Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1380/07-2
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) O Regulamento (CE) nº44/2001, de 22 de Dezembro apenas permite que as pessoas de um Estado-Membro sejam demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nas situações tipificadas nos seus artigos 5º a 24º.
II) Uma dessas situações é a relativa a matéria contratual para que é competente o tribunal do lugar do cumprimento da obrigação.
III) Todavia, nos contratos mais frequentes – compra e venda e prestação de serviços - o próprio Regulamento erige como lugar do cumprimento relevante o da entrega dos bens e da prestação dos serviços, qualquer que seja a obrigação invocada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


J. P. – INTERNACIONAL TRANSPORTES, LDA com sede em Vila Nova de Cerveira propôs a presente acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária contra C., SARL, com sede em França, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €15.100,00, acrescida de juros de mora vencidos no montante de €1.673,81, bem como dos vincendos até efectivo pagamento, valor relativo ao preço do transporte de mercadorias que, sob solicitação da ré, levou a efeito nas condições referenciadas nas facturas que se reproduzem a fls 7 a 23 dos autos.
A ré, devidamente citada, não deduziu oposição.
Concluso o processo, veio em 4/10/06 a ser proferido despacho que, declarando o tribunal internacionalmente incompetente, absolveu a ré da instância, por considerar, em harmonia com o disposto no artigo 5º do Regulamento (CE) nº44/2001, de 22/12/00, que deve “entender-se que, no caso de prestação de serviços, o lugar de cumprimento é aquele onde foram ou devam ser prestados.”
Inconformada com o teor do despacho, recorre a autora pretendendo a sua revogação com base nas seguintes razões com que conclui as alegações produzidas:
1) A competência internacional dos tribunais portugueses está enunciada no art° 65° do CPC, sem prejuízo do que se encontra estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais.
2) Donde decorre que a aplicação dos critérios previstos no art.° 65° do Código de Processo Civil cedem em função da aplicação prioritária das convenções internacionais, em conformidade com o prescrito no art° 8° da Constituição.
3) Na fixação do tribunal competente é ainda necessário ter em atenção que é “face ao pedido formulado pelo Autor e aos fundamentos em que tal pedidos se apoia que há que determinar a competência do tribunal, já que essa não depende nem da legitimidade das partes nem do procedência da acção (Ac. do S.T.J. de i2-i-i994; BMJ, 433.°, pág. 554) e é no momento da propositura da acção e em face do pedido formulado pelo autor que a competência do tribunal se fixa (Ac. da R. Lisboa de 11-11-1997; CJ, 1997,5,79).
4) Agravante e Agravada celebraram um contrato de transporte, na modalidade de transporte internacional, derivando daquele contrato para o transportador, a aqui Agravante, como obrigação principal, a de realizar a deslocação de mercadoria e fazer a sua entrega ao destinatário e para o expedidor/agravada (que contrata o envio de mercadorias, mediante o pagamento de um preço), como obrigação principal, o pagamento do preço.
5) O que está, no caso em discussão é o incumprimento do pagamento da contraprestação pecuniária que a Ré / Agravada estava obrigada a prestar pelos serviços de transporte efectuados pela Autora / Agravante.
6) A competência dos Tribunais portugueses deve ser aferida à luz dos diferentes critérios plasmados no artigo 5° n° 1 do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/ 2000 (publicado no Jornal Oficial n° L012 de 16/1/2001).
7) O artigo 5° n° 1, alínea a) do Regulamento Comunitário confere competência aos tribunais do Estado onde deva ser cumprida a obrigação.
8) O cumprimento da obrigação por parte da agravada – pagamento do preço – deveria ocorrer na sede da agravante (Vila Nova de Cerveira), aliás, como decorre do disposto no art° 774° do CC.
9) Mesmo que se entenda não se aplicar o Regulamento de Bruxelas, mas os critérios enunciados no art° 65° do CPC, concluir-se-á do mesmo modo: tratando-se do não pagamento do preço relativo a um contrato de transporte, são competentes os tribunais portugueses, por força da aplicação da alínea b) do n° 1 do art.°65º.
10) In casu, o tribunal territorialmente competente para a acção é o do domicílio do credor (Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Cerveira) – art.° 774º do Código Civil e art.° 74° do Código de Processo Civil, quer com a redacção em vigor à data da propositura da acção, quer com a redacção actualmente em vigor introduzida pela Lei 14/2006 de 26.04 “…podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva”
11) A douta decisão preteriu o disposto nos artigos 65°, 74° do Código de Processo Civil, 774° do Código Civil, art° 5° do Regulamento (CE) n° 44/2001, de 22/12/ 2000 (publicado no Jornal Oficial n° L012 de 16/1/2001).
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Não foram apresentadas contra alegações.
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A fls 78 o Sr juiz a quo manteve a decisão.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO:
Sufragamos o entendimento subjacente à decisão recorrida e acolhido pela própria recorrente, no que tange à aplicabilidade, no caso em análise, das regras constantes do artigo 5º do Regulamento (CE) nº44/2001, fixando a competência jurisdicional em função da nacionalidade dentro do espaço da União Europeia.
A matéria da competência internacional dos tribunais portugueses não está regulada apenas nos arts 65º e 65º-A do CPC, pois sobre eles prevalecem outros instrumentos legais, como sejam a Convenção de Bruxelas, o Regulamento CE nº44/2001 (doravante designado apenas por Regulamento) e a Convenção de Lugano.
