Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1379/07.9PBGMR.G1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/17/2010
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes.
II - Se as condutas apuradas integram os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça mas não satisfazem o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, apenas há que aplicar as normas gerais.
III - Nestes casos, os factos considerados provados representam de algum modo um minus relativamente aos descritos na acusação, ocorrendo uma simples alteração da qualificação jurídica da que fora indicada na acusação, decorrente da circunstância de não se ter provado toda a factualidade dela constante.
IV - A lei não indica um momento específico e preciso para o cumprimento da comunicação referida nos artigos 358º e 359º, ambos do CPP. Por isso, os mecanismos previstos naqueles preceitos legais podem ser desencadeados até à publicação da sentença, pois só com esta se encerra a audiência.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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I- Relatório
No processo comum singular n.º 1379/07.9PBGMR do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, por sentença de 13 de Julho de 2009, o arguido Domingos M..., com os demais sinais dos autos, foi absolvido da prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado e condenado:
a) pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1 do CP, na pena de 120 (cento e vinte dias) de multa, à taxa diária de €6 (seis euros);
b) pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al. a), ambos do CP, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros);
c) em cúmulo jurídico, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros), no montante global de €900 (novecentos euros).

O arguido foi, ainda, condenado a pagar à demandante/assistente Cristina V..., também com os demais sinais dos autos, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de €600 (seiscentos euros), acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a data da prolação da decisão e até pagamento integral, tendo sido absolvido “do demais peticionado”.
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Inconformado com tal sentença o arguido dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:

1. O arguido recorrente foi acusado pelo Ministério Público da prática de certos factos e de ter cometido um crime de violência doméstica. Foi proferido despacho que recebeu a acusação com estes factos e qualificação jurídica. Procedeu-se ao julgamento, foram proferidas alegações finais em que se considerou não ter ficado provado nenhum facto que consubstanciasse a prática pelo arguido do crime de violência doméstica de que vinha acusado, encerrada a audiência de discussão e julgamento, antes da leitura da sentença, foi confrontado com uma declaração alterando os factos provados entendendo o tribunal o arguido ter cometido os crimes de ofensa à integridade física simples e ameaça agravada.
2. Alteração de factos e qualificação jurídica, extemporânea, mas que nos termos do art.358 n.º1 e 3 do C.P.P. foi considerada não substancial.
3. A sentença condenatória reproduziu estes mesmos factos.
4. Tal comunicação de completa alteração de 12 dos 18 factos e alteração da qualificação jurídica depois de encerrada a discussão só serviu a celeridade e aproveitamento processual, mas nega o contraditório, a defesa eficaz e em tempo útil.
5. A alteração configura uma alteração substancial, não uma versão diferente dos mesmos factos, mas na maioria são factos novos, quatro é até impossível defender-se porque ocorridos em dia não concretamente apurado, fundamento esse que serve na sentença, a fls. 19/35 para absolver o arguido do crime de violência doméstica, nenhum dos novos factos é a pormenorização, concretização dos factos acusados e só quatro constituem em parte uma alteração dos da acusação. São episódios diferentes dos da acusação que deveriam levar a um outro julgamento com objecto e qualificação diversos.
6. A comunicação da alteração e a sentença dão como provados factos diferentes e condena por crimes diversos do acusado, o que o arguido nunca consentiu, entendendo o recorrente que se verifica a nulidade do art. 379 n.º1 al. b) do C.P.P.
7. Por a Mmª. Juiz desviou-se do âmbito de conhecimento do Juiz delimitado e definido pela acusação a que estava vinculado tematicamente e desviou-se dos factos e incriminações imputadas ao arguido e das quais se tinha de defender.
8. Uma coisa é vir acusado de julgar ter direitos sobre a mulher, considerá-la seu objecto e não admitir que dele se divorcie, ameaçando dizer mal dela, acusando-a de defeitos e de ter amantes, de a perseguir e controlar, injuriando-a de puta e de a difamar perante os filhos, impedindo estes de a verem, outra diferente é ser condenado por haver discussões, em 2/7/07 ter-lhe erguido a mão e dito até te bato, minha puta, em 29/10/07 ter-lhe erguido a mão, ou em finais de 2007 ter atendido uma chamada no telemóvel da filha e chamado de puta.
9. O recorrente tinha de defender-se de factos imputados, não podia ser surpreendido com factos, datas e práticas novas, diferentes das acusadas, que alargam o objecto do processo, fazendo-o perder a sua identidade, modificam os crimes pelos quais velo a ser condenado, pelo que houve alteração substancial e verifica as nulidades da comunicação e sentença.
10. Factos que têm por efeito a condenação do arguido por dois tipos de crimes diversos: ofensa à integridade física simples e ameaça agravada, do de que vinha acusado: violência doméstica e não podia ser considerada alteração não substancial dos factos, que é aquela que embora modifique os factos da acusação não imputa um crime diverso, caso em que deveria haver lugar ao previsto no art. 359 CPP., o arguido opôs-se à continuação do julgamento, e merece agora, por isso, censura a sentença por tal comunicação não poder ter sido levada em conta pelo Tribunal na condenação, sob pena de nulidade (art.379 do CPP).
11. É profunda a discordância do recorrente para com a sentença que se crê padecedora de erro de julgamento da matéria de facto, insuficiência da matéria de facto dada como provada, nos termos do art. 410 n.º2 al. a) e c) do C.P.P., o recorrente invoca e valora as suas declarações e extrai excertos das suas testemunhas presenciais e outras (cfr. art. 412 n.º 3 al. b) e n.º 4 art. 364 n.º2 do C.P.P.) que impunham leitura, análise e interpretação das provas pelo tribunal diversa. Erro na apreciação da prova, dando-se provados factos inconciliáveis, desconformes com o que realmente se provou, contra as regras da experiência das leges artis, baseado em juízos arbitrários.
12. O recurso visa o reencontro com critérios mais objectivos e imparciais, afastando deduções e conclusões subjectivadas, aponta para a reapreciação da insindicável, arbitrária prova do texto decisório, fundamentado no depoimento único da ofendida em detrimento do oposto pelo arguido e das suas testemunhas presenciais.
13. Realizado o julgamento a sentença deu como provado facto 6.º baseado única e exclusivamente no depoimento da ofendida e seus pais, mas não comprovados por terceiros que podiam ter sido arrolados. A ofensa à integridade física e a ameaça agravada objecto da condenação nunca foram comprovadas por terceiros estranhos à ofendida e aos seus pais.
14. Facto provado, desmentido pelo arguido e suas testemunhas Rosa e Carlos, não se percebendo porque foi sobrevalorizado o depoimento do pai e da ofendida “sincero, isento e coerente” (10/35), não foi explicado porque foram desvalorizados os depoimentos da Rosa e do Carlos só por terem revelado animosidade e contraditórios entre si, sem explicar concretamente porque se considera animosidade e qual a contradição. Deviam terem ficado provadas as versões apresentadas pelo arguido e as testemunhas Rosa e Carlos.
15. O facto provado em 7.º ocorrido em dia não concretamente apurado é mais um facto apenas relatado pela ofendida, desmentido pelo arguido. Não se percebe o maior crédito à versão da ofendida que a do arguido para servir à condenação, à luz do princípio in dubio pro reo deveria ter merecido outra interpretação, quando se sabe que 2/3 acusação instigada pela ofendida veio a ser dada como não provada, também por se ter provado não terem ocorrido os factos que aquela denunciou. Elucidativos os factos patenteados em julgamento pela ofendida: que disse o divórcio teria sido da sua iniciativa, quando se veio a provar que foi do arguido ou quando ostentou um relatório onde afirmava constar serem os filhos vítimas de alienação parental do pai, mas sendo capaz de ler e provar. Diverso, portanto, devia ter sido o sentido atribuído à prova produzida.
17. O facto provado em 8 falece pelas mesmas razões uma vez que tal terá sido presenciado apenas pela ofendida, mas foi desmentido pelo arguido que até referiu tal proposta ter partido da ofendida, não se percebe do texto da sentença, porque foi o depoimento da ofendida sobrevalorizado em detrimento do do arguido. Apenas se refere o relato da ofendida aos pais e a Esmeralda que não presenciaram nada, apenas ouviram dizer, o que o recorrente não pode aceitar como sustentáculo judicial de prova. À luz do princípio in dubio pro reo a prova deveria ter sido a versão do arguido.
18. Quanto ao facto provado em 9º a chamada do filho Lucas, por ordem do arguido. Não concebe o recorrente que se dê como provado este elemento intencional do arguido, afirmado apenas pela ofendida, nunca foi confirmada pela Esmeralda que só confirma o teor da chamada, sendo que o pai nunca assistiu à chamada do filho, confirmado pelas testemunhas Rosa e Fernando, não se percebe da sentença o sustento da intencionalidade, nem o filho Lucas confirma. Nem se aceita que só as declarações da ofendida mereceram crédito, claras, sinceras e coerentes, conforme as regras da experiência e da normalidade do acontecer e corroboradas por testemunhas, que o recorrente desconhece, a quem aquela relatou, testemunhas de ouvir dizer que o recorrente não aceita, ficando sem se perceber porque foram preteridas as versões do arguido e das suas duas testemunhas em detrimento das versões de quem ouviu dizer.
19. O facto provado em 10º como consta da motivação apenas foi referido pela assistente, o que não se compreende tendo ocorrido à saída do comboio e a ofendida não consiga arrolar uma só testemunha. Não se consegue o recorrente entender como pode a Mma Juiz descrever que as testemunhas Rosa e Fernando apenas confirmaram troca de palavra quando estes negaram a existência de agressões, injúrias e ameaças. Nem consegue o requerente perceber como pode o depoimento da ofendida prevalecer sobre o presencial do arguido, da Rosa e do Fernando, com a justificação da animosidade, com o relato da Esmeralda, Joaquim e Laurinda que apenas ouviram relatar/dizer o episódio. Nem serve o argumento: se o objectivo fosse relatar factos não ocorridos não os teria enquadrado nas circunstâncias de tempo e lugar em que os enquadrou, na presença de familiares do arguido, enquadrá-los-ia em cenários onde tais familiares estivessem ausentes. O único facto que o recorrente aceita que se extraia objectivamente é que estiveram presentes as suas testemunhas. Nem aceita o recorrente ser condenado por facto só com base nas declarações da ofendida e no que disse às testemunhas, sem nunca explicar porque não se dá crédito à sua versão, limitando-se a justificar que este se limitou a contar uma versão que não envolvesse agressão ameaça ou injúria, sem explicar em que se fundamenta concretamente tal conclusão.
20. Insustentável é justificação de que se nada tivesse acontecido não faria sentido a situação dos menores se tivesse alterado... e que Joaquim , no dia seguinte, fosse ter com o arguido indagá-lo acerca do dia anterior e da razão pela qual queria matar a filha. Desconhece o recorrente onde a Mma Juiz esta razão porque não foi sequer dado como provado, pese embora a condenação por crime de ameaça agravada. Seriam perfeitamente possíveis outras conclusões: situação dos menores alterada por causa do facto provado em 21.º, o pai abordar o arguido na sequência do facto provado em 21.º.
21. Não aceita o recorrente que as regras da lógica e da experiência abonem as declarações da assistente e que as do arguido só se expliquem por apresentar uma versão sem agressão, injúria e ou ameaça e a versão da Rosa e Fernando só se explicar por não terem presenciado ou pelo facto de quererem apresentar uma versão sem agressão e palavra. Ora, não apresenta motivo concreto para descredibilizar o depoimento do arguido e das testemunhas, nem era possível ter ocorrido “hiato de tempo não percepcionado por eles” em que o arguido tivesse agredido, injuriado ou ameaçado, porque desmentiram agressão injúria ou ameaça. Estas sim, é que são deduções subjectivadas da Mmª. Juiz elucidativas de que não havia meio de prova bastante para dar como provado este episódio. É insindicável, arbitrário e injusto tal privilégio concedido ao único depoimento da ofendida que, por si só, condena o arguido, fazendo letra morta do seu depoimento contrário e das suas duas testemunhas presenciais, o que motiva o presente recurso, em nome dos direitos de defesa do arguido, constitucionalmente garantidos (32) C.R.P.) e do estado de direito. Episódio da estação, único que sustenta o crime de ofensa à integridade simples perpetrado pelo arguido à assistente.
22. O facto provado em 16 só pode ter como único sustentáculo as declarações da assistente, a sentença limita-se a dá-lo como provado, sem justificação e sem motivação, incompreensivelmente, uma vez que foi desmentido pelo arguido e pela Rosa e Fernando que o acompanharam. Não é possível ao recorrente da fundamentação / motivação da sentença perceber como se formou a convicção da Mma Juiz acerca deste facto porque foi omitida não foram indicadas quais as provas, nem feito o seu exame crítico, em violação do no art. 374 n.º 2) o que acarreta a nulidade do art. 379º n.º 1) ambos do C.P.P.
23. Pese embora a sentença refira os factos não provados por insuficiência de prova apenas as declarações da assistente negadas pelo arguido e não corroboradas por outro meio de prova, este mesmo princípio não foi considerado para dar-se como não provados os factos descritos em 8, 10, 13, 14, 16 injustamente provados com o depoimento da assistente.
24. O facto dado como assente em 17º que concerne à situação dos menores mereceu a seguinte motivação: é facto não contestado que os menores passaram a viver com o pai, alias a própria assistente referiu que a filha lhe ligou dizendo ficar a viver com o pai para sempre, existem relatos da assistente, da mãe e da amiga Esmeralda acerca de insultos dos menores à mãe, os menores demonstraram vontade em ficar com o pai. Só esta motivação deveria levar a Mmª Juiz a averiguar a personalidade do arguido com maior rigor e cuidado e não limitar-se a considerar que se limitou a dar uma versão sem agressão, injúria ou ameaça, a indagar da justiça em condenar um pai com quem os filhos só admitem viver para sempre, só com base no depoimento da assistente com quem os filhos se recusam estar e chegam a insultar, não deveriam ter sido ouvidas mais atentamente as testemunhas Rosa , Carlos (víbora e do pior que há).
25. O Tribunal não pôde concluir que o arguido fez a cabeça dos menores contra a mãe, porque a prova produzida restringe-se às deduções subjectivadas da assistente, da sua mãe e da amiga Esmeralda, este correcto pressuposto não foi o que regeu a prova dos factos 8, 10, 13, 14, 16, com único sustentáculo no depoimento da assistente, o que constitui uma contradição insanável geradora de nulidade do texto decisório condenatório.
26. O facto erradamente provado em 19º porque desmentido pelo arguido e desmentido pela testemunha Domingos por ele arrolada, dono do café, que negou tais factos difamatórios e injuriosos. Mas a sentença apenas refere que o sucedido foi relatado com clareza por Joaquim, pai da ofendida, corroborado pela mãe, que nem sequer esteve presente no café, certamente por ouvir dizer, olvidando a sentença fundamentar porque não mereceu crédito o arguido e porque ignorou a testemunha, dono do café.
27. Não resultaram provados 2/3 dos factos objecto de denúncia e levados à acusação. Deveriam ter levado a uma ponderação e analise mais cuidada dos factos e personalidades do arguido e ofendida, tamanho rol de imputações feito pela assistente, que verificaram-se destituídas de fundamento, tanto mais que tem algumas delas único sustentáculo nas declarações da assistente. O episódio da iniciativa do divórcio que despoletou comportamentos negativos do arguido que se veio a provar ser afinal da iniciativa do arguido. A denunciada e acusada perseguição à Póvoa que veio a revelar-se um mero passeio do arguido e filho ao Porto. A alegada instigação dos filhos por parte do pai contra a mãe, com perseguições, telefonemas, difamações e imputações que afinal só correspondem a deduções subjectivadas da assistente. Factos não provados por prova suficiente, eram motivo para não dar-se absoluto crédito à versão da ofendida para condenação do arguido.
28. Não deveria este abono ao arguido pelas crianças (de quem sempre vem a verdade) e estas imputações descabidas pela ofendida a quem os menores se mostram comprovadamente hostis, deveriam ter redobrado a desconfiança em relação aos depoimentos da assistente, deveriam ter sido consideradas um alicerce frágil para, por si só, anular a versão do arguido e das suas testemunhas presenciais e sustentar condenação.
29. Alguns factos não provados estão em contradição com os factos provados, insanavelmente, o provado em 20 com o não provado em n) um mesmo episódio é simultaneamente dado como provado e como não provado.
30. Relativamente à insuficiência e erro na apreciação da prova menciona-se a total ausência de menção, como sucedeu com o depoimento da testemunha dono do café, também aqui acerca do depoimento concludente da Lucinda G..., acerca das personalidades do arguido e da assistente, era determinante uma pronúncia no texto decisório, omitindo tal pronuncia incorre a sentença nos vícios acima descritos.
31. Para além da simultaneidade do facto provado em 20º em contradição com o não provado em n), que reconduz a sentença a uma nulidade por contradição nos seus fundamentos fácticos. Outras contradições insanáveis conduzem à sua nulidade, o provado em 18 que alicerça a condenação por crime de ameaça, a fls. 19 refere tal facto provado “irrelevante” porque se não sabe a data em que ocorreu, e, por nada se ter provado acerca da sua transmissão da mãe à assistente, concluindo a Mma Juiz que nem se está perante um crime de ameaça...
32. Expressamente a Mma. Juiz (19/35) dos factos transcritos os mais gravosos são os ocorridos em 28/10/2009(?), susceptíveis de integrar uma ofensa à integridade física, uma injúria e uma ameaça. Estes isoladamente, não assumem gravidade suficiente para integrar um crime de violência doméstica, pois estão desprovidos de excepcional violência e gravidade exigida para que uma só conduta configure aquele crime. A ofensa limitou-se a um empurrão, a injúria e ameaça ocorreram no contexto espácio-temporal dessa mesma agressão e as consequências restringem-se a dores, nervosismo e medo. Não compreende o recorrente que um facto constitua suporte para uma condenação pelo crime de ameaça, ainda por cima ameaça agravada, mas deixe de ser suporte válido para violência doméstica.
33. Aquele episódio de 28/10/2007, desmentido pelo arguido e duas testemunhas, mas provado com base no relato único da ofendida, não passou de um empurrão, sem excepcional violência e gravidade, mas levou á condenação por ofensa à integridade física simples e por ameaça agravada, cuja medida da pena se situa num terço, cujas consequências se restringem a dores, nervosismo e medo, mas levaram a uma condenação no pagamento duma indemnização à assistente de 600,00€.
34. O mesmo tratamento foi dado aos acontecimentos relatados em 6.º e 8.º da matéria de facto provada, com consequências de pouca gravidade, que não justificam uma pena reforçada, não aceita o recorrente ser condenado por crime de ameaça agravada, quando remata a Mmª Juiz que não pode olvidar que tais factos ocorreram em circunstâncias temporais determinadas, num contexto de exaltação de ânimos, envolvendo pessoas acabadas de vivenciar uma situação de ruptura conjugal, não tendo a virtualidade de atribuir aos factos a gravidade que os mesmos isoladamente não tem e da qual não se pode prescindir para se considerar posto em causa o bem jurídico pretendido, devendo o arguido ser absolvido do crime que Ihe vinha imputado.
35. Para justificar o crime de ofensa à integridade física, qualifica os factos de 28/10/2007, como mau trato no qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante, que provoque uma ofensa na saúde (21/35). Mas a sentença descreveu paradoxalmente a agressão como um empurrão desprovido de excepcional violência e gravidade suficiente exigível para poder configurar o crime de violência doméstica, insignificante, portanto, para ser enquadrável na ofensa à integridade física. Nem nenhum relatório médico consta dos autos a descrever a existência de dano no corpo, lesão na saúde, as dores resultam das únicas declarações da ofendida, até porque nem os pais mencionaram que a filha tivesse ficado lesionada ou com dores.
36. No que tange ao crime de ameaça agravada, considera a Mma Juiz que a expressão vou-te mandar para o cemitério referida no ponto 14.º provado, apesar da ausência da excepcional violência e gravidade para configurar um crime de violência doméstica, com consequências de pouca gravidade, num contexto de exaltação de ânimos, pela ruptura conjugal, sem a virtualidade de atribuir a gravidade que não tem, a não justificar pena reforçada, dizer agora susceptível de ser entendida como reportada a uma agressão futura adequada a causar na assistente medo ou inquietação e prejudicar a sua liberdade de determinação, constitui uma contradição insanável, tanto mais que se reforça a incriminação do arguido através ameaça agravada, apesar relembre-se da ausência de excepcional violência e gravidade.
37. Para além da medida da pena fixada num terço apesar do acima considerado, o mesmo se diga no que concerne ao quantum indemnizatório, apesar de aludir a um empurrão desprovido de violência e gravidade suficiente exigível para poder configurar crime e referir consequências de pouca gravidade, num contexto de exaltação de ânimos pela ruptura conjugal, sem a virtualidade de atribuir a gravidade, e apesar de se mencionar (32/35) a indemnização do danos não patrimoniais exigir que os mesmos apresentem um mínimo de gravidade para efeitos de serem ressarcíveis e o montante da reparação ser proporcionado à gravidade do dano, julgou-se adequada a indemnização de 600,00€ como compensação à assistente por danos não patrimoniais sofridos, neste descrito contexto exagerada entende o recorrente.
38. É imperceptível grande parte do depoimento da testemunha da ofendida Joaquim , pelo que, salvo melhor opinião, não sendo substituída a sentença por outra que absolva o arguido, deveria ser repetida /renovada, pelo menos nessa parte, a prova produzida.»

