Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5727/21.0T8VNF-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: EXAME PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A segunda perícia visa corrigir a eventual inexatidão dos resultados da primeira.
2 – A expressão “inexatidão” é utilizada no artigo 487º, nº 3, do CPC no seu sentido amplo, abrangendo a deficiência, insuficiência, obscuridade, contradição, imprecisão ou incorreção do resultado da perícia.
3 – O pedido de segunda perícia deve ser fundamentado.
4 – O pedido de segunda perícia tem de conter a especificação dos pontos de facto em que a parte discorda do resultado expresso no relatório pericial apresentado e a explicitação dos motivos da discordância.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA e BB intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra L... – Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da Ré:

«a) A pagar aos autores uma indemnização no montante de 23.150,00€ (acrescido de IVA), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora até efectivo e integral pagamento;
b) A pagar aos autores uma indemnização no montante total de 25.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros até efectivo e integral pagamento».
Com relevo para a apreciação do objeto do presente recurso, os Autores alegaram, em apertada síntese, ter sofrido danos no seu prédio resultantes de rotura na tubagem de água e que tais danos, no montante de € 22.867,75, acrescido de IVA, se mostram cobertos pelo contrato de seguro que celebraram com a Ré.
No final da petição requereram a realização de prova pericial ao prédio e indicaram as questões factuais que pretendiam ver esclarecidas.
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A Ré contestou, alegando, além do mais, que os danos reclamados não eram todos decorrentes do evento participado e que a indemnização dos resultantes daquele evento importa no valor de € 2.551,31, ao abrigo da cobertura de “danos por água e pesquisa de avarias”.
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1.2. Na audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio, definidos os temas da prova e apreciados os requerimentos de prova.
Admitida a perícia singular, foi o seu objeto fixado nos termos propostos pelos Autores.

Apresentado em 06.01.2023 o relatório pericial, os Autores requereram, em 19.01.2023, a realização de segunda perícia com os seguintes fundamentos:

«1- Os autores foram notificados do teor do relatório pericial elaborado pelo Ex. mo Sr. Perito nomeado nos autos.
2- Porém, os autores não podem concordar com o teor daquele relatório pericial.
3- Os autores discordam do relatório pericial pelas seguintes razões:
- Aquando da rotura da tubagem, os autores encontravam-se ausentes da habitação, só tendo verificado a inundação quando regressaram. O atraso no estancamento da rotura provocou inundação na habitação e uma maior dimensão dos danos do que se estivessem presentes, pois, poderia ter sido efectuado o corte pontual na casa de banho, ou no passador de abastecimento;
- Os materiais no interior da habitação absorveram elevadas quantidades de água, nomeadamente, a laje, soalho, rodapés, baguetes, portas e estuques (gesso das paredes e tectos), uma vez que, estiveram em contacto directo com a água;
- As madeiras e estuques (gesso de tectos e paredes) têm uma grande capacidade de absorver humidade, sendo que, as consequências ou danos só se verificam a médio ou longo prazo.
- As madeiras aplicadas na casa dos autores é madeira maciça de carvalho. Este tipo de madeira absorve facilmente a humidade, ficando logo de seguida manchada.
- A água, em consequência do rotura escorreu pelos tectos, paredes e pisos.
4- Todos estes aspectos foram visíveis e / ou levados ao conhecimento do Sr. Perito.
5- E há aspectos que o Sr. perito atenta a sua qualificação técnica não pode desconhecer, nomeadamente, que as madeiras facilmente absorvem a humidade.
6- Ora, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 484.º do Código de Processo Civil, “o resultado da perícia é expresso em relatório, no qual o perito ou peritos se pronunciam fundamentadamente sobre o respectivo objecto” (negrito nosso).
7- Todavia, se atentarmos no relatório pericial o Sr. Perito na resposta aos quesitos, designadamente, às diversas alíneas dos danos, o mesmo optou simplesmente por responder “não são consequência directa da ruptura da tubagem”,
8- Não tendo sido indicado pelo Sr. Perito qual (ais) o (s) critério (s) em que baseou para formular as suas conclusões.
