Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
248/16.6T9BRG.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CRIME DE BURLA
FASE INSTRUTÓRIA
LEI PENAL APLICÁVEL
ARTº 4º AL. A) DO CP
ARTº 7º Nº 2 DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Nos termos do disposto nos artºs 4º, al. a), e 7º, nº 2, do Código Penal, a lei penal portuguesa é aplicável à apreciação de um crime de burla, em que os atos de execução em que se traduziu o prejuízo patrimonial do ofendido ocorreram todos no estrangeiro, mas em que o agente, atuando sempre sob o mesmo e único desígnio criminoso, praticou ainda, em território nacional, atos de execução com o propósito de aumentar o seu enriquecimento ilegítimo, mas relativamente aos quais não se chegou a verificar aquele resultado.

II) Por isso, o caso dos autos, e tendo em conta a factualidade indiciada, ao contrário do decidido no tribunal recorrido, traduz uma situação que reclama a aplicação da lei penal portuguesa e, consequentemente impõe-se a revogação da decisão recorrida, devendo a Senhora juíza proferir decisão instrutória, nos termos do nº 1, do artigo 308º, do CPP, quanto ao crime de burla.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. Nos autos de instrução com o NUIPC 248/16.6T9BRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo de Instrução Criminal de Braga - J1, foi proferida decisão instrutória, em 03-05-2017, a declarar inaplicável, ao caso, a lei penal portuguesa e a julgar prejudicada a possibilidade de submissão a julgamento perante as instâncias judicias nacionais da arguida, M. C. F., pela indiciada prática, em autoria material, de um crime de burla e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido o primeiro deles pelas disposições conjugadas dos art.s 217º, n.º 1, e 218, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e c), e o segundo pelo art. 256º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal, conforme lhe era imputado por via do requerimento de abertura de instrução aprestando pelo assistente, J. A. C., na sequência do arquivamento, nessa parte, do inquérito.
2. Inconformado, dessa decisão recorreu o referido assistente, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se reproduzem [1]:

«EM CONCLUSÃO:
Questão da localização dos factos:

I- Crê-se que a factualidade conducente à entrega dos valores em numerário é distinta da factualidade conducente à entrega dos cheques, mormente o de 100.000,00 € efetuada pelo Recorrente, existindo um ardil diferente, em momento diferente e para fins diferentes, posto que em íntima conexão com a factualidade conducente à entrega de numerário.
II- A factualidade conducente à entrega do cheque de 100.000,00 € constitui uma burla com autonomia, sendo em relação a esta que se deve aferir o local da sua consumação.
III- Não foi com a mera entrega do cheque que a Arguida exorbitou o uso que havia anunciado ao Recorrente J., tendo-se desviado do mesmo apenas quando rompe com a mera detenção daquele, apresentando-o a pagamento e, perante a sua devolução por saque irregular, o dá à execução. É apenas nesse momento que o cheque se converte num instrumento apto a causar prejuízo e que se materializa a intenção da Arguida.
IV- Assim, entende-se que o crime de burla relativo ao cheque de 100.000,00 €, emitido pelo Recorrente J. A. C., se consumou em território nacional, com a sua apresentação a pagamento ou, ao menos, com a instauração de execução nele fundada. Pelo que o Tribunal violou o disposto no art. 7º n.º 1 do Código Penal, o que determinou diretamente a decisão de declaração de incompetência da jurisdição portuguesa para conhecer do crime.

SUBSIDIARIAMENTE,

V- Ainda que se entenda nem existir consumação estaríamos, então, perante uma mera tentativa, antecedida de vários atos de execução (o ardil determinante da entrega do cheque, a apresentação frustrada a pagamento e a instauração da execução) com vista à apropriação da quantia titulada por aquele, enquanto resultado típico visado, que não ocorreu.
VI - Pelo que, atenta a punibilidade da tentativa (cfr. n.º 2 do art. 217º do CP), ter-se- ia que considerar Portugal o lugar da prática do facto, nos termos do art. 7º n.º 2 do Código Penal, normativo subsidiariamente violado pelo Tribunal a quo. Pois, o resultado típico – o recebimento efetivo do valor do cheque – dever-se-ia ter produzido necessariamente em Portugal, por via da apresentação a pagamento e, após a sua frustração, por via de processo executivo, instrumentos esses que são os únicos aptos à produção de tal resultado, conforme a representação e intenção da Arguida.
VII- É certo que não é esta a perspetiva constante do requerimento de abertura de instrução. No entanto, a factualidade dele constante suporta este enquadramento, sendo que a conversão da forma consumada em forma tentada não constitui uma alteração substancial dos factos, antes desagravando da responsabilidade penal da Arguida, tendo em conta que “a tentativa é punível com a pena aplicada ao crime consumado, especialmente atenuada” (cfr. n.º 2 do art. 23º do CP).

Questão da aplicação da lei substantiva penal portuguesa:

VIII - Em face do supra exposto, entende-se que, dentre os factos que integram o conjunto dos comportamentos da Arguida, há efetivamente a verificação de um dos resultados típicos dessa cadeia de atos em território português, que exprimem uma consumação ou – pelo menos – uma tentativa na qual o resultado típico – o pagamento efetivo – foi prefigurado e visado pela Arguida.
IX - Entende-se, pois, que a apresentação do cheque a pagamento ou, pelo menos, a instauração de execução com base nele, constituem os resultados típicos mediatos decorrentes da intenção da Arguida, localizados em Portugal que, por essa razão, não pode deixar de ser considerado o lugar da prática do facto nos termos do art. 7º n.º 1 do Código Penal. Ou, subsidiariamente, numa ótica de tentativa, seria o ordenamento jurídico onde a Arguida representou a produção do resultado, por ser nele que o apresentou a pagamento e o deu à execução, conforme estabelecido no n.º 2 daquele art. 7º. Normativos que o Tribunal a quo violou na douta decisão instrutória recorrida.

Questão da competência das instâncias nacionais:
X - A competência das instâncias portuguesas para conhecer do crime de burla participado é uma decorrência automática da questão precedente. Pois, de acordo com o art. 19º n.º 1 do CPP, “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”. Clarifica o n.º 3 que, “para conhecer de crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados (…) é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último ato ou tiver cessado a consumação”, o que reforça a ideia de que basta a última das consumações sucessivas ocorrer em território português para a atribuição de competência aos Tribunais nacionais.
XI - Assim, a competência das instâncias portuguesas para conhecer de crimes cujo lugar da sua prática, na aceção do art. 7º do Código Penal, seja o território nacional, resulta do disposto nos arts. 19º a 22º do Código de Processo Penal, normativos esses que o Tribunal a quo violou.