Termina pedindo no sentido de “ser a sentença recorrida revogada e substituída por acórdão que absolva o arguido da pratica dos crimes pelos quais foi condenado, só assim se fazendo a habitual Justiça!”
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Quer o Ministério Público quer a assistente responderam ao recurso pugnando pela manutenção do julgado.
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O recurso foi admitido, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 436.
Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP) não foi apresentada resposta.
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência.
Realizada a conferência, após mudança do relator, cumpre decidir.

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II- Fundamentação

1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo.
A) Factos provados (transcrição):
1. «O arguido e a Cristina V... casaram em 12/09/1992.
2. Do casamento nasceram os filhos Lucas e Adriana em 18/12/1997 e 31/08/1994, respectivamente.
3. Em 23/07/2007, arguido e Cristina V... divorciaram-se.
4. O relacionamento entre o casal foi marcado por desentendimentos e discussões, que se agudizaram a partir de Novembro de 2006.
5. O arguido desconfiava e tinha ciúmes da Cristina V....
6. No dia 02/07/2007, quando a Cristina V... se encontrava a retirar os seus bens da casa onde viviam, no contexto de uma discussão gerada entre ambos, o arguido ergueu a mão e disse-lhe eu até te bato, minha puta.
7. Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido seguiu a Cristina V... quando esta, depois de sair da sua residência, foi levar os filhos aos escuteiros, e, de seguida, se dirigiu para a casa dos seus pais, onde aquele estacionou a viatura que conduzia.
8. Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido procurou a Cristina V... e propôs-lhe que, apesar de estarem separados e divorciados, continuassem amantes, o que ela rejeitou.
9. No dia 28/10/2007, a Cristina V... tinha ido à Póvoa de Varzim, tendo deixado o seu automóvel no parque da estação de Guimarães.
10. Quando a Cristina V... se encontrava na Póvoa de Varzim, com a sua amiga Esmeralda C..., recebeu uma chamada do filho Lucas, que, por ordem do arguido, a questionou sobre o local onde estava, com quem estava, porque razão tinha o seu carro junto da estação e o que tinha ido fazer.
11. Quando chegou a Guimarães, cerca das 19h35, a Cristina V... dirigiu-se ao parque de estacionamento da CP.
12. Depois de ter entrado no seu veículo automóvel, que ali havia deixado estacionado e encontrando-se sentada ao volante, no vidro da porta da frente do lado do passageiro, apareceu o filho Lucas, que tinha ido com o arguido e outros familiares de comboio ao Porto.
13. Encontrando-se a falar com o filho Lucas, foi abordada pelo arguido, que se aproximou do vidro da porta do condutor, introduziu a mão direita pela janela e empurrou-a, atingindo-a no ombro esquerdo, provocando-lhe dores corporais nas zonas do corpo atingidas.
14. Para além disso, o arguido ainda afirmou, em tom agressivo, minha puta, minha vaca, empurraste-me os filhos, estragaste-me o fim-de-semana; vou-te mandar para o cemitério.
15. A Cristina V... fechou o vidro e arrancou com o veículo, abandonando o local com destino à sua residência.
16. Logo de seguida e ainda durante o trajecto, a Cristina V... recebeu no seu telemóvel uma chamada de voz do arguido que, visando-a, afirmou “vais dizer aos teus filhos e aos teus pais o boi com quem tu andas; não te entrego mais os filhos”.
17. No dia 28/10/2007, o arguido não entregou os menores à assistente.
18. Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido disse à mãe da Cristina V... que havia de se vingar dela e que a havia de a pôr no cemitério.
19. No dia 29/10/2007, num café, sito na Rotunda do Arquinho, Sande S. Clemente, Guimarães, quando abordado pelo pai da Cristina V... por causa do sucedido no dia anterior, o arguido afirmou que ela andava com outros homens, que não dormia em casa, que era puta e vaca, afirmações que voltou a repetir perante a mãe da Cristina V....
20. No dia 29/10/2007, quando a Cristina V... foi com os seus pais a casa do arguido buscar os filhos, gerou-se uma discussão entre ambos, tendo o arguido erguido a mão com a intenção de a atingir, só não o conseguindo devido à intervenção do pai da Cristina V....
21. Desde o dia 01/11/2007, os menores passaram a viver com o arguido, na casa deste, e não manifestaram vontade em ir para a casa da assistente.
22. Em dia concretamente não apurado, mas situado entre finais de 2007 e inícios de 2008, a Cristina V... ligou para o telemóvel da filha Adriana, e, tendo o arguido atendido, chamou-lhe puta.
23. Com as descritas afirmações e agressão corporal, o arguido actuou com o propósito conseguido de intimidar a Cristina V... e de a atingir na honra, consideração social e integridade física e, desta forma, a amedrontar e causar sofrimento físico e psicológico.
24. Agiu de vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida.
25. Na sequência do comportamento do arguido, a assistente ficou nervosa e receosa.
26. O arguido é uma pessoa trabalhadora e benquista entre os amigos.
27. O arguido é divorciado.
28. Tem dois filhos menores.
29. É vendedor de vinhos, auferindo €550 (quinhentos e cinquenta euros) por mês.
30. Vive em casa própria.
31. Não tem antecedentes criminais.»
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B) Factos não provados (transcrição):
«Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados outros factos, em contradição com aqueles ou para além deles, designadamente, os seguintes:
a) O arguido Domingos sempre interiorizou a ideia de que o casamento lhe concedeu direitos sobre a mulher Cristina V..., a quem podia dar ordens, impor comportamentos, exigir total submissão às suas pretensões e caprichos e tratar como um mero objecto.
b) Por tal motivo, o arguido nunca admitiu que a Cristina V..., enquanto sua mulher, pudesse ter vida própria e convivesse com outras pessoas, nem que alguma vez dele se viesse a separar.
c) O que originou ao longo do tempo inúmeros conflitos entre o casal, dada a determinação sempre demonstrada pela Cristina V... em recusar qualquer tipo de submissão ao arguido, com maior incidência na primeira metade do ano de 2007, designadamente, a partir do momento em que aquela lhe comunicou a sua decisão de pôr termo ao casamento e de se divorciar dele.
d) Para a pressionar no sentido de a demover do divórcio, em dia indeterminado do mês de Fevereiro de 2007, o arguido disse à Cristina V... que iria dizer mal dela a todas as pessoas que os conhecessem e, deste modo, convencê-las de que era ela a única causadora e culpada dos problemas conjugais.
e) Pelo que, a partir desta data, o arguido passou a propalar, de forma repetida, perante familiares, incluindo os próprios filhos, e demais pessoas amigas e conhecidas da mulher e de ambos, que a Cristina V... era uma pessoa arrogante, caprichosa, maldosa, intolerante e agressiva.
f) Antes do divórcio, o arguido acusou, por diversas vezes, a Cristina V..., quer directamente, quer perante terceiras pessoas, principalmente familiares, amigos e conhecidos de lhe ser infiel e ter vários amantes.
g) Em Abril de 2007, o arguido passou a perseguir a Cristina V..., seguindo-a a todos os sítios onde a mesma se deslocava, apenas para controlar todos os seus movimentos, designadamente, locais por ela frequentados, com quem se encontrava e com quem acompanhava.
h) Em dia não apurado do mês de Junho de 2007, perante a proximidade da data prevista para a decisão do divórcio e a determinação da Cristina V... em divorciar-se, o arguido dirigiu-se-lhe e afirmou “fizeste-me infeliz quinze anos e a partir de agora vou-te fazer a vida negra”.
i) A partir do divórcio, o arguido continuou a perseguir a Cristina V..., sobretudo nos fins de semana em que os filhos estavam com ele, segundo o estabelecido no acordo sobre o exercício do poder paternal, controlando as saídas dela de casa e obrigando os filhos a ligar-lhe sistemática e repetidamente para o seu telemóvel e a perguntar-lhe insistentemente, para além de outras coisas, “onde estava e com quem estava”, perguntas estas feitas segundo as indicações e instruções do progenitor na altura.
j) Após o divórcio, o arguido continuou a afirmar de forma repetida perante pessoas conhecidas (não familiares) da Cristina V... que esta tinha amantes e que era uma filha da puta.
k) Descontente com a recusa em ser amante do arguido, este passou a seguir a Cristina V... para os locais onde esta se deslocava.
l) A mãe da Cristina V... foi falar com o arguido no sentido de o demover de tal atitude, tendo o arguido retorquido em tom de voz alto e agressivo, que a Cristina tinha um amante na Figueira da Foz.
m) No dia 28/10/2007, o arguido, acompanhado do filho Lucas, seguiu também a Cristina V... no trajecto por esta efectuado entre Guimarães e a Póvoa de Varzim.
n) Desde o início de Novembro de 2007, o arguido impediu que os menores viessem com a Cristina V... para casa desta quando ela os foi buscar a casa dele, ao mesmo tempo que fazia movimentos e gestos com os braços para a agredir corporalmente, só não o tendo conseguido devido à intervenção do pai desta, e afirmava “vai-te embora que eles daqui não saem”.
o) O arguido proibiu os filhos de falar e de contactar com a mãe.
p) O arguido conseguiu, através de acusações sem qualquer fundamento atribuir-lhe relações com vários namorados, condutas moralmente censuráveis e outros comportamentos lesivos dos interesses dos próprios filhos, que estes interiorizassem uma imagem negativa da progenitora e a consequente repulsa em falar e contactar com ela.
q) Por causa das perseguições do arguido e da pressão psicológica que o mesmo exercia através dos filhos, a assistente ficou triste, inquieta, com medo e com elevada preocupação com a sua segurança e dos filhos.
r) Na sequência das condutas do arguido, a assistente tornou-se uma pessoa extremamente nervosa e fragilizada psicologicamente.»
*
C) Convicção (transcrição)
“A convicção do Tribunal fundou-se, concreta e globalmente, na apreciação, confronto e análise crítica das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas inquiridas e dos documentos juntos aos autos, tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
- Quanto aos factos provados -
O casamento e o divórcio de arguido e assistente resultaram da certidão de fls. 142 e 143.
A existência e as datas de nascimento dos filhos resultaram das certidões de fls. 28, 29 e 222.
O mau relacionamento entre arguido e a assistente foi assumido por ambos e confirmado pelos depoimentos das testemunhas Laurinda V..., mãe da assistente, Rosa G..., tia do arguido, Carlos M..., irmão do arguido, Lucinda G... , prima do arguido, José S..., Ana M... e Abílio P..., todos amigos e conterrâneos do arguido.
As desconfianças e os ciúmes por parte do arguido resultaram das declarações da assistente, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas Laurinda V., que, por ser mãe da assistente, conhece da realidade do casal, Esmeralda C... e Otília G..., estas amigas da assistente, a quem esta confidenciava episódios da vida sua conjugal.