9- Limitou-se apenas a referir que os danos elencados, designadamente, nas alíneas c) a k) do quesito 1 não são consequência directa da ruptura da tubagem.
10- Assim, as conclusões do relatório pericial não estão devidamente fundamentadas.
11- Além disso, o relatório pericial apresenta outras deficiências.
12- Para tanto, atentemos na resposta ao quesito 3, quando o Sr. Perito menciona o valor para a reparação dos danos, não é discriminado qual o valor da mão-de-obra e qual o valor do material, 13- Por exemplo, aquando da descrição dos trabalhos na casa de banho é mencionado: fornecimento e assentamento de pavimento cerâmico semelhante ao existente – o Sr. Perito refere que a quantidade são 5,5 m2 e que o preço unitário são 40,00€.
14- Mas ficamos sem saber qual é o valor imputado a mão-de-obra e qual é o valor imputado ao material.
15- O relatório pericial é deficiente quanto a isso.
16- Acresce ainda referir que ao quesito 3 o Sr. Perito respondeu da seguinte forma: “de acordo com a tabela abaixo, o valor para a reparação dos danos é de 1.446,50€”.
17- Como tal, os autores ficam sem perceber se a este valor acresce o IVA ou se o IVA já incluído no valor indicado, uma vez a que o Sr. Perito não faz qualquer tipo de referência.
18- Na verdade, o relatório pericial além de não estar devidamente fundamentado apresenta as deficiências supra elencadas.
19- Os autores não podem concordar com o teor do relatório apresentado pelas razões já apontadas.
20- Na verdade, até a Ré em fase extrajudicial propôs indemnização dos danos em maior extensão e valor, do que os danos e valores indicados pelo Sr. Perito, como sendo consequência directa e necessária da ruptura da tubagem e necessário para a respectiva reparação.
21- Ora, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 487.º do Código de Processo Civil, “qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.
22- Pelo que, os autores requerem a V/ Ex.ª que se proceda a segunda perícia a fim de corrigir a inexactidão do resultado desta perícia, a qual deverá ser colegial,
23- Sendo que para o efeito, os autores indicam desde já como Perito:
CC
Travessa ...,
... ..., DD
24- Para o caso de assim não se entender, requerem os autores a V/ Ex.ª a concessão de um prazo adicional de 10 dias, a fim de serem formulados esclarecimentos ao Sr. Perito.»
A Ré deduziu oposição à pretensão dos Autores.
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1.3. Sob a referência ...08, em 06.02.2023, foi proferido o despacho recorrido, cujo teor se transcreve:
«Fls. 98 e segs. - Uma vez que se não mostram suficientemente concretizadas as razões da discordância com o relatório pericial e atento o disposto no art.º 487.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefiro a realização de segunda perícia.»
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1.4. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1. O presente Recurso vem interposto do Douto Despacho proferido pela 1ª Instância, em 06 de Fevereiro de 2023, o qual decide que, “uma vez que não se mostram suficientemente concretizadas as razões da discordância com o relatório pericial e atento o disposto no art.º 487.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefiro a realização da segunda perícia”.
2. O Recurso vem interposto ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil, segundo o qual “Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões de 1.ª instância: do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova”.
3. Do despacho que indefere a realização da segunda perícia é amissível recurso, pois, estamos perante um despacho que rejeita um meio de prova, a prova pericial, na modalidade de segunda perícia. Neste sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 21-10-2010, “cabe recurso de apelação nos termos da alínea i) do n.º 2 do art.º 691.º do CPC (redacção do Dl n.º 303/2007), do despacho que indefere a realização da segunda perícia”, in www.dgsi.pt.
4. Os recorrentes foram notificados, em 06 de Janeiro de 2023, do Relatório Pericial elaborado pelo Sr. Perito nomeado nos autos.
5. Através de requerimento, de 19 de Janeiro de 2023, os recorrentes requereram ao abrigo do disposto no artigo 487.º do Código de Processo Civil a realização de segunda perícia, tendo para o efeito alegado fundadamente as razões da discordância relativamente ao referido relatório pericial.