Questão da suficiência dos indícios:

XII - O Tribunal não chegou a conhecer acerca da suficiência de indícios, tendo-se quedado – com o devido respeito, que é muito - por uma apreciação genérica e superficial, sem a análise da prova produzida em inquérito e sem ter permitido a produção da prova requerida em sede de instrução, por força do decidido quanto à questão prévia da inaplicabilidade da lei penal substantiva portuguesa e da inerente falta de competência das respetivas instâncias.
XIII - Sublinhe-se que o Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária de Braga pugnou, expressamente, pela existência de indícios suficientes na informação de fls. 32, que detalhou no relatório de fls. 119 a 131 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
XIV - Da factualidade enunciada no requerimento de abertura de instrução – e prova que a apoia - resulta, em resumo, que a Arguida invocou a existência de negócios imobiliários apelativos que bem sabia não existirem, consistentes na aquisição de imóveis, como forma de serem bem aplicadas as poupanças dos Assistentes, incentivando-os, ainda, pela facilidade de serem feitas entregas de verbas faseadas para esse desiderato. Resulta, ainda, que o pedido de entrega dos cheques de garantia se baseou na alegada impossibilidade em serem realizadas as escrituras num dado momento, servindo os mesmos, designadamente, para garantir o bom cumprimento da aquisição pelos Assistentes. O que tudo se revelou falso, já que os valores não foram destinados a negócio algum, nem foram utilizados para garantir a respetiva celebração. De resto, a inexistência de qualquer negócio tornou-se evidente, já que é a própria Arguida quem declina a realidade que utilizou como pretexto para recebimento de valores e dos ditos cheques – cfr. posição que assume nos embargos cujas peças constam de fls. 61 e segts. dos autos.
XV - Tais comportamentos configuram, inequivocamente, o tipo de crime de burla (qualificada), nos termos dos arts. 217º n.º 1 e 218º n.ºs 1 e 2 al. a), b) e d) do Código Penal do Código Penal, visto que a Arguida determinou os Assistentes quer à entrega de valores, quer à entrega dos cheques, por meio de engano sobre factos que astuciosamente provocou, factos esses sem os quais estes jamais lhe entregariam o que quer que fosse.
XVI - Não parece relevante a coerência última do ardil, numa avaliação de juristas – como a ensaiada pelo Tribunal a quo – posto que o conhecimento da mecânica dos negócios imobiliários não é exigível a um cidadão comum, o qual não possui conhecimentos para pôr em causa a bondade dos pretextos que eram apresentados pela Arguida, no quadro de uma relação de elevada confiança que não favorece uma análise crítica dos factos por leigos, como os Assistentes.
XVII - O que tudo deveria merecer a prolação de despacho de pronúncia, pela prática pela Arguida, em autoria material, de um crime de burla de 217º n.º 1 e 218º n.ºs 1 e 2 al. a), b) e d) do Código Penal, na forma consumada ou, subsidiariamente, na forma tentada (por tal conversão não envolver alteração substancial dos factos), tendo a douta decisão recorrida violado implicitamente o art. 308º n.º 1 do CPP.
*
TERMOS EM QUE

Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta decisão instrutória recorrida, julgando-se aplicável a lei penal substantiva portuguesa, com o inerente reconhecimento de competência da jurisdição portuguesa e pronunciando- se a Arguida pelo crime p. e p. nos arts. 217º n.º 1 e 218º n.ºs 1 e 2 al. a), b) e d) do Código Penal, por verificação de indícios suficientes da respetiva prática, submetendo-se a Arguida a julgamento.
Com o que se fará JUSTIÇA.»

3. Na sua contramotivação, o Exmo. Procurador da República junto da primeira instância formulou a síntese conclusiva que a seguir se transcreve:

«CONCLUSÕES

1. A M.ª Juiz de Instrução proferiu decisão no sentido de considerar inaplicável ao caso a lei penal portuguesa e por tal circunstâncias julgou prejudicada a possibilidade de submissão a julgamento e perante as instâncias jurídicas nacionais da arguida M. C. F., pela indiciada prática, em autoria material, de um crime de burla e de um crime de falsificação de documento, p. e p. o primeiro deles pelas disposições conjugadas dos artºs 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, als. a), b) e d) e o segundo pelo artº 256º, nº 1, al. b), todos do Cód. Penal, conforme lhe vem imputado por via do requerimento de abertura da instrução apresentado, a fls. 450 a 459, pelo assistente J. A. C..
2. A questão da determinação da lei aplicável aos factos e da competência internacional dos tribunais nacionais terá de ser aferida em função dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução, pois são eles que delimitam o objeto do processo.
3. Tendo por base a factualidade trazida aos autos pelo Assistente no RAI, concorda-se com a M.ª Juiz de Instrução Criminal no sentido de que todos os factos que constituem o crime pretendido imputar à arguida tiveram lugar em território francês, localizando-se, apenas, em território nacional ocorrências posteriores – tentativa de aumento de vantagem indevida já concretizada - que não revestem esse atributo, de facto que constitui o crime, por este se encontrar todo realizado já em momento e local anteriores.
4. Pelo que os factos não apresentam qualquer conexão com o território português, nos termos prescritos pelos artigos 4º e 7º do Cód. Penal, a ditar, com base nessas indicadas disposições legais- factos, total ou parcialmente, praticados em território nacional -, a aplicação ao caso da lei substantiva portuguesa e que não concorre qualquer das causas previstas pelo artigo 5º do Cód. Penal, determinantes da aplicação da lei penal nacional a factos ocorridos em território estrangeiro, para o que não intercedem as razões invocadas pelo assistente.
5. Pelo exposto entendemos que o despacho proferido pela M.ª JIC não é merecedor de censura, devendo ser rejeitado o recurso e confirmada a decisão recorrida.
Nestes termos, os Venerandos Desembargadores da Relação do Guimarães, farão, como sempre, Justiça.»

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso, por sufragar o entendimento e considerações expendidas na resposta apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, onde a questão suscitada pelo recorrente e a dirimir vem suficiente e adequadamente debatida, dispensando, por desnecessário e redundante, um impertinente aditamento de mais desenvolvida argumentação. Ainda assim, aditou as seguintes considerações: - que na execução do crime de burla verifica-se aquilo a que se costuma chamar um duplo nexo de causalidade: por um lado, a conduta enganatória provoca o erro do burlado, erro esse que, por sua vez, é a causa da entrega patrimonial em que se consubstancia o prejuízo; - que o momento da consumação do crime de burla é aquele em que o lesado abe mão da coisa ou do valor sem que a partir daí possa controlar o seu destino; - finalmente que o crime de falsificação de documentos se consuma com o simples ato de falsificação.
5. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta a esse parecer.
6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR:
Considerando que de acordo com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, no caso vertente a única questão a decidir consiste em saber se a lei penal portuguesa é, ou não, aplicável ao crime de burla qualificada cuja prática é imputada à arguida no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

