ, conforme declarações do mesmo, transcritas na fundamentação do Recurso.
15- É incompreensível, face ao sentido de marcha da referida testemunha, a descer a Av. Dos Bombeiros Voluntários, de frente para o Café V., que a testemunha José, não se tenha apercebido da entrada do veículo SZ naquela avenida, momentos antes do embate, pois segundo o seu condutor, o mesmo terá entrado na Av. dos Bombeiros provindo de uma outra rua que com ela entronca antes do sitio onde está instalado o Café V., conforme declarações transcritas na fundamentação do Recurso.
16- Ao contrário do defendido pelo tribunal a quo a testemunha Luís não conseguiu atestar, com certeza, que o condutor do veículo seguro circulava a uma velocidade superior a 70 Km/h, tão só, porque o mesmo não se lembra de nada, tendo em conta as suas declarações transcritas na fundamentação do Recurso.
17- O tribunal a quo julgou ser de acolher os depoimentos do condutor do veículo SZ e seu passageiro, por serem mais credíveis, em comparação com o depoimento do condutor do veículo seguro e sua passageira, o que a Recorrente não concorda.
18- Os depoimentos das testemunhas Tiago e Daniel são discrepantes, no que se refere ao momento do embate, pois o passageiro, pouco se apercebeu do embate, ao contrário do condutor do veículo SZ, que refere que ouviu um estrondo, tendo em conta os depoimentos das testemunhas na fundamentação do Recurso transcritos.
19- No entanto resulta da Participação do Acidente de Viação, que o veículo TJ estava em contravenção, por estar a violar a al b) do art.º 49 do Código da Estrada, pelo que, não pode á Recorrente ser responsabilizada pelo pagamento dos danos.
20- O montante atribuído a título de dano biológico futuro á A. Carla é manifestamente exagerado.
21- A atribuição de tal montante não teve em consideração o facto da A. Carla, tem como antecedentes patológicos, síndrome depressiva, diagnostica em 2010/2011 tendo interrompido a medicação em 2012, muito antes do acidente, por sua iniciativa.
22- O Juiz a quo faz uso, na atribuição daquele valor, de um critério já ultrapassado na determinação do valor de dano biológico.
24- De facto, o juiz a quo, recorreu a critérios puramente aritméticos na determinação do valor da indemnização, sendo que é jurisprudência ressente que, não estando o paciente impedido de exercer a sua atividade profissional e não se apurando o valor exato da referida diminuição de rendimento económico, não se mostra adequado, recorrer a um cálculo puramente aritmético, restando lançar mão do critério da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, dentro dos padrões delineados pela jurisprudência em função do tipo de gravidade das sequelas existentes.
25- O entendimento indicado no art.º 24 das conclusões encontra-se presente nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2017 relativo ao processo 3214/11.4TBVIS.C1.S1 e de 30-03-2017, relativo ao processo 2233/10.2TBFLG.P1.S1.
26- Tendo em conta aqueles acórdãos indicados no art.º 25, assim como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-01-2017, relativo ao processo 1862/13.7TBGDM.P1.S1, o valor atribuído é elevado, afigurando-se mais certo um valor situado entre os €60.000,00.
27- É excessivo o valor de €30 euros diários pela privação do veículo, fixado pelo tribunal a quo, valor esse que ofende as regras de equidade, sendo que afigura-se correto o valor correto de €10 euros diários, de acordo com a jurisprudência atual.
28- Perante todo o supra exposto, pugna a ora Recorrente pela revogação da Sentença proferida pelo douto tribunal “a quo”.
JUSTIÇA”.

As autoras Carla e W responderam ambas, concluindo:

1. Os depoimentos testemunhais, que a Recorrente pretende que sejam agora valorados diversamente do que o foram pela Senhora Juiz a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal (art.º 396º do Cód. Civil e art.º 607.º, n.º 5, do CPC);
2. À partida, não pode o Tribunal da Relação pôr em causa a convicção livre e fundamentadamente formada pela primeira instância, que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este Tribunal ad quem não detém em sede de Recurso (v.g. a inquirição presencial das testemunhas);
3. O Tribunal a quo não incorreu em erro ostensivo na apreciação da prova e também não apreciou arbitrariamente as provas produzidas em audiência de julgamento;
4. Perante duas versões que se digladiaram em julgamento, ao Tribunal a quo, que apreciou livremente a prova, pareceu mais credível a versão apresentada pelo condutor e pelo passageiro do SZ, devidamente conjugada com os depoimentos do cabo da GNR que elaborou o Auto de Notícia e das testemunhas Luís e José, absolutamente coerentes com as regras da normalidade e da experiência comum;
5. Para a fixação do dano biológico da A. Carla, o Tribunal a quo teve em consideração as sequelas que, nos termos do relatório pericial, são enquadráveis como derivadas do sinistro de que foi vítima (vide pontos 13 a 39 dos factos provados);
6. Ainda, para tal desiderato, apesar de partir da fórmula matemática aludida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/04/1995, o Tribunal a quo não ignorou o critério da equidade;
7. Aquela “fórmula” ou “critério” de quantificação do montante indemnizatório apenas pretende ser um “ponto de partida”, de molde a permitir soluções relativamente uniformes, mas simultaneamente tem em conta as múltiplas variáveis que devem ser tomadas perante qualquer caso concreto, de forma a corrigir o valor que se atinge com a simples utilização de fórmulas matemáticas;
8. Tal “fórmula”, vertida em tabela “Excel”, tem base científica (facultada pelo docente Dr. Joaquim Correia Caetano) e foi desenvolvida e melhorada pelo Ac. do TRC de 04/04/1995 (publicado na CJ.95.2.23/26), permitindo atingir, de modo objectivo, um valor justificável por si e o mais próximo possível dos danos efectivamente sofridos, sem deixar margem para uma indesejável amplíssima discricionariedade;
9. É preferível recorrer a uma fórmula matemática que depois sofre as adaptações que se justifiquem, do que usar apenas do critério da equidade, que inelutavelmente resultará na atribuição de indemnizações totalmente dispares, com pouco ou nenhum critério, e consequentemente em graves injustiças, quer para o lesado, quer para o responsável;
10. Relativamente ao valor diário fixado a título de indemnização pela privação de uso à A. W, o Tribunal a quo teve em consideração as características do veículo (ligeiro de passageiros), a sua marca e modelo, o preço do aluguer cobrado por 1 mês (factura de fls. 71 e 72) e a habitual destinação e uso do veículo pela A.;
11. No caso de um acidente de viação imputável a terceiro, que determine a paralisação temporária de um veículo, a reconstituição natural deve fazer-se pela entrega de um veículo com características semelhantes às do danificado, até à respectiva reparação, ou através da atribuição de quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo cujas características sejam semelhantes às do acidentado;
12. Este ponto de partida para o cálculo da indemnização (preço do aluguer de um veículo cujas características) resulta, aliás, do disposto no art.º 42.º do já Regime Jurídico do Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil Automóvel;
13. A jurisprudência, em situações similares à dos Autos, tem fixado a indemnização diária em valores que variam entre os €20,00 e os €40,00/diários, conforme as circunstâncias;
14. Tendo em conta o tipo e qualidade do veículo sinistrado, o uso que habitualmente lhe era dado pela A. e ao teor da factura de fls. 71 e 72, não se pode concluir ser excessiva a fixação de um valor diário de €30,00 a título de indemnização pela privação de uso.

Termos em que, negando provimento ao recurso de apelação, deverá ser proferido douto acórdão que confirme integralmente a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
Assim decidindo, farão V.as Ex.as, Venerandos Juízes Desembargadores, a habitual, JUSTIÇA.”.

A autora MARIA respondeu, concluindo:

1. Verificando-se uma situação em que o valor da acção de que se pretende recorrer não seja superior à alçada do tribunal de que se recorre – no caso a Acção da Apelada de valor de de € 1.332,50 e sentença com uma condenação de € 772,50 – fica vedado ao ora Apelante o direito recorrer da parte de decisão jurisdicional única que decidiu de mérito o pedido requestado na acção apensa, por relativamente a ela se ter constituído caso julgado, nos termos do previsto no artigo 629.º n.º 1 do CPC;
2. O facto de a Apelada estacionar em violação do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 49.º em nada contribuiu para o sinistro que se veio a verificar não tendo violado qualquer dever de prudência não lhe podendo ser assacada qualquer culpa na produção de sinistro e por consequência qualquer responsabilidade no domínio da responsabilidade civil extracontratual.

TERMOS EM QUE Deve ser julgado improcedente o presente recurso.
ASSIM SE FAZENDO, JUSTIÇA!”

A Seguradoras Unidas respondeu, concluindo:

1. A douta sentença proferida pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” não merece qualquer reparo.
2. Os factos considerados provados pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” encontramse devidamente suportados na prova produzida, não existindo qualquer justificação para a invocada alteração.
3. A Recorrente discorda da forma como a prova testemunhal foi valorada pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo”, o que não significa que tenha ocorrido um erro ostensivo na apreciação da prova ou uma apreciação arbitrária da prova produzida ou uma afronta das regras da experiência comum.
4. Não se vislumbra que tenha ocorrido uma manifesta contradição entre os meios de prova produzidos nos autos e a decisão proferida pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto.
5. Não existe qualquer razão para proceder à alteração da decisão proferida pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo” quanto à matéria de facto controvertida.
6. A responsabilidade pela produção do acidente é única e exclusivamente imputável ao condutor do veículo CF, garantido pela Recorrente, por imprimir ao veículo velocidade superior à permitida no local e por não ter logrado imobilizar o veículo no espaço livre e visível de que dispunha.
7. Não é imputável ao condutor do veículo SZ qualquer infracção estradal que tivesse concorrido para o embate.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra a douta sentença proferida pela MM.ª Juíza do Tribunal “a quo”, pois apenas assim se fará a tão costumada JUSTIÇA.”.