O comportamento adoptado pelo arguido no dia em que a assistente efectuava as mudanças resultou das declarações desta, confirmadas pelo depoimento da testemunha Joaquim V..., seu pai, que presenciou os factos por se encontrar no local a ajudar a filha, e cujo depoimento, na sua globalidade, se revelou sincero, isento, coerente, relatando sempre apenas o factos dos quais tinha conhecimento, fossem eles favoráveis ou desfavoráveis à assistente.
As testemunhas Rosa e Carlos negaram a ocorrência de tais factos. Porém, os seus depoimentos, para além de demonstrarem grande animosidade para com a assistente, revelaram-se contraditórios entre si, assim desmerecendo a credibilidade do Tribunal.
Com efeito, palavras como ela só quer dinheiro; é uma víbora foram proferidas pela testemunha Rosa quando se referia à assistente. Também a testemunha Carlos, referindo-se à assistente, disse é do pior que há.
Por outro lado, a testemunha Carlos negou a presença no local da testemunha Rosa , bem como desconhecia que a assistente tivesse na sua posse um papel com a descrição dos bens que lhe pertenciam, facto referido por aquela testemunha.
Acresce que a própria testemunha Rosa afirmou que não esteve permanentemente no local, havendo ocasiões em que se ausentava para a sua casa, sita ali ao lado, o que, mesmo admitindo a sua presença no local, pode justificar o facto de não ter assistido à actuação do arguido.
O episódio de perseguição do arguido à assistente foi relatado pela testemunha Laurinda V., que assistiu à chegada da filha e do arguido que vinha no seu encalço, e a quem aquela, durante o percurso, telefonou contando o que estava a suceder.
A proposta efectuada pelo arguido, e que a assistente rejeitou, resultou das declarações desta, as quais foram corroboradas pelas testemunhas Laurinda V., Joaquim e Esmeralda C..., a quem aquela contou o sucedido.
A testemunha Laurinda V. relatou que, durante uma conversa com o arguido, este lhe disse que haveria de pôr a assistente no cemitério, tendo o seu depoimento, porque claro e coerente com as declarações daquela, merecido o crédito do Tribunal.
Os acontecimentos do dia 28/10/2007 foram relatados pela assistente, cujas declarações mereceram o crédito do Tribunal por se afigurarem claras, sinceras, coerentes, conformes com as regras da experiência e da normalidade do acontecer e, ainda, por terem sido corroboradas por prova testemunhal a quem, aquela, na frescura dos acontecimentos, relatou o sucedido.
Na verdade, o teor chamada telefónica recebida pela assistente foi confirmada pela testemunha Esmeralda C..., com quem a mesma se encontrava.
O sucedido no parque de estacionamento da estação dos caminhos de ferro foi referido apenas pela assistente. A testemunha Lucas M... não prestou declarações e tanto o arguido como as testemunhas Rosa e Fernando D..., seu primo, confirmaram apenas que, nesse dia, tinham ido ao Porto de comboio e que, à chegada, se cruzaram com a assistente no parque de estacionamento da estação, tendo ocorrido troca de palavras entre a assistente e o filho Lucas, bem como entre aquela e o arguido, negando sempre, contudo, a existência de qualquer agressão, injúria e/ou ameaça.
Porém, por um lado, não olvida o Tribunal a já referida animosidade revelada pela testemunha Rosa .
Por outro lado, o relatado pela assistente foi corroborado pelas testemunhas Esmeralda C..., Laurinda V. e Joaquim , a quem aquela, no próprio dia, contou o sucedido.
Acresce que, se o objectivo da assistente fosse relatar factos que não tivessem ocorrido, não os teria enquadrado nas circunstâncias de tempo e lugar em que os enquadrou, na presença de vários familiares do arguido, que, além do mais, revelam animosidade perante a sua pessoa; poderia, simplesmente, enquadrá-los em cenários onde tais familiares estivessem ausentes.
Finalmente, se nada tivesse acontecido naquele dia não faria sentido que a situação dos menores se tivesse alterado a partir daí, com a não entrega dos mesmos por parte do arguido, e que Joaquim , no dia seguinte, fosse ter com o arguido ao café indagá-lo acerca do sucedido no dia anterior e da razão pela qual queria matar a filha, como o próprio referiu.
Assim, também as regras da lógica e da experiência abonam as declarações da assistente, pelo que a versão apresentada pelo arguido só se explica pelo facto de ter pretendido apresentar uma versão que, no essencial, não contivesse qualquer agressão, injúria e/ou ameaça e a versão das testemunhas Rosa e Fernando D... só se explica ou pelo facto de não terem presenciado a agressão e as palavras proferidas (o que poderia ter acontecido, já que, no momento em causa, se dirigiam para a carrinha do arguido, admitindo-se a hipótese de o comportamento do arguido ter ocorrido num hiato de tempo não percepcionado por tais testemunhas) ou, ainda, pelo facto de também pretenderem apresentar uma versão que, no essencial, não contivesse tal agressão e tais palavras.
O sucedido no dia 29/10/2007 foi relatado com toda a clareza pela testemunha Joaquim e corroborado pela assistente e pela testemunha Laurinda V..
Relativamente à situação dos menores, foi facto não contestado por arguido, assistente e familiares de ambos que os mesmos, desde 01/11/2007, passaram a viver em casa daquele. Aliás, a própria assistente referiu que a filha Adriana lhe ligou, dizendo-lhe vou ficar a viver com o pai para sempre. Existem também relatos da assistente, da mãe desta e da amiga Esmeralda C... acerca de insultos que os próprios menores dirigiam à mãe. É, assim, certo que os menores demonstraram vontade em ficar com o pai.
Porém, daí não pode o Tribunal concluir que o arguido fez a cabeça dos mesmos contra a mãe. A prova produzida a tal propósito restringe-se apenas às deduções subjectivadas da assistente, da sua mãe e da sua amiga Esmeralda C..., não apoiadas em factos concretos, o que se mostra insuficiente para alcançar tal conclusão.
A testemunha Esmeralda C... relatou a situação de insulto que presenciou, tendo o seu depoimento, porque claro e coerente, merecido o crédito do Tribunal.
As consequências do comportamento do arguido na pessoa da assistente resultaram das declarações desta, do depoimento das testemunhas Esmeralda C... e Laurinda V. e das regras da experiência e da normalidade do acontecer.
As testemunhas José S..., Ana M... e Abílio P..., por serem amigos e conterrâneos do arguido, depuseram quanto aos elementos relativos à sua personalidade e carácter.
Relativamente à determinação das condições pessoais, sociais e económicas do arguido, o Tribunal fez fé nas suas declarações.
Quanto aos antecedentes criminais, atendeu-se ao teor do certificado de registo criminal de fls. 183.
- Quanto aos factos não provados -
Os factos não provados assim foram considerados devido à ausência de prova [als. g), i), j), K), l), n) e r)] ou de prova suficiente [als. a) a f), h), o) e p)] relativamente a eles ou, ainda, pelo facto de estarem em contradição com os provados [als. m) e q)].
Com efeito, e, em particular, no que concerne aos factos referidos nas als. a) a f), h), o) e p), a insuficiência de prova resultou do facto de quanto aos mesmos existir apenas as declarações da assistente, negadas pelo arguido e não corroboradas por nenhum outro meio de prova bastante.
Não se respondeu à restante matéria por ser irrelevante ou conclusiva»

*
2. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)

No presente recurso são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
· Deficiente gravação do depoimento da testemunha Joaquim ;
· Nulidade da sentença por ocorrer alteração substancial dos factos nos termos do disposto no art. 359 n.º 1 do C. P. Penal e o arguido não ter consentido na continuação do julgamento pelos factos novos; extemporaneidade das comunicações e alterações efectuadas, com violação do contraditório e das garantias de defesa;
· Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
· Insuficiência da matéria de facto, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, n.º2, alíneas a), b) e c) do CPP);
· Impugnação da matéria de facto provada constante dos n.º n.ºs 6, 7, 8, 9, 16, 17, 19, 20, por a mesma dever ser considerada não provada;
· Enquadramento jurídico-criminal;
· Medida das penas;
· A obrigação de indemnizar e a medida do quantum indemnizatório.

*

3. A questão da deficiente gravação da prova
Segundo o recorrente “é imperceptível grande parte do depoimento da testemunha da ofendida Joaquim , pelo que, salvo melhor opinião, não sendo substituída a sentença por outra que absolva o arguido, deveria ser repetida/renovada, pelo menos nessa parte, a prova produzida” (conclusão 37ª).

Estribando-se em jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, a M.ª juíza a quo concluiu pela improcedência da “arguição do vício resultante da deficiente gravação do depoimento da testemunha Joaquim V...”, quer se entenda, como parece ser a posição que perfilha, que a deficiente gravação da prova em audiência integrava uma mera irregularidade que, por não afectar o valor do acto, tinha de ser arguida nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal, o que no caso não ocorreu pelo que a alegada irregularidade ter-se-ia por sanada, quer se entenda que a alegada deficiência constitua uma nulidade sanável a arguir no prazo de 10 dias a partir do dia em que os suportes técnicos como registo das gravações ficam à disposição do sujeito interessado, caso em que a arguição da nulidade efectuada em 14 de Setembro de 2009 é igualmente extemporânea por o registo da documentação da audiência ter sido entregue ao arguido em 15 de Julho de 2009 (cfr. despacho de fls. 432 a 436).

Não subscrevemos tal entendimento.

Embora reconhecendo que a questão é muito controvertida, sendo objecto de grandes divergências jurisprudenciais, temos seguido o entendimento de que a deficiente gravação da prova configura a nulidade prevista no artigo 363º do CPP, a qual é sanável e dependente de arguição e, por isso, sujeita ao regime de arguição dos artigos 120º a 122º do CPP, podendo ser suscitada no prazo de motivação do recurso com impugnação da matéria de facto e devendo objecto de prévia pronúncia por parte do tribunal a quo (cfr. os recentes Acs desta Relação de Guimarães de 3 de Maio de 2010, proc.º n.º 327/07.0GAPTL.G1, rel. Estelita de Mendonça e da Rel. de de Lisboa de 14 de Abril de 2010, proc.º n.º 1156/07.7PSLB.L1-3, rel. Maria José Costa Pinto, ambos im www.dgsi.pt, sendo que do último apenas divergimos na parte em que nele se exige a apresentação de requerimento autónomo, não se admitindo a arguição da nulidade directamente na motivação de recurso interposto da sentença).

Conclui-se portanto pela tempestividade da arguição da alegada deficiência da documentação da prova

Simplesmente, como bem observa o Ministério Público na sua douta resposta e pudemos confirmá-lo mediante a audição do registo magnetofónico que acompanhou este processo, não obstante a partir de certa altura as respostas da testemunha surgirem “à distância, o seu teor é, ainda, perceptível.

Note-se que no que concerne à descrição dos factos ocorridos em 28-10-2007, únicos que estão em causa na sentença condenatória, o depoimento da testemunha na parte em que reproduz aquilo que a sua filha lhe disse é perfeitamente audível.