2. DA DECISÃO RECORRIDA:
3.
O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
«DECISÃO INSTRUTÓRIA
I.
Inconformado com o despacho de arquivamento que, no culminar da fase de inquérito, o Ministério Público proferiu, a fls. 426 a 432, J. A. C., entretanto admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente, requereu, a fls. 450 a 459, a abertura da instrução, sustentando dever ser proferido despacho de pronúncia da arguida M. C. F., pela indiciada prática, em autoria material, de um crime de burla e de um crime de falsificação de documento, p. e p. o primeiro deles pelas disposições conjugadas dos artºs 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, als. a), b) e d) e o segundo pelo artº 256º, nº 1, al. b), todos do Cód. Penal.---
Fundamentou as razões da sua manifestada discordância, sustentando/alegando, em síntese, que, de contrário à conclusão alcançada pelo Ministério Público no despacho de arquivamento que proferiu, a lei penal portuguesa é aplicável ao caso, por ter sido neste território que ocorreu o último ato de execução do imputado crime de burla; que a verificação desse delito, bem como do crime de falsificação de documento, se encontra suficientemente suportada pela prova indiciária produzida nos autos em fase de inquérito.---
Admitido o requerimento apresentado, com a consequente abertura da fase de instrução, foi solicitada certidão do Proc. nº 7539/15.1T8VNF, a correr termos pelo Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão.---
Realizou-se debate instrutório, com observância do pertinente formalismo legal.---
II.
Após o despacho que admitiu a abertura da instrução não sobreveio qualquer exceção, nulidade, questão prévia ou incidental que, afetando a presente fase processual, cumpra conhecer e que obste à apreciação do mérito.---
III.
A questão posta, nesta sede e momento processual, consiste em saber se devem, ou não, os presentes prosseguir os seus termos, para a fase de julgamento, com pronúncia da arguida M. C. F., pelos factos e com o enquadramento jurídico-penal constantes do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente J. A. C..---
Dito isto e conforme decorre da síntese a que acima se procedeu, encontra-se o Tribunal, nesta fase de instrução, reconduzido, por efeito dos fundamentos em que se estriba o RAI apresentado pelo assistente, à apreciação de duas grandes questões. A saber:---
- Se a lei penal portuguesa é, ou não, aplicável ao caso;---
- Se os autos contêm, ou não, indícios, em medida suficiente, da prática pela arguida dos crimes que lhe vêm imputados, a justificar, conforme requerido pelo assistente, a sua submissão a julgamento.---
É dessas tarefas de que, sucessivamente, nos ocuparemos, sem prejuízo, como se verá infra, da apreciação oficiosa de uma outra questão de ordem formal.---
Pois bem.---
Com pertinência relativamente à primeira das enunciadas questões, importa considerar a previsão do artº 4º do Cód. Penal que consagra, na respetiva al. a) – única que, para o caso releva considerar -, o denominado princípio da territorialidade, em conformidade com o qual, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente.---
Constituindo o princípio da territorialidade o primeiro elemento de determinação da competência dos tribunais penais nacionais, é, por seu turno, no artº 7º do Cód. Penal, que consagrou a denominada solução de pluralidade ou de ubiquidade, que se encontram os critérios de determinação do lugar da prática do facto. Assim, em conformidade com o que vai disposto no nº 1 da citada disposição legal, o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido. Mais se prescreve no nº 2 da mesma disposição legal que, no caso de tentativa, o facto se considera, igualmente, praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido.---
Serve o que vem de dizer-se, até ao momento, para significar que, para que tenha lugar a aplicação da lei penal portuguesa, por efeito da incidência do princípio da territorialidade consagrado no artº 4º, basta que a infração tenha com o território nacional qualquer um dos elementos de conexão previstos pelo artº 7º do Cód. Penal e que definem, como se viu, o locus delicti.---
Não se localizando em território nacional, com o alcance definido pelo sobredito artº 7º do Cód. Penal, o lugar da prática dos factos, primeiro critério, como se viu, determinante da aplicação da lei penal portuguesa, a verdade é que o legislador previu, ainda, a possibilidade de tal aplicação poder vir a ter lugar a factos praticados fora do território nacional, contanto que se verifiquem os requisitos previstos pelo artº 5º do Cód. Penal.---
Uma vez determinada a aplicabilidade da lei penal portuguesa, em conformidade com os critérios decorrentes do Código Penal, é na lei geral de processo penal que se encontram previstas as disposições relativas ao deferimento de competência aos tribunais nacionais dentro da ordem jurídica interna.---
Desse modo, localizando-se a prática do facto, todo ele, em território nacional, regem, diretamente, as disposições gerais previstas pelos artºs 19º a 21º do Cód. de Proc. Penal.---
Se o crime for praticado no estrangeiro – ou seja, quando se esteja na presença de situação enquadrável na previsão do artº 5º do Cód. Penal -, é competente para dele conhecer, em conformidade com o disposto no nº 1 do artº 22º do Cód. de Proc. Penal, o tribunal da área onde o agente tiver sido encontrado ou do seu domicílio. Quando ainda assim não for possível determinar a competência, esta pertence ao tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.---
Por fim, se o crime for cometido em parte no estrangeiro e em parte em Portugal, comanda o nº 2 do citado artº 22º que se atenda ao local onde foi praticado o último ato relevante, nos termos das disposições precedentes. Ou seja, uma vez determinada uma das conexões previstas pelo artº 7º do Cód. Penal e havendo, também, atos praticados em território estrangeiro, a competência é, internamente, deferida em função do local do território nacional onde nele [território nacional] tiver sido praticado o último ato relevante. Assim, se o delito se apresentar na forma de consumado, podem verificar-se duas hipóteses: a sua consumação ter ocorrido em território nacional – embora com atos de execução, total ou parcialmente, praticados em território estrangeiro -, ou a sua consumação ter ocorrido em território estrangeiro – embora com atos de execução praticados, total ou parcialmente, em território português. Na primeira hipótese, a competência pertence, internamente, ao tribunal da área onde se tiver dado a consumação; na segunda ao tribunal da área onde foi praticado o último ato de execução – cfr. artº 19º, nºs 1 a 3. Mas o delito, parcialmente praticado em território estrangeiro e em território português, pode apresentar-se, também, na forma meramente tentada. Neste caso, a competência é, internamente, deferida aos tribunais portugueses em função do local onde aqui haja tido lugar o último ato de execução ou, em caso de punibilidade dos atos preparatórios, o último ato de preparação. Pode, finalmente, haver dúvida a respeito do local, em território português, em que se deu a consumação, se tiver sido esse o caso, ou em que foi praticado o último ato de execução de delito que se consumou no estrangeiro, como pode, também, haver dúvida a respeito do local, nas hipóteses de delitos não consumados, em que teve lugar o último ato de execução em território português, ou, se punível, o último ato preparatório. Para essas hipóteses regem os critérios definidos pelo artº 21º do Cód. de Proc. Penal.---