Foi admitido o recurso como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pela recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir:

1. Se, relativamente à impugnação da X da condenação a pagar a quantia de 772,50€ (e juros), relativa à reparação do veículo TJ, à autora MARIA, no apenso B, o recurso é inadmissível face ao valor dessa causa e do decaimento.
2. Se, relativamente à matéria de facto com cuja decisão a apelante não concorda (pontos provados 5, 6 e 11 e ponto não provado 53), o recurso cumpre os requisitos da impugnação exigidos no artº 640º, CPC.
3. Na hipótese afirmativa, se a decisão relativamente a tais pontos deve ser alterada.
4. Saber se a culpa pela produção só pode ser imputada ao condutor do veículo SZ.
5. Caso seja negativa a resposta à questão 1, saber se, por o veículo TJ estar estacionado em contravenção, afasta a responsabilidade da recorrente X pelos danos naquele verificados.
6. Se é manifestamente exagerado o valor indemnizatório pelo tribunal a quo fixado, a título de dano biológico, à lesada Carla e este deve ser reduzido para 60.000,00€.
7. E, finalmente, se deve reduzir-se para 10,00€/dia o valor da indemnização correspondente ao dano da privação do veículo PA, da autora W (apenso A).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal considerou relevantes e decidiu julgar provados os seguintes factos:

§ Quanto à dinâmica do embate:

1. No dia 02.11.2013, pelas 22h30, na rua dos Bombeiros Voluntários, da cidade de Fafe, ocorreu um embate, no qual intervieram, os seguintes veículos:

a) O veículo ligeiro de passageiros da marca Volvo, com a matrícula PA (doravante PA), conduzido pela Autora;
b) O veículo ligeiro de passageiros da marca Mercedes, com a matrícula CF (doravante CF), conduzido por Joaquim, e segurado na Ré X através do acordo de seguro titulado pela apólice n.º …;
c) O veículo ligeiro de passageiros da marca MG, com a matrícula SZ (doravante SZ), conduzido por Tiago, e segurado na Y através do acordo de seguro titulado pela apólice n.º ….
2. O condutor do veículo segurado na Ré X conduzia o veículo por lhe ter sido cedido pelo seu pai.
3. A rua dos Bombeiros Voluntários é constituída por três faixas de rodagem, duas no sentido ascendente e em direção aos semáforos que se encontram na intersecção com a av. das Forças Armadas, e uma em sentido descendente, em direção à av. do Brasil ou de acesso à rua do Luxemburgo.
4. No sentido ascendente, na faixa mais à direita, circulava o veículo da Autora CARLA, dentro da sua faixa de rodagem, à velocidade de cerca de 30km/h.
5. O veículo segurado na Ré X circulava a velocidade a mais de 70km/hora.
6. O veículo SZ, ao aproximar-se do entroncamento com a rua do Luxemburgo, pretendendo mudar de direção, acionou o pisca, diminuiu a velocidade e, quando se encontra a efetuar a manobra, é embatido pelo CF, que não se apercebeu da diminuição da velocidade do SZ.
7. O veículo CF embateu na traseira e lateral esquerda do veículo SZ.
8. De seguida, o veículo CF invadiu a faixa de rodagem contrária por onde circulava o PA, com o qual foi embater frontalmente, que foi projetado contra outros dois veículos que estavam estacionados em frente ao mercado municipal.
9. Por força de o CF ter embatido no SZ, projetou este para a frente, tendo ido colidir com o TJ, que se encontrava estacionado à saída da rua do Luxemburgo, do lado esquerdo da via.
10. No local do embate, existe um entroncamento.
11. O local do embate configura uma reta na qual é possível avistar, pelo menos, a faixa de rodagem em 50 m.
12. O piso estava molhado.

§ Quanto aos prejuízos pessoais e patrimoniais da Autora CARLA:
13. Em consequência do embate, a Autora sofreu fratura cervical, além de hematomas cranianos.
14. Pelo que foi transportada de urgência para o Hospital de Guimarães.
15. Sendo admitida a internamento como politraumatizada após acidente, no dia 03.11.2013, tendo recebido alta em 13.11.2013.
16. Após a alta médica, regressou a casa para continuar o processo de recuperação, continuando os tratamentos médicos e medicamentosos.
17. Contudo, as dores da Autora não diminuíram, apresentando síndrome doloroso do ombro esquerdo, com laxidez e crepitação local, tendo efetuado ressonância magnética.
18. Apesar de todos os tratamentos médicos a que se sujeitou, a Autora mantém queixas e limitações dolorosas ao nível da mobilidade do ombro esquerdo.
19. Padece de cefaleias fronto-temporais (dores de cabeça) resultado do hematoma, insónias, síndrome cervico-braquial esquerdo, omalgia esquerda, ansiedade pós-traumática, mobilidade cervical limitada, com necessidade do uso de colar cervical.
20. Tendo-lhe advindo um défice funcional 12 pontos, nos termos da Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.
21. E um quantum doloris de 4 pontos numa escala de 1 a 7.
22. A Autora ficou a padecer de dano estético permanente fixável no grau 1 numa escala de 1 a 7.
23. A repercussão nas atividades desportivas e de lazer e fixável no grau 2 numa escala de 1 a 7.
24. A Autora ficou a padecer de prejuízo permanente na atividade sexual fixável no grau 1 numa escala de 1 a 7.
25. Na sequência do acidente de viação sobredito, a Autora viu-se privada da utilização do PA.
26. A Autora despendeu ainda a quantia de € 169,49 em gasóleo.
27. Bem como despendeu € 9,20 em portagens.
28. A Autora teve de se deslocar várias vezes de táxi, para a Casa de Saúde B, no que despendeu a quantia total de € 681,80.
29. Acresce que a Autora teve ainda, na sequência das lesões sofridas, de se sujeitar a várias sessões de fisioterapia segundo prescrição médica, no que despendeu o montante total de € 1.121,76.
30. A Autora teve também de se sujeitar a diversas consultas médicas, tendo despendido o montante de € 415,00.
31. E também suportou os valores relativos a consultas no centro hospitalar e centro de saúde, nomeadamente as respetivas taxas moderadoras, no que despendeu o montante total de € 61,00.
32. Foi submetida a diversos exames segundo prescrição médica, no montante de € 325,00.
33. Teve de adquirir diversos medicamentos segundo prescrição médica, tendo despendido a quantia de € 69,86.
34. Teve, por prescrição médica, de adquirir colar cervical no qual despendeu a quantia de € 289,38.
35. Foi ainda prescrita pelo seu médico a necessidade de adquirir uma cadeira específica de forma a possibilitar o exercício das suas funções profissionais com o conforto que as lesões exigiam, in casu, a Cadeira Operativa Staples Miro Preto, pelo que despendeu a quantia de € 259,00.
36. A Autora passou a sofrer dores ao movimentar-se, tem dificuldades em subir e descer escadas, sente cansaço fácil e dor ao nível do pescoço, ombro e braço esquerdo, que lhe perturbam o descanso e o sono; tem dificuldade em permanecer muito tempo de pé e em dobrar-se; não pode carregar pesos; não pode fazer movimentos repentinos com o braço esquerdo; não pode correr e tem dificuldade em sair à rua e passear; apresentando síndrome depressivo pós-traumático.
37. A Autora exercia a atividade de administradora da empresa W, auferindo a retribuição mensal de € 3.836,00, acrescido do subsídio de alimentação de € 85,40, subsídio de férias em duodécimos no valor de € 159,85, tal como subsídio de Natal igualmente de € 159,85, num total de € 4.241,10;
38. Devido às lesões que sofreu, em consequência daquele acidente a Autora esteve incapacitada para o trabalho desde a data do acidente, 02.11.2013 até 14.07.2014;
39. Pelo que deixou de auferir € 42.411,00.

§ Quanto ao pedido de reembolso formulado pelo ISS, IP:

40. O ISS, IP, processou à Autora CARLA, a título de prestações por doença referentes ao período compreendido entre 03.11.2013 a 01.09.2014, o montante de € 22.792,40, e, a título de prestação compensatória do subsídio de Natal, a quantia de € 3.069,60.

§ Quanto aos prejuízos da W:

41. O PA ficou destruído e paralisado, ocorrendo a sua perda total.
42. Não foi facultado à Autora W veículo de substituição.
43. A Autora W alugou um veículo de substituição desde 15.11.2013 a 26.12.2013, no que despendeu a quantia de € 2.521,38.
44. A Autora W utilizava o veículo para se deslocar aos seus fornecedores e clientes, a repartições e outros locais, conforme as suas necessidades.
45. Assim como para transportar os clientes e fornecedores.
46. E, não raras vezes, teve de pedir aos seus colaboradores e funcionários que utilizassem as suas viaturas pessoais.

§ Quanto aos prejuízos sofridos pela Autora MARIA:

47. O TJ pertence à Autora MARIA.
48. O TJ ficou danificado na parte da frente, tendo sofrido danos materiais cuja reparação foi orçada pelo valor global de € 772,50 (setecentos e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos).
49. No dia 26.11.2013, a Ré X assumiu perante a Autora MARIA parte da responsabilidade, colocando à sua disposição indemnização pelo sucedido, embora de forma parcial.

§ Quanto aos cuidados hospitalares prestados pelo Autor CENTRO HOSPITALAR:

50. O CENTRO HOSPITALAR é uma instituição hospitalar, integrada no Serviço Nacional de Saúde, tendo como objeto a prestação de assistência hospitalar e cuidados de saúde.
51. No âmbito da sua atividade, o CENTRO HOSPITALAR prestou a CARLA, em virtude de uma colisão entre veículos, os cuidados de saúde consubstanciados na fatura n.º 14001509, de 02.04.2014, no valor de € 2.521,82. “

Mais decidiu considerar não provados os seguintes:

“§ Quanto à dinâmica do embate:

52. O condutor do veículo SZ circulava à velocidade superior a 70 km/h.
53. O condutor do veículo SZ encontrava-se imediatamente antes da intersecção da rua do Luxemburgo, a fazer manobra de marcha-atrás, quando foi embatido pelo CF.

§ Quanto aos prejuízos pessoais e patrimoniais sofridos pela Autora CARLA:

54. A Autora sofreu um défice funcional superior a 12 pontos; um prejuízo estético superior a grau 1 numa escala de 1 a 7; de repercussão nas atividades desportivas e de lazer em grau superior a 2 numa escala de 1 a 7; e de prejuízo na atividade sexual em grau superior a 1 numa escala de 1 a 7.
55. A Autora CARLA teve de proceder ao aluguer de viatura para se deslocar, no que despendeu a quantia de € 2.151,38.

§ Quanto à privação do TJ:

56. A Autora MARIA necessita do TJ diariamente, designadamente para as deslocações de para o trabalho, compras, fins de semana.

§ Quanto aos cuidados hospitalares prestados pelo Autor CENTRO HOSPITALAR:

57. O CENTRO HOSPITALAR interpelou a Ré X ao pagamento no dia 03.04.2014.”

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1ª questão

A sentença recorrida condenou a recorrente X a pagar à autora MARIA a quantia de 772,50€ (e juros).

