Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
303/14.7GAPTL.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: FALSAS DECLARAÇÕES
ELEMENTOS DO CRIME
CONDUTOR DE VEÍCULO ACIDENTADO
PUNIBILIDADE DA CONDUTA
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Alguém assumir-se como condutor de um veículo, ainda que interveniente em acidente de viação não é assumir uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. E se assim é, então assumir-se falsamente como condutor de um veículo de um veículo interveniente em acidente não é declarar falsamente uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. Interpretação diversa seria alargar de forma injustificada o tipo incriminatório.
II) Daí que se impõe concluir pela revogação do juízo condenatório formulado na sentença recorrida quanto à imputação à arguida, do crime de falsas declarações do artº 348º-A do Código Penal("Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática") e o princípio da legalidade nela inscrito (não há crime sem lei).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito do processo comum (Tribunal Colectivo) com o nº 303/14.7GAPTL que corre termos na Sec. Criminal (J2) da Inst. Central de Viana do Castelo, Comarca de Viana do Castelo, foi a arguida,
S. M., nascida em 8.5.1988 em Ponte de Lima, filha de … e …, residente na Rua do B…, Ponte de Lima,
condenada, como autora de um crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €6,00, após convolação do imputado crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) e nº 3, do Cód. Penal.
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Sem se conformar com a decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso pedindo a revogação do acórdão recorrido na parte em que condenou a arguida SM Araújo como autora de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do Cód. Penal.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1. A arguida S. M. foi condenada como autora de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do Código Penal, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
2. A conduta da arguida S. M. dada como provada não integra o crime que lhe foi imputado na acusação - crime de falsificação de documento p. e p. no art. 26º e 256º, nº 1, al. d) e n.º 3 do Código Penal -, nem o crime de falsas declarações pelo qual acabou condenada (em virtude de o tribunal ter entendido que se verificava uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos no art. 358º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, e depois de observado o formalismo previsto no citado nº 1).
3. Salvo melhor opinião, o tribunal “a quo” não interpretou corretamente a norma do art. 348º-A do Código Penal, porquanto, por força desta norma, comete crime quem declara falsamente a autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios.
4. As palavras “identidade”, “estado” e “qualidade” têm, na norma do art. 348º-A do Código Penal, os seguintes sentidos:
- Identidade: “Conjunto de características, de dados próprios e exclusivos de uma pessoa, que permitem o seu reconhecimento como tal, sem confusão com outra, nome, idade, naturalidade, estado civil, filiação…”, “Circunstância de um indivíduo ser aquele que diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja” ou “Circunstância de que um indivíduo é o mesmo que se pretende ou que se presume ser”;
- Estado: “Modo de ser de uma pessoa, considerado na sua duração”, “Modo atual de ser (de pessoa)” ou “Situação, modo de ser, de uma pessoa”:
- Qualidade: “Função exercida, título a que correspondem direitos e obrigações; condição social”, “Condição social, civil, jurídica, título…sob o qual as partes figuram num acto jurídico ou num processo”, “Aptidão”, “título, categoria”, “Condição social, civil, jurídica” ou “Modo de ser” (v. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/estado, consultado em 28-06-2016, e Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Cândido de Figueiredo, 1913, disponível em http://www.dicionario-aberto.net/dict.pdf).
5. No caso em apreço, a arguida mentiu sobre um acontecimento concreto da vida, balizado com precisão em termos de tempo e espaço (condução do veículo automóvel …-CM, nas circunstâncias de tempo e lugar indicadas no acórdão recorrido sob o nº 1, ou seja, no momento e no local da colisão entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros …-CM, S---, e o motociclo …).
6. Não mentiu sobre o seu estado, a sua identidade ou as suas qualidades – elementos pessoais.
7. Não mentiu quanto ao seu nome, à sua data de nascimento, ao seu estado civil ou ao ser ou não titular de licença de condução.
8. A qualidade a que alude o art. 348º-A do Código Penal reporta-se a uma função, condição, título ou categoria duradouros.
9. O caso do acórdão da Relação de Évora de 21-01-2015, invocado pelo tribunal recorrido na sua argumentação, não tem paralelo com o caso em apreço: naquele caso o arguido mentiu sobre a sua identidade, disse ser outra pessoa, para que não ter de apresentar prova da sua habilitação legal para conduzir.
10. A ocorrência do acórdão da Relação de Évora de 16.06.2015, também citado pelo tribunal “a quo”, é semelhante ao caso em apreço, mas, com todo o respeito devido pelo entendimento ali perfilhado, a Relação de Évora não decidiu bem, pelas razões por nós acima expostas.
11. Condenando a arguida S. M. como autora de um crime de falsas declarações, p. e p. no 348º-A do Código Penal, o tribunal “a quo” violou, por erro de interpretação, este artigo, bem como a norma do art. 1º, nº 1, do Código Penal (“Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”) e o princípio da legalidade nela inscrito (não há crime sem lei).
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Não houve contra-alegações.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer em que defende a procedência do recurso pelos motivos invocados naquela sede.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