Consequentemente improcede a arguida nulidade.
*
4. A questão da nulidade da sentença por ocorrer alteração substancial dos factos nos termos do disposto no art. 359 n.º 1 do C. P. Penal e o arguido não ter consentido na continuação do julgamento pelos factos novos; extemporaneidade das comunicações e alterações efectuadas, com violação do contraditório e das garantias de defesa

§1. Para melhor compreensão atente-se no que os autos documentam.

a) O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido recorrente nos seguintes termos: (transcrição integral da acusação de fls. 144 a 149):
«1. O arguido e a Cristina V... casaram em 12/09/1992, casamento entretanto dissolvido por divórcio em 23/07/2007.
2. Do casamento nasceram os filhos ainda menores Lucas e Adriana em 18/12/1997 e 31/08/1994, respectivamente.
3. O arguido Domingos sempre interiorizou a ideia de que o casamento lhe concedeu direitos sobre a mulher Cristina V..., a quem podia dar ordens, impor comportamentos, exigir total submissão às suas pretensões e caprichos e tratar como um mero objecto.
4. Por tal motivo, o arguido nunca admitiu que a Cristina V..., enquanto sua mulher, pudesse ter vida própria e convivesse com outras pessoas, nem que alguma vez dele se viesse a separar.
5. o que originou ao longo do tempo inúmeros conflitos entre o casal, dada a determinação sempre demonstrada pela Cristina V... em recusar qualquer tipo de submissão ao arguido, com maior incidência na primeira metade do ano de 2007, designadamente, partir do momento em que aquela lhe comunicou a sua decisão de pôr termo ao casamento e de se divorciar dele.
6. Então, para a pressionar no sentido de a demover do divórcio, em dia indeterminado do mês de Fevereiro de 2007, o arguido disse à Cristina V... que iria dizer mal dela a todas as pessoas que os conhecessem e, deste modo, convencê-las de que era ela a única causadora e culpada dos problemas conjugais.
7. Pelo que, a partir desta data, o arguido passou a propalar, de forma repetida, perante familiares, incluindo os próprios filhos, e demais pessoas amigas e conhecidas da mulher e de ambos, que a Cristina V... era uma pessoa arrogante, caprichosa, maldosa, intolerante e agressiva.
8. Do mesmo modo, o arguido também acusou por diversas vezes a Cristina V..., quer directamente, quer perante terceiras pessoas, principalmente familiares, amigos e conhecidos, de lhe ser infiel e ter vários amantes.
9. Para além disso, em Abril de 2007, o arguido passou igualmente a perseguir a Cristina V..., seguindo-a a todos os sítios onde a mesma se deslocava, apenas para controlar todos os seus movimentos, designadamente, locais por ela frequentados, com quem se encontrava e com quem acompanhava.
10. Em dia não apurado do mês de Junho de 2007, perante a proximidade da data prevista para a decisão do divórcio e a determinação da Cristina V... em divorciar-se, o arguido dirigiu-se-lhe e afirmou “fizeste-me infeliz quinze anos e a partir de agora vou-te fazer a vida negra”.
11. A partir do divórcio, em 23/07/2007, o arguido continuou a perseguir a Cristina V..., sobretudo nos fins de semana em que os filhos estavam com ele, segundo o estabelecido no acordo sobre o exercício do poder paternal, controlando as saídas dela de casa e obrigando os filhos a ligar-lhe sistemática e repetidamente para o seu telemóvel e a perguntar—lhe insistentemente, para além de outras coisas, “onde estava e com quem estava”, perguntas estas feitas segundo as indicações e instruções do progenitor na altura.
12. Do mesmo modo e após o divórcio, 0 arguido continuou a afirmar de forma repetida perante os familiares e pessoas conhecidas da Cristina V... que esta “tinha amantes e que era urna filha da puta”.
13. Cerca de oito dias antes do dia 28/10/2007, o arguido procurou a Cristina V... e propôs-lhe que, apesar de estarem separados e divorciados, continuassem amantes, o que ela rejeitou.
14. Descontente com tal recusa, o arguido passou igualmente a seguir a Cristina V... para os locais onde esta se deslocava.
15. Assim, em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2007, o arguido seguiu a Cristina V... quando esta, depois de sair da sua residência, foi levar os filhos à escola, e, de seguida, se dirigiu para a casa dos seus pais, onde se refugiou e onde aquele estacionou a viatura que conduzia.
16. Nessa altura a mãe da Cristina V... foi falar com o arguido no sentido de o demover de tal atitude, tendo o arguido retorquido em tom de voz alto e agressivo, que a Cristina “tinha um amante na Figueira da Foz, que havia de se vingar dela, que era urna filha da puta, vaca e que havia de a por no cemitério”.
17. No dia 28/10/2007, o arguido, acompanhado do filho Lucas, seguiu também a Cristina V... no trajecto por esta efectuado entre Guimarães e a Póvoa de Varzim, onde se encontrou com a Esmeralda C..., id. a fls. 19, e da Póvoa a Guimarães, sempre via Porto, utilizando também o comboio como meio de transporte.
18. Durante este encontro, a Cristina V... recebeu uma chamada do filho Lucas, que, por ordem do arguido, a questionou sobre o “local onde estava, com quem estava, porque razão tinha o seu carro junto da estação e não levou o seu carro e o que tinha ido fazer”.
19. Quando chegou a Guimarães, cerca as 19,35 horas, a Cristina V... dirigiu-se ao parque de estacionamento da CP e entrou no seu veículo automóvel, que ali havia deixado estacionado
20. De imediato foi abordada pelo arguido e filho de ambos, tendo aquele batido com forca no vidro da porta do condutor com força, dando a entender que pretendiam falar com ela.
21. Encontrando-se já sentada ao volante e com o motor a trabalhar, a Cristina V... abriu o vidro e começou a falar com o filho Lucas.
22. Enquanto a Cristina V... conversava com o filho, o arguido introduziu a mão direita pela janela e empurrou-a com força, atingindo-a no ombro esquerdo e projectando-a para o banco do outro lado, provocando-lhe dores corporais nas zonas do corpo atingidas.
23. Para além disso, o arguido ainda afirmou em tom de voz alto e agressivo, para além de outras coisas, “vai para a puta que te pariu, sua filha da puta, minha filha da puta, vou-te matar, vais para debaixo da terra”.
24. Temendo novas e mais graves agressões corporais por parte do arguido, a Cristina V... fechou a vidro e arrancou com o veiculo, abandonando o local com destino à sua residência.
25. Logo de seguida e ainda durante a trajecto, a Cristina V... recebeu no seu telemóvel uma chamada de voz do arguido que, visando-a, afirmou, para além do mais “vais dizer aos teus filhos e aos teus pais o boi com quem tu andas, não te entrego mais os filhos”.
26. E, no dia 29/10/2007, num café sito na Rotunda do Arquinho, Sande S. Clemente, Guimarães, quando abordado pelo pai da Cristina V... por causa do sucedido no dia anterior, o arguido afirmou que “ela tinha ido de comboio encontrar-se com um amante no Porto”, afirmação que voltou a repetir logo de seguida já em casa dos sogros e na presença destes.
27. De igual modo, desde o início de Novembro de 2007, o arguido, na concretização dos seus propósitos de colocar também os filhos menores contra a mãe e de os privar do contacto com esta, impediu que os menores viessem com a Cristina V... para casa desta quando ela os foi buscar a casa dele, ao mesmo tempo que fazia movimentos e gestos com os braços para a agredir corporalmente, só não o tendo conseguido devido à intervenção do pai desta, e afirmava “vai-te embora que eles daqui não saem”.
28. Para além disso, o arguido proibiu ainda os filhos de falar e de contactar com a mãe e conseguiu, através de acusações sem qualquer fundamento a atribuir-lhe relações com vários namorados, condutas moralmente censuráveis e outros comportamentos lesivos dos interesses dos próprios filhos, que estes interiorizassem uma imagem negativa da progenitora e a consequente repulsa em falar e contactar com ela.
29. Com as descritas afirmações, perseguições, telefonemas e agressões corporais o arguido actuou com o propósito conseguido de intimidar a Cristina V... e de a atingir na honra, consideração social e integridade física e, desta forma de a amedrontar, perturbar psicologicamente, de a humilhar, espezinhar, subjugar e de lhe causar um estado de medo, angústia e sofrimento físico e psicológico para satisfação dos seus instintos agressivos pelo facto de ter sido sua mulher, com total desprezo pelo respeito a ela devido enquanto pessoa humana.
30. Agiu de vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida.»
Cometeu, pelo exposto, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, n° 1, al. a), e n° 2, do C.P».
b) A acusação acima referida foi recebida por despacho de 12/01/2009 “pelos factos ali constantes e com a qualificação jurídica ali referida” (fls. 171 e 172), vindo a ser designado o dia 23/03/2009 para o julgamento.
Esse despacho foi notificado ao arguido e ainda para contestar o pedido de indemnização cível formulado pela ofendida a fls. 160 e segs.
Em 4/02/2009 (fls. 191), o arguido veio apresentar contestação à acusação e ao pedido de indemnização cível e arrolou testemunhas.

c) Nos dias 23/03/2009 (fls. 204 a 206), 16/04/2009 (fls. 207 a 208), 6/05/2009 (fls. 209 a 210), 4/06/2009 (fls. 211 a 214) e 17/06/2009 (fls. 216 e 217) teve lugar a audiência de julgamento, com a produção de prova.

d) Na sessão de 17/06/2009, finda a produção de prova e feitas as alegações orais pelo M.P.º e pelos mandatários presentes, e dada a oportunidade ao arguido de dizer algo que ainda não tivesse dito e que pudesse ser útil para a sua defesa, consta a final o seguinte despacho “Para a leitura da sentença designo o dia 1 de Julho de 2009, pelas 14H00”.

e) Na sessão de 1 de Julho de 2009, reaberta a audiência, foi proferido pela senhora juiz a quo o seguinte:
«DESPACHO:
Da discussão e julgamento da causa resultaram, entre outros, os seguintes factos:
1. O relacionamento entre o casal foi marcado por desentendimentos e discussões, que se agudizaram a partir de Novembro de 2006.
2. O arguido desconfiava e tinha ciúmes da Cristina V....
3. No dia 02/07/2007, quando a Cristina V... se encontrava a retirar os seus bens da casa onde viviam, no contexto de uma discussão gerada entre ambos, o arguido, dirigindo-se a Cristina V..., ergueu a mão e disse-lhe eu ate te bato, minha puta.
4. Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido seguiu a Cristina V... quando esta, depois de sair da sua residência, foi levar os filhos aos escuteiros, e, de seguida, se dirigiu para a casa dos seus pais, onde aquele estacionou a viatura que conduzia.
5. Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido procurou a Cristina V... e propôs-lhe que, apesar de estarem separados e divorciados, continuassem amantes, o que ela rejeitou.
6. Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido disse à mãe da Cristina V... que havia de se vingar dela e que a havia de a pôr no cemitério.
7. No dia 28/10/2007, depois de a Cristina V... ter entrado no seu veículo automóvel, que havia deixado estacionado na estação da CP e encontrando-se sentada ao volante do mesmo, no vidro da porta da frente do lado do passageiro, apareceu o filho Lucas, que tinha ido com o arguido e outros familiares de comboio ao Porto.
8. Encontrando-se a falar com o filho Lucas, foi abordada pelo arguido, que se aproximou do vidro da porta do condutor, introduziu a mão direita pela janela e empurrou-a, atingindo-a no ombro esquerdo, provocando-lhe dores corporais nas zonas do corpo atingidas.
9. Para além disso, o arguido ainda afirmou, em tom agressivo, minha puta, minha vaca, empurraste-me os filhos, estragaste-me o fim-de-semana; vou-te mandar para o cemitério”.
10. No dia 28/10/2007, o arguido não entregou os menores a assistente.
11. No dia 29/10/2007, num café, sito na Rotunda do Arquinho, Sande S. Clemente, Guimarães, quando abordado pelo pai da Cristina V... por causa do sucedido no dia anterior, o arguido afirmou que ela andava com outros homens, que não dormia em casa, que era puta e vaca,
13. Desde o dia 01/11/2007, os menores passaram a viver com o arguido, na casa deste, e não manifestaram vontade em ir para a casa da assistente.
14. Em dia concretamente não apurado, mas situado entre finais de 2007 e inícios de 2008, a Cristina V... Ligou para o telemóvel da filha Adriana, e, tendo o arguido atendido, chamou-lhe puta.
15. Com as descritas afirmações e agressão corporal, o arguido actuou com o propósito conseguido de intimidar a Cristina V... e de a atingir na honra, consideração social e integridade física e, desta forma, a amedrontar e causar sofrimento físico e psicológico.
*
Em face destes e dos demais factos provados entende o Tribunal que o arguido cometeu um crime de ofensa a integridade física simples, p. e p. no art. 143.°, n.º 1 do CP e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.°, n.° 1 e 155.°, n.° 1, al. a) do CP.
Pelo exposto, comunico ao arguido a alteração dos factos e da qualificação jurídica, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.°, n.° 1 e n.° 3, do CPP.»