6. Em 06 de Fevereiro de 2013, o Tribunal a quo apreciando o requerimento dos recorrentes decide nos seguintes termos, “uma vez que não se mostram suficientemente concretizadas as razões da discordância com o relatório pericial e atento o disposto no art.º 487.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefiro a realização da segunda perícia”.
7. No entanto, os recorrentes não podem conformar-se com a prolação de um despacho de indeferimento da segunda perícia.
8. Ademais, o douto despacho recorrido não se mostra ele devidamente fundamentado. No referido despacho apenas é mencionado que não se mostram suficientemente concretizadas as razões de discordância com o relatório pericial.
9. A falta de fundamentação do despacho tem como consequência a sua nulidade. Como tal deverá ser declarado nulo o despacho que indefere a segunda perícia por falta de fundamentação.
10. Mas para o caso de assim não se entender, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, o despacho recorrido deverá ser anulado e substituído por outro, atendendo a que, os recorrentes aquando do requerimento da segunda perícia cumpriram o preceituado no artigo 487.º do Código de Processo Civil.
11. Este dispositivo legal exige que para além da discordância com a primeira perícia, o requerente da segunda perícia alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado.
12. A prova pericial tem por finalidade a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial (artigo 388.º do Código Civil).
Qualquer das partes pode requerer se proceda a segunda perícia a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
A expressão adverbial “fundadamente” significa precisamente que as razões de dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia.
Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito logica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira, conforme é referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/07/2021, in www.dgsi.pt.
13. O pedido de segunda perícia tem de ser fundamentado com as razões que a parte discorda da primeira. Não basta requerê-la, sendo exigido a quem requer que explicite os pontos em que manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com apresentação das razões por que entende que esse resultado devia ser diferente, sendo que neste sentido se pronuncia Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, e ainda a Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/05/2013, in www.dgsi.pt.
14. No Acórdão do STJ de 25/11/2004, in www.dgsi.pt, é referido o seguinte, “a expressão adverbial “fundadamente” significa precisamente que as razões de dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. Trata-se, no fundo de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira”.
15. Se atentarmos no requerimento de segunda perícia dos recorrentes [requerimento de 19-01-2023], o qual por economia e brevidade processual não se transcreverá, mas que aqui se dá por inteiramente reproduzido o seu teor, teremos de concluir que o mesmo cumpre os requisitos plasmados no n.º 1 do artigo 487.º do Código de Processo Civil.
16. Os recorrentes alegaram os motivos da discordância do relatório pericial, elencando-os no artigo 3 do dito requerimento de 19-01-2023, e ao longo do requerimento, sendo que os motivos alegados são motivos sérios. Com a alegação dos motivos de discordância, os recorrentes pretendem demonstrar que o Sr. Perito não pode chegar à conclusão que deixa plasmar no seu relatório, – qual seja a de que grande parte dos danos visíveis na habitação dos autores não são consequência directa da ruptura da tubagem.
17. Com efeito, o Sr. Perito atenta a sua qualificação técnica tem que ter conhecimentos específicos acerca da origem dos danos visíveis na habitação dos recorrentes. Até porque o Sr. Perito não refere que os danos alegados pelos autores / recorrentes não são visíveis na habitação destes.
Aquilo que o Sr. Perito menciona, em resposta aos quesitos, é que os danos elencados nas alíneas c) a k) do quesito 1 não são consequência directa da ruptura da tubagem.
18. Todavia, no interior da habitação dos recorrentes existe uma quantidade elevada de materiais em madeira [soalho, rodapés, portas, armários], e em estuque [gesso das paredes e tectos]. O Sr. Perito fez a deslocação e vistoria ao imóvel, tendo ele próprio tido oportunidade de constatar essa realidade na habitação dos recorrentes, e de solicitar os esclarecimentos que lhe aprouvesse.
19. As madeiras e os estuques são materiais que absorvem grandes quantidades de água. E foi isso que aconteceu no imóvel dos recorrentes, daí a grandeza dos danos naquele mesmo imóvel.
20. Os recorrentes desconhecem o período temporal em que esteve a sair água pela ruptura do tubo de água quente do wc sito no 1.º andar da casa dos recorrentes. Por este facto e porque as madeiras e estuques estiveram em contacto com a água originou uma maior dimensão dos danos na habitação dos recorrentes.
