Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1239/18.8T9BRG-A.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: INCIDENTE DE ESCUSA
REQUISITOS LEGAIS
RELAÇÕES REQUERENTE ADVOGADO
DEFERIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- No caso vertente está em causa a relação da requerente, enquanto juiz titular de um processo crime, com o advogado de um arguido desse processo, pelo facto de esse mesmo advogado ter sido por si constituído mandatário no âmbito de um processo crime, no qual ela é assistente.
II- As relações entre a requerente e o advogado de um dos arguidos são suscetíveis de afetar a justiça da decisão, no caso concreto, que viesse a ser proferida pela requerente, quer pela acrescida preocupação desta em ser imparcial, quer por criar dúvidas sérias e desconfiança aos olhos dos outros intervenientes processuais ou da comunidade, sobre a exigida equidistância entre o juiz, o arguido e o seu advogado, o que vale dizer sobre a imparcialidade do juiz.
III- Nesta conformidade, porque aquelas relações, apreciadas segundo o senso comum e a experiência do homem médio pressuposto pelo direito, consubstanciam motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da requerente, é de conceder a solicitada escusa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. A Exma. Srª Juíza A. B., a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Central de Instrução Criminal de Braga — J1, veio, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 43° n°s 1 e 4 e 45° n° 1 al. a), ambos do Código de Processo Penal, requerer o presente incidente de escusa, com vista à sua não intervenção no processo de instrução n° 1239/18.8T9BRG.
2. No sentido de fundamentar o seu pedido, a requerente alega, no essencial, o seguinte (transcrição):

• Encontro-me em funções na presente Secção, pelo que, ao preparar-me para proferir o despacho de abertura da instrução constatei que um dos arguidos requerentes da instrução, A. M., é representado pelo Ilustre Advogado, o Exmo. Sr. Dr. P. V., e a quem outorgou procuração de fls. 836.
• Ora, o Exmo. Sr. Advogado Dr. P. V. foi por mim, signatária, também constituído mandatário nuns autos de processo crime n.° 399/20.2T9BRG que se encontram pendentes na fase da instrução que correm termos na Secção Central de Instrução Criminal de Guimarães e nos quais sou assistente.
Se é verdade que a signatária sente que, mesmo assim e como sempre o faz no exercício das funções que lhe foram confiadas, tomaria uma decisão conscienciosa e devidamente fundamentada, considera também que, pela circunstância de a representação a cargo do Ilustre Advogado coincidir nestes autos quanto ao arguido e naqueloutros em que sou assistente, será preferível, para preservar a imagem da justiça junto dos seus destinatários, que seja outro magistrado a assegurar, doravante, a tramitação destes autos, sendo dispensada de neles intervir.
Assim, tendo obedecido a signatária ao imperativo ético-moral e de consciência que lhe impunha que divulgasse no processo esta situação e a submetesse à apreciação das instâncias devidas, deixa-se à consideração superior e mais distanciada da situação concreta do Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães a escusa que ora se suscita.
É o que se me oferece dizer sobre a matéria em questão.
Contudo. V. Ex.a melhor decidirá.
3. Foram juntos documentos comprovativos dos factos alegados.
4. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Consideram-se provados os seguintes factos:

2.1- A Exma. Srª Juíza A. B encontra-se a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Central de Instrução Criminal de Braga — J1, tendo-lhe sido distribuído o processo de instrução n° 1239/18.8T9BRG.
2.2- No identificado processo, um dos arguidos requerentes da instrução, A. M., é representado pelo Ilustre Advogado, o Exmo. Sr. Dr. P. V., e a quem outorgou procuração de fls. 836.
2.3- O Exmo. Sr. Advogado Dr. P. V. foi constituído mandatário pela Exma. Senhora Juíza requerente no processo n.° 399/20.2T9BRG que se encontra pendente na fase da instrução e que corre termos no Juízo Central de Instrução Criminal de Guimarães e nos quais a Exma. Senhora Juíza tem a qualidade de assistente.
2. Vejamos a pretensão da requerente.
A Exma. Senhora Juiza requerente formulou pedido de escusa por forma a não intervir no processo de instrução n° 1239/18.8T9BRG que lhe foi distribuído para instrução, baseando-se, nomeadamente, no disposto no artigo 43º do C.P.Penal.