Pelo Ilustre Defensor do arguido foi requerido o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
De seguida, a Mma Juiz proferiu o seguinte:
«DESPACHO:
Concede-se ao arguido o prazo de 5 dias para os efeitos pretendidos.
Para continuação da audiência de julgamento designo o próximo dia 8 de Julho de 2009, pelas 14:00 horas».

f) No dia 8 de Julho de 2009, depois de reaberta a audiência, o arguido pediu a palavra e ditou um requerimento, no qual, além de descrever os factos constantes da acusação e os que a senhora juiz a quo entendeu terem resultado da discussão da causa e já acima referidos, dizia:
«(…) E em face destes e demais factos provados entendeu o tribunal o arguido ter cometido os crimes de ofensa à integridade física simples p. e p. no art. 143°n°1 do C.P. e um crime de ameaça agravada p. e p. art. 153°n°1 e 155°n°1 al a.) do C.P.
Comunicou ao arguido a alteração dos factos e da qualificação jurídica, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358° n°1 e 3 do C.P. P.
Ora dispõe o art. 358° n°1 e 3 do C.P.P., se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, e comunicada a alteração ao arguido e concedido tempo para a preparação da defesa, correspondentemente aplicável quando o Tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.
Ora, como se viu, a audiência de discussão já tinha sido encerrada, já haviam sido proferidas as alegações e prestadas as Últimas declarações do arguido em sua defesa e, por isso, inviável qualquer preparação da defesa.
Este artigo 358° citado aquando da leitura da sentença regula apenas a alteração não substancial quando feita no próprio julgamento.
Ora tal comunicação, nestas circunstâncias, de alteração de 15 dos factos, o que é para mim inédito, e alteração qualificação jurídica depois de encerrada a discussão só serve a celeridade processual e aproveitamento processual, mas nega em absoluto o imperativo legal: princípio do contraditório, de uma defesa eficaz e em tempo Útil por parte do arguido.
Até por que o arguido e o seu defensor negaram-se expressamente interrogar uma testemunha da ofendida acerca de factos relatados que não constavam da acusação, mas que vêm agora comunicados / acusados ao arguido, quando o deveriam ter sido naquela ocasião.
A alteração não substancial dos factos agora comunicada nos termos do art. 358° n°1 e 3 contrariamente ao que V.ª Ex.ª refere configura uma alteração substancia/, não configura uma versão diferente dos mesmos factos, mas na sua grande maioria são factos completamente novos, alguns dos quais (4) é ate impossível ao arguido defender-se deles porque refere terem ocorrido em dia não concretamente apurado mas depois de 23/7/2007.
Factos completamente novos e outros alterados mas que tem por efeito a imputação ao arguido de dois tipos de crimes diversos, do de que vinha inicialmente acusado: violência doméstica, o que até nem se compreende se o arguido já nem era casado (cônjuge) à data da prática dos alegados factos, e veio, com esta comunicada alteração não substancial, acusado de dois crimes: um de ofensa a integridade física simples e outro de coacção agravada, puníveis com 3 e 5 anos de prisão respectivamente.
Que pode conduzira o agravamento do limite máximo, em cúmulo jurídico ate 8 anos, das sanções aplicáveis, não pode, por isso, seja como for considerada alteração não substancial dos factos, porque alteração não substancial é aquela que embora modifique os factos descritos na acusação não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, nem tão pouco a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, ou elevação da pena aplicável, caso em que deveria haver lugar a aplicação do mecanismo previsto não no art. 358° mas no art. 359°
A aplicação do art. 358° só tem lugar se no decurso da audiência e só nesta, se fizer prova de factos que representem uma alteração dos factos descritos na acusação, mas contudo sem qualquer relevo para a alteração do crime ou do máximo das penas o que não e manifestamente o caso já que há agora uma diversa qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, recebida por V. Ex.ª, há uma alteração do crime tipificado na acusação que V. Ex.ª tinha recebido e imputado ao arguido e de que resulta um tratamento inegavelmente mais gravoso para o arguido (até 8 anos de prisão), implicando assim uma alteração substancial prevista não no artigo 358° mas antes no art. 359°.
Pare além de que a alteração da qualificação jurídica dos factos por V.Ex.ª, mesmo após esta comunicação ao arguido, teria de ser sempre efectuada para crime a que corresponda moldura penal dentro da competência deste Tribunal, o que passa a não ser o caso, retirando-se desta feita, o direito do arguido, sem o anuimento deste, atenta a moldura penal resultante da alteração da qualificação jurídica, de requerer o julgamento por Tribunal Colectivo, que expressamente invoca pare todos os devidos e legais efeitos, já que em face dos arts. 14°, 15° e 160 do CPP., o erguido passará a responder por dois crimes, um a que corresponde prisão ate 3 anos e outro a que corresponde prisão ate 5 anos, teria que ser julgado em Tribunal colectivo (eventualmente júri) uma vez que perante o CP o cúmulo jurídico tem como limite máximo a soma material das penas parcelares, no caso 8 anos.
Tratando-se, pelo exposto, esta comunicação feita ao erguido de uma alteração substancial dos factos prevista no art. 359° do CPP não merece a concordância, o acordo do arguido e da defesa que por isso se opõem a continuação do julgamento, que nesta altura mais não seria do que a leitura de sentença, por estes novos factos comunicados alterados, o que expressamente ora se invoca pare todos os devidos e legais efeitos, tal comunicação de alteração dos factos e de qualificação jurídica não pode ser leveda em conta pelo Tribunal pare efeitos de condenação no processo em curso sob pena de se verificar a nulidade prevista no ert. 379° do CPP.
Este estranha solução pragmática adoptada por V. Ex.ª viola assim o princípio do acusatório e do contraditório estabelecidos na CRP esta acusação por crimes diversos e autónomos do que está na acusação baseada em factos uns aí não descritos, existindo um acréscimo de factos, outros alterados traduz uma alteração substancial da acusação que não pode levar a condenação sem o cumprimento da formalidade prevista no art. 359 n°2 o acordo do erguido com a continuação do julgamento pelos novos factos e se estes não determinarem a incompetência do tribunal, acordo e competência que no caso não ocorrem, o que expressamente se invoca pare todos os devidos e legais efeitos.
E neste caso de oposição do erguido e da defesa e o prosseguimento do julgamento depois de comunicada e, assim, indiciada a alteração substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do artigo 359, n°1, julgamos não restar outra hipótese a V. Ex.ª que ordenar o arquivamento de todo o processado, nesse sentido Ac. STJ de 17/12/1997 Acs STJ Vol. V tomo 3, 257, o que expressamente se requer para todos os devidos e legais efeitos.»

g) Depois de o Ministério Público se ter oposto à pretensão do arguido e de ter sido concedida ao assistente o prazo de dois dias para se pronunciar, o que veio fazer opondo-se igualmente à pretensão do arguido, foi designado o dia 13 de Julho pelas 9h30 para continuação da audiência, com leitura da sentença.

h) No dia 13 de Julho de 2009, reaberta a audiência pela M.ª juiz foi proferido o seguinte Despacho:
« Nos termos do art. 1.º, n.º 1, al. f) do CPP, por alteração substancial dos factos entende-se aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A expressão crime diverso não corresponde à de diferente tipo legal de crime, no sentido substantivo, mas antes de crime para efeitos processuais, no sentido de facto diverso dos que integram os limites pré-existentes do objecto do processo, ultrapassando estes (cfr. Ac. do STJ de 03-11-1999, apud MAlA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 16.ª edição, Almedina, 2007, p. 59)
Como se refere no Ac. da RG de 21-05-2007, citando ROBALO CORDEIRO, o conceito de crime diverso é-nos dado por um critério misto normativo-social, que parte da identidade ou coincidência fundamental dos bens jurídicos - logo, dos tipos legais de crime - sem perder de vista as realidades da vida, mantendo-se por isso igualmente atento à valoração social dos factos.
Assim, encontrar-nos-emos perante o mesmo crime quando os factos provados em julgamento, no seu relacionamento com os acusados, dão lugar a uma situação de concurso aparente ou de continuação criminosa, formando, com eles uma unidade em sentido jurídico-­normativo (sem deixar de admitir-se que o crime possa ter-se por "diverso" quando os novos factos imprimirem ao conjunto um tónus social marcadamente distinto); e bem assim nos casos em que se mantém firme a incriminação, embora com alteração dos factos que lhe servem de apoio; alteração, entenda-se, não essencial, por forma que continuam passíveis do mesmo juízo de valoração social.
Em face dos factos comunicados ao arguido, e tendo presente o rigor dos conceitos, é patente a inexistência de crime diverso.
E note-se que, relativamente aos factos justificadores da nova qualificação jurídica, ocorridos em 28/10/2007, os mesmos constavam já da acusação, tendo ocorrido apenas pequenas alterações na redacção dos mesmos.
É também patente a inexistência de agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, como decorre da moldura penal dos crimes em causa.
Estamos, assim, perante uma alteração não substancial dos factos (vide, o Ac. da RP de 28/03/2007, proferido no processo n.º 0710448, pela relatora Élia São Pedro, in www.dqsi.pt. a propósito da pronúncia por crime de ofensa à integridade física de arguido acusado de crime de maus-tratos).
Havendo alteração não substancial dos factos, prevê o art. 358.º do Código de Processo Penal (CPP) que:
1 - (...) [O] presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
(…)
3 - O disposto no n. º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
A comunicação da alteração dos factos terá necessariamente que ocorrer no momento em que, produzida toda a prova requerida e depois de a examinar, o Tribunal conclui que a mesma aponta para uma alteração dos factos descritos na acusação.
Como se refere no Ac. do STJ de 16-06-2005 [a] observância do disposto nos artigos 358.º e 359.ºnão tem tempo específico e preciso para ter lugar. Como resulta da lei e do seu escopo, o que importa salvaguardar é que, no decurso da audiência, seja o arguido colocado perante a possibilidade de o tribunal levar avante uma alteração, substancial ou não, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com o evidente objectivo de lhe assegurar todos os direitos de defesa também quanto à alteração anunciada. Mas tendo em conta o objectivo da lei - que ao arguido seja proporcionada oportunidade de se defender, em plenitude, dessa alteração de factos ­aquele decurso da audiência só termina com a prolação da decisão (proferido no processo n.º 05P1576, pelo relator Pereira Madeira, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, no Ac. da RG de 09/03/2009, pode ler-se que [o] mecanismo previsto no artigo 358 do CPP para o caso de alteração não substancial de factos pode ser desencadeado até à publicação da sentença, pois só com esta se encerra a audiência.
Por tudo quanto se deixou exposto, indefere-se o requerido pelo arguido. Notifique.»
Seguidamente a M.ª juiz procedeu à leitura da sentença.
*
§2. A extemporaneidade das comunicações e alterações efectuadas
Sustenta o arguido que a alteração dos factos foi efectuada de forma extemporânea por ter sido efectuada depois de encerrada a audiência de discussão e julgamento, mas antes da leitura da sentença, quando foi confrontado com uma declaração alterando os factos provados entendendo o tribunal o arguido ter cometido os crimes de ofensa à integridade física simples e ameaça agravada.

Não lhe assiste razão

A lei não indica um momento específico e preciso para o cumprimento da comunicação referida nos artigos 358º e 359º, ambos do CPP.

Por isso que se venha entendendo que os mecanismos previstos naqueles preceitos legais podem ser desencadeados até à publicação da sentença, pois só com esta se encerra a audiência.

Neste sentido veja o Acs do STJ de 16-6-2005, proc.º n.º 05P1576, rel. Pereira Madeira, salientando que “o que importa salvaguardar é que, no decurso da audiência, seja o arguido colocado perante a possibilidade de o tribunal levar avante uma alteração, substancial ou não, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com o evidente objectivo de lhe assegurar todos os direitos de defesa também quanto à alteração anunciada”, e o Ac. da Rel. de Guimarães, de 9-3-2009, proc.º n.º 1045/08-1, rel. Filipe Melo, todos in www.dgsi.pt., o último dos quais citando, ainda, o Ac. do STJ de 26-5-2004, rel. Sousa Fonte, que concluiu que “o tribunal não comete qualquer nulidade ao dar cumprimento ao disposto naquele artigo [358º, n.º1] já depois de produzidas as alegações finais.”

É o que sucede, manifestamente, no caso destes autos, em que, apesar de a alteração dos factos só ter sido comunicada ao arguido após as alegações orais, tal ocorreu antes de encerrada a audiência.

Improcede assim esta arguição de nulidade.
*
§3. A alegada violação do contraditório e das garantias de defesa

De forma pouco clara, o recorrente alega que a alteração dos factos e da qualificação jurídica, depois de encerrada a discussão, “só serviu a celeridade e aproveitamento processual e nega o contraditório, a defesa eficaz e em tempo útil,”

Não tem razão.

Conforme resulta dos autos, nomeadamente da acta de audiência de discussão e julgamento do dia 01/07/2009 (fls.225 a 227), o tribunal a quo proferiu despacho em que manifestou a sua convicção de que resultava indiciada da prova produzida e examinada em audiência, uma alteração dos factos imputados pelo Ministério Público ao arguido, a qual tinha carácter não substancial e de qualificação jurídica e de imediato deu cumprimento ao disposto ao art. 358.°, n.º 1 do C.P.P. ao comunicar ao arguido a respectiva alteração não substancial e qualificação jurídica antes da leitura da sentença, tendo-lhe sido concedido o prazo de 5 dias para preparação de defesa e consequente continuação da audiência de julgamento apenas para o dia 08/07/2009.

Com bem assinala a assistente, na sua resposta, “Com tal procedimento deu-se cumprimento expresso ao princípio do contraditório, pelo que se mostra capciosa a ideia de que o arguido não teve direito a defesa pelo facto do mecanismo presente no art. 358.° do C.P.P. apenas ter sido accionado após a realização das alegais finais.

Contudo, o arguido, agora recorrente, em vez de preparar uma defesa sólida e eficaz, tal como reivindica, apenas defendeu uma alteração substancial dos factos não aceitando a continuação do julgamento e limitou-se, tal como se mostrava bastante conveniente, a solicitar o arquivamento de todo o processo.”

Não ocorreu pois, qualquer violação do princípio do contraditório, nem das garantias de defesa do arguido.
*

§4. Alteração substancial dos factos

Conforme resulta do confronto entre a acusação e a factualidade provada acima transcritas, alguns dos fatos provados constavam da acusação, outros são diferentes dos ali mencionados [assim, por exemplo, da acusação constava que os conflitos do casal se acentuaram “na primeira metade do ano de 2007, designadamente, a partir do momento em que aquela lhe comunicou a sua decisão de pôr termo ao casamento e de se divorciar dele”, enquanto na factualidade provada apenas consta que os desentendimentos e discussões que marcaram o relacionamento do casal “se agudizaram a partir de Novembro de 2006”(n.º4); da acusação constava que “o arguido também acusou por diversas vezes a Cristina V..., quer directamente, quer perante terceiras pessoas, principalmente familiares, amigos e conhecidos, de lhe ser infiel e ter vários amantes e de acordo com os factos provados apenas consta que a acusação de infidelidade foi feita perante o pai da assistente e depois perante a mãe da mesma assistente (n.º19)], e outros, ainda, dela não constavam, de todo em todo [assim, por exemplo a matéria constante dos factos provados n.º 6, 17, 19 ( na parte em que se refere que o arguido disse ao pai da assistente e depois à mãe daquela que esta “não dormia em casa” e “que era puta e vaca”) 20 e 22].

Mas a nulidade da sentença referida no artigo 379º, n.º1 alínea b) do CPP reporta-se apenas à sentença “que condenar” por factos diversos dos constantes da acusação (ou pronúncia) fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º, ambos do CPP (acentuando este aspecto, cfr. o Ac. do STJ de 14-2-1996, BMJ n.º 454, pág. 525).

Assim, no caso de uma sentença simultaneamente absolutória e condenatória e para efeitos do disposto no artigo 379º, n.º1 alínea b) do CPP, com vista a apurar da eventual existência de uma alteração (substancial ou não substancial) ou de uma alteração da qualificação jurídica e da eventual inobservância dos mecanismos previstos nos artigos 358º e 359º, ambos do CPP, a comparação a realizar entre a acusação (ou a pronúncia, se a houver) e a sentença, deve incidir exclusivamente sobre a matéria da condenação (criminal e cível), isto é, sobre os factos relevantes para a existência ou inexistência do crime ou crimes objecto da condenação, para a punibilidade ou não do arguido, para a determinação da pena ou penas, e para a determinação da responsabilidade civil.