21. O Relatório Pericial não se encontra devidamente fundamentado. Na resposta ao Quesito 1, o Sr. Perito limitou-se a dizer nas alíneas a) e b) que os danos são consequência directa da ruptura da tubagem; e nas alíneas c) a k) que os danos não são consequência directa da ruptura da tubagem. E isto sem mais. Sem ter fundamentado a sua resposta, pelo menos, quanto aos danos que diz não serem consequência directa da ruptura da tubagem.
22. O relatório pericial é completamente omisso quanto à fundamentação das respostas aos quesitos, pelo menos, quanto à resposta do quesito 1. O Sr. Perito enquanto técnico habilitado para o efeito tem conhecimento de que há materiais no interior da habitação dos recorrentes que absorvem grandes quantidades, e que quanto mais tempo demorar a estancar a água, maior vão ser os danos visíveis.
23. Mesmo a considerar que a conclusão do relatório aparente ser objectiva e implicitamente, afastar qualquer outra hipótese explicativa de qualquer das causas alegadas pelas partes, é na consideração, explicação ou justificação cabal e clara das razões por que rejeita estas que também poderá radicar a confiança, credibilidade, capacidade de convencer e exactidão do relatório e até do próprio tribunal encontrar pontos de referência que ajudem à formação da mais sólida convicção (livre) em ordem ao apuramento da verdade, pois, sem as despistar e refugiando-se na “secura” da resposta dada, deixa-se em aberto um espaço de dúvida, sempre de evitar e esclarecer até onde seja possível, nesta tarefa se devendo dar prevalência aos objectivos de contraditório.
24. Ora, é precisamente o que acontece com o Relatório Pericial junto aos autos supra identificados. Resposta aos quesitos, pelo menos, ao quesito 1, sem qualquer tipo de motivação e fundamentação. O que realmente pode originar a dúvida e dificultar a função do julgador.
25. Como também não se consegue perceber qual o motivo para o Sr. Perito ter considerado na alínea b) da resposta ao quesito 1 o seguinte: sala: a existência de manchas no tecto junto à lareira são consequência directa da rotura da tubagem de água de abastecimento. Mas não refere nem as paredes, nem as madeiras dos rodapés, as quais estiveram em contacto directo com a água, pois, a água escorreu pelas paredes da sala.
26. O Relatório Pericial padece igualmente de outras deficiências, as quais foram apontadas no referido requerimento de segunda perícia, cuja correcção é necessária para a boa decisão da causa.
27. Pelo que, deverá ser anulado o despacho que indefere a realização da segunda perícia, devendo ser substituído por Acórdão que determine a realização da segunda perícia, na modalidade de perícia colegial.»
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A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, os Recorrentes suscitam as seguintes questões:
a) Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação – conclusões 1ª a 9ª;
b) Admissibilidade da segunda perícia requerida pelos Autores – conclusões 10ª a 27ª.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a apreciação das apontadas questões são os descritos no relatório que antecede.
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2.2. Do objeto do recurso

2.2.1. Nulidade do despacho recorrido

Invocando os Recorrentes a nulidade do despacho recorrido resultante de falta de fundamentação, cumpre apreciar tal fundamento.
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), do CPC, «é nula a sentença quando (…) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão». Este preceito é aplicável aos despachos – 613º, nº 3, do CPC.
Segundo Alberto dos Reis[1], «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto». Como referem, igualmente, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[2], «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito».
Por conseguinte, enquanto vício da sentença, ou seja, como fundamento da sua nulidade, apenas releva a ausência de qualquer fundamentação e não quaisquer outras patologias. Na previsão da alínea b) só está incluída a falta absoluta de fundamentação e não a insuficiente, errada, incompleta ou deficiente. No nosso entendimento, ainda constitui falta de fundamentação uma motivação impercetível, sem relação compreensível com o objeto discutido, enquanto vício paralelo à ininteligibilidade do objeto do processo como motivo de ineptidão da petição inicial[3].
Analisado o despacho recorrido, conclui-se que não padece de falta absoluta de fundamentação.