Dito isto, uma primeira consideração se impõe, com relevo para o caso que nos toma.---
E essa é a de que, tal como decorre do que, até ao momento se deixou dito, a disciplina constante do Código de Processo Penal – muito em particular a resultante do artº 22º, nº 2 - não contém qualquer norma substantiva de deferimento de aplicação da lei penal portuguesa. As normas relativas a essa matéria constam, isso sim, do Código Penal, em particular das acima citadas, encontrando-se, apenas, na disciplina da lei geral de processo penal as regras relativas ao deferimento interno de competência aos tribunais nacionais, uma vez que seja, previamente, determinada a aplicação da lei penal portuguesa.---
Traçado o quadro normativo que, para o caso, importa considerar, e vertendo, novamente, ao caso que nos toma, o assistente, como se disse já, sustentou que, de contrário à conclusão alcançada pelo Ministério Público, no despacho que proferiu e por via do qual pôs, por arquivamento, termo ao processo, a lei penal portuguesa é aplicável ao caso.---
Considera-se, porém, adiantamo-lo já, que não lhe assiste qualquer razão.---
Vamos explicar porquê.---
Assim, como pode observar-se por aqueles que constituem os fundamentos do RAI apresentado, o assistente dá dos factos – da parca materialidade em que se estriba o seu requerimento, como se verá adiante - a versão de que a arguida, depois de conquistar a sua confiança, bem como a dos seus familiares – cônjuge e dois filhos, todos denunciantes -, logrou convencê-los a entregar-lhe avultadas quantias, no período compreendido temporal compreendido entre os anos de 2006 e 2015, a totalizar o valor global de € 262.502,00, destinado à aquisição, nesta cidade de Braga, de vários apartamentos, bem como destinado a liquidar importâncias acessoriamente devidas por essas aquisições. No mesmo condicionalismo, e segundo mais acrescenta, a arguida logrou que lhe fossem entregues cheques nos montantes de € 24.000,00, € 3.000,00 e € 100.000,00, destinados a garantir que as aquisições seriam realizadas em nome dos denunciantes.---
Acrescenta que, porém, a arguida não veio a utilizar os montantes que efetivamente recebeu nas aquisições prometidas, integrando-as, isso sim, no seu património, como foi sempre seu único e exclusivo desígnio, não obstante soubesse que as mesmas não lhe pertenciam e que a sua conduta era proibida e punida por lei.---
Mais fez afirmar, por via do RAI sob apreciação, que a arguida, fazendo, ainda, indevido uso dos cheques que lhe foram entregues, para aquele enunciado fim de garantia, os apresentou a pagamento, os que lhe foram entregues pelos denunciantes J. C. e A. C.- nos montantes, respetivamente, de € 24.000,00 e de € 3.000,00 - em território francês, e aquele que ele, assistente, lhe entregou - no montante de € 100.000,00 -, em território português, onde, também, veio, posteriormente, a dar este último título à execução, originando a instauração de processo destinado à cobrança coerciva do correspondente valor, que corre termos pelo Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão desta comarca, sob o nº 7539/15.1T8VNF.---
Dito isto, é possível alcançar, desde já, duas primeiras conclusões.---
A primeira delas é a de que, considerada a própria versão que o assistente dá dos factos, o crime de burla que pretende ver imputado à arguida se apresenta, manifestamente, na condição de consumado. Com efeito, essa consumação deu-se com o desapossamento das importâncias em dinheiro que a arguida, no descrito quadro de atuação, logrou que lhe fossem entregues e de que resultou correlativo empobrecimento dos denunciantes.---
A segunda é a de que assume o assistente – por efeito daquilo que fez constar do RAI, em convergência, aliás, com a prova constante dos autos que pretende constituir arrimo suficiente para a sua versão dos factos – que a descrita conduta da arguida, determinante do suposto ardil em que o envolveu e aos restantes denunciantes, teve lugar em território francês, tendo sido também aí que, por efeito do erróneo estado de convencimento a que todos foram conduzidos, tiveram lugar aquelas entregas, a incluir, muito em particular, as que se realizaram em numerário, a totalizar, como se disse já, a quantia global de cerca de € 262.000,00.---
Pois bem.---
Apresentando-se, como se apresenta, o delito em causa na forma consumada, ele realizou-se, nesses indicados termos, por via de ações todas elas prosseguidas em território francês.---
É certo que o assistente articula, também, como se disse já, que a arguida, tendo em seu poder um dos cheques que lhe havia sido entregue em território francês – precisamente aquele que ele, assistente, lhe entregara, a título de garantia, no montante de € 100.000,00 -, o veio a apresentar junto de instituição bancária nacional e que, confrontada que foi com a recusa do seu pagamento, instaurou, de seguida, execução destinada à cobrança coerciva do correspondente valor.---
A verdade é, porém, que esse descrito comportamento nada acrescenta do ponto de vista da realização do imputado crime de burla. É que o mesmo, como se afirmou acima, encontrava-se já totalmente realizado, e na forma consumada, por ocorrências exauridas a um tempo e em lugar - território francês - anteriores.---
Aliás, a única relevância passível de ser extraída da ocorrida apresentação a pagamento - e, na tese do assistente, da subsequente instauração de execução junto de instância judicial nacional – situa-se no exclusivo domínio da medida da vantagem patrimonial pretendida obter. Ou seja, a arguida teria, alegadamente, pretendido, através da indevida apresentação do cheque em questão a pagamento – tal como, de resto, com a apresentação que teria feito, em França, dos restantes dois cheques que lhe foram entregues pelos denunciantes J. C. e A. C.-, aumentar a medida da sua vantagem patrimonial.---
Simplesmente, tendo a arguida, na própria versão do assistente, logrado alcançar vantagem patrimonial indevida em território francês, no valor global de cerca de € 262.000,00, a sua alegada tentativa de, em medida, aumentar essa vantagem, nada acrescenta ao delito que imputadamente decidiu cometer e que se tornou perfeito, na forma consumada, por via da entrega, em território francês, das importâncias que totalizaram aquele referido montante.---
Pode, assim, dizer-se que, de contrário ao que o assistente faz afirmar no seu RAI, a apresentação do cheque a pagamento ou, sequer, a instauração de execução com base nele, não só não constituem atos de consumação do imputado crime de burla – já consumado antes, como se viu -, como, também, nunca poderiam esses descritos comportamentos ser punidos, autonomamente, a título de tentativa ou como crime consumado, porque enquadrados, na sua própria alegação, em resolução única, que desde o início moveu a arguida, de se locupletar à custa do seu património e do dos restantes denunciantes. Deve, aliás, dizer-se que não se compreende, sequer, a construção do assistente quando sustenta que a mera apresentação do cheque junto da instituição bancária, e que não foi pago, constituiria um ato de consumação do que quer que fosse, nem, tampouco, que tal consumação se teria dado com a instauração de execução destinada à cobrança coerciva do seu valor. É que a consumação no crime de burla tem por pressuposto que ocorra efetiva entrega da vantagem indevida.---