No acórdão recorrido, e no que à presente decisão importa, deram-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 15 Junho 2014, pelas 13h39, em …, Ponte de Lima, na Rua B… o arguido A... Araújo conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros ......CM marca S....
2. Entretanto, na EN 203, no sentido de marcha Ponte de Lima/Ponte da Barca, na hemi-faixa da direita, o ofendido José G. circulava conduzindo um motociclo (…).
3. A determinado momento, após percorrer a indicada Rua B…, que finaliza com a presença de um sinal “Stop”, o arguido A... chegou a um cruzamento, que proporciona acesso à via principal EN 203, que faz a ligação Ponte de Lima/Ponte da Barca, e, podendo avistar à sua direita o motociclo conduzindo pelo ofendido a cerca de 75 mts, de modo desatento iniciou o atravessamento daquela EN 203 em direcção à Rua Á.. situada à sua frente.
4. Quando se encontrava já sensivelmente a meio da hemi-faixa por onde seguia o ofendido, que conduzia o indicado motociclo no sentido Ponte de Lima/Ponte da Barca, este foi surpreendido com a presença, à sua frente, do veículo conduzido pelo arguido A….
5. O ofendido travou tentando evitar o embate, o que não conseguiu, tendo colidido
6. O ofendido colidiu com a roda da frente do motociclo na lateral da frente do automóvel que o arguido A... conduzia.
7. Devido à colisão José G. foi projectado contra o automóvel que o arguido A... conduzia, acabando por se imobilizar no solo a cerca de 5 metros do ponto de conflito.
8. Em consequência directa e necessária, da conduta do arguido, o ofendido sofreu dores, mal-estar físico e traumatismos físicos que lhe causaram a morte, tendo o óbito sido verificado no mesmo dia às 14h37mn.
9. Ao proceder pela forma descrita o arguido A... Araújo actuou com manifesta desatenção, e contrariamente às mais elementares regras de cuidado estradais, com inobservância dos deveres básicos exigidos no exercício da condução atentas as circunstâncias referidas.
10. Não chegou sequer a representar como possível, como lhe era exigível de acordo com as suas capacidades pessoais e circunstâncias do caso, que com a sua imprudência viesse a causar um acidente de trânsito e com ele a produzir a morte do ofendido.
11. O arguido A... Araújo conduziu o veículo identificado sem habilitação legal bem sabendo não lhe era lícito fazê-lo, sem que fosse titular de documento que o autorizasse, o que quis e levou a efeito pela forma descrita.
12. Os arguidos A... e SM são, entre si, pai e filha.
13. Por motivo concretamente não apurado mas, pelo menos, devido ao facto de o arguido A... não ser titular de carta de condução a arguida SM apresentou-se perante as autoridades policiais de trânsito como a condutora do automóvel ligeiro de passageiros ......CM.
14. O arguido A... a determinado momento ausentou-se do local e perante a GNR, no sítio da descrita ocorrência, a arguida SM apresentou-se colaborante e identificou-se como sendo a condutora do veículo, supra indicado, interveniente no acidente de viação.
15. E, por força do exposto, de modo a que A... não fosse sinalizado como responsável, nomeadamente por ser o condutor do automóvel em apreço, a identidade da arguida SM ficou a figurar na participação do acidente de viação, com o nº 102/14, correspondente ao nuipc 303/14.7GAPTL.
16. Para o fim supra descrito a arguida SM ficou a constar da participação do acidente de viação, como sendo a condutora do veículo nº 1 (o ......CM) e forneceu, designadamente, todos os seus elementos de identidade ao agente da GNR responsável, bem como, as declarações e informações sobre o modo como o acidente ocorreu e submeteu-se ao teste de alcoolémia (que se revelou negativo).
17. A arguida SM, ao apresentar-se como sendo a condutora do veículo ......CM e ao fornecer às autoridades policiais, entre o mais, a sua identidade, que foi inserida na participação do acidente de viação em causa, sabia que tal não correspondia à verdade.
18. A arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era legalmente permitida e era punível por lei.
(…)
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
Em causa está apenas a punibilidade, ou não, da conduta da arguida.
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Alega o Recorrente que a conduta da arguida, dada como provada, não integra nem a prática do crime que lhe foi imputado na acusação (crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256º, nº 1, al. d) e n.º 3 do Código Penal) nem o crime de falsas declarações pelo qual acabou condenada (p. e p. pelo 348º-A do Código Penal).
Refere o Recorrente que a arguida mentiu sobre um acontecimento concreto da vida, balizado com precisão em termos de tempo e espaço (condução do veículo automóvel ......CM, nas circunstâncias de tempo e lugar indicadas no acórdão recorrido sob o nº 1, ou seja, no momento e no local da colisão entre esse veículo automóvel e o motociclo), mas não mentiu sobre o seu estado, a sua identidade ou as suas qualidades – elementos pessoais, ou seja, não mentiu quanto ao seu nome, à sua data de nascimento, ao seu estado civil ou ao ser ou não titular de licença de condução e a qualidade a que alude o art. 348º-A do Código Penal reporta-se a uma função, condição, título ou categoria duradouros.
Para fundamentar a sua decisão, disse o Tribunal recorrido:
Os arguidos A... e SM vinham acusados do cometimento de um crime de falsificação p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. d) e nº 3 do CP.
Tal como já escrevemos no despacho em que foi comunicada a alteração não substancial dos factos e subsequente alteração da qualificação jurídica, até às alterações operadas pela Lei 19/2013 de 21.02, um caso como o do presente processo não constituía crime.
Nesse sentido Ac. TRE de 21-01-2015: I. Até à vigência das alterações ao Código Penal operadas pela Lei nº 19/2013, de 21/02, o condutor que se identificasse falsamente, fazendo com que a autoridade policial escrevesse, no aviso para apresentação de documentos, uma identificação falsa, com vista a esquivar-se a apresentar a prova da sua habilitação legal para conduzir, não cometia qualquer crime (nomeadamente crime de falsificação de documento, ou crime de falsidade de depoimento ou declaração). II. Com a referida Lei nº 19/2013, a situação foi alterada, incorrendo tal condutor na prática de um crime de «falsas declarações» (artigo 348º-A do Código Penal).
Mas, a prática do crime de falsas declarações só se coloca relativamente à arguida SM, uma vez que quanto a arguido A... não houve qualquer prova da sua prática.
O crime de falsas declarações previsto no art. 348º-A do CP foi introduzido pela Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro, nele se prevendo que quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções: identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Como se escreve no Ac RE de 16.06.2015 “Os arguidos, ao mentirem ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura e que interveio em acidente de viação, afirmando que era o JR, quando afinal o condutor fora JJ, incorreram na prática do crime de falsas declarações, já que declararam falsamente a uma autoridade pública a identidade do condutor que conduzia a viatura automóvel e visto que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração”
Note-se que estamos apenas perante o nº 1, uma vez que o nº 2 do citado normativo se refere a documento autêntico.
Ora, como se pode ler no Ac do STJ de 06.04.2006 “- A participação de um acidente de viação, feita pela autoridade policial, constitui documento autêntico apenas em relação à mera notícia da ocorrência, ou seja, prova que o agente elaborou essa participação. II - Mas não constitui documento autêntico em relação às circunstâncias do acidente, uma vez que não é da competência da autoridade policial fazer o seu registo, em termos de julgamento de facto.”
Quanto a este crime verifica-se que estão verificados os pressupostos objectivos e subjectivos, pelo que a arguida SM terá que ser condenada.