A diretriz sobre a fundamentação de direito consta do artigo 607º, nº 3, do CPC, na parte em que se estabelece que o juiz deve «indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes». O Tribunal recorrido cumpriu tal imposição, pois indicou e aplicou a norma do artigo 487º, nº 1, do CPC e explicitou «que se não mostram suficientemente concretizadas as razões da discordância com o relatório pericial».
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.2. Admissibilidade da segunda perícia

Dispõe o artigo 487º, nº 1, do CPC, que «qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado a primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial».
O preceito constitui uma reprodução do artigo 589º do CPC de 1961, na versão resultante da revisão de 1995-1996. Na versão anterior, a parte não precisava de apresentar qualquer justificação para requerer a segunda perícia[4].
Atualmente, o pedido de segunda perícia tem de ser fundamentado com as razões de discordância do resultado da primeira.
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[5], à parte requerente «é-lhe exigido que explicite os pontos em que manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com apresentação das razões por que entende que esse resultado devia ser diferente». A finalidade da segunda perícia, de harmonia com os mesmos autores, é «fornecer ao tribunal novos elementos relativamente aos factos que foram objeto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (art. 488-a) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial».
Por sua vez, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe P. Sousa[6] consideram que a «exigência de fundamentação das razões de discordância tem por objetivo evitar segundas perícias dilatórias, exigindo-se à parte que concretize os pontos de facto que não foram suficientemente esclarecidos na primeira perícia, enunciando as razões por que entende que o resultado da perícia deveria ser diferente».
A pedra de toque do regime é a exigência de que a parte alegue «fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial» da primeira perícia.
O alcance dessa expressão normativa só é integralmente apreendido se o relacionarmos com o objeto e a finalidade da segunda perícia, definidos no nº 3 do artigo 487º: «A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta». A expressão “inexatidão” é ali utilizada no seu sentido amplo, abrangendo a deficiência, insuficiência, obscuridade, contradição, imprecisão ou incorreção do resultado da perícia expresso no relatório pericial. Significa isto que na sua base estará sempre uma alegada inadequação da perceção ou apreciação dos peritos, baseada nos seus conhecimentos especializados, das questões factuais objeto da perícia e da consequente expressão de tal juízo no relatório pericial.
Por conseguinte, para que possa ser admitida uma segunda perícia sobre os mesmos factos que já foram objeto da primeira, não basta afirmar uma discordância relativamente ao relatório pericial; é necessário afirmar os motivos por que se discorda. E esses motivos têm que respeitar à inexatidão dos resultados da primeira perícia, no sentido atrás apontado.
A discordância relativamente ao resultado da perícia efetuada pode alicerçar-se na insuficiente fundamentação ou justificação das respostas às questões factuais objeto da perícia. Uma insuficiente fundamentação afeta o valor probatório do relatório pericial e constitui motivo para duvidar da exatidão das inerentes conclusões. Daí que a parte, até num caso de deficiente justificação do resultado pericial, possa requerer segunda perícia para contribuir para a formação de uma mais adequada convicção judicial.
No caso dos autos, analisado o requerimento apresentado pelos Autores, não conseguimos concluir, ao contrário do Tribunal recorrido, «que se não mostram suficientemente concretizadas as razões da discordância com o relatório pericial». Aliás, dada a natureza da matéria, sendo indicadas pela parte as questões factuais relativamente às quais discorda do resultado da perícia e especificadas as razões de tal discordância, o juiz só poderá indeferir a segunda perícia quando mostrar, sem margem para dúvidas, que o pedido não se justifica.
Com efeito, no seu requerimento explicitaram as razões pelas quais discordam do relatório pericial, designadamente nos pontos 3 a 5 do requerimento:
«3- Os autores discordam do relatório pericial pelas seguintes razões:
- Aquando da rotura da tubagem, os autores encontravam-se ausentes da habitação, só tendo verificado a inundação quando regressaram. O atraso no estancamento da rotura provocou inundação na habitação e uma maior dimensão dos danos do que se estivessem presentes, pois, poderia ter sido efectuado o corte pontual na casa de banho, ou no passador de abastecimento;
- Os materiais no interior da habitação absorveram elevadas quantidades de água, nomeadamente, a laje, soalho, rodapés, baguetes, portas e estuques (gesso das paredes e tectos), uma vez que, estiveram em contacto directo com a água;
- As madeiras e estuques (gesso de tectos e paredes) têm uma grande capacidade de absorver humidade, sendo que, as consequências ou danos só se verificam a médio ou longo prazo.