Aqui chegados, impõe-se, recapitulando a enunciação que acima se fez da previsão do artº 7º do Cód. Penal, um particular afinamento.---
É que, quando nessa indicada disposição legal se refere que o facto se considera praticado nos locais em que o agente atuou por um dos modos aí referidos, o que está em causa é o facto que constitui o crime. E, na circunstância, todos os factos que constituem o crime pretendido imputar à arguida tiveram lugar em território francês, localizando-se, apenas, em território nacional ocorrências posteriores – tentativa de aumento de vantagem indevida já concretizada - que não revestem esse atributo, de facto que constitui o crime, por este se encontrar todo realizado já em momento e local anteriores. Aliás, tivesse a arguida logrado alcançar o pagamento do cheque, o que, até ao momento, não sucedeu – como se extrai não só da alegação do assistente, como, também, da certidão junta aos autos em fase de instrução -, e isso ditaria, apenas, o agravamento dos termos da sua punição, em caso de eventual condenação. Nada mais.---
De tudo se conclui não concorrer, no caso, qualquer conexão com o território português, nos termos prescritos pelos artºs 4º e 7º do Cód. Penal, a ditar, com base nessas indicadas disposições legais - factos, total ou parcialmente, praticados em território nacional -, a aplicação ao caso da lei substantiva portuguesa.---
Aqui chegados, constitui uma evidência, de meridiana constatação, que, na circunstância, não concorre qualquer das causas previstas pelo artº 5º do Cód. Penal, determinantes da aplicação da lei penal nacional a factos ocorridos em território estrangeiro, para o que não intercedem as razões invocadas pelo assistente, em particular as de conveniência de que o processo aqui corra, também, os seus termos. De registar, ainda, que o aresto citado pelo assistente no ponto 5. do RAI – que, aliás, e como resultou esclarecido no debate instrutório, foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Proc. nº 229/2008-5, datado de 04.03.2008 e que se encontra disponível em http://www.dgsi.pt – versou sobre matéria que nada tem que ver com a situação destes nossos autos. Com efeito, na situação aí considerada, resultando, embora, a aplicação da lei penal portuguesa por efeito da previsão do artº 5º do Cód. Penal, foi a mesma afastada, com fundamento na circunstância de pender já, em território estrangeiro, processo com o mesmo objeto. E o que o Tribunal da Relação decidiu foi que as razões em que o tribunal de primeira instância se louvou para desaplicar a lei nacional não integravam a previsão do artº 6º também do Cód. Penal. Não são, porém, essas as razões em que se louvam as conclusões já alcançadas.---
Isto posto, a decisão que, por conseguinte, se impõe, no caso que nos toma, é a de declaração de inaplicabilidade da lei penal portuguesa, o que, impedindo a introdução do feito em julgamento perante as instâncias nacionais, tem como resultado que fique prejudicada a tarefa de apreciação de indícios demandada pelo assistente, bem como a de seleção da materialidade suficientemente indiciada/não indiciada.---
Seja como for, algumas considerações adicionais se nos impõem.---
A primeira delas é a de que, perscrutados os termos do RAI apresentado, não vêm pelo assistente enunciados quaisquer factos relativamente ao imputado crime de falsificação de documento. Na verdade, a única referência que se encontra, ao longo do texto daquele requerimento, com eventual pertinência relativamente à matéria, é a alusão contida no ponto 14, onde o assistente se limita a transcrever uma parte da denúncia apresentada e onde se diz que o cheque apresentaria rasura no ano.---
Simplesmente, na parte do RAI reservada à enunciação dos factos destinados a constituir o objeto do pretendido despacho de pronúncia – artºs 19º e ss. – não se encontra qualquer alusão expressa a matéria passível de integrar o imputado crime de falsificação de documento, sendo que nunca bastaria, para integrar essa apontada omissão, a referência genérica que é feita no artº 19º, a anteceder a enunciação dos factos, àquilo que consta da denúncia e àquilo que resultará de depoimentos prestados nos autos e de um CD a eles junto.-
Nunca poderia, assim, no tocante ao imputado crime de falsificação de documento, os autos desembocar na prolação do pretendido despacho de pronúncia.---
É que, conforme decorre do disposto no artº 287º, nº 2 do Cód. de Proc. Penal, pese embora o RAI apresentado pelo assistente, em reação a arquivamento levado a efeito pelo Ministério Público, não esteja sujeito a formalidades especiais, no que tange à exposição das razões de facto e de direito da discordância, carece de conter a enunciação dos factos em que se ancora a pretensão de submissão do arguido a julgamento, sendo-lhe aplicável, designadamente, o disposto na al. b) do nº 3 do artº 283º do mesmo diploma legal. Ou seja, o RAI apresentado pelo assistente tem que conter, e sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.---
Como refere Germano Marques da Silva [“in” Curso de Processo Penal, Vol. III, Editorial Verbo, 2ª edição, 2000, pp. 139 e 140], o requerimento de abertura de instrução requerido pelo assistente deve, substancialmente, conter uma verdadeira acusação.---
E compreende-se que assim seja.---
É que, em decorrência do que se dispõe no artº 32º, nº 5 da CRP, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando, para o que ao caso importa, os atos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório. Significa isto que o objeto do processo penal é, justamente, definido pela acusação que serve a função de delimitar a atividade cognitiva e decisória do Tribunal, permitindo, correlativamente, assegurar as garantias de defesa do arguido, em particular contra a alteração ou o alargamento do processo.---
Como, de resto, se escreveu no acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/2005 [publ. “in” DR, 1ª Série- A, nº 212, de 4 de Novembro de 2005], acompanhando a posição de Germano Marques da Silva [“in” Ob. e Loc. Cit.], “Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação (...); o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, “formal e materialmente a acusatoriedade do processo”, delimitando e condicionando a atividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia”.---
No mesmo aresto é citado o acórdão do TC nº 358/2003, Proc. nº 807/2003 [publ. DR, 2ª Série, nº 150, de 28 de Junho de 2004], no qual se escreveu que “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução”. Mais adiante, no mesmo acórdão do TC, escreveu-se que “Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.---
Assim, a estrutura acusatória do processo penal e, bem assim, as garantias de defesa que o enformam reclamam que o requerimento de abertura de instrução contenha uma acusação em sentido próprio, o que, na circunstância não sucede, no tocante ao imputado crime de falsificação de documento.---
De resto, não contendo o RAI factos que, na sua extensão, sejam passíveis de integrar ilícito de natureza criminal, não pode legalmente haver pronúncia. É que o despacho de pronúncia carece, nos termos impostos pelo artº 308º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, de descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Ora, se o RAI não contém acusação ou se a acusação alternativa apresentada pelo assistente não contiver, em toda a sua extensão, esses factos, a inclusão deles na pronúncia representaria uma alteração substancial da materialidade descrita no correspondente requerimento e, como tal, decisão nula – cfr. artºs 303º, nº 3 e 309º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal.---