Por força do disposto no art. 249º do Tratado da Comunidade Europeia, os Regulamentos são obrigatórios em todos os seus elementos e directamente aplicáveis nos Estados Membros da União. Do mesmo preceito resulta, ainda que implicitamente, que no seu específico âmbito de aplicação ele prevalece sobre as normas do direito interno dos Estados Membros, exceptuadas nos termos do art. 67°, as que visem harmonizar as leis nacionais em conformidade com o disposto em actos comunitários. (cfr. Dário Moura Vicente, em Scientia Iurídica, nº 293, pág.360)
Para aferir a aplicabilidade em concreto do Regulamento, importa ter presente os seguintes aspectos:
- o âmbito material da sua aplicação que se cinge à “matéria civil e comercial” nos termos do nº1 do artº1º e com as exclusões previstas no seu nº 2.
- o seu âmbito de aplicação espacial, resultando do art. 3º, nº1, que as regras de competência do Regulamento são aplicáveis, em princípio, quando o réu tenha domicílio (ou sede, administração central ou estabelecimento principal – cfr. art. 6º do Regulamento) no território de um Estado-Membro);
- o seu âmbito temporal de aplicação, regulado no art. 66°, que consagra o princípio geral da não retroactividade, por força do qual as regras do Regulamento apenas se aplicam às acções intentadas após a entrada em vigor do Regulamento, sendo que essa entrada em vigor foi fixada – pelo art. 76º– para o dia 1 de Março de 2002.
Porque este processo, entrado em juízo no dia 19/7/05, versa sobre o incumprimento, por parte de uma sociedade comercial com sede em França, de um contrato de transporte internacional que celebrou com uma sociedade domiciliada em Portugal e ora autora, é óbvio estarem in casu verificados todos os pressupostos da aplicabilidade do Regulamento.
A ré, citada para os termos da causa não compareceu, o que, de acordo com o disposto no nº1 do artº26º, obriga o juiz a declarar-se oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do Regulamento
Com efeito, a par das situações em que o juiz deve declarar-se oficiosamente incompetente (as previstas no artº22), o artigo 26° rege para a generalidade das outras situações, estabelecendo a regra do conhecimento oficioso sempre que o requerido domiciliado no território de um Estado-Membro seja demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça.
No caso dos autos, era pois processualmente pertinente o conhecimento sobre a competência internacional por parte do Sr. juiz a quo, cumprindo então aquilatar sobre o acerto da decisão no tocante à incompetência.
Como se refere no Ac. do STJ de 3/3/05 (CJ, Sup.I/05, 103) “as regras de competência internacional dos tribunais portugueses foram adaptadas pela reforma processual que entrou em vigor no dia 1/1/97 às Convenções de Bruxelas e de Lugano, de 27 de Setembro de 1968 e de 16 de Setembro de 1988, respectivamente, que passaram a vigorar em Portugal no dia 1 de Julho de 1992.
Delas resulta (…) por exemplo, que quando o sujeito passivo seja uma sociedade estrangeira, como é o caso vertente, que sem prejuízo, além do mais, do estabelecido nos regulamentos comunitários, que a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de um de quatro factores de atribuição, inspirados nos princípios “actio sequitur fórum rei”, da coincidência, da causalidade e da necessidade.”
“O referido Regulamento - acrescenta o mesmo aresto – estabelece, por um lado, a regra do domicílio como factor de conexão essencialmente relevante para determinação da competência internacional do tribunal, que as pessoas domiciliadas no território de um Estado Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado (art. 2°, n° 1).
E, por outro, que as pessoas domiciliadas no território de um Estado Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do respectivo capítulo regras enunciadas nas secções 2 a 7 do respectivo capítulo (art. 3°, n°1).”
Compulsadas tais regras, verifica-se que, no que agora interessa considerar, em matéria contratual, é possível demandar alguém noutro Estado Membro que não o do domicílio, quando se reporte a obrigação que foi ou deva ser cumprida naquele Estado-Membro (artº5º, nº1, alínea a).
Todavia, logo na alínea imediata se estabelece que “para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação será, no contrato de compra e venda, onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues e, no caso da prestação de serviços, o lugar onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.”
Visou-se – diz o acórdão acima aludido – “o estabelecimento de um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação nos mais frequentes contratos que são o de compra e venda e o de prestação de serviços, por via de um critério factual, com vista a atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro.”
E acrescenta: “É fundado o entendimento de que a alínea b) do nº1 do artigo 5º abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objecto mediato.”
Entendimento extensivo, “mutatis mutandis”, ao contrato de prestação de serviços invocado pela autora nesta acção.
Assim e em suma, prevalecendo as normas do Regulamento, como direito uniforme, sobre as normas internas do CPC, quer por força do princípio do domicílio da ré, quer por força da regra do lugar da prestação dos serviços, não são os tribunais portugueses internacionalmente competentes para os termos do processo.
Por conseguinte, o recurso não merece provimento.
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DECISÃO:
Termos em que se acorda negar provimento ao agravo e confirmar a decisão.
Custas pela recorrente.
Guimarães, 11 de Outubro de 2007
J. A. Gouveia Barros
Antero D. R. Veiga
Teresa J. R. de S. Henriques