- As madeiras aplicadas na casa dos autores é madeira maciça de carvalho. Este tipo de madeira absorve facilmente a humidade, ficando logo de seguida manchada.
- A água, em consequência do rotura escorreu pelos tectos, paredes e pisos.
4- Todos estes aspectos foram visíveis e / ou levados ao conhecimento do Sr. Perito.
5- E há aspectos que o Sr. perito atenta a sua qualificação técnica não pode desconhecer, nomeadamente, que as madeiras facilmente absorvem a humidade.»
Mais à frente, nos pontos 7 a 10, apontam uma falta ou insuficiente fundamentação das respostas às questões factuais relativas aos danos, alegando que «no relatório pericial o Sr. Perito na resposta aos quesitos, designadamente, às diversas alíneas dos danos, o mesmo optou simplesmente por responder “não são consequência directa da ruptura da tubagem”», que não indicou «qual(ais) o(s) critério(s) em que baseou para formular as suas conclusões», que se limitou «a referir que os danos elencados, designadamente, nas alíneas c) a k) do quesito 1 não são consequência directa da ruptura da tubagem».
Prosseguem os Autores, nos pontos 11 a 20, indicando que «o relatório pericial apresenta outras deficiências», as quais concretizaram do seguinte modo:
- «na resposta ao quesito 3, quando o Sr. Perito menciona o valor para a reparação dos danos, não é discriminado qual o valor da mão-de-obra e qual o valor do material»;
- «aquando da descrição dos trabalhos na casa de banho é mencionado: fornecimento e assentamento de pavimento cerâmico semelhante ao existente – o Sr. Perito refere que a quantidade são 5,5 m2 e que o preço unitário são 40,00€», «[m]as ficamos sem saber qual é o valor imputado a mão-de-obra e qual é o valor imputado ao material»;
- «ao quesito 3 o Sr. Perito respondeu da seguinte forma: “de acordo com a tabela abaixo, o valor para a reparação dos danos é de 1.446,50€”», pelo que «os autores ficam sem perceber se a este valor acresce o IVA ou se o IVA já incluído no valor indicado, uma vez a que o Sr. Perito não faz qualquer tipo de referência»;
- «até a Ré em fase extrajudicial propôs indemnização dos danos em maior extensão e valor, do que os danos e valores indicados pelo Sr. Perito, como sendo consequência directa e necessária da ruptura da tubagem e necessário para a respectiva reparação».
Conforme se alcança do acima exposto, os Autores, ora recorrentes, especificaram as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado e que, no seu entender, justificam a realização de uma segunda perícia. Tal alegação especificada é o único requisito legal do requerimento em causa a formular nos termos do artigo 487º do CPC. Como bem referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7], «a procedência das razões invocadas pela parte só poderão ser sindicadas depois de realizada a segunda perícia». Por isso, basta a plausibilidade das alegadas razões de discordância relativamente ao resultado da primeira perícia, não sendo nunca de exigir o convencimento do juiz sobre a inexatidão daquele.
Por isso, os Autores cumpriram o ónus de alegação imposto pelo artigo 487º, nº 1, do CPC.

Termos em que procede a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revoga-se o despacho recorrido e, em consequência, determina-se que seja substituído por outro que ordene a realização da segunda perícia.
Custas a suportar pela parte vencida a final.
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Guimarães, 20.04.2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos



[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. V, (Reimp.), Coimbra Editora, pág. 140.
[2] Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 670-672.
[3] Ou seja, uma fundamentação absolutamente disparatada, sem qualquer relação com o que se discute, ou ininteligível.
[4] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, págs. 302-303.
[5] Código Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 342.
[6] Código Civil Anotado, Almedina, pág. 546.
[7] Código Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 342.