Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
96/16.3YRGMR.G1
Relator: ALCINA RIBEIRO
Descritores: ESCUSA
FUNDAMENTOS LEGAIS
JUÍZA FILHA DE TESTEMUNHA
DEFERIMENTO DO PEDIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA PENAL
Decisão: PEDIDO DEFERIDO
Sumário: A proximidade da Senhora Juiz a uma testemunha de acusação, decorrente da relação filial, inculca no cidadão (homem médio), sérias dúvidas sobre a posição de equidistância e imparcialidade do julgador na boa administração da justiça, verificando-se, assim, legítimo fundamento para a escusa requerida nos termos do artigo 43.º, nº, 4, do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório:

1. A Exma. Senhora Dra. Luísa A., Juíz de Direito a exercer funções na Comarca de Braga – Instância Local de Guimarães – Secção Criminal – J2, veio, em 18/05/2016, ao abrigo do disposto no artigo 43º, nº 4 do Código de Processo Penal, requerer que lhe seja concedida escusa de intervenção nos autos de processo comum (tribunal singular) nº 96/04.6JABRG, invocando os seguintes fundamentos:

Figura no elenco das testemunhas (indicadas na participação crime e na acusação, Manuel G., pai da requente.

Esta testemunha desempenhou as funções de Vereador da Câmara Municipal de …, no período compreendido entre Dezembro de 1997 e Dezembro de 2001, sendo desde esta última data e até 2005, líder do grupo parlamentar da Assembleia Municipal de ….

Nessa qualidade, foi tal testemunha quem, de certa forma, tornou do conhecimento público os factos que se julgam no processo nº 96/04.6JABRG que vieram ao seu conhecimento em Julho de 1998.

Nesta altura, a requerente residia na mesma habitação com o seu pai e testemunha no dito processo, tendo tomado conhecimento dos factos à medida que iam sucedendo no tempo.

Por outro lado, em 2003 e 2004, exercendo a requerente, primeiro, funções como advogada estagiária, depois, já como advogada, a pedido do pai e sem intervenção directa no processo, diligenciou pela recolha de documentação diversa relacionada a eventual denúncia que a Delegação do Partido Social Democrata de Guimarães equacionava apresentar.

2. A certidão junta aos autos atesta que:

No âmbito do processo nº 96/04.6JABRG, distribuído à Meritíssima Juiz/Requerente, foi arrolada como testemunha na participação, na acusação e no despacho de pronúncia, Manuel G. (fls. 7 a 15, 37 a 45 e 46 a 81).

Esta testemunha, ouvida nos autos, referiu que «tomou conhecimento dos factos que posteriormente foram descritos na acusação, em Julho de 1998 (…)».

Esta testemunha é pai da Requerente (fls. 4 e 5).

Não se torna, assim, necessária, a produção de outras provas.

3. Colhidos os visto legais, não obsta ao conhecimento de mérito.

II. Fundamentação:

Os factos relevantes para a decisão do presente incidente são os que ficaram referidos no relatório que antecede.

1. O artigo 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio do juiz natural, pressupondo que intervém no processo o juiz que o deva ser segundo as regras da competência legalmente definidas para esse efeito.

Porém, a rigidez na aplicação deste princípio, poderia gerar efeitos perversos, podendo colidir com outros que o colocariam em causa, como por exemplo, quando o juiz natural não oferecesse garantias de imparcialidade e isenção no acto de julgar. Para estes casos estabeleceu o legislador regras que permitem, legalmente, o afastamento do juiz natural.

Para tanto, dispõe o artigo 43º, nº 1 do Código de Processo Penal:

«A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade».

Quando se verificarem estas condições, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir (cf. nº4, do mesmo preceito e diploma).

O pedido de escusa depende, pois, da verificação, em concreto, de requisitos formais (de índole adjectiva) e substantivos que se analisarão, de seguida.

1.1. Requisitos formais

O requerimento apresentado pela Meritíssima Juiz cumpre os requisitos adjectivos ou formais de admissibilidade.

De facto, observadas as condições do artigo 43º, n.º1, pode o juiz, até ao inicio da audiência, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir na causa, nos termos do nº 4, do mesmo preceito e artigo 44º, todos do Código de Processo Penal.

Não se verifica nos autos qualquer situação a enquadrar nos artigos 39.º (o pai da requerente não assume no processo, o estatuto de ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte cível) não é e 40.º, do Código de Processo Penal, que obrigaria a uma declaração de impedimento, nem se verifica qualquer intervenção da Meritíssima Juiz noutro processo ou em fases diversas do mesmo processo, o que sempre poderia suscitar a invocação de fundamento para escusa.

1.2. Requisitos substantivos

Os factos invocados pela Meritíssima Juiz, constitutivos dos fundamentos do pedido de escusa, assentam, no grau de parentesco que a une à testemunha arrolada na participação e acusação e já inquirida nos autos

Está em causa a noção de imparcialidade do Tribunal e a Meritíssima Juiz entende que aquele grau de parentesco poderá fazer suspeitar inexistir ou gerar desconfiança.

É sabido que o ordenamento jurídico português não contém normativo a definir explicitamente o que se deve entender por tal conceito.