A tudo acresce que, para além de que nunca poder haver lugar a convite para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução, em atenção ao teor do citado acórdão nº 7/2005, que fixou jurisprudência no sentido de afastar a aplicabilidade desse instituto civil, em situações como a descrita, a verdade é que se entendeu, também, no acórdão de fixação de jurisprudência nº 1/2015 [“in” DR, 1ª Série nº 18, de 27.01.2015] que a falta do elemento subjetivo típico não é passível de ser suprida, em fase julgamento, por via do mecanismo previsto pelo artº 358º do Cód. de Proc. Penal, fixando jurisprudência no seguinte sentido: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente valor, não pode ser integrada, em julgamento, com recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do Código de Processo Penal”. Mais do que isso, entendeu-se no corpo do citado acórdão de fixação de jurisprudência que a apontada falta não pode ser suprida com recurso ao mecanismo previsto pelo artº 359º do Cód. de Proc. Penal, pois que, tendo tal mecanismo por fim a imputação ao arguido de crime diverso, a sua utilização na hipótese considerada equivaleria, na realidade, a transformar uma conduta não punível em punível. É doutrina, a do acórdão em causa, que se aplica, por identidade de razões, quando as faltas ocorram não apenas ao nível do elemento subjetivo típico.---
Aqui chegados, e no tocante ao imputado crime de burla - e ainda que fosse de concluir, que não é o caso, pela aplicação da lei penal portuguesa -, verifica-se existir, também, alguma insuficiência narrativa no texto do RAI, embora se conceda que essa insuficiência poderia ser colmatada através de uma eventual alteração não substancial dos factos que concretizasse alguns dos aspetos em falta.---
A verdade é, porém, que, sem prejuízo das conclusões que antecedentemente se alcançaram já, relativamente à não aplicação da lei penal portuguesa – a ditar, nos sobreditos termos, o desfecho do processo -, sempre importaria considerar que nos autos, considerado o rumo que seguiram, são conhecidas duas versões: a dos denunciantes e a da arguida, esta revelada pelos termos da contestação, certificada em fase de instrução, que apresentou aos embargos que foram opostos à execução que, com base no cheque de € 100.000,00, veio a instaurar. E não deixa de causar particular estranheza que, no contexto da versão do assistente, tenham sido entregues à arguida alegados cheques de garantia. É que o mesmo não chega a concretizar, pelo menos com suficiente clareza, o que é que esses títulos se destinavam, a final, a garantir. Agora, o que se alcança, isso sim, e com clareza, é que ao assistente convenha, devido à pendência da execução em causa, o prosseguimento dos presentes autos. É, porém, desiderato que, consideradas todas as razões expostas, não está ao seu alcance obter.---
IV.
Pelo exposto, declara-se inaplicável, ao caso, a lei penal portuguesa, termos em que se decide julgar prejudicada a possibilidade de submissão a julgamento e perante as instâncias judiciais nacionais da arguida M. C. F., melhor id. nos autos, pela indiciada prática, em autoria material, de um crime de burla e de um crime de falsificação de documento, p. e p. o primeiro deles pelas disposições conjugadas dos artºs 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, als. a), b) e d) e o segundo pelo artº 256º, nº 1, al. b), todos do Cód. Penal, conforme lhe vem imputado por via do requerimento de abertura da instrução apresentado, a fls. 450 a 459, pelo assistente J. A. C..---
Custas a cargo do assistente J. A. C., com taxa de justiça que se fixa em 3 UC.---
Notifique – cfr. artº 113º, nº 10 do Cód. Proc. Penal.---»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recorrente insurge-se contra o facto de a Mmª. Juíza de Instrução Criminal ter considerado que a lei penal portuguesa é inaplicável ao caso sub judice, julgando assim prejudicada a possibilidade de submeter a arguida a julgamento perante as instâncias judiciais nacionais pela prática do indiciado crime de burla agravada, p. e p. pelos art.s 217º, n.º 1, e 218º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e c), ambos do Código Penal.
3.1 - Importa, antes de mais, ter presente o seguinte quadro factual em que o caso se move, tal como emerge do requerimento de abertura de instrução (doravante designado por RAI), o qual define o objeto do processo, sem prejuízo de eventuais alterações nos termos do art. 303º do Código de Processo Penal:
A arguida, depois de cativar a amizade e a confiança do assistente e dos seus familiares (cônjuge e dois filhos), todos ofendidos nos autos, logrou convencê-los a entregarem-lhe, em França, várias quantias em numerário, no período temporal compreendido entre os anos de 2006 e 2015, perfazendo o total de € 262.502,00, destinadas à aquisição de vários apartamentos na cidade de Braga, a favor dos ofendidos, bem como ao pagamento dos impostos, dos registos e dos honorários do notário que celebraria as escrituras públicas de compra e venda. No mesmo condicionalismo, a arguida logrou que lhe fossem entregues três cheques, nos valores de € 24.000,00, € 3.000,00 e € 100.000,00, destinados a garantir que as aquisições seriam realizadas em nome dos ofendidos. Porém, a arguida não utilizou tais valores para os fins que lhe foram entregues, antes os tendo integrado no seu património, deles fazendo uso, como foi sempre seu propósito, bem sabendo que não lhe pertenciam e que a sua conduta era proibida por lei. De igual modo, fazendo uso indevido dos referidos cheques que lhe foram entregues para o mencionado fim de garantia, apresentou-os a pagamento, os dois primeiros em França, onde vieram a ser devolvidos por apresentarem rasuras na data de emissão, e o último, no valor de € 100.000,00, em Portugal, tendo sido igualmente devolvido por “saque irregular”, onde também veio, de seguida, a instaurar ação executiva para cobrança coerciva desse título, alegando ter emprestado o respetivo valor ao executado.
Esta indiciada factualidade é reveladora de comportamentos suscetíveis de poderem vir a integrar a prática, pela arguida, do tipo de crime de burla qualificada, nos termos dos arts. 217º, n.º 1, e 218º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.
Com efeito, nos termos daquele primeiro artigo comete o crime de burla simples “Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.
Por seu lado, nos termos do n.º 1 e do n.º 2, al. a), do citado art. 218º, a burla é qualificada, correspondendo-lhe molduras penais mais graves, quando o prejuízo patrimonial for, respetivamente, de valor elevado e de valor consideravelmente elevado.
A burla cobre, assim, situações em que o agente, com a intenção de conseguir enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que, por esse motivo, esta pratique atos que causam a si ou a terceiros, prejuízos patrimoniais.
O bem jurídico tutelado consiste no património, globalmente considerado, reconduzindo-se este ao conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor económico.
Os elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) do crime de burla são: - o uso de astúcia pelo agente; - o erro ou engano da vítima provocado pelo emprego dessa astúcia; - a prática de atos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos atos; - a intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