Outros factos provados que não se incluam neste núcleo – por respeitarem a factos integrantes de crime ou crimes por que o arguido foi absolvido ou por serem inócuos porque desprovidos de relevância jurídica - mesmo que diversos dos descritos na acusação (ou na pronúncia, se a houver), são juridicamente irrelevantes para efeitos do disposto no citado artigo 379º, n.º1 alínea b) do CPP, por não respeitarem à condenação.

Consequentemente, neste domínio, devemo-nos ater exclusivamente à matéria da condenação, recordando-se que os recursos são remédios jurídicos e não meios ou instrumentos de aperfeiçoamento ou embelezamento de decisões judiciais.

Regressando ao caso dos autos, ao contrário do alegado pelo recorrente, este não foi condenado “por haver discussões, em 2/7/07 ter-lhe erguido a mão e dito até te bato, minha puta, em 29/10/07 ter erguido a mão, em finais de 1007 ter atendido uma chamada no telemóvel do filho e chamado puta.”

Conforme resulta da sentença recorrida, o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física e por um crime de ameaça agravado, ambos cometidos no dia 28 de Outubro de 2007, na estação da CP de Guimarães.

Muito concretamente, o primeiro daqueles crimes foi-lhe imputado por naquele dia 28-10-2007, o arguido, livre voluntária e conscientemente, ter desferido um empurrão no ombro esquerdo da vítima quando esta se encontrava no interior da sua viatura automóvel, estacionada naquela, em consequência do que lhe causou “dores corporais nas zonas do corpo atingidas” (factos provados n.ºs 9, 11, 13, 23 e 24).

Todos aqueles factos constavam expressamente da acusação, sob os n.ºs 17 (“No dia 28/10/2007), 19 (“Quando chegou a Guimarães, cerca das 19h35, dirigiu-se ao parque de estacionamento da Código Penal e entrou no veículo automóvel que ali havia deixado estacionado”), 22 (“o arguido introduziu a mão direita pela janela e empurrou-a com força, atingindo-a no ombro direito … provocando-lhe dores corporais nas zonas do corpo atingidas”, 29 (“Com as descritas afirmações, perseguições, telefonemas e agressões corporais o arguido actuou com o propósito conseguido de intimidar a Cristina V... e de a atingir na honra, consideração social e integridade física e, desta forma de a amedrontar, perturbar psicologicamente, de a humilhar, espezinhar, subjugar e de lhe causar um estado de medo, angústia e sofrimento físico e psicológico para satisfação dos seus instintos agressivos pelo facto de ter sido sua mulher, com total desprezo pelo respeito a ela devido enquanto pessoa humana) e 30 (“Agiu de vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida”).

Por outro lado o crime de ameaça imputado ao arguido reporta-se à afirmação feita por ele, naquele mesmo dia e local, dirigindo-se à assistente em tom agressivo: “vou-te mandar para o cemitério” (factos provados n.ºs 14, 23 e 24)

Estes factos constavam já da acusação sob o n.º 23 (“Para além disso, o arguido ainda afirmou em tom de voz…agressivo, …vou-te matar, vais para debaixo de terra”), 29 e 30.

Quando a este episódio a divergência entre a matéria de facto provada e a que constava da acusação, no que se refere aos factos provados reside apenas no seguinte: enquanto na acusação constava a expressão ”vou-te matar, vais para debaixo de terra”, na sentença consta antes “vou-te mandar para o cemitério”

Conclui-se, assim que:
a) no primeiro caso, isto é quanto aos factos integradores do crime de ofensa à integridade física, não houve qualquer alteração de factos uma vez que todos eles constavam já da acusação.
b) na segunda situação, ocorreu uma simples alteração não substancial, aliás sem qualquer relevo para a decisão da causa uma vez que dizer-se a alguém, no modo e circunstancialismo apurado, “vou-te mandar para o cemitério” tem um mesmo e claro significado de ameaça de morte. Como quer que seja, nesta parte, foi cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 358º

É certo que o arguido foi acusado da prática de um crime de violência doméstica e veio a ser condenado por um crime de ofensa à integridade física e por um crime de ameaça agravado.

Simplesmente entende-se que estamos perante uma mera alteração da qualificação jurídica.

Transcreve-se o teor do artigo 152º do Código Penal, na parte relevante para estes os autos:
Artigo 152.º
Violência doméstica
1. Quem, de modo reiterado ou não inflingir maus tratos físicos ou psíquicos incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco ano, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”
2. No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)


Como bem se assinala na sentença recorrida no crime de violência doméstica as condutas típicas podem elas próprias integrar diversos tipos legais, nomeadamente ofensas corporais voluntárias simples, ameaças, etc.

Na verdade o tipo objectivo “inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal” (Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, Lisboa, 2008, pág. 405, anotação 4).

“Os ‘maus tratos físicos’ correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os ‘maus tratos psíquicos’ aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas” (Pinto de Albuquerque, op. cit., anotação 7, citando no mesmo sentido Catarina Sá Gomes, Fernando Silva e Sá Pereira e Alexandre Lafayette).

Já anteriormente, perante o crime de maus tratos previsto no artigo 152º do Código Penal na redacção anterior à que lhe foi conferida pela Reforma de 2007, o Prof. Taipa de Carvalho salientava que “as condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.) (…)”- Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra, 1999, pág. 333,§8.

Quando o acto integra simultaneamente o tipo do artigo 152º (violência doméstica) e o tipo ou tipos dos artigos 143º (ofensa à integridade física) e 153º (ameaça), o agente não é punido pelos vários crimes.

Conforme constitui doutrina estabilizada, entre o crime de violência doméstica e os crimes, entre outros, de ofensa à integridade física e de ameaças que o integram, ocorre uma relação de concurso aparente, ou de mero concurso de normas.

Como refere o Prof. Pinto de Albuquerque, “O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. Tratando-se de crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos, a violência doméstica encontra-se numa relação de subsidariedade expressa (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”) – Comentário do Código Penal, cit., págs. 406-407, anotações 19 e 20.

Também o Prof. Taipa de Carvalho salientava:
“§ 16 Entre o crime de maus tratos físicos ou psíquicos (art. 152°-1 a)) e o crime de ofensas corporais simples (art. 143°-1) existe uma relação de espe­cialidade, só se aplicando, portanto, a pena estabelecida para aquele. O mesmo se diga da relação entre o crime de maus tratos (psíquicos) através de amea­ças (art. 152°-1 a) 2a parte), e o crime de ameaça (art. 153°), de difamação (art. 180°) ou de injúria (art. 181°), em que também o concurso é aparente, cedendo estes àquele.
§ 17 Entre o crime de maus tratos e o crime de ofensas corporais graves (art. 144°) há uma relação de consunção, aplicando-se somente a pena prevista para este crime” (Comentário Conimbricence, cit., tomo I, pág. 16.

No mesmo sentido se pronunciaram Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ªed. Lisboa 2007, pág. 113 (aludindo apenas há existência de um concurso aparente), Catarina Sá Gomes, O Crime de Maus Tratos Físicos e Psíquicos Infligidos ao Cônjuge ou ao Convivente em Condições Análogas às dos Cônjuges, Lisboa, AAFDL, 2002, págs. 103-104 e Fernando Silva, Direito Penal especial -Crimes contra as pessoas Lisboa, Quid Juris, 2005, págs. 290-291.

Entre as normas que punem o crime de violência doméstica e de ofensa à integridade física e de ameaça intercede, pois, uma relação de especialidade por toda a matéria de facto subsumível à norma especial (artigo 152º), caber inteiramente no âmbito mais vasto da norma geral (artigos 143º/ 153º), sendo a primeira especial relativamente à segunda prevalecendo, por isso, aquela sobre esta.

Pode, porém, suceder - como aconteceu no caso em apreço - que os comportamentos em causa integrem os crimes de ofensa à integridade física e de ameaça e, não obstante, não satisfaçam o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (Maria Manuela Valadão e Silveira, “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) que fundamentam a especificidade deste crime. Nestes casos, como é bom de ver, apenas há que aplicar as normas gerais.

No caso em apreço, o bem jurídico protegido pelo tipo incriminador imputado na acusação abrangia já os bens jurídicos protegido pelos tipos criminais por que o arguido foi condenado.

Os factos considerados provados e que integram os crimes porque o arguido foi condenado representam de algum modo um minus relativamente ao arrazoado constante da acusação (cfr. para um caso paralelo, anterior à Reforma de 2007, o Ac. da Rel. do Porto de 28-3-2007, rel. Élia São Pedro e Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17ªed., Coimbra 2005, pág. 551, onde assinala que “concorrendo este crime com o de ofensa à integridade física simples, normalmente este último ficará consumido pelo primeiro porque, coincidindo nos seus elementos descritivos, representa em relação a ele um minus”).

Não estamos, assim, perante uma alteração substancial dos factos, como pretende o recorrente.

A alteração substancial dos factos, à semelhança da alteração não substancial, é uma alteração de factos.

Os factos que integram o crime de ofensa à integridade física e de ameaça agravada (este último com uma simples diferença de redacção e que provocou o cumprimento do disposto no n.º1 do artigo 358ºdo CPP) constavam, todos eles, da acusação pública e integravam o crime de violência doméstica.

O que ocorreu foi uma simples alteração da qualificação jurídica da que fora indicada na acusação, decorrente da circunstância de não se ter provada toda a factualidade constante daquela acusação.

Ora, uma alteração da qualificação jurídica sem que haja qualquer modificação dos factos constantes da acusação não está submetida ao regime do artigo 359º do Código de Processo Penal, mas antes ao regime do artigo 358º, n.º3 do mesmo Código – cfr. Acs do STJ de 8-1-1992 e de 27-5-1992, in Col. de Jur. ano XVII, tomo 1, pág. 5 e tomo 3, pág. 40 e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, Lisboa, 2007, págs. 37-38

No caso foi observado o disposto no artigo 358º, n.º3 do CPP.

Por isso que improceda a arguida nulidade.
*
5. Nulidade de sentença por omissão de pronúncia
§1. Segundo o recorrente, “Relativamente à insuficiência e erro na apreciação da prova menciona-se a total ausência de menção, como sucedeu com o depoimento da testemunha dono do café, também aqui acerca do depoimento concludente da Lucinda G..., acerca das personalidades do arguido e da assistente, era determinante uma pronúncia no texto decisório, omitindo tal pronuncia incorre a sentença nos vícios acima descritos” (conclusão 30ª).

Na motivação, o recorrente afirma em jeito conclusivo a existência de “um vício na sentença, nos termos do disposto nos artigos 379º, n.º1, alíneas b) e c) e 410º, n.º3 do Código de Processo Penal (CPP) que acarreta a nulidade da mesma”(fls. 318).
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§2 Nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 379º do Código de Processo Penal a sentença é nula “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento.”
Conforme o STJ tem vindo a entender “A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença. E não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou” E não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou” (Ac. de 11-12-2008, proc.º n.º 08P3850, rel. Simas Santos; cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 19-11-2008, rel. Santos Cabral, proc.º n.º 08P3776, rel. Santos Cabral, com diversas referências jurisprudenciais, ambos in www.dgsi.pt. e a demais jurisprudência referida por Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. 946).

Também em processo civil, quanto ao conceito de questão constante do artigo 660º, n.º2 do Código de Processo Civil, o Cons.º Rodrigues Bastos assinala que de tal conceito “(…)devem arredar-se os 'argumentos' ou 'raciocínios' expostos na defesa da tese de cada uma das partes, que podendo constituir 'questões' em sentido lógico ou científico, não integram matéria decisória para o juiz (…)”, explicitando de seguida que “(...) as questões sobre o mérito a que se refere este n.° 2 serão as que suscitam a apreciação quer da causa de pedir apresentada, quer do pedido formulado. As partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a 'questão' da procedência ou da improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa (....)” (Notas ao CPC, vol. III, 3ª ed., pág. 180).
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No caso em apreço as questões ou problemas concretos a decidir consistiam na responsabilização jurídico-criminal do arguido, na sanção a aplicar-lhe e na sua responsabilidade civil.

Todas estas questões ou problemas foram equacionados pelo tribunal que sobre todas elas se pronunciou.

A falta de referência ao depoimento da “testemunha dono do café” e ao “depoimento concludente da Lucinda G..., acerca das personalidades do arguido e da assistente”, não constitui, pois, qualquer omissão de pronúncia.

A falta de referência àqueles depoimentos apenas poderia, eventualmente, constituir a nulidade prevista na alínea a) do artigo 379º do CPP, isto é falta de exame crítico da prova mas, como é há muito jurisprudência corrente, incluindo desta Relação, o referido normativo não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova em relação a cada elemento de facto dado como assente (cfr. v.g. os Acs. do STJ de 9-1-1997, Col. de Jur-Acs do STJ ano V, tomo 1, pág. 181e de 30-6-1999, in SASTJ, n.º32, 92) sendo certo que o Tribunal Constitucional já afirmou que tal interpretação não viola os artigos 205º, n.º1 e 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República -cfr. Ac. n.º 258/01,in www.tribunalconsttitucional.pt), como “também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível” (ac. do STJ de 30-6-1999, in SASTJ, n.º32, 92).

Improcede, pois, a arguida nulidade.
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6. As questões da Insuficiência da matéria de facto, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, n.º2, alíneas a), b) e c) do CPP].
§1. Como é sabido os conceitos de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e de “erro notório na apreciação da prova”, constantes da alíneas a) e c) do n.º 2 do citado artigo 410º, foram já suficientemente trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.

À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que:
a) só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se faz a formulação incorrecta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.

Como se observou no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. Cons.º R. Costa):
“A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”

b) A questão da contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão [artigo 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal] traduz-se numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão ”(Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 63), podendo configurar-se de três modos distintos:
· “(…) contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrá­ria àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclare­cedora, face à colisão entre os fundamentos invocados;
· “(…) contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja opo­sição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada;
· “(…) contradição entre os fac­tos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluirem-se mutuamente” (Recursos, op. cit., pág. 64).

"Por contradição, entende-se o facto de se afirmar ou negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se por proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na qualidade ou na quantidade.
Para os fins do preceito (…) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todos por si ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados" - Leal Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, Vol.2º, 2ª ed., 2000., p. 739;

Na síntese do Ac. do STJ, de 3 de Julho de 2002, proc.º n.º 1748/02 - 3.° Secção, relatado pelo Exmo Conselheiro Dr. Armando Leandro, o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na alínea b) do n.º 2 do art. 410º do C.P.P., verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados ou não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal.

Ela ocorre quando se dá como provado e não provado o mesmo facto, quando se afirma ou nega a mesma coisa ao mesmo tempo, ou quando se dá como provado determinado facto e a fundamentação é contrária ao facto.