Em causa está o tipo de crime previsto no nº 1 do art. 348º-A do Cód. Penal.
De acordo com esta previsão, “quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
Neste normativo “Está em causa, pois, desde logo, a tutela da integridade da função administrativa nas suas diversas manifestações e da capacidade funcional da administração, exercida em conformidade com as exigências de legalidade e objetividade que num Estado de Direito devem presidir às funções públicas. Ao declarar ou atestar falsamente identidade, estado ou outra qualidade própria ou de terceiro, o agente induz a autoridade ou funcionário a quem se dirige a praticar ato objectivamente viciado nos seus pressupostos, pondo em causa a própria administração e a sua imprescindibilidade para a realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade organizada” (cfr. António Latas, “As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro”, Revista do CEJ nº 1, 2014, págs. 55-103.
Concretamente, a questão sub judice centra-se no que se deve entender por “qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos”.
Neste conceito “está em causa o estado ou outra qualidade em que o próprio ou outra pessoa é tomada pela lei para determinado efeito jurídico (v.g. estado civil, nacionalidade, residência, maioridade, ser proprietário), o que não se confunde com afirmações do agente sobre factos concretos que não correspondam necessariamente àquelas qualidades típicas, ainda que deles, juntamente com outros, possam retirar-se conclusões sobre as mesmas” (António Latas, estudo citado).
Temos para nós que alguém assumir-se como condutor de um veículo, ainda que interveniente em acidente de viação não é assumir uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. E se assim é, então assumir-se falsamente como condutor de um veículo interveniente em acidente de viação não é declarar falsamente uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. Interpretação diversa seria alargar de forma injustificada o tipo incriminatório.
Pelo que podemos afirmar, tal como o Recorrente, que ao condenar a arguida como autora de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A do Cód. Penal, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 1º, nº 1, do Cód. Penal (“Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”) e o princípio da legalidade nela inscrito (não há crime sem lei).
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Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido na parte em que condenou a arguida SM Araújo como autora de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do Cód. Penal, e antes a absolvendo.
Sem custas.

Guimarães, 23.01.2017
(processado e revisto pela relatora)

(Alda Tomé Casimiro)


(Paula Maria Roberto)