A astúcia tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como a falsa qualidade, como ainda qualquer falsificação, nomeadamente da escrita. O que interessa é que os factos invocados deem a uma falsidade a aparência da verdade, ou que o burlão refira factos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, atuando com destreza e pretendendo enganar e surpreender a boa-fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar atos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
Indispensável é que os atos, além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, tendo de o fazer com engenho e habilidade. Sem exigir a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente tem de ser adequada e necessária em função das características da situação e da vítima. Assim, a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características concretas do burlado.
Por erro deve entender-se a falsa (ou nenhuma) representação da realidade concreta, que funciona como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
Para que se esteja perante um crime de burla não basta o simples emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo ou entidade. Por outro lado, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro, exigindo-se que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, de atos de que derivem prejuízos patrimoniais.
A verificação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo.
Ora, a factualidade descrita no RAI é suscetível de poder vir a integrar a totalidades dos elementos típicos do crime de burla, na medida em que a arguida determinou os ofendidos à entrega dos referidos valores monetários e cheques, por meio de engano sobre factos que astuciosamente provocou, fazendo-lhes crer, fruto da amizade existente e da confiança que nela depositavam, que os mesmos de destinavam à aquisição de apartamentos a favor deles, o que era falso, uma vez que visou sempre e apenas integrar no seu património as quantias monetárias que recebeu e os montantes titulados pelos cheques, o que apenas conseguiu em relação ao dinheiro, uma vez que o pagamento dos cheques foi recusado pelas instituições bancárias em que os apresentou.
3.2. - A Mmª. Juíza, depois de assertivamente discorrer sobre os critérios da aplicabilidade da lei penal portuguesa consagrados nos arts. 4º, 5º e 7º do Código Penal, concluiu, em primeiro lugar, que o crime de burla se apresenta, manifestamente, na forma consumada, tendo-se a sua consumação dado com o desapossamento das importâncias em dinheiro que a arguida logrou que lhe fossem entregues e do qual resultou o correlativo empobrecimento dos ofendidos. E uma vez que a conduta da arguida determinante do suposto ardil dos ofendidos teve lugar em território francês, tendo também sido aí que, por força do erróneo estado de convencimento a que os mesmos foram conduzidos, ocorreram aquelas entregas, muito em particular as que se realizaram em numerário, a totalizar € 262,502,00, concluiu, em segundo lugar, que a consumação da burla se realizou por via de ações, todas elas, prosseguidas em território francês. Por fim, daí retirou a ilação da inaplicabilidade da lei penal portuguesa, por não concorrer, no caso, qualquer conexão com o território nacional nos termos prescritos pelos arts. 4º e 7º do Código Penal, nem qualquer das causas previstas pelo art. 5º do mesmo diploma, determinantes da sua aplicação a factos ocorridos em território estrangeiro.
Não olvidando que a arguida, na posse do referido cheque no valor de € 100.000,00 que lhe havia sido entregue pelo assistente em França, o apresentou junto de instituição bancária em Portugal e, confrontada com a recusa do seu pagamento, instaurou de seguida, no nosso país, ação executiva para cobrança coerciva do respetivo valor, a Senhora Juíza considerou que estes comportamentos nada acrescentam do ponto de vista da realização do imputado crime de burla, porquanto o mesmo já se encontrava totalmente realizado, na forma consumada, por ocorrências exauridas a um tempo e em lugar (território francês) anteriores.
Nessa decorrência, considerou ainda que a única relevância passível de ser extraída desses atos se situa no exclusivo domínio da medida da vantagem patrimonial pretendida obter pela arguida, tentativa essa que nada acrescenta ao delito que a mesma decidiu cometer e que se tornou perfeito, na forma consumada, por via da entrega, em território francês, das importâncias pecuniárias que totalizam os referidos € 262.502,00.
A rematar o seu raciocínio, aduz ainda a Mmª. Juíza que os comportamentos traduzidos na apresentação do cheque a pagamento e na subsequente instauração da execução com base nele não só não constituem atos de consumação do crime de burla, como também nunca poderiam ser punidos, autonomamente, a título de tentativa ou como crime consumado, porque enquadrados em resolução única, que desde o início moveu a arguida, de se locupletar à custa do património dos ofendidos.
3.3. - Em nossa opinião não será de subscrever o entendimento subjacente à decisão recorrida. Vejamos porquê:
É sabido que o facto legalmente previsto como crime se consuma com a prática dos atos de execução que realizam e integram os elementos constitutivos do respetivo tipo legal, produzindo as consequências nele previstas.
Embora a consumação seja a execução acabada e completa dos elementos do tipo objetivo, de que fazem parte a descrição de uma ação típica, com a indicação do resultado (nos crimes de resultado) ou a simples descrição da atividade (nos crimes de mera atividade), em certos crimes assumem também relevância os elementos subjetivos do tipo, na medida em que fundamentam e reforçam o juízo de desvalor do facto.
É o que sucede nos delitos de intenção, em que a intenção subjetiva do agente se dirige a um resultado que vai além da ação típica, mas que é produzido por esta sem necessidade de uma ação adicional, nos quais se incluem os crimes de resultado cortado ou parcial, de que a burla constitui exemplo.
Significa isto que a determinação do momento da consumação depende da estrutura do tipo de crime que esteja em causa (de resultado, de perigo ou de resultado cortado), podendo ter lugar em momentos diversos, não coincidentes com a realização da finalidade do agente ou com a terminação, exaurimento ou consumação material do crime, consoante a diversa estrutura do tipo.
A burla é tida como um crime de dano, por pressupor um prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou da vítima, e material ou de resultado, porque se consuma com a saída de bens da esfera da disponibilidade fáctica dos mesmos. O resultado típico é o empobrecimento do sujeito passivo ou da vítima, através do comportamento astucioso do arguido, sendo com ele que o crime se consuma.
Porém, como crime de resultado parcial ou cortado que é, caracteriza-se por uma "descontinuidade" ou "falta de congruência" entre os correspondentes tipos subjetivo e objetivo. Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente atue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objetivo, se observe o empobrecimento (= dano) da vítima [2]. No plano objetivo basta o prejuízo patrimonial da vítima (ou de terceiro). Ao nível subjetivo requer-se uma intenção de enriquecimento, que não carece de concretização objetiva [3].
Assim, tal como é entendimento jurisprudencial [4], o momento da consumação do crime de burla é aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património.