Refere-se esta parte do dispositivo à acção 1013/14.0TBFAF (apenso B), na qual a autora pediu a condenação das rés a pagar-lhe a quantia de 1.332,50€.

Não foi por qualquer das partes questionado o valor por ela atribuído à causa – 1.332,50€.

Transitou em julgado o despacho que nessa quantia fixou tal valor.

O processo, posteriormente, foi apenso ao presente (cujo valor foi, no saneador, fixado em 277.963,87€).

A apelante X incluiu no objecto do recurso tal condenação, não só ao impugnar os factos, defender consequentemente a sua irresponsabilidade pelas consequências do acidente e pedir a revogação da sentença, mas também ao defender, especificamente, que por o veículo TJ estar estacionado em contravenção, jamais pode ser responsabilizada pelos respectivos danos.

A apelada MARIA, na sua resposta, defendeu que o recurso deve, nessa parte, ser rejeitado, por inadmissível face ao valor da causa respectiva e nos termos do artº 629º, nº 1, CPC, não obstante esta se encontrar apensa, ter sido proferida uma sentença única e a causa principal ter o valor de 277.963,78€.

Questiona-se, pois, se, relativamente à impugnação da X da condenação a pagar a quantia de 772,50€ (e juros), relativa à reparação do veículo TJ, à autora MARIA, no apenso B, o recurso é inadmissível face ao valor dessa causa e do decaimento.

A este propósito, refere o Supremo Tribunal de Justiça:

-No Acórdão de 19-10-1994, processo 004052 (Dias Simão):

“I - Em consequência da apensação, o processo passa a ser comum às várias acções, sem que estas percam a sua autonomia, não ficando reduzido a um só, continuando a ser vários e, por isso, o valor processual da causa, atendível para efeito da admissibilidade do recurso, não é o que resulta da soma dos valores das acções apensadas, mas antes o valor próprio de cada uma dessas acções.
II - Só é admissível recurso da decisão proferida nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre.”.

-No Acórdão de 30-05-1995, processo 004208 (Castelo Paulo):

“I - Em consequência da apensação, o processo passa a ser comum às várias acções, sem que estas percam a sua autonomia trata-se de apensação de acções e não, pura e simplesmente de integração de acções, pelo que os processos não ficam reduzidos a um só, antes continuam a ser vários.
II - Assim, o valor processual da causa, atendível para efeitos da admissibilidade de recurso, não é o que resulta da soma dos valores das acções, apensadas, mas sim o valor próprio de cada uma dessas acções.
III - Logo, sendo os valores das várias acções, propostas, e cada um deles, inferiores ao da alçada da 1. instância, não é de conhecer de recurso de apelação interposto por a sentença da 1. instância ser irrecorrível.”.

-No Acórdão de 05-05-2015, processo 1805/08.0TBVLG.P1-A. S1 (Gabriel Catarino):

“Partindo do pressuposto da unidade da decisão jurisdicional, ou seja de uma decisão que toma posição e resolve todos os pedidos, que são peticionados nas diversas e em cada uma das acções que foram objecto de apensação, importará questionar se ela passa a ter uma indivisibilidade e estanquicidade teológica que não poderá ser desmembrada ou partilhada para cada uma das acções apensas, o que vale dizer para cada um dos pedidos dessas acções.
Ainda que tomando posição sobre todos os pedidos formulados nas acções que foram objecto de apensação, torna-se, em nosso aviso irremível, que o tribunal não pode deixar de tomar posição (jurídica) sobre cada um dos pedidos individualmente requestados em cada uma das acções apensas. A não assim, uma decisão que deixasse de tomar posição jurídica sobre cada um dos pedidos formulados nas respectivas e conexas acções incorreria em nulidade por omissão de pronúncia.
A decisão jurisdicional, devendo ser proferida no processo (principal) a que as outras acções foram apensas, não pode deixar de se pronunciar sobre todos os pedidos que foram formulados nas acções ancilares ou parasitas. Se o faz de forma conjunta, ou mais ou menos indistinta – podendo até adregar de uns poderem, pela sua inextricabilidade ou capacidade absortiva, ficarem prejudicados pelo conhecimento/pronúncia dos demais – o facto irrefragável é que a decisão jurisdicional única não deve deixar de se pronunciar/tomar conhecimento, individualizado e em particular, quanto a cada um dos pedidos que, em cada acção foi pedido ao órgão jurisdicional para que tomasse uma posição definitiva que permitisse resolver, com força de caso julgado, o dissídio que enfrascava cada uma das acções.
Tendo como pressuposto inarredável o que acabou se ser asserido, temos para nós que o recurso que haja impulsar-se para impugnar a sentença (única) não poderá, para efeitos da aferição da legitimidade para recorrer, ter como pressuposto de admissibilidade a posição relativa de cada uma das partes de cada um dos processos apensos. Na verdade, sendo um dos pressupostos da legitimidade para interpor recurso, o vencimento e/ou a sucumbência ou prejuízo que para cada uma das partes advém da decisão que se pretende impugnar, esse pressuposto não pode deixar de ser aferido relativamente a cada um dos pedidos individualmente formulados por cada um dos sujeitos processuais em cada uma das acções. Será, me nosso juízo, do vencimento ou decesso que cada um dos sujeitos respectivos alcance na respectiva acção que deverá aferir-se a legitimidade para a possibilidade de impugnação da decisão, por via de recurso.
(Questão diversa poder-se-ia colocar relativamente ao valor da acção para efeitos de recurso. Suponhamos que um dos sujeitos processuais viu o seu pedido, na acção que veio a ser apensa e cujo valor era inferior à alçada do tribunal, ser julgado improcedente. A acção a que esta acção foi apensa tem, no entanto, valor superior à alçada. Sendo a decisão única, o sujeito da acção cujo pedido era inferior à alçada do tribunal, adquire o direito a recorrer? Ou o valor a atender é o de cada uma das acções e estando a acção processual dos sujeitos de cada uma das acções confinado à sua própria acção há-de ser ao valor dessa especifica acção que se há-de atender para efeitos de capacidade recursiva? Absorvendo a acção – chamemos-lhe principal, para comodidade de exposição – as demais acções, essa absorção estende-se ao valor para efeitos de aquisição da legitimidade recursiva? Um sujeito processual alçaprema a sua posição processual e adquire um direito – que recorde-se não lhe seria conferido se acção mantivesse a sua individualidade – só pelo facto de a sua acção vir a ser apensa a outro processo (quiçá, e por ironia, por iniciativa de um outro, porventura daquele contra que na sua acção era a contraparte)? Sem desgranar demasiado a questão – que requereria certamente de um mais aturado e aprofundado debate jurídico – pensamos que não. O valor da acção para efeitos de recurso não pode deixar de aquele que foi atribuído ao pedido que haja sido julgado improcedente.”.

Devendo, pois, respeitar-se a autonomia objectiva da acção definida pelo respectivo pedido (apesar da similitude da causa de pedir), atento o valor da intentada pela autora MARIA e o da condenação da respectiva ré, tendo em conta, ainda, o sentido e fins das regras relativas à apensação de processos (artº 267º, CPC), à alçada dos tribunais e à sucumbência das partes (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra, de 21-05-2013 e de 29-10-2013, proferidos nos processos 4044/07.3TJCBR-C.C1 e e 737/08.6TMAVR-E.C1, relatados pelos Desemb. Sílvia Pires e Henrique Antunes, respectivamente, desta Relação de Guimarães, de 05-04-2018, processo nº 441/08.5TBPRG-B.G1, relatado pela Desemb. Sandra Melo, e AUJ nº 10/2015, in DR, 1ª, nº 123, de 26 de Junho) e em vista do artº 629º, nº 1, do CPC, conjugado com o artº 44º, nº 1, da Lei 62/2103, de 26 de Agosto, não há dúvida que, sendo inferior à alçada do tribunal recorrido o valor da referida causa e, a decisão impugnada, desfavorável à recorrente em valor inferior a metade daquela, e devendo considerar-se estes, não se encontra preenchido o duplo requisito legal nesta norma estabelecido para a apelante impugnar tal decisão.

Daí a insusceptibilidade de apelação da mesma e seu consequente trânsito em julgado (artº 628º, CPC), não podendo, pois, tomar-se conhecimento do pretenso objecto respectivo.

2ª questão

Consiste em saber se, relativamente à decisão da matéria de facto, o recurso cumpre os pressupostos e requisitos da impugnação.

Decorrem estes, em geral, dos artigos 637º, nº 2, e 639º, nº 1, e, em especial, dos artºs 640º e 662º, do CPC.

A interpretação e aplicação concreta destas normas tem suscitado intensa polémica na jurisprudência e persistentes dificuldades aos recorrentes.

Os pressupostos (obrigatórios) artº 640º podem assim esquematizar-se:

-especificação ou individualização concreta dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois não são admissíveis recursos genéricos de tal matéria (1);
-especificação, de entre os constantes do processo, nele registados ou gravados em áudio ou vídeo, dos concretos meios de prova que, na perspectiva dele, teriam imposto decisão diversa de cada um de tais pontos e fundamentam a sua alteração;
-no caso de serem invocados meios probatórios que tenham sido gravados, indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso;
-isto sem prejuízo da possibilidade de o recorrente proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
-especificação da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida.

Todos estes requisitos devem ser observados pontual e rigorosamente, como a Jurisprudência e a Doutrina têm dito, por forma a evidenciar os pretensos erros, respectivos fundamentos e possibilitar a apreciação destes e eventual correcção daqueles, sempre sem se esquecerem as contingências decorrentes dos princípios da oralidade e da imediação e da liberdade de apreciação da prova e de formação da convicção do julgador de 1ª instância.

Por tudo isso é que a violação daqueles apontados ónus, precisos e rigorosos, conduz, nos termos expressos e intencionais da norma, à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento da falha, porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3, do artigo 639º, do CPC, para as conclusões relativas às alegações sobre matéria de direito. (2)

Têm, assim, a Jurisprudência e a Doutrina entendido que a falta de cumprimento de tais ónus não deve ser vista com benevolência. (3)

Uma simples manifestação de discordância ou de inconformismo em relação à decisão proferida, por mais clamorosa que seja, não basta para consubstanciar a impugnação.