Este preceito legal, na parte que releva para a questão em apreço, tem a seguinte redação:

“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2.”

Em face deste preceito legal, verifica-se, desde logo, que, ao contrário do que sucedia no código de processo penal anterior ao vigente, não foi seguida a técnica legislativa de enumeração das causas de suspeição, tendo-se optado por uma fórmula genérica que utiliza conceitos indeterminados, a “existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
A questão da suspeição do juiz relaciona-se com o princípio do juiz natural, segundo o qual intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas (1).
O princípio do juiz natural encontra-se previsto no artigo 32º, nº 9 da CRP e foi por esta adotado essencialmente como garantia da liberdade e do direito de defesa do arguido, mas admite derrogações, podendo ser afastado quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, o ponham em causa., como sucede, v.g., quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função (2).
A jurisprudência do TEDH (3), apoiada no art. 6.º n.º1 , da CEDH e no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem - que a jurisprudência portuguesa tem seguido (4) - tem vindo a defender que a imparcialidade do tribunal deve ser avaliada numa perspetiva subjetiva, ou seja no sentido de determinar o que pensa o juiz que intervém num tribunal, no seu foro interior nessa circunstância e se ele esconde qualquer razão para favorecer algumas das partes; e numa perspetiva objetiva, ou seja relativa às aparências suscetíveis de serem avaliadas pelos destinatários da decisão como provocando o receio de risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si (5).
Acresce que aquela jurisprudência tem também entendido que a imparcialidade subjetiva se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstração na formulação de conceitos, apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise em concreto das funções e dos atos processuais do juiz.
Na doutrina nacional, Cavaleiro de Ferreira (6) já salientava que “Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição.”
Assim, a seriedade e a gravidade do motivo, exigidas por lei, não são valoradas exclusivamente na perspetiva do requerente, mas fundamentalmente pela impressão que concretamente possam causar na imagem de imparcialidade do homem médio suposto pela ordem jurídica, cfr. Ac. TRC de 10-07-1996, CJ, XXI, T4, pág.62 e Ac. TRL de 9-03-2006, CJ, XXXI, 2, pág.133.

No caso vertente, independentemente da isenção e imparcialidade subjetiva, que não se coloca, o que está em causa é a relação da requerente, enquanto juiz titular de um processo crime, com o advogado de um arguido desse processo, pelo facto de esse mesmo advogado ter sido por si constituído mandatário no âmbito de um processo crime, no qual ela é assistente.
As relações entre a requerente e o advogado de um dos arguidos do processo em que a requerente é titular são suscetíveis de afetar a justiça da decisão, no caso concreto, que viesse a ser proferida pela requerente, quer pela acrescida preocupação desta em ser imparcial, quer por criar dúvidas sérias e desconfiança aos olhos dos outros intervenientes processuais ou da comunidade, sobre a exigida equidistância entre o juiz, o arguido e o seu advogado, o que vale dizer sobre a imparcialidade do juiz.
Nesta conformidade, porque aquelas relações, apreciadas segundo o senso comum e a experiência do homem médio pressuposto pelo direito, consubstanciam motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da requerente, é de conceder a solicitada escusa.

III- DISPOSTIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o pedido de escusa formulado pela Exma. Senhora Juíza requerente A. B. para intervir no processo de instrução n° 1239/18.8T9BRG, do Juízo Central de Instrução Criminal de Braga — J1.

Sem custas.
Guimarães, 13.07.2021

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)


1. Sobre as dimensões que o princípio do juiz natural comporta, vide J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 1984, págs. 218-219.
2. Assim, vide Ac. STJ de 25.01.2001, processo 00P3709, acessível em www.dgsi.pt.
3. Mouraz Lopes, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2005, pág. 86 e segs.
4. Assim, vide, entre outros, o Ac. STJ de 20.10.2010, processo 140/10.8YFLSB, acessível em www.dgsi.pt.
5. A importância das aparências ou da exteriorização da função jurisdicional é evidenciada no adágio anglo-saxónico “justice must not only be done; it must also be seen to be done”. O exercício de facto de determinadas funções, como as de juiz, impõem em absoluto uma total transparência no exercício dessas funções. Não basta ser, é preciso parecer, cfr. Mouraz Lopes, ob. e loc. cit.
6. In Curso de Processo Penal, I, pág.237-239.