Ora, sendo o cheque um título de crédito que contém uma ordem, dirigida a um banco, no qual o emitente tem fundos disponíveis, de pagamento da quantia nele inscrita a favor do tomador, independentemente das relações subjacentes, o aumento patrimonial efetivo do tomador não se verifica antes do pagamento pelo banco da quantia inscrita no cheque, e a diminuição patrimonial efetiva do sacador também não ocorre enquanto a sua provisão no banco sacado não for descontada em consequência desse pagamento.
Transpondo este efeito para a realidade jurídica do crime de burla, conclui-se que a mera entrega do cheque não produz, enquanto tal e por si só, uma diminuição patrimonial do sacador, a qual só se verifica quando houver efetivo pagamento. E, consequentemente, só haverá enriquecimento (ilegítimo) quando o valor for transferido da provisão para a efetiva disponibilidade do agente ou de terceiro.
Assim, até ao efetivo pagamento de um cheque pelo banco sacado não se pode afirmar que os fundos saíram da disponibilidade do emitente do título. Até esse momento o cheque pode ser revogado, não saindo o dinheiro irreversivelmente da sua esfera com a mera entrega do título ao sacador. Foi o que sucedeu no caso concreto, em relação aos cheques entregues pelos ofendidos à arguida.
Quer isto dizer que, segundo a perspetiva com que os factos são descritos no RAI, única processualmente relevante neste momento, tendo a arguida, em execução de um desígnio criminoso que é único, conseguido apenas fazer sua a quantia global de € 262.502,00 que lhe foi entregue pelos ofendidos em numerário, valor do efetivo prejuízo causado a estes, apesar de ser sua intenção levantar e apoderar-se também das quantias tituladas pelos cheques que os mesmos lhe entregaram, e que chegou a apresentar a pagamento, o qual foi recusado, ter-se-á de concluir que o crime de burla se consumou por aquele valor, sendo tentado pelo valor dos cheques.
Como, a dado passo da decisão recorrida, a Mmª. Juíza não deixa de reconhecer, trata-se de um só crime, unificado por uma única resolução criminosa, que abrange a intenção de enriquecimento ilegítimo da arguida com a apropriação, quer da quantia monetária de € 262.502,00, quer do valor titulado pelos cheques. Contrariamente ao que o recorrente sustenta nas conclusões I a IV, não é sustentável a autonomização de um outro crime de burla, relativo à entrega do cheque no valor de € 100.000,00.
Há, pois, uma única ação ilícita, consubstanciadora de um só crime de burla, embora integrado pela prática de atos de execução através dos quais se consumou o prejuízo patrimonial (em relação ao dinheiro) e de atos de execução em que o resultado foi meramente tentado (relativamente ao valor titulado pelos cheques, mormente o de € 100.00,00, único que releva para a questão que nos ocupa, por ter sido apresentado a pagamento e dado à execução em Portugal).
Porém, não é correto esquecer por completo estes últimos atos, como se faz na decisão recorrida, com o argumento de, já em momento anterior, a arguida haver praticado atos que permitem ter como consumado o crime de burla. Isto porque o seu comportamento não se quedou por aí. Ao invés, na execução do mesmo desígnio criminoso, praticou outros factos, visando aumentar o seu benefício ilegítimo, com o consequente empobrecimento dos ofendidos, sendo, por isso, igualmente ilícitos, enquanto atos de execução do mesmo (e único) crime de burla.
Aliás, algo contraditoriamente com esse entendimento, a Senhora Juíza não deixa de reconhecer relevância a esses comportamentos, traduzidos na apresentação do cheque a pagamento e na instauração da ação executiva para cobrança coerciva do mesmo, referido que, através deles, a arguida visava aumentar a medida da sua vantagem patrimonial, circunstância que se reflete no desvalor da ação e no grau de ilicitude.
Para mais facilmente se demonstrar a relevância de tais condutas da arguida, basta colocar a hipótese de a quantia monetária de que a mesma se apoderou não atingir o patamar de valor elevado, recaindo, pois, a sua conduta (consumada) na previsão do tipo de crime de burla simples do art. 217º, enquanto aqueles atos já integrariam a burla qualificada tentada prevista e punida pelo art. 218º, n.º 2, al. a), do mesmo diploma.
Nesse caso, haveria necessariamente que confrontar as reações que correspondem às formas consumada e tentada para se definir a sanção aplicável. E correspondendo ao crime de burla simples, na forma consumada, a pena de prisão até 3 anos ou multa (art. 217º, n.º 1, do Código Penal) e ao crime de burla qualificada, na forma tentada, a pena de prisão de 1 mês a 5 anos e 4 meses (art.s 218º, n.º 2, al. a), 23º, n.ºs 1 e 2, e 73º, n.º 1, als. a) e b), todos do referido código), a conclusão seria no sentido de que, atenta a maior gravidade do ilícito tentado, este absorveria a forma consumada [5].
Com a apresentação a pagamento do cheque no valor de € 100.000,00, a que se seguiu a instauração da ação executiva destinada a obter sua cobrança coerciva, a arguida levou a cabo atos de execução, no âmbito do seu projeto criminoso de enriquecimento ilegítimo à custa do correspondente prejuízo patrimonial dos ofendidos, que ainda integram o crime de burla.
Revestindo o crime de burla imputado à arguida simultaneamente a forma consumada e a forma tentada, haverá que ter presente o disposto no art. art. 7º, n.º 2, do Código Penal, segundo o qual, no caso de tentativa, o facto considera-se praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido, ou seja, in casu, em Portugal.
Ora, para que tenha lugar a aplicação da lei portuguesa, por força do princípio da territorialidade consagrado no art. 4º, al. a), do Código Penal, basta que a infração tenha com o território nacional qualquer um dos elementos de conexão previstos no art. 7º do mesmo diploma, como sucede, nos termos expostos.
Note-se que o despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, igualmente fundado na inaplicabilidade da lei penal portuguesa, assentou no pressuposto errado de todos os cheques terem sido apresentados a pagamento em França, sem ponderar, pois, que um deles, no valor de € 100.000,00, foi apresentado junto de instituição bancária em Portugal (cf. fls. 430).
Determinada que está a aplicação da lei penal portuguesa aos factos relativos ao crime de burla, por seu turno, o deferimento da competência interna às instâncias judiciais nacionais para dele conhecerem há de ser procurado no art. 22º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o qual atribui a competência para conhecer do crime que for cometido em parte no estrangeiro ao tribunal da área nacional onde tiver sido praticado o último ato relevante, nos termos das disposições anteriores.
Ou seja, verificada que seja uma das conexões previstas pelo art. 7º do Código Penal e havendo, também, atos praticados em território estrangeiro, a competência é, internamente, deferida em função do local do território nacional onde, de acordo com o disposto nos arts. 19º a 21º, se situar o último ato relevante.
Em síntese conclusiva, entendemos que, nos termos do disposto nos arts. 4º, al. a), e 7º, n.º 2, do Código Penal, a lei penal portuguesa é aplicável à apreciação de um crime de burla, em que os atos de execução em que se traduziu o prejuízo patrimonial do ofendido ocorreram todos no estrangeiro, mas em que o agente, atuando sempre sob o mesmo e único desígnio criminoso, praticou ainda, em território nacional, atos de execução com o propósito de aumentar o seu enriquecimento ilegítimo, mas relativamente aos quais não se chegou a verificar aquele resultado.