Com efeito, sendo difícil conceber, e por isso raros de encontrar, casos em que, nas circunstâncias concretas em que se produz e em função dos parâmetros legais com que se gera o juízo da 1ª Instância, daquelas indicações logo ressalte uma notória e ostensiva incorrecção deste, a alegação, e em particular as conclusões, devem identificar e localizar com evidência, clareza e de forma sintética, o erro de julgamento em que o tribunal laborou, ou a invalidade que cometeu – justificativos da pretensão recursiva e da visada modificação da decisão – ao apreciar livremente as provas e ao decidir segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (artº 607º, nº 5), bem como explicitar (4) as concretas razões ou fundamentos consubstanciadores de tais vícios (5), de modo a que o tribunal ad quem possa reapreciar, como é sua função, o percurso decisório trilhado (o juízo feito) pelo tribunal a quo, avaliar a razão do inconformismo manifestado e o mérito da alteração pretendida pelo recorrente e decidir sobre esta. (6)

Discutiu-se a questão de saber se os ónus do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto devem constar formalmente das conclusões ou se bastará expô-los no corpo das alegações.

Arrimando-se no argumento de que nada refere o artº 640º, há quem entenda (julgamos que minoritariamente) que os requisitos aí traçados não têm de ser incluídos nas conclusões, uma vez que, quanto a estas especificamente, consideram nada se exigir nos nºs 1 e 2, do artº 639º.

Noutro extremo (7), defende-se que todos eles aí devem constar, sob pena de rejeição.

Com efeito, considerando-se que o nº 1, do artº 639º, ao impor que as alegações culminem com conclusões sintéticas indicativas dos fundamentos por que o recorrente pede a alteração ou anulação da decisão, rege para todo e qualquer recurso, independentemente do seu objecto, e que o nº 2 especifica as indicações que delas devem constar quando o recurso verse sobre a matéria de direito, compreende-se que o subsequente artº 640º, ao impor específicas obrigações, sob pena de rejeição, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto”, embora o não diga expressamente, tenha querido explicitar as indicações que, neste particular âmbito, também as conclusões respectivas devem conter (as acima elencadas e decorrentes das alíneas a), b) e c), do nº 1, e da alínea a), do nº 2, do artº 640º).

Na verdade, a indicação dos concretos pontos de facto que o apelante considere incorrectamente julgados e a dos concretos meios de prova que, a seu ver, teriam imposto e devem impor decisão diversa da recorrida sobre eles e, mais concretamente, no caso de provas gravadas, a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso (tão essencial e imprescindível que a sua falta é penalizada com a liminar e imediata rejeição do recurso na respectiva parte), sugerem, nem mais nem menos, tratar-se da mesma exigência consubstanciada na indicação dos fundamentos normativamente apontada no nº 1, do artº 639º, mas agora especificada e adaptada a este tipo de recurso de impugnação de facto. (8)

Por sua vez, a obrigatória especificação, sempre sob pena de o recurso ser rejeitado, da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida, parece também equivaler ao pedido (de alteração ou de anulação) que, como tal, a mesma norma exige que conste nas conclusões.

Assim se terão querido explicitar, em termos análogos aos previstos na alínea b), do nº 2, do artigo 639º, para a matéria de direito, mas adaptar e exigir com extremo rigor, os requisitos que as conclusões também deverão conter na hipótese de o recorrente querer incluir no objecto do recurso a impugnação da decisão da matéria de facto. (9)

Bem vistas as coisas, são todas essas indicações que consubstanciam o fundamento de um tal recurso, fundamento este que, juntamente com o do concreto pedido de alteração, o estrutura (a este ou a qualquer outro), pois, como se sabe, o respectivo objecto (sempre inquestionavelmente definido pelas conclusões) é constituído por um pedido e um fundamento. (10)

Embora, genericamente, o pedido redunde na solicitação de revogação, alteração ou anulação da decisão impugnada e o seu fundamento na invocação de um vício no procedimento (error in procedendo) ou no julgamento (error in iudicando) (11), o certo é que, tanto no recurso em matéria de direito como no de impugnação em matéria de facto, a lei exige a concretização daquilo que o recorrente pretende, designadamente, neste último caso, que especifique, sob pena de rejeição, a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, não bastando, portanto, a mera manifestação de discordância.

Apesar de tal nos parecer evidente e consentâneo, por um lado com os princípios da auto-responsabilidade e do dispositivo e, por outro, com os objectivos de rigor e disciplina que sempre terão norteado o legislador, desde a implementação pelo Decreto-Lei nº 39/95 até à sua consagração no actual Código, do sistema de recurso em matéria de facto, o certo é que uma corrente mais moderada e permissiva, na mira de facilitar o exercício de tal direito, contemporiza com um menor rigor no cumprimento formal e escrupuloso de tais requisitos (12) e admite que, nas conclusões, bastará a referência sintética aos pontos de facto impugnados e às razões por que se pretende a alteração.

Na linha deste entendimento mais flexível, o Acórdão do STJ, de 19-02-2015 (13), considerou necessário mas suficiente que nas conclusões se especifiquem os concretos pontos de facto impugnados e a decisão a proferir nesse domínio (14), enquanto minimamente delimitativas do objecto do recurso, tal como no já atrás notado Acórdão de 04-03-2015 (15), proferido embora no âmbito do artº 685º-A do anterior Código, se reiterara, de acordo com cujo ponto 3 do Sumário: “Nas conclusões do recurso de apelação em que impugne matéria de facto deve o recorrente respeitar, relativamente a essa matéria, o disposto no nº 1 do artº 685º-A, do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados..

A esta luz, a falta de especificação obrigatória, nas conclusões, de, pelo menos, os pontos de facto impugnados e da decisão que deve ser proferida sobre eles – “como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente” – implica a rejeição do recurso. (16)

Quanto, ainda, à indicação exacta das passagens da gravação, aceitando-se que basta fazê-la no corpo das alegações, considera-se, porém, que não satisfaz minimamente tal exigência a indicação apenas do seu início, tal como a do início e do fim de todo o depoimento, nem a substitui a transcrição respectiva, maxime quando feita em simples notas de rodapé. (17) E, de resto, tal indicação deve ser conexionada com o ponto de facto visado e com o erro detectado, de forma a impulsionar e a facilitar não só o contraditório pela parte contrária como a apreciação e decisão pelo tribunal. (18)

Ora, descendo ao caso, constata-se o seguinte:

Ao longo das alegações, a apelante identificou os pontos 5, 6 e 11 dos provados e o 53 dos não provados, dizendo que “não concorda” com a “análise” levada a cabo pelo tribunal a quo pois que “da prova documental resulta exactamente o contrário”.

Quanto ao que consta do facto provado 5 (velocidade do CF), refere que “não é verdade”, pois que “resulta da prova testemunhal” que o condutor respectivo imobilizou o veículo nos semáforos colocados antes do acidente, pelo que seria impossível atingir aquela velocidade”.

Indica as testemunhas Joaquim (condutor daquele) e A. C. (GNR).

Refere que, por isso, o facto devia ser dado como não provado.

Quanto ao facto 11 (configuração recta da via no local do acidente e visibilidade), refere que o tribunal não teve em conta “os factos ao tempo do acidente”, ou seja, que “existiam veículos estacionados, nomeadamente uma carrinha branca que impedia a visibilidade total”.

Indica, para comprová-lo, as fotografias juntas e os testemunhos de Joaquim, Tiago, F. T. e A. C..

Daí extrai que “devia a última parte daquele facto” (visibilidade), “passar para os factos não provados”. Além disso, “sugere” que se acrescente o contrário, ou seja, que “é possível avistar, pelo menos, a faixa de rodagem em 50 metros”.

Quanto ao ponto 6 (trajectória do veículo SZ), nada alega.

Quanto ao ponto não provado 53 (alegada manobra de marcha-atrás do SZ), refere que o tribunal “errou ao avaliar a matéria de facto”.

Como “elucidativos” aponta os testemunhos de Joaquim e F. T..

Por isso, “considera” ela que o facto devia ser dado como provado.

Em face disso – e da transcrição que faz dos citados depoimentos com indicação de momentos temporais de cada pergunta e resposta na gravação – , defende que a culpa pela produção do acidente só pode ser imputada ao condutor do SZ, e que, portanto, “discorda” do tribunal a quo, tecendo argumentos diversos para contrariar o que, sobre essa questão – de direito! –, foi julgado, transcrevendo quanto a alguns desses aspectos – sem indicar a que concretos pontos de facto da decisão respectiva se refere – as testemunhas Joaquim e F. T., em consequência do que refere “não seguir” o entendimento do tribunal a quo “quanto à pouca probabilidade e/ou necessidade de se executar uma manobra de marcha atrás” e, além disso, que, quanto ao argumento daquele no sentido de que se o condutor do CF circulasse a velocidade normal teria muito provavelmente conseguido imobilizá-lo, pois o tribunal “ignora” que “existia pouca visibilidade” devido à carrinha branca estacionada, pelo que àquele era impossível prever o aparecimento do SZ.

Nesta mesma linha, apela a que “se repare” que, segundo a testemunha A. C., com um veículo estacionado na Rua do Luxemburgo qualquer veículo que pretenda aceder à Avenida dos Bombeiros Voluntários “tem que invadir esta, tem que chegar o carro mais à frente”, o que é ainda mais difícil “quando se executa, naquele local, uma manobra de marcha atrás.

Por fim, acrescenta que, embora “o juiz” tenha, na “sua tese” considerados relevantes para a questão da velocidade os depoimentos de Luís e José, “entende” que o depoimento desta última “merece pouca credibilidade” e “não pode atestar a velocidade”, transcrevendo, de seguida, a propósito de algumas considerações tecidas na motivação e da razão de ciência da testemunha, longos extractos do respectivo depoimento, bem como dos de Luís e de Daniel para salientar que “o tribunal andou mal” ao conferir crédito aos depoimentos do condutor do SZ e do respectivo passageiro.

No que diz respeito às conclusões, verifica-se que a apelante, ao longo destas, repete que “não se conforma” e que “não concorda” com a decisão quanto aos pontos provados 5, 6 e 11 e também “discorda” do facto julgado como não provado nº 53, entendendo, quanto à culpa, que “não pode aceitar a suposição do juiz” relativa à desnecessidade (e não prova) da alegada manobra de marcha atrás e tal tenha decidido “ignorando” que a Rua do Luxemburgo não tem saída, que “não faz sentido” e “não é verdade” aquilo que o tribunal recorrido entendeu e decidiu, nomeadamente quanto à velocidade do CF e visibilidade no local, repescando o que a este respeito refere nas alegações.