É evidente que esse vício só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

c) O “erro notório na apreciação da prova” é a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 65 a 69, estes últimos com amplas referências jurisprudenciais).

Por outro lado, conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra).
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§2. À luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais que acima deixámos mencionados, é forçoso reconhecer que nenhuma lacuna existe ao nível da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito a que o tribunal recorrido chegou.

Por outro lado, não pode dizer-se que o tribunal tenha deixado de investigar toda a matéria com interesse para a decisão final.

O tribunal investigou tudo o que podia e conseguiu investigar dentro do objecto do processo, tal como ele foi delimitado pela acusação e pela defesa, sendo que se não vislumbra que a prova produzida em audiência justificasse qualquer outra investigação suplementar, que o recorrente, de resto, se absteve de mencionar.

Como se fundadamente se afirmou no Ac. da Rel. de Lisboa de 18-1-2008, proc.º n.º 7071/2005-3, rel. Carlos Almeida in www. dgsi.pt:
«A ‘insuficiência para a decisão da matéria de facto provada’, vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, refere-se à possibilidade de se basear na matéria de facto assente uma decisão jurídica, ou seja, relaciona a matéria de facto com a de direito e não [como pretende o aqui recorrente] a prova produzida e valorada em audiência com a decisão de facto proferida. A ‘insuficiência para a decisão da matéria de facto provada’ não significa, de forma alguma, insuficiência da prova produzida e valorada em audiência para a decisão de considerar provados determinados factos»

Não ocorre, por conseguinte, o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Também se não vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova.

Aliás, analisadas as conclusões bem com a respectiva motivação logo se conclui que o recorrente incorre numa confusão muito frequente. Na verdade o que recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova pessoal produzida, ou seja, o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova.

Aliás, o recorrente confunde claramente o vício do erro notório que invoca com o erro de julgamento, que existe “quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que tivesse sido feita prova do mesmo e como tal deveria ter sido considerado como não provado; ou quando se dá como não provado um facto, que em face da prova produzida, deveria antes ter sido considerado provado” (cfr. Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, pág. 909, com numerosas referências jurisprudenciais).
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§3. Analisemos, agora, as alegadas contradições, começando pelas que ocorreriam entre os factos provados e não provados.

Relembra-se que segundo o recorrente “Alguns factos não provados estão em contradição com os factos provados, insanavelmente, o provado em 20 com o não provado em n) um mesmo episódio é simultaneamente dado como provado e como não provado.”

Analisando e comparando a matéria de facto provada e não provada não se vislumbra contradição alguma.

Especificamente sobre o ponto referido pelo recorrente, não existe qualquer contradição entre o facto provado sob o n.º 20 [“No dia 29/10/2007, quando a Cristina V... foi com os seus pais a casa do arguido buscar os filhos, gerou-se uma discussão entre ambos, tendo o arguido erguido a mão com a intenção de a atingir, só não o conseguindo devido à intervenção do pai da Cristina V...”] e o facto não provado sob a alínea n) [Desde o início de Novembro de 2007, o arguido impediu que os menores viessem com a Cristina V... para casa desta quando ela os foi buscar a casa dele, ao mesmo tempo que fazia movimentos e gestos com os braços para a agredir corporalmente, só não o tendo conseguido devido à intervenção do pai desta, e afirmava “vai-te embora que eles daqui não saem”].

Para o efeito, basta ter em consideração que os factos provados sob o n.º 20 ocorreram em 29 e Outubro de 2007 e aqueles que se consideraram não provados teriam supostamente ocorrido “desde o início de Novembro de 2007”.

Como bem conclui o Ministério Público, na resposta ao recurso: “Porque situados em concretização de datas distintas e não interceptáveis, torna-se evidente que não se verifica a invocada contradição”
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§4. As demais contradições
a) Segundo o recorrente “Outras contradições insanáveis conduzem à sua nulidade, o provado em 18 que alicerça a condenação por crime de ameaça, a fls. 19 refere tal facto provado “irrelevante” porque se não sabe a data em que ocorreu, e, por nada se ter provado acerca da sua transmissão da mãe à assistente, concluindo a Mma Juiz que nem se está perante um crime de ameaça... (conclusão 31ª)

Mas basta ler o que diz o facto provado sob o n.º 18 [Em dia concretamente não apurado, mas depois de 23/07/2007, o arguido disse à mãe da Cristina V... que havia de se vingar dela e que a havia de a pôr no cemitério] para logo se concluir que não existe qualquer contradição. porque contrariamente ao que afirma o recorrente não foi com base em tal facto que foi condenado pela prática de um crime de ameaça agravada.

Os factos que estão na base da condenação do recorrente são unicamente - insiste-se - aqueles que ocorreram no dia 28 de Outubro de 2007, na estação da CP de Guimarães, envolvendo o arguido e a assistente.

b) Se bem compreendemos o recorrente, este sustenta a existência de uma contradição entre a circunstância de uma expressão não poder ser considerada grave para configurar um crime de violência doméstica e simultaneamente poder integrar um crime de ameaça agravada.

Parece ser esse o significado a extrair do teor da conclusão 36ª [“No que tange ao crime de ameaça agravada, considera a Mma Juiz que a expressão vou-te mandar para o cemitério referida no ponto 14.º provado, apesar da ausência da excepcional violência e gravidade para configurar um crime de violência doméstica, com consequências de pouca gravidade, num contexto de exaltação de ânimos, pela ruptura conjugal, sem a virtualidade de atribuir a gravidade que não tem, a não justificar pena reforçada, dizer agora susceptível de ser entendida como reportada a uma agressão futura adequada a causar na assistente medo ou inquietação e prejudicar a sua liberdade de determinação, constitui uma contradição insanável, tanto mais que se reforça a incriminação do arguido através ameaça agravada, apesar relembre-se da ausência de excepcional violência e gravidade”].

Inexiste, porém, a apontada contradição, conforme decorre de tudo quanto deixámos exarado no precedente n.º4. e será ainda analisado em sede de enquadramento jurídico.
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7 A Impugnação da matéria de facto (n.ºs 6, 7, 8, 9, 16, 17, 19, 20)
§1. O recorrente pretende impugnar a matéria de facto constante dos n.ºs 6, 7, 8, 9, 16, 17, 19 e 20
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§2. Dado que no caso houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição integral, pode o tribunal de recurso reapreciá-la na perspectiva ampla prevista no art. 431º do C. P. Penal.

Com efeito, estatui o citado preceito que “Sem prejuízo do disposto no art. 410°, a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser modificada (…): b) Se, a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º3 do artigo 412º(…)”.

No entanto, ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como já em diversos lugares salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal que justamente introduziu o recurso também em matéria de facto nos crimes julgados perante tribunal colectivo:

- “E o recurso não é tudo, é um remédio para os erros, não é novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol.II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Por isso também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e sobretudo que tenha de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol I, Coimbra 2001). No mesmo sentido cfr. José Manuel Damião da Cunha, A Estrutura dos Recursos na proposta de Revisão do CPP-Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260 onde salienta a exigência formulada ao recorrente para apresentar os pontos de facto que mereçam a censura de “incorrectamente decididos”; Id., O Caso Julgado Parcial, Porto, 2002, especialmente a págs. 516, 527, 529 e 567,

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º, n.º l do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria - cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP.

Dever esse que não se basta com a remissão mais ou menos genérica para os depoimentos prestados em audiência, devendo especificar, ponto por ponto, não só os pontos que se reputam de indevidamente decididos, como ainda quais as provas que deveriam levar a decisão diversa, por referência aos suportes técnicos, no caso de ter havido gravação.

Como se salientou no Ac. desta Rel. de Guimarães de 20-3-2006, proc.º n.º 245/06-1ª, rel. Fernando Monterroso, in www. dgsi.pt , depois de se citar o Prof. Germano Marques da Silva, quando refere que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância:

«Não concretiza aquele Professor a que vícios se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.
Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em a B souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, voI. I, ed.1974, pago 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal". E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss.
O art. 127 do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Tudo o que ficou dito está em harmonia com as normas processuais que regulam o recurso em matéria dt facto.
Dispõe o art. 412º n.° 3 do CPP:
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; e
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) ....
Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que “permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.»
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§3. É, pois, face a este enquadramento geral que deverá ser apreciada a pretensão do recorrente.

A este respeito impõem-se algumas notas prévias.

a) A primeira para salientar que, contrariamente ao que pretende o Ministério Público na sua resposta, a forma deficiente como o recorrente deu cumprimento ao disposto no artigo 412º, n.º3 alínea b) e n.º 4 do CPP, não provoca sem mais a rejeição do recurso em matéria de facto,

Nos termos do n.º3 do artigo 416ºdo CPP, na redacção que lhe foi conferida pela recente Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em vigor desde 15 de Setembro passado, se a motivação do recurso não contiver conclusões o relator convida o recorrente a apresentar as conclusões no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado.

Esta norma é fruto de uma longa evolução jurisprudencial que culminara com a afirmação pelo Tribunal Constitucional, da necessidade de convite à apresentação das conclusões em falta (cfr. Acs do Tribunal Constitucional n.º 323/2003 e 428/3003, ambos in www.tribunalconstitucional.pt ).

No caso em apreço, porém, entende-se que nem sequer se justifica o aludido convite ao aperfeiçoamento.

Como se refere nos Acs. do STJ de 6.12.2007, proc. 07P3316 e de 20.10.2005, proc. 2431/05.5, ambos citados no parecer da Exmª PGA:
"Mas essas deficiências são uma constante dos recursos ( ... ), tendo este Tribunal enveredado pela via de procurar, com esforço adicional, perscrutar o fundamento e objecto do recurso a partir do arrazoada apresentado pelos recorrentes, mesmo sem dirigir um convite que na maior parte das vezes não é completamente correspondido", pelo que "em vez de um pretenso convite à correcção (…) opta o Supremo Tribunal por conhecer, assim mesmo, do recurso, responsabilizando quem o deve ser pela apontada deficiência, ao respectivo recorrente devendo ser imputadas as eventuais nefastas consequências de a sua pretensão não ser entendida nas melhores condições (...) "

Também Vinício Ribeiro, em Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 944, refere "Parece-nos na prática dispensável o convite (sem que isso implique, obviamente, qualquer rejeição), nomeadamente - e sobretudo por razões de economia e celeridade - em casos de processos pouco volumosos ou complexos, nos quais se apreende, facilmente, a pretensão do recorrente pela mera leitura da motivação."

Há muito que é esta, de resto, a prática judiciária desta Relação de Guimarães, como se colhe, entre muitos outros, do acórdão de 7-7-2004, proc.º n.º 1115/04, rel. Nazaré Saraiva in www.dgsi.pt e dos relatados pelo relator do presente nos processos n.º 734/07-1, 2560/08, 80/06, 55/08, 349/07).

Por isso também, neste caso entendemos que sendo perceptíveis as razões, os argumentos e o pedido do recurso, nada obsta à sua apreciação, não se justificando o convite.

b) A segunda nota para frisar que a nossa apreciação recairá apenas sobre os factos impugnados atinentes à matéria que fundamentou a condenação do arguido pela pratica dos crimes de injúrias e de ameaça agravada, desprezando a impugnação dos demais factos porque jurídico-criminalmente inócuos. O arguido foi condenado, repete-se pela prática de um crime de injúrias e de ameaça agravada e só quanto a esta matéria tem legitimidade para recorrer, não também quanto à matéria integrante do crime por que foi absolvido
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§4. Feitas estas duas ressalvas, analisemos agora a impugnação em causa.

Vejamos a argumentação do recorrente.
No que se refere aos factos ocorridos no dia 28 de Outubro de 2007 na parque de estacionamento da estação da CP, analisando a motivação e as conclusões do recurso constata-se que o recorrente não alega que a descrição que a sentença faz do conteúdo das declarações e dos depoimentos das testemunhas, não corresponde ao que na realidade disseram aqueles declarantes e testemunhas.

Refere o recorrente que “não consegue entender como pode a Mm.ª Juiz ‘a quo’ descrever que as testemunhas Rosa e Fernando apenas confirmaram troca de palavras ... quando estes negaram peremptória e categoricamente a existência de quaisquer agressões, injúrias e ameaças (cfr. dvd 20090506112839 min. 12,00, mino 29,56 e min. 46.04), (cfr. 20090604101807 min.12,00 e mino 25.34).”

Sugere-se, insinua-se que aquelas testemunhas não disseram o que a M.ª juiz relatou terem dito.

Mas, o que a M.ª juiz consignou na motivação da sentença é coisa bem diversa:
«O sucedido no parque de estacionamento da estação dos caminhos de ferro foi referido apenas pela assistente. A testemunha Lucas M... não prestou declarações e tanto o arguido como as testemunhas Rosa e Fernando D..., seu primo, confirmaram apenas que, nesse dia, tinham ido ao Porto de comboio e que, à chegada, se cruzaram com a assistente no parque de estacionamento da estação, tendo ocorrido troca de palavras entre a assistente e o filho Lucas, bem como entre aquela e o arguido, negando sempre, contudo, a existência de qualquer agressão, injúria e/ou ameaça.»

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§5. O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.

Por um lado, pretende retirar qualquer valor probatório ao depoimento da ofendida, alegando que “e a única testemunha que podia confirmar ou infirmar as versões da ofendida diametralmente oposta da do arguido e das suas testemunhas Rosa e Fernando D... era o filho Lucas mas optou por não prestar declarações” e que “A única não seria porque não se compreende que tendo ocorrido um episódio destes à saída do comboio e a ofendida não consiga arrolar nenhuma testemunha, uma só que fosse de dezenas, senão centenas, que também deviam estar a sair do comboio em direcção ao estacionamento.”

Por outro lado proclama que “não aceita (…) ser condenado por facto sentenciado só com base nas declarações da ofendida e no que esta contou/disse as suas testemunhas, não aceita que as suas declarações por si só prevaleçam sobre a versão do arguido, sem nunca lhe explicar porque não se dá crédito à sua versão, limitando-se a justificar que este se limitou a contar uma versão que não envolvesse qualquer agressão ameaça ou injúria, sem explicar-lhe em que se fundamenta concretamente tal conclusão e não aceita que prevaleçam sobre as suas testemunhas que estiveram presentes, o que tudo o recorrente julga ser inédito e sobretudo injusto.”

O ataque à decisão da matéria de facto realizado pelo recorrente é deste modo, feito pela via da credibilidade que o tribunal deu a determinados meios de prova.

No fundo o que o recorrente faz é invocar erro de julgamento na apreciação da prova.