A referência à imparcialidade do tribunal consta do artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Direito a um processo equitativo) Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, de 4 de Novembro de 1950 (Roma), com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978 - aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Não houve reservas do Estado português relativamente ao citado artigo. - a vigorar na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, que dispõe:

«Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, (…)» (negrito nosso).

A garantia da imparcialidade constitui, assim, um elemento constitutivo e essencial da noção do tribunal.

O conceito de «tribunal imparcial» tem vindo a ser concretizado em abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de entre os quais, o Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002) que decidiu:

«XII. A imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário.

XIII. A perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima.”

Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 124/90 (v. igualmente os acórdãos nº 935/96 e 186/98), reconhece aqueles segmentos do conceito imparcialidade, de Tribunal imparcial, na consagração constitucional do princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CRP) e do princípio do processo justo e equitativo (“a due process of law”) na consagração das garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP):

«Ao consagrar o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é um julgamento independente e imparcial».

“Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 (…) um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law”».

O ordenamento constitucional português acolhe, assim, na noção de imparcialidade aqueles parâmetros normativos, aos quais se deve acrescentar, a previsão da necessária «independência» dos Juízes a que alude o artigo 203.º, da Constituição da República Portuguesa, e que resulta como consequência pensada na estatuição de um regime de garantias e incompatibilidades (artigo 216.º, da Lei fundamental)..

Donde, «necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.

Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial Acórdão do Tribunal Constitucional nº 135/88 (Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988). ».

Ou seja, o Tribunal Constitucional vem igualmente a consagrar as ditas vertentes objectiva e subjectiva do conceito de “imparcialidade”.

Na perspectiva objectiva, em que são relevantes as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, que seja mas também deva parecer ser, numa fenomologia de valoração entre o “ser” e o “dever ser”, transparecem sobretudo considerações formais (orgânicas e funcionais), ligadas ao desempenho processual pelo juiz de funções ou da prática de actos próprios da competência de outro órgão, mas devendo «ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz,; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2005, processo nº 05P1138 (www.dgsi.pt). ».

Já numa perspectiva subjectiva há que apelar a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao «homem médio» (“a reasonable person” do Supremo Tribunal canadiano), desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto,

«O que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique», no dizer do Tribunal Constitucional.

Além disso, para a procedência da escusa, não servem quaisquer razões, mesmo que penosas para o Juiz.

Aquela há-de assentar em razões fortes, a abalar aquela credibilidade de um ponto de vista da comunidade, «motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes Prof. G. Marques da Silva, in Processo Penal, vol. I, p. 203, citando Costa Pimenta.».

Ou, no dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Abril de 2000 (in C.J. – Supremo Tribunal de Justiça – II, 244), «só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção».

Daí que, também nas causas de escusa, se deve recorrer a uma exegese restritiva, como o fez o legislador na previsão de fundamentos para o impedimento. Naturalmente que não se deve atender ao convencimento da Meritíssima Juiz quanto, no caso, à sua capacidade para «vir a ser imparcial».

O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.

«A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2005, processo nº 05P1138 (www.dgsi.pt). ».

Ou seja, há que fazer apelo aos factos e circunstâncias objectivas alegadas e verificar, se estas, para o homem médio inserido na comunidade onde o Juiz exerce a sua função são suficientes para a procedência da escusa.

No caso dos autos, a proximidade da Meritíssima Juiz a uma testemunha de acusação, decorrente da relação filial, inculca cidadão (homem médio), sérias dúvidas sobre a posição de equidistância e imparcialidade do julgador na boa administração da justiça.

Como se decidiu no Acórdão desta Relação proferido no Processo nº 429/15.0PBVRL-A.G1, a Justiça é um dos pilares de um Estado de Direito, não podendo colocar-se em causa a imparcialidade dos juízes, sob pena de nada ter sentido.

«Não há necessidade, em pleno século XXI, de colocar a Sra. Juíza numa situação de desconforto perante terceiros».

Dúvidas não temos que, caso a Senhora Juiz permanecesse no processo, tudo faria para julgar a causa com imparcialidade a causa.

Contudo, em caso de procedência da acusação, vãos seriam todos os esforços, na medida em que a relação filial com uma das testemunhas que despoletou o processo-crime sempre serviriam para levantar suspeitas sobre a objectividade e imparcialidade da decisão.

O mesmo é dizer, que os fundamentos invocados pela Exma. Senhora Juiz apresentam-se com virtualidade bastante para que se entenda, estar verificado, legítimo fundamento para a escusa requerida nos termos do artigo 43.º, do Código de Processo Penal.


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III. Dispositivo

Nestes termos, decidem os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, deferir ao pedido de escusa requerido pela Exma. Senhora Drª Luisa A., Juiz de Direito a exercer funções na Comarca de Braga – Instância Local de Guimarães – Secção de Criminal – J2, no processo comum (tribunal singular) com o nº 96/04.6JABRG. devendo o referido processo ser remetido ao juiz que, de harmonia com as leis da organização judiciária, deva substituí-la, nos termos do disposto no artigo 46º do Código de Processo Penal.

Sem custas.

(Elaborado e revisto pela Relatora antes de assinado)

Guimarães, 13 de Junho de 2016

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(Alcina da Costa Ribeiro)

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(Luís Coimbra)