Ora, do exposto se retira, desde logo, que é patente que, tanto nas alegações como nas conclusões, relativamente ao facto 6, apesar de abrangido pelo inconformismo da apelante, tratando ele da trajectória do SZ, atitude do seu condutor e embate pelo CF, nada se refere, sequer em termos de discordância quanto a tais aspectos, muito menos quanto à alteração porventura sobre ele pretendida, não se mostrando cumpridos quaisquer dos ónus em causa (salvo o da alínea a), do nº 1, do artº 640º).

Quanto aos pontos 5, 11 e 53, diferentemente do aventado nas alegações, não indica a recorrente, nas conclusões, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida, limitando-se a expressar o entendimento de que o embate é imputável ao condutor do veículo SZ e a “pugnar” pela revogação (global) da sentença (apesar de só discordar de questões parcelares, de facto e de direito, nela decididas).

Assim, por incumprimento da obrigatória especificação, nestas, da decisão pretendida – artº 640º, nº1, alínea c), CPC – o recurso, na parte referente à impugnação da decisão da matéria de facto, deve ser rejeitado.

Ainda assim, no tocante ao seu mérito, é patente, por um lado, a confusão entre a questão de facto relativa à dinâmica e às circunstâncias envolventes do evento e a questão de direito relativa à culpa – enquanto pressuposto da responsabilidade civil –, pretendendo a apelante questionar esta a partir da discordância em relação a argumentos de facto vertidos na sentença com os próprios e trechos por si transcritos de depoimentos das testemunhas, em vez de apontar os erros da decisão de facto, respectivos fundamentos específicos e, com base no resultado da sua pretensa alteração, impugnar a subsunção jurídica feita nesta parte atinente àquele pressuposto.

Redunda, com efeito, a impugnação numa manifestação de genérica discordância da apelante quanto ao decidido e motivação respectiva, visando a dinâmica do acidente sobre que, naturalmente, refere ter adquirido outra ideia e de que resulta um retrato com aspectos parcelares diferentes traçado com argumentos próprios relativos à razão de ciência e credibilidade das testemunhas e de cujos relatos ou opiniões procurou extrair outras ilações direccionadas à tese da culpa exclusiva do condutor do veículo SZ. Não especifica, contudo, fundamentados erros, no julgamento da matéria de facto, relativos à apreciação e valoração dos meios de prova e em conexão com os indicados pontos.

De resto, lidas as transcrições feitas, delas resulta claro que, sobretudo quanto à velocidade do CF, visibilidade no local e pretensa manobra de marcha-atrás do SZ, as testemunhas respectivas limitam-se a dizer o que acham e lhes parece, a calcular, não havendo aspectos no teor dos respectivos depoimentos nem se acrescentando argumentos pertinentes e fortes que, no contexto da livre e prudente convicção, abalem o juízo feito pelo tribunal a quo e assim motivado:

““§ No que se reporta à dinâmica do embate:

Relativamente a esta matéria, obtiveram-se os depoimentos dos condutores do CF (Joaquim) e do SZ (T. M.), da passageira do CF (F. T.) e dos passageiros do SZ (Daniel) e do PA (Luís), assim como de José Sá (que se encontrava nas imediações do local onde o embate se produziu) e do cabo da GMR autor da participação do acidente de viação (A. C.).
Desde logo, diga-se que os depoimentos dos diretamente intervenientes no embate confluíram no sentido de que a Autora CARLA vinha na sua mão de trânsito e que a colisão do CF no PA decorreu do primitivo embate no SZ e no descontrolo na condução que tal implicou.
No que os condutores do CF e SZ já divergiram, bem como os seus passageiros, consistiu no modo como se dá o embate entre estes dois veículos.
É incontestado para quaisquer dos sujeitos processuais neste processo que quer o CF quer o SZ seguiam na rua dos Bombeiros Voluntários.
O condutor do CF, Joaquim, que referiu que o carro lhe tinha sido emprestado pela mãe (o que se valorou), disse que colidiu no SZ, que estava a fazer uma manobra de marcha-atrás (tinha as luzes brancas traseiras ligadas) e que, nessa data, havia impedimento à passagem na rua do Luxemburgo.
Quanto à velocidade, não a soube concretizar, mas indicou que tinha apanhado semáforos de cor encarnada, pressupondo que iria em terceira.
F. T., namorada do Joaquim, seguia no CF, no banco de passageiro à frente, disse já que acha que apanharam a luz verde nos semáforos, embora não o garantindo, e que, embora não circulando devagar, também não iam depressa. Reiterou que a rua do Luxemburgo estava bloqueada, com uma barreira, e que acha que o SZ estava a fazer uma manobra de marcha-atrás.
Daniel, condutor do SZ, negou que estivesse a fazer qualquer manobra de marcha-atrás, antes tendo iniciado a mudança de direção para a rua do Luxemburgo, que sinalizou, onde pretendia estacionar o carro num parque de estacionamento que ali se situa, com o objetivo de ir ao Café V..
Disse que foi abordado na data dos factos pelo agente policial a respeito do modo de produção do embate, tendo aí feito, nesse dia, as declarações. Olhando para o auto, acha que o ponto de colisão foi mais perto da berma, porque já estava inclinado.
T. F., passageiro do SZ, teve um depoimento similar ao do condutor do SZ, descrevendo que estavam a mudar de direção para a rua do Luxemburgo, onde procuravam estacionar. Negou que existissem viaturas estacionadas à direita e reconheceu que por ali andavam em obras, mas acrescentou que, pelo menos para o parque de estacionamento, não havia nenhum impedimento à passagem.
Estas testemunhas também aludiram que, após o embate do CF, o SZ entrou em despiste, tendo acabado por embater no veículo que se encontrava estacionado mais à frente (no TJ).
Comparando os depoimentos, ao Tribunal pareceu mais credível a versão apresentada pelo condutor e pelo passageiro do SZ. Se estes pretendiam ir ao café que ali se situava, é natural que estivessem à procura de estacionamento, sendo que o primeiro local onde o iriam fazer seria, justamente, no parque que ali existia, não havendo necessidade de efetuar, ali, uma manobra de marcha-atrás.
É certo que o condutor do CF e a passageira deste disseram que havia ali uma barreira à circulação. No entanto, o cabo da GNR que se deslocou ao local, na data dos factos, A. C., disse que ali não existiam quaisquer barreiras de segurança. Acrescentou, inclusive, que, ainda que ali houvesse obras, à noite, não existiria impedimento à circulação.
Por outro lado, o cabo da GNR disse também que não existiam carros estacionados à direita na rua do Luxemburgo.
Acresce que, ao contrário do condutor do SZ, o Joaquim, condutor do CF, apenas prestou declarações no dia seguinte ao do evento, porque teve necessidade de receber assistência hospitalar, não havendo, por isso, espontaneidade na descrição que fez do acidente e que se encontra retratada no auto.
Por outro lado, caso o CF viesse a velocidade «normal» e tivesse apanhado o último semáforo encarnado, como referido pelo condutor Joaquim, muito provavelmente, ante o aparecimento o SZ, teria conseguido imobilizar o veículo (porque não atingiria grande dinamismo, conforme referido pelo cabo da GNR), o que não aconteceu, tendo ido embater, ao invés, embater, de forma frontal, com o PA.
Acresce que Luís, passageiro do PA, restou com a perceção de que o CF vinha em grande velocidade, dada a rapidez com que aparece à frente da Autora. E, de igual modo, e decisivamente, José, vizinho da Autora, que estava a pé no local, e que apesar de não ter captado o movimento do SZ, apercebeu-se que vinha uma carrinha a alta velocidade, acima dos 60 ou 70 km/h, que, depois da primeira colisão, foi embater contra a Autora, que tripulava o PA.
Tanto Luís, como José não são afetados pela sorte da ação, nem direta, nem indiretamente, pois que, como já se aflorou, é ponto assente nos autos que a Autora foi colhida na sua condução, em diferente via de circulação e na sua mão de trânsito.
Pelo que, atento o elemento objetivo que consiste na trajetória que o CF tomou após a colisão com o SZ, considerando o facto de, de acordo com o cabo da GNR, não haver qualquer impedimento à passagem para a rua do Luxemburgo (não havendo razão para justificar a manobra de marcha-atrás), ponderando o depoimento de José quanto à velocidade do CF, tal dá consistência à versão deposta pelo condutor e pelo passageiro do SZ, tendo-se respondido à matéria atinente à dinâmico do embate, nos termos por eles testemunhados e corresponde à descrição realizada parcialmente pelas Autoras CARLA e W e pela Ré X.
Quanto às características da via, considerou-se o auto de participação de acidente de viação, o qual também alude ao estado chuvoso do tempo (o que se atendeu na resposta ao facto de o piso estar molhado, circunstância que também foi referida pelo condutor do SZ).”.

Não se descortina, olhando aos trechos dos depoimentos transcritos e cotejando a motivação em torno deles tecida com a preconizada pela apelante, fundamento capaz de sustentar divergência desta com aquela e, portanto, de nos convencer que outras foram as circunstâncias e atitude dos condutores convergentes no embate. (19)

Deste modo, mesmo que rejeitada não fosse a impugnação por incumprimento dos ónus respectivos, sempre o seu patente demérito levaria a julgá-la improcedente.

3ª questão

Estando, evidentemente, prejudicada, mantém-se inalterada decisão da matéria de facto e, consequentemente, a factualidade provada.

4ª questão

Respeitando esta à culpa pela produção do acidente, pelo tribunal atribuída ao condutor do CF e pretendendo a apelante que o seja exclusivamente ao condutor do SZ, o certo é que, como já se salientou, esta, confundindo a impugnação da decisão de facto com a impugnação da matéria de direito e os eventuais erros do julgamento de uma com os de outra, claramente apostava na alteração daquela como forma de, consequentemente, inverter a decisão proferida quanto a esta pelo tribunal a quo.

Em tal decisão, refere-se a propósito:

“Detendo-nos sobre o requisito relativo à culpa, como regra geral, o artigo 487º/2, do CCiv, dispõe que o agente atua com culpa, sendo a sua conduta passível de reprovação ético-jurídica, quando, em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo, em face da diligência de um bom pai de família.
Pela diligência dum bom pai de família, entende-se o emprego das cautelas necessárias no exercício da atividade, da qual derivou a violação do direito alheio, aferidas em abstrato, e não tendo em consideração a diligência normalmente empregue pelo agente no curso ordinário da sua vida.
Quer isto significar que o Tribunal, na tarefa de determinação do nexo de imputação do facto ao lesante, deve guiar-se pelo critério abstrato do homem medianamente responsável, tomando, embora, em consideração os especiais contornos do caso.
Posto que, na situação dos autos, o facto cometido pelo agente foi produzido no exercício da atividade de condução, a conduta do homem médio padronizado no artigo 487º/2, do CCiv, constituirá aquela que um homem dotado de normalidade ética e de normal perícia na condução de veículos de locomoção terrestre teria tido perante os condicionalismos do caso concreto (Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3.ª edição, p. 216).
Nos termos do artigo 487º/1, do CCiv, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção de culpa.
Todavia, no domínio dos acidentes de viação, a inobservância das regras estradais vigentes ao tempo da prática do facto faz presumir, iuris tantum, a culpa do agente.
Com pertinência para este caso, prescreve o artigo 13º/1, do Código da Estrada (CodEst), que o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes.
E, em matéria de velocidade, o artigo 24º, do CodEst, determina que o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Por sua vez, o artigo 25º/1,c),h),j), do CodEst, na parte ora pertinente, prescreve que a velocidade deve ser especialmente moderada, nas localidades ou vias marginadas por edificações, nos entroncamentos e nos troços de via molhados.

Por outro lado, de acordo com o artigo 18º, do CodEst, o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis (n.º 1). Bem assim, o condutor de um veículo em marcha deve manter distância lateral suficiente para evitar acidentes entre o seu veículo e os veículos que transitam na mesma faixa de rodagem, no mesmo sentido ou em sentido oposto
As regras vindas de elencar foram inobservadas pelo condutor do CF, pois que, dum lado, não manteve a distância de segurança mínima exigível em face do SZ, circulava em velocidade de 70 km/h (excessiva para o facto de se encontrar numa localidade, ser de noite e numa via, cujo piso estava molhado, pontuada por travessias laterais) e perdeu o domínio do veículo, invadindo a hemi-faixa destinada à circulação do PA e obstruindo, frontalmente, a sua trajetória.
Foi, por isso, a conduta transgressora das regras relativas à velocidade, à manutenção da distância de segurança e de manutenção do trânsito pela via de rodagem respetiva que esteve na base da eclosão, sendo-lhe, portanto, atribuível, em exclusivo, a culpa na produção do embate, posto que, tendo-se abstido de invadir a hemi-faixa contrária, o trânsito ter-se-ia processado sem a produção da colisão.
É que, contrariamente ao sustentado pela seguradora Y, da atividade instrutória, não resultou que o condutor do SZ estivesse a fazer qualquer manobra de marcha-atrás, antes de mudança de direção, não sendo esta obstativa da regular circulação automóvel.
Estabelecida a culpa a cargo do condutor seguro na Ré X, é esta obrigada a reparar os danos consequentes do sinistro, uma vez que lhe estava transferida a responsabilidade emergente para terceiros da circulação do CF (cfr. artigo 4º/1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08). ”.

Ora, persistindo o quadro factual dado como provado e nenhum fundamento de ordem legal, doutrinária ou jurisprudencial a apelante invocando em contrário deste julgamento, impõe-se confirmá-lo, bem como a decisão consequente relativa à culpa.

5ª questão

Respeitando esta à condenação da apelante a pagar 772,50€ à autora MARIA (apenso B) e consistindo ela em saber se, por o veículo TJ estar estacionado em contravenção, afasta a responsabilidade da recorrente X pelos danos naquele verificados, mas atendendo a que, tendo-se decidido positivamente a primeira questão, o recurso nessa parte foi julgado inadmissível e, por isso, não se podendo conhecer o respectivo objecto, está tal questão obviamente prejudicada.

6ª questão

Consiste em saber se é manifestamente exagerado o valor indemnizatório pelo tribunal a quo fixado, a título de dano biológico, à lesada Carla e este deve ser reduzido para 60.000,00€.

Vejamos a sentença:
§ No que se refere ao défice funcional futuro/dano biológico:

Cabe referir, a priori, que foram introduzidas no nosso ordenamento jurídico, através da Portaria n.º 377/2008, de 28.05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.06, tabelas de quantificação de danos consequentes de acidentes de viação. Os valores aí constantes têm, na fase contenciosa, pendor meramente indicativo, posto que o seu caráter vinculativo está dirigido às empresas de seguro no âmbito da apresentação da proposta razoável para indemnização aos lesados por acidente de viação. Nada impedindo que os tribunais se distanciem dos valores aí propostos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01.06.2011, disponível em www.dgsi.pt), entende-se que os critérios de referência aí constantes podem constituir um ponto de partida (Maria da Graça Trigo in «Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português», Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, janeiro/março, 2012, p. 171, diz que os valores têm de ser considerados como montantes mínimos a respeitar) na indagação da justa indemnização, num domínio em que não tem tradução patrimonial concreta, e de certo modo tal contribuindo para a uniformização de critérios ressarcitórios quantitativos, favorecendo a igualdade dos cidadãos perante a lei.
Essas tabelas são tributárias, quer da produção legislativa comunitária, mas também, em termos conceituais, do trabalho doutrinal e jurisprudencial no campo indemnizatório radicado nos acidentes de viação, aí havendo autonomização, para o que agora assume pertinência, dos conceitos de dano biológico, dano de perda de capacidade de ganho (ou dano patrimonial futuro, mas apenas no caso de incapacidade permanente absoluta), despesas comprovadamente realizadas por causa do acidente e danos morais complementares (aqui se incluindo o quantum doloris e o esforço acrescido no desempenho habitual) – cfr. artigos 3º, a), b) e d) e 4º, c) e e), da Portaria n.º 377/2008, de 25.05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.06.
O recorte desses conceitos não é claro e suscita dificuldades de aplicação prática (vd. perspetiva crítica de Maria da Graça Trigo, ob. cit., pp. 171 a 177; também desta autora, «Obrigação de indemnização e dano biológico», in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 69 a 85, maxime fls. 82 a 85).
Quanto ao dano decorrente da lesão física e da sua repercussão na vida futura, este trata-se dum dano material que pode assumir, pelo menos, dois aspetos diferentes: o primeiro é a incapacidade funcional do corpo humano ou de um seu órgão (dano biológico); o segundo é a incapacidade (parcial ou total) para o trabalho profissional do lesado.
Perspetivado como perda de capacidade de ganho futura, este tipo de dano deve ser calculado segundo critérios de probabilidade, de acordo com o que, em cada caso concreto, poderá vir a acontecer, pressupondo que as coisas seguem o seu curso normal, atribuindo ao lesado um capital a extinguir no final da vida, sendo que, não podendo apurar-se o seu valor exato, o tribunal deve julgar segundo a equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566º/3, do CCiv.
A diminuição da capacidade laboral por défice permanente parcial pode originar a perda de um rendimento que se repercute em prejuízos sofridos e a sofrer pelo lesado ou por aqueles que viviam ou vivem na sua dependência económica.
Mas o dano biológico, traduzido numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física consubstancia, em si mesmo, uma perda de qualidade do seu estatuto físico, variável em função do grau percentual de défice atribuído (vd., sobre a questão, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.10.1999, 25.06.2002, 20.10.2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Para além disso, está em causa a afetação da capacidade laboral genérica, a forma como tal se repercute na (não) ascensão na carreira profissional ou na mudança de profissão, o aumento da penosidade no exercício de tarefas laborais (vd., sobre o assunto, Maria da Conceição Trigo, «Obrigação de indemnização e dano biológico», in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 74 e ss.).
Mesmo em casos em que não há afetação da capacidade de ganho, é incontornável que, ao longo da vida, seja qual for a atividade que exerça, o autor-lesado terá sempre que desenvolver um esforço acrescido para alcançar o mesmo rendimento que outra pessoa que não sofra de qualquer incapacidade, desde logo em todos os pequenos movimentos que diariamente terá que executar, quer no plano profissional, quer pessoal, indissociável daquele.

Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.11.2009, disponível em www.dgsi.pt, «A doutrina e a jurisprudência estão de acordo em que pelo facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não está afastada a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens./ Neste leque, cingindo-nos agora à incapacitação para o trabalho, encontrar-se-ão os indivíduos lesados que se encontram fora do mercado do trabalho, da vida activa laboral, e considerando a duração cronológica de vida, seja a montante – caso das crianças e dos jovens, ainda estudantes, ou não, mas que ainda não ingressaram no mundo laboral -, seja, a jusante, com os reformados/aposentados, que dele já saíram, sem esquecer os que estando fora destes parâmetros temporais, situando-se pela sua idade no período de vida activa, estão porém fora daquele mercado, porque desempregados (…)».
Daí que o dano biológico não deve ser mensurado apenas até ao termo da vida ativa, mas até ao fim (provável) da vida do lesado (considerando a esperança média de vida), pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e atividades que se desenvolvem e que envolverão esforço necessariamente superior (vd. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.05.2009, e do Tribunal da Relação do Porto, de 22.05.2012, disponíveis em www.dgsi.pt, versados sobre a ressarcibilidade deste tipo de danos no caso de sinistrados sem prossecução de atividade laboral).
Para o cálculo da indemnização, partir-se-á da fórmula matemática aludida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.04.1995, Colectânea de Jurisprudência, tomo II, p. 23, considerando a idade da Autora à data do acidente (42 anos), o valor da retribuição por si auferida (€ 3.836,00), o tempo provável de vida (e não só de vida ativa; sendo que a esperança média de vida é, no presente, de cerca 84 anos – teve-se em conta os valores apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística, disponíveis em https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0001723&contexto=bd&selTab=tab2); uma taxa de juros de 4%; o défice funcional de 12 pontos; e a data da consolidação médico-legal das lesões.
Quanto ao valor anual da remuneração, será de considerar o montante mensal do vencimento da Autora multiplicado por 14 meses, mas, após os 65 anos, apenas multiplicado por 12 (por não ser expectável a empregabilidade em termos similares).
Por outro lado, o resultado deverá, no caso concreto, ser reduzido de 1/4, por um lado, porque, a partir dos 65 anos de idade, não é expectável o exercício de atividade profissional com o nível de rendimentos hoje auferidos pela Autora e, por outro lado, por força da antecipação do capital indemnizatório duma só vez.
Deste modo, entendo adequado, a este título, a fixação do quantum indemnizatório de € 140.000,00.
Tendo-se recorrido à equidade e considerado o valor monetário atual, os juros são devidos desde a presente decisão até integral pagamento, como decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002. ”.

Mais não refere a apelante no corpo das alegações, para fundamentar a sua perspectiva de que o valor de 140.000€ fixado na sentença é “manifestamente exagerado” e de que se lhe afigura como mais certo o de 60.000€, senão o que consta das conclusões 20 a 26.

Não se vislumbrando uma patente desconformidade entre aquele valor, os factos apurados e para tal relevantes e os usualmente fixados em circunstâncias análogas, o certo é que os demais argumentos da recorrente não procedem.

Desde logo, não colhe o de não ter sido levado em conta que a autora/apelada Carla tinha antecedentes patológicos (“síndrome depressiva, diagnostica em 2010/2011 tendo interrompido a medicação em 2012, muito antes do acidente, por sua iniciativa”).

É que, no elenco dos factos provados, a ser autonomamente relevante tal circunstância, ela não consta nem tal foi questionado.

Além disso, tendo sido ponderadas as lesões e sequelas bem como a sua pontuação médico-legal na perícia atribuída, é evidente que em tal resultado e no nexo de causalidade entre ele e o evento não deixou de se considerar o estado de saúde anterior.

Daí que tal argumento não releve, por si, na fixação da indemnização.

Também não procede o de que o tribunal recorrido apenas utilizou “critérios puramente aritméticos”.

Para tal pressupõe a apelante que, ao contrário do que diz serem os “padrões delineados pela jurisprudência”, aqueles critérios não são adequados, “restando lançar mão do critério da equidade, ao abrigo do artº 566º, nº 3, do CC”.

Só que esse seu pressuposto está errado.

Além da referência aos ditos cálculos matemáticos, a decisão recorrida, como nela expressamente consta, valeu-se também do juízo de equidade.

Como se sabe a qualificação do dano (patrimonial, não patrimonial ou tertium genus) nos casos em que, como o presente, as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual mas implicam um acrescido esforço no seu desempenho cabal – logo, na obtenção da contrapartida salarial respectiva) – é controversa.

Predomina, no entanto, a orientação jurisprudencial no sentido de que, na indemnização pelo dano biológico, as fórmulas de cálculo matemático podem ser utilizadas mas temperadas pelo juízo equitativo.

Não operando este nos estritos e especiais termos do nº 3, do artº 566º, CC, uma vez que de puro dano não patrimonial se não trata (hipótese para a qual a lei manda aplicar apenas a equidade na determinação da indemnização), a decisão recorrida insere-se naquela linha e fixou um valor que, partindo de ambos os critérios e atentos o resultado de uns (20) e a margem de discricionariedade do outro, se nos afigura adequado aos factos e consentâneo com a prática. (21)

Os Acórdãos do STJ, de 30-03-2017 e de 13-07-2017 (pº 2233/10.2TBFLG.P1.S1 e pº 3214/11.4TBVIS.C1.S1, respectivamente), o que dizem é que não deve recorrer-se critérios “puramente” matemáticos mas antes deve utilizar-se equidade – utilizar-se esta também e não exclusivamente.

Relativamente ao Acórdão de 26-01-2017 (pº 1862/13.7TBGDM.P1.S1), há diferenças significativas na factualidade dele resultante em comparação com a deste que impedem considerá-lo e segui-lo como caso análogo.

É que, enquanto que naquele a lesada, embora tivesse a profissão de cabeleireira, estava desempregada e apenas perspectivara um emprego cuja remuneração seria de 700€/mês, neste, a autora Carla, é administradora de conhecida empresa (a também lesada W, de Fafe) e aufere um salário mensal superior a 4.200€.

São situações em que, mesmo que as lesões de cada uma sejam compatíveis com o exercício da respectiva profissão, o “esforço suplementar” implicado pelas sequelas e valorizado em 13 e 12 pontos respectivamente, e, portanto, a implicação de alcance económico matematicamente calculável que isso implica para assegurar o mesmo desempenho e a manutenção do mesmo rendimento, conduzem necessariamente a resultados diferentes, mesmo que equitativamente ponderadas.

Como frequentemente temos dito, ainda que ela (a retribuição) não diminua mas, em consequência das lesões, aumente, inevitavelmente, o “trabalho” necessário para a garantir ou conservar igual, o valor correspondente ao rendimento respectivo, para efeitos indemnizatórios, tem de ser sempre aferido em função daquela mas temperado pelo critério último da equidade.

Na verdade, se a “força de trabalho” empregue pela autora, antes do acidente, “valia” mais de 4.000,00€/mês, correspondente ao rendimento que, exercitando-a normalmente, conseguia auferir no exercício da sua actividade empresarial de topo (administradora), e se, em consequência das sequelas, precisa de um “esforço suplementar” correspondente à afectação da sua capacidade físico-psíquica cuja redução foi avaliada em 12 pontos para manter a mesma prestação e obter a mesma contrapartida, o valor deste sacrifício acaba por corresponder a uma perda de vencimento que se consumaria se ele não fosse despendido. (22)

Logo, justamente o valor necessário para tal compensar tem de elevar-se muito acima do que é devido à pessoa que tem a profissão de cabeleireira, a vários títulos menos exigente e economicamente menos “valiosa”, logo geradora de um menor prejuízo.

Não procedendo, pois, o argumento de que não foi utilizado o critério da equidade e não vindo questionado o juízo feito, a partir das fórmulas matemáticas mas caldeado pelo da equidade, nem o modo como cada um operou sobre os diversos factores relevantes considerados e o resultado obtido, deve a apelação improceder nesta parte.

7ª questão

Relativamente à condenação da apelante a pagar à autora (apenso A) W a quantia de 30,00€ por cada dia de paralisação do seu veículo sinistrado PA, questiona-se se aquele deve reduzir-se para 10,00€/dia.

Refere-se, quantio a isso, na sentença:

“A questão que aqui se coloca é, desde logo, se deve ser valorado o dano da privação do uso numa situação, como a presente, de perda total do PA.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03.05.2011, disponível em www.dgsi.pt, que se atende, escreve-se que «[a] não reposição atempada da situação anterior ao evento lesivo – reposição essa que, em casos de perda total do veículo corresponde, não à reparação dos estragos materiais sofridos pelo veículo acidentado, mas antes ao pagamento do valor necessário à aquisição de veículo com características idênticas às do veículo destruído – tem apenas como efeito o avolumar do dano decorrente da manutenção da situação lesiva. Se o lesante não repõe a situação anterior ao evento lesivo, suportará as consequências, tendo assim de pagar indemnização, tanto mais avultada quanto maior for o período em que o lesado se veja impedido de utilizar um veículo com as características idênticas às do acidentado./ Neste caso, a impossibilidade do lesado usar e fruir um automóvel destruído num acidente de viação cessará quando o responsável repuser o seu património, através do pagamento do montante necessário à aquisição de veículo com características idênticas. Tal obrigação de reparação do dano que resulta da impossibilidade de fruir e usar um veículo tem a sua causa adequada no próprio acidente, pelo que, apurada que seja a existência da obrigação de indemnizar (responsabilidade civil extracontratual), tem este dano que ser reparado paralelamente com o dano da destruição do veículo. Daí que, quer decorra do facto lesivo uma impossibilidade de restauração natural, quer não (quer seja possível a reparação do veículo, quer não seja, ou esta seja excessivamente onerosa), sempre ocorrerá para o lesado a privação temporária do uso de um bem da sua propriedade, sendo que essa privação constitui um dano autónomo indemnizável pelo responsável civil – veja-se, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 05/01/2010, in CJ, ano XXXV, tomo I, pág. 167 e 168.»
Veja-se que o artigo 42º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, a respeito do veículo de substituição em caso de perda total, determina a obrigatoriedade de a empresa de seguros proporcionar ao sinistrado uma viatura até ao momento que coloque à disposição daquele o pagamento da indemnização.
Esta disposição induz, por igualdade de razão, que o dano da privação continua a ter relevância em sede de perda total, posto que, doutro modo, o legislador não consagraria a necessidade de ser proporcionada a viatura de substituição.
E, no caso, entende-se que o tempo de privação relevante seria até à colocação da indemnização a favor do lesado, o que aconteceu em 02.04.2014.
Não sendo possível avaliar o valor exato dos danos, o cálculo da correspondente indemnização há-de ser efetuado com base na equidade (artigo 566º/3, do CCiv).
Há, contudo, uma parte do prejuízo corresponde ao custo do aluguer dum veículo, ou seja, a € 2.151,38.
Quanto ao período restante, atentas as características do veículo (ligeiro de passageiros), a sua marca e modelo, o preço do aluguer cobrado por 1 mês, e ponderando que a destinação do veículo era para o uso da administração da Autora W, para satisfação dos interesses desta, entende-se adequada a atribuição do quantitativo diário de € 30,00, multiplicado pelos dias úteis compreendidos pelo período de paralisação, obtendo-se a quantia de € 2.400,00 (80 dias úteis de paralisaçãox€ 30,00).”

Não diz a apelante, quer nas alegações quer nas conclusões, por que “é excessivo” o valor diário de 30,00€ por tal dano nem a razão por que tal valor “ofende as regras da equidade”.

Tal como não justifica por que se lhe afigura “correcto” o alegado valor de 10,00€, nem indica qual a “jurisprudência actual” com que o mesmo estará, segundo ela, “de acordo”.

No fundo, questiona mas não fundamenta.

Certo que, em alguns arestos publicitados, foi acolhido o valor pretendido pela apelante (23). Trata-se, no entanto de situações concretas diversas.

Em face da fragilidade da argumentação recursiva expendida sobre o tema e porque, neste caso, se tratava de um veículo Volvo, destruído em consequência do embate, que a autora utilizava para se deslocar aos seus fornecedores e clientes, a repartições e outros locais, segundo as suas necessidades, bem como para os transportar, atento os valores conhecidos no mercado para tal gama e o que a própria lesada pagou em determinado período pelo aluguer de um semelhante (cerca de 60€/dia), não se vê por que deva ser alterada a compensação que, no período em que dele esteve privada, o tribunal recorrido julgou ser de lhe atribuir (30,00€/dia).

Assim sendo, como nos parece dever ser, a apelação improcederá, mantendo-se a sentença.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
*

Custas da apelação pela apelante – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
*

Notifique.
Guimarães, 03 de Maio de 2018

José Fernando Cardoso Amaral
Pedro Damião e Cunha
Tem Voto de conformidade de Helena Melo, que não assina por não se encontrar presente – art.º 153º, nº 1, CPC.


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, página 124 e seguintes. Como diz o Acórdão do STJ, de 22-10-2015, proferido no processo 212/06.3TBSBG.C2.S1, relatado pelo Consº Tomé Gomes, a impugnação da decisão da matéria de facto “não visa propriamente um novo julgamento global da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida”.
2. Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 14-07-2016, proferido no processo 111/12.0TBAVV.G1.S1, relatado pelo Consº António Joaquim Piçarra: “II - A inobservância deste ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica, como expressamente se prevê, no art. 640.º, n.° 1, do NCPC, a rejeição do recurso, que é imediata, como se acentua na al. a), do n.º 2, desse artigo. III - Nesta sede, foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação a dirigir ao apelante. A lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (art. 640.º, n.º 2).IV - De resto, esse eventual convite, além de redundar num (novo) alargamento do prazo de oferecimento da alegação, contraria abertamente a ratio legis, de desencorajar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto.
3. Caso de Abrantes Geraldes, ob. cita. página 147: “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
4. “Na impugnação da matéria de facto, o recorrente além de aduzir um discurso argumentativo onde elenque, desde logo, as provas, deve, em seguida, produzir uma análise crítica das mesmas, pois que, verdadeiramente, só se coloca uma questão se se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida, colocando, então, o tribunal de recurso perante uma questão a resolver” – Acórdão da Relação do Porto, de 12-05-2014 (Desembargador Manuel Domingos Fernandes).
5. Como se disse no Acórdão do STJ, de 03-12-2015, proferido no processo 1348/12.7TTBRG.G1.S1, “O cumprimento do ónus estabelecido no artigo 640.º do Código de Processo Civil passa pela invocação de que determinado facto foi incorretamente julgado, enunciando-o e explicitando as razões de tal incorreção, isto é, apresentando uma análise crítica dos elementos de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e ainda pela indicação do facto tal como deveria ter sido dado como provado ou não provado.”
6. Acórdão da Relação do Porto, de 17-03-2014 (Desembargador Alberto Ruço).
7. Por exemplo, Acórdão da Relação de Coimbra, de 02-03-2011, processo 579/04.8GAALB.C1 (Desembargador Orlando Gonçalves).
8. Como diz o Acórdão do STJ, de 26-11-2015, proferido no processo nº 291/12.4TTLRA.C1.S1, relatado pelo Consº António Leones Dantas, “As exigências decorrentes dos nºs 1 e 2 do artº 640º, do CPC têm por objecto as alegações no seu todo, não visando apenas as conclusões que, nos casos em que o recurso tenha por objecto matéria de facto, deverão também respeitar o nº 1 do artº 639º do mesmo Código” e “Nas conclusões do recurso de apelação em que impugne matéria de facto deve o recorrente respeitar, relativamente a essa matéria, o disposto no nº 1 do artº 639º do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados.”
9. Como se diz no Acórdão do STJ, de 04-03-2015, processo 2180/09.0TTLSB.L1.S2 (Consº António Leonês Dantas), embora ainda em face do Código velho, “o âmbito das conclusões neste tipo de recurso [matéria de facto] está também ele sujeito ao disposto no nº 1 do artº 685º-A, ou seja, há-de conter «de forma sintética (…) os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão»”.
10. Semelhantes ao pedido e causa de pedir que estruturam uma qualquer acção e definem o seu objecto, no dizer de A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013.
11. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, página 453.
12. Por exemplo, Acórdãos do STJ, de 04-07-2013, processo nº 1727/07.1TBSTS-L.P1.S1 (Consº Moreira Alves), e de 01-07-2014, processo 1825/09.7TBSTS.P1.S1 (Consº Gabriel Catarino).
13. Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Consº Tomé Gomes). Cfr. também Acórdão do STJ, de 22-10-2015, proferido no processo 212/06.3TBSBG.C2.S1, relatado pelo Consº Tomé Gomes. Da pena do mesmo relator, ainda na Relação de Lisboa, havia saído o Acórdão de 11-03-2014 (processo 2651/12.3TBSXL.L1, em cujo sumário consta: “A especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar e as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio, nos termos do art.º 640.º, n.º 1, alínea a) e c), do CPC, delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
14. Requisito este que não constava do artº 685º-B do anterior Código e cuja inclusão expressa no novo artº 640º só pode ser entendida no sentido de que o legislador a tomou como imprescindível e fundamental.
15. Processo 2180/09.0TTLSB.L1.S2 (Consº António Leones Dantas).
16. A Abrantes Geraldes, ob. citada, páginas 126 e 127.
17. Neste mesmo sentido, os Acórdãos desta Relação de 08-01-2015, processo nº 1514/12.5TBBRG.G1, e de 29-09-2014, processo nº 81001/13.0YIPRT.G1 (relatados pelo Desembargador Filipe Caroço), de cujo texto do último se destaca: “Verifica-se que os tempos que a apelante indica não respeitam a quaisquer passagens de gravação dos depoimentos, mas aos momentos do início e do termo de cada um deles; ou seja, embora a recorrente transcreva o que lhe parece ser relevante no âmbito de cada um daqueles depoimentos --- e esta não é mais do que uma faculdade que a lei lhe concede --- não indicou (com exatidão) as passagens da gravação em que funda o seu recurso. Não o fez nas conclusões, como em bom rigor deveria ter feito, mas também não o fez nas alegações propriamente ditas. E se, para nós, a remissão que efetuasse das conclusões para as alegações não constituiria obstáculo ao conhecimento do recurso, a verdade é que nem nas alegações se mostra cumprido o referido ónus de impugnação, sendo a referida al. a) do nº 2 do art.º 640º muito clara, quer ao exigir exatidão na indicação das passagens da gravação, quer ao cominar a sua falta com a rejeição do recurso na respetiva parte. Poderia discutir-se se, previamente àquela rejeição, se a recorrente deveria ser convidada ao aperfeiçoamento das conclusões, atenta a previsão do art.º 639º, nº 3. Tem-se entendido negativamente. Em primeiro lugar, porque é a própria lei que refere que a rejeição deve ser imediata, ou seja, próxima, sem algo de permeio; em segundo lugar, porque quando a lei do processo, sob o art.º 639º, nº 3, prevê, em sede de recurso, o dever funcional de prolação de despacho de aperfeiçoamento, fá-lo apenas relativamente às conclusões deficientes, obscuras, complexas ou quando nelas não se tenha procedido às especificações a que alude o anterior nº 2, e não também quanto às alegações propriamente ditas. A não ser assim, estaríamos a contrariar todo o sentido e o espírito do circunstancialismo jurídico que orientou os novos termos da admissibilidade do recurso em matéria de facto e o próprio art.º 640º, que lhes dá corpo ao prever a imediata rejeição do recurso --- portanto, sem possibilidade de aperfeiçoamento --- designadamente nas situações em que falta cumprir os requisitos da al. a) do nº 2 do art.º 640º. Também a transcrição de algumas passagens da gravação não releva. Por um lado, é facultativa; por outro lado, não dispensa o esforço da Relação quanto à sua confirmação, havendo sempre a necessidade de as situar na gravação e conhecer, por isso, com exatidão os tempos a que respeitam as respetivas passagens.” Também no mesmo sentido, ainda desta Relação, o Acórdão de 30-01-2014, proferido no processo 273733/11.1YIPRT.G1 (Beça Pereira), segundo cujo sumário “A indicação «com exactidão [d]as passagens da gravação em que se funda», exigida pelos artigos 685.º-B n.º 2 do anterior CPC e 640.º n.º 2 do novo CPC, concretiza-se mencionando, no mínimo, o minuto em que cada uma de tais «passagens» tem o seu início. A «transcrição» das «passagens» não constitui uma alternativa à indicação «com exactidão [d]as passagens da gravação» e esta indicação «com exactidão [d]as passagens» não se pode ter por feita quando somente se menciona a hora de início e do fim de cada depoimento.” E, bem assim, o de 10-11-2014, proferido no processo nº 1258/11.5TBPTL-A.G1 (mesmo relator), que percute: “A indicação «com exactidão [d]as passagens da gravação em que se funda», exigida pelo artigo 640.º n.º 2 CPC, concretiza-se mencionando, no mínimo, o minuto em que cada uma de tais «passagens» tem o seu início; ela não se pode ter por efectuada quando somente se menciona a hora do início e do fim de cada depoimento ou se transcreve partes de depoimentos.”
18. Sobre isso, cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra, de 17-12-2014, processo 6213/08.0TBLRA.C1 (Falcão de Magalhães), de 24-02-2015, processo 145/12.4.TBPBL.C1 (Falcão de Magalhães), de 10-02-2015, processo 2466/11.4TBFIG.C1 (Henrique Antunes), de 22-09-2015, processo 198/10.0TBVLF.C1 (Sílvia Pires), e de 27-05-2015, processo 36/12.9TBALD.C1 (Moreira do Carmo). Mais recentemente, o Acórdão do STJ, de 29-10-2015, processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, relatado pelo Consº Lopes do Rego.
19. Como, além do mais, se refere no Acórdão do STJ, de 07-09-2017 (processo nº 959/09.2TVLSB.L1.S1): “…nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida”.
20. Por exemplo, do preconizado no Acórdão do STJ, de 04-12-2007, procº 07A3836.
21. Como diz o STJ, a fixação da indemnização com recurso ao critério da equidade comporta alguma margem de discricionariedade – Acórdão de 28-10-2010, procº 272/06.7TBMTR.P1.S1.
22. Parece ser isso que ensina o STJ, no Acórdão de 17-12-2009 (processo 340/03.7TBPNH.C1.S1, relatado pelo Consº Custódio Montes), cujo sumário reza: “1. O denominado dano biológico provocado no lesado num acidente de viação, é o dano in natura por ele sofrido, cuja repercussão o atinge quer em termos patrimoniais quer não patrimoniais. 2. Na incapacidade permanente parcial para o trabalho, o que o lesado perde é parte da sua capacidade para o trabalho. 3. É essa capacidade diminuída para o trabalho que é indemnizável, a apurar da mesma forma, independentemente de o lesado perder ou não rendimentos do trabalho, embora, neste último caso, se imponha, em termos de equidade, uma redução do montante a fixar. 4. Sendo a força de trabalho diminuída que se indemniza, deve atender-se ao tempo provável de vida activa do lesado cujo termo, actualmente, se deve considerar ser aos 70 anos.”
23. Pode ver-se, a título de exemplo, sobre o enquadramento da matéria e valores adequados, o Acórdão desta Relação, de 21-09-2017, proferido no processo 252/08, relatado pela 1ª Adjunta deste.