A este nível compete-nos avaliar se a decisão do julgador, é ou não uma solução plausível segundo as regras da experiência, sendo que em caso afirmativo ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Ora, antecipando a conclusão dir-se-á desde logo que a opção levada a cabo pelo julgador não foi feita de forma caprichos ou arbitrária. Pelo contrário, mostra-se plenamente objectivada e com absoluta transparência.

Diga-se, desde já que argumentação do recorrente não procede.

A circunstância de a principal testemunha, de quem podia esclarecer cabalmente os factos, por os ter presenciado, não o fazer por se recusar legitimamente a depor dado que é filho da assistente e do arguido, não reforça nem diminui a credibilidade das declarações da assistente.

Depois a referência às dezenas ou centenas pessoas “que também deviam estar a sair do comboio em direcção ao estacionamento”, para além de ser uma referência meramente hipotética, uma vez se não provou, constitui, salvo o devido respeito, pura exercício de retórica.

Lendo a motivação da decisão de facto, facilmente se constata que foram essenciais à formação da convicção do tribunal as declarações da assistente, que o recorrente pretende a todo o custo desvalorizar.

Contrariamente ao que o recorrente proclama quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação, cfr., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357)].

No caso em apreço, conforme resulta da motivação da decisão de facto, o Tribunal recorrido deu credibilidade às declarações da ofendida fazendo consignar, expressamente, que as mesmas “mereceram o crédito do Tribunal por se afigurarem claras, sinceras, coerentes, conformes com as regras da experiência e da normalidade do acontecer e, ainda, por terem sido corroboradas por prova testemunhal a quem, aquela, na frescura dos acontecimentos, relatou o sucedido.”

Nada, rigorosamente nada, permite retirar àquelas declarações a credibilidade que a M.ª Juiz lhes emprestou.

Como se salienta no no douto Ac. do STJ de 27-2-2003, proc.º n.º140/03, rel. Cons.º Carmona da Mota :
II O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade. III A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. IV. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".

As declarações da ofendida não possuem incongruências, contradições, falhas de memória, inexactidões ou hiatos que sejam adequados a suscitar dúvidas sobre a sua veracidade.

Por outro lado e contrariamente ao que o recorrente proclama, no caso em apreço a prova produzida não se limita exclusivamente às declarações da assistente.

Esquece o recorrente que a sua presença no local e a troca de palavras com a assistente foi corroborada pelas testemunhas Rosa e Fernando Hélder, que a versão da assistente foi corroborada pelas testemunhas Esmeralda C..., Laurinda V. e Joaquim, a quem, no próprio dia contou o sucedido, e que este último no dia seguinte procurou o arguido, procurando explicações para o sucedido na véspera.

Conclui-se, deste modo, que a sentença recorrida expôs de forma clara e segura os elementos de facto que fundamentam a sua decisão, o processo lógico que lhe subjaz, optando por uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença, conforme é corroborado pela audição dos respectivos registos magnetofónicos não se detectando nenhum erro patente de julgamento, nem tendo sido utilizados meios de prova proibidos.

Por isso que tal decisão seja inatacável, porque proferida de acordo com a sua livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal).

E porque o recorrente repetidamente afirma não aceitar ser condenado por facto sentenciado só com base nas declarações da ofendida e no que esta contou/disse às suas testemunhas, não aceita que as suas declarações prevaleçam sobre a versão do arguido nem sobre as suas testemunhas, o que tudo julga ser inédito, terminam-se estas considerações com a transcrição da seguinte síntese conclusiva constante do Ac. T.C. 198/2004 de 24-03-2004 (DR, II Série, de 2-6-2004), que não podemos deixar de subscrever:

"A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão" (itálico nosso).

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8. Enquadramento jurídico-penal
§1. Conforme parece depreender-se das conclusões o recorrente questiona o enquadramento jurídico constante da sentença recorrida

Recorda-se o teor das conclusões 34º e 35º:
“ 34. O mesmo tratamento foi dado aos acontecimentos relatados em 6.º e 8.º da matéria de facto provada, com consequências de pouca gravidade, que não justificam uma pena reforçada, não aceita o recorrente ser condenado por crime de ameaça agravada, quando remata a Mmª Juiz que não pode olvidar que tais factos ocorreram em circunstâncias temporais determinadas, num contexto de exaltação de ânimos, envolvendo pessoas acabadas de vivenciar uma situação de ruptura conjugal, não tendo a virtualidade de atribuir aos factos a gravidade que os mesmos isoladamente não tem e da qual não se pode prescindir para se considerar posto em causa o bem jurídico pretendido, devendo o arguido ser absolvido do crime que lhe vinha imputado.
35. Para justificar o crime de ofensa à integridade física, qualifica os factos de 28/10/2007, como mau trato no qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante, que provoque uma ofensa na saúde (21/35). Mas a sentença descreveu paradoxalmente a agressão como um empurrão desprovido de excepcional violência e gravidade suficiente exigível para poder configurar o crime de violência doméstica, insignificante, portanto, para ser enquadrável na ofensa à integridade física. Nem nenhum relatório médico consta dos autos a descrever a existência de dano no corpo, lesão na saúde, as dores resultam das únicas declarações da ofendida, até porque nem os pais mencionaram que a filha tivesse ficado lesionada ou com dores.”

Nenhuma razão lhe assiste.
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§2. O bem jurídico tutelado pelo crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal é a integridade física da pessoa humana.

Trata-se de um crime material e de dano cujo tipo abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou da saúde de outrem – Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo I, Coimbra, 1999, pág. 203, §4.

No caso em apreço, é inequívoco que o arguido causou uma ofensa no corpo da assistente. Na verdade, conforme resultou provado, quando a assistente se encontrava a falar com o filho Lucas, foi abordada pelo arguido, que se aproximou do vidro da porta do condutor, introduziu a mão direita pela janela e empurrou-a, atingindo-a no ombro esquerdo.

O tipo legal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente de dor ou sofrimento físico, de qualquer lesão externa, de aleijão ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17ª ed., Coimbra, 2005, pág. 524, Comentário Conimbricence, cit., Tomo I, pág. 205, §8, Fernando Silva, Direito Penal Especial - Crimes contra as pessoas, Lisboa 2005, pág. 216, Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ªed, Lisboa, 2007, pág. 89 e o Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 18-12-1991, in DR. série I-A, de 8 de Fevereiro de 1992, segundo o qual “Integra o crime do art. 142ºdo Código penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.”

In casu, a questão está de resto ultrapassada uma vez que conforme também resultou provado o arguido, em consequência daquele empurrão provocou-lhe “dores corporais nas zonas do corpo atingidas”, isto é no ombro esquerdo.

É certo que a ofensa no corpo não pode ser insignificante.

Como explicava o Cons.º Maia Gonçalves, em comentário ao citado artigo 143º, “As ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insignificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a ultima ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo de minimis non curat paetor

Mas, à luz de critérios objectivos (duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade de tutela penal), sem perder de vista, também, factores individuais (Comentário Conimbricence, cit., Tomo I, pág. 207, §12) a situação dos autos não pode, de todo em todo, ser qualificada de insignificante.

Note-se que o empurrão foi dado na pessoa da ex mulher do arguido, de quem o arguido se encontrava divorciado desde 23 de Julho de 2007, acompanhado de injúrias e de ameaça [“minha puta, minha vaca, empurraste-me os filhos, estragaste-me o fim de semana; vou-te mandar para o cemitério”].

Por outro lado, o referido empurrão não só provocou dores na ofendida como foi dado quando esta se encontrava no interior de um veículo automóvel, sentada ao volante, o que implicou que o arguido tivesse introduzido a mão pela janela, o que tudo fez na presença do filho de ambos.

Finalmente, o tipo legal em causa exige o dolo em qualquer das suas modalidades (artigo 14º do Código penal) e também nos caso dos autos se provou que o arguido com dolo directo [“Com as descritas afirmações e agressão corporal, o arguido actuou com o propósito conseguido de intimidar a Cristina V... e de a atingir na honra, consideração social e integridade física e, desta forma, a amedrontar e causar sofrimento físico e psicológico. Agiu de vontade livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida”].

Mostram-se, pois, reunidos todos os elementos constitutivos do crime do crime de ofensa à integridade física do arguido, conforme fora já, de resto, eloquentemente demonstrado na sentença recorrida.

Duas notas finais, apenas para esclarecer o recorrente de que dos artigos 124º, 125º e 127º, todos do Código de Processo Penal se extrai o princípio geral de que em processo penal se pode usar qualquer meio de prova (Ac. do STJ de 20-6-2001, Col. de Jur. ano IX, tomo 2, pág. 221) pelo que a lei não impõe que a existência de exame médico para descrever a existência de ofensa no corpo sobretudo quando, como sucede no caso dos autos, não foram produzidas lesões, e que nada obsta legalmente que o tribunal fundamente a existência de dores com base nas “únicas declarações da ofendida.”
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§3. Quanto à expressão “vou-te mandar para o cemitério”, proferida pelo arguido no circunstancialismo que ficou apurado, já referimos que a mesma tem um claro e nítido significado de ameaça de morte.
E esse significado em nada é prejudicado pela circunstância de tais palavras terem sido proferidas “num contexto de exaltação de ânimos envolvendo pessoas acabadas de vivenciar uma situação de ruptura conjugal.”

Assim, também, o entendeu - e bem – a M.ª juiz a quo, a qual, na decisão recorrida, depois de discorrer com brilho sobre o bem jurídico protegido pela incriminação em causa (liberdade de decisão e de acção), sobre os elementos constitutivos do crime, nomeadamente o critério de adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação, assinala que:

“In casu, a expressão vou-te mandar para o cemitério, referida no ponto 14 dos factos provados, é susceptível de ser entendida como reportada a uma agressão futura e adequada a causar, na assistente, medo e inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, como efectivamente aconteceu.
Face à conduta do arguido, o homem médio, colocado no lugar da assistente, recearia pela sua vida.
Actuou o arguido, de forma livre e consciente, com o propósito conseguido de intimidar e amedrontar a assistente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida.
Inexistem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Nesta medida, encontrando-se preenchidos todos os elementos constitutivos, forçoso se torna concluir que o arguido praticou um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do CP.”

Note-se que é precisamente por existir um “contexto de exaltação de ânimos envolvendo pessoas acabadas de vivenciar uma situação de ruptura conjugal”e por aquela expressão ter sido proferida, em tom agressivo e acompanhada de um empurrão que qualquer homem médio colocado na posição da assistente não deixaria de recear pela vida.

Por conseguinte, também ao nível do enquadramento jurídico nada há a censurar à decisão recorrida.
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9. A medida das penas

De forma pouco clara o recorrente parece impugnar a medida das penas na medida em que salienta que “Para além da medida da pena fixada num terço apesar do acima considerado, o mesmo se diga no que concerne ao quantum indemnizatório, apesar de aludir a um empurrão desprovido de violência e gravidade suficiente exigível para poder configurar crime e referir consequências de pouca gravidade, num contexto de exaltação de ânimos pela ruptura conjugal, sem a virtualidade de atribuir a gravidade, e apesar de se mencionar (32/35) a indemnização do danos não patrimoniais exigir que os mesmos apresentem um mínimo de gravidade para efeitos de serem ressarcíveis e o montante da reparação ser proporcionado à gravidade do dano, julgou-se adequada a indemnização de 600,00€ como compensação à assistente por danos não patrimoniais sofridos, neste descrito contexto exagerada entende o recorrente”(conclusão 36ª).

A pouca gravidade das consequências do crime de ofensa à integridade física e o contexto da exaltação de ânimos pela ruptura conjugal foram expressamente considerados pela sentença recorrida que à matéria da escolha e medida das penas parcelares e única dedica nada mais nada menos do cinco folhas, onde discorre minuciosa e pormenorizadamente sobre a legislação aplicável à luz da melhor doutrina nacional e procede à sua aplicação ao caso sub judice com inteiro acerto.

Como ali se refere importa ponderar diversas factores nomeadamente “as circunstâncias que rodearam a prática dos factos” as quais, já antes haviam sido concretizadas também para a afastar a incriminação por violência doméstica: “Acresce que não pode o Tribunal olvidar que tais factos ocorreram em circunstâncias temporais determinadas, num contexto de exaltação de ânimos, envolvendo pessoas acabadas de vivenciar uma situação de ruptura conjugal (…)”

Aliás, só esse estado de exaltação, conjugado com as demais circunstâncias assinaladas na sentença recorrida (lapso de tempo entretanto decorrido, integração social, profissional e familiar do arguido e inexistência de antecedentes criminais), explica e justifica que a medida das penas parcelares tenha sido fixada em um pouco menos do que um terço da respectiva moldura abstracta, porquanto as necessidades de prevenção geral no âmbito da violência sobre as mulheres se revelam imperiosas e que o grau da ilicitude dos factos se situa “acima da média”, como se diz na sentença, uma vez que vítima para além de ter sido casada com o agressor era - é e será sempre - a mãe dos seus filhos.

Também a pena única de 150 dias de multa (numa moldura de 120 a 200 dias de multa), à taxa diária de €6 (seis euros) se revela perfeitamente adequada, necessária e proporcional.


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10. A obrigação de indemnizar e a medida do quantum indemnizatório
Finalmente, o recorrente parece questionar a obrigação de indemnizar por os danos não patrimoniais não apresentarem “um mínimo de gravidade” e insurge-se contra a quantia de €600 atribuído à demandante a título de compensação por danos não patrimoniais, que taxa de “exagerada” (conclusão 36ª).

Nos termos do artigo 400º, n.º 2 do Código de Processo Penal “(…) o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.”

Uma vez que o pedido importou em €5000, que o arguido foi condenado a pagar a quantia de €600, e que a alçada do tribunal recorrido era à data da formulação do pedido de €3740,98 (artigo 24º, n.º1 da Lei n.º3/99, de 13 de Janeiro, na redacção que lhe foi conferida pelo Dec.-Lei n.º 323/2001, de 17 de Janeiro), é manifesto não estar preenchido o último dos requisitos cumulativos previstos no transcrito artigo 400º, n.º2, isto é, a sucumbência em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido.

Por isso a matéria relativa ao pedido de indemnização é insusceptível de recurso de impugnação por via de recurso, pelo que o presente recurso, nesta parte, deve ser rejeitado.

Ex abundante sempre se dirá, em síntese conclusiva, que a argumentação do recorrente seria manifestamente improcedente, por ser óbvio, patente e notório, que os danos causados, pela sua gravidade merecem a tutela do direito (artigo 496º, n.º1 do Código Civil) e por a medida da compensação arbitrada (€600) se revelar equitativa (artigo 496º, n.º3 do Código Civil), apenas podendo pecar por defeito.
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 8 UC.
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Guimarães, 17 de Maio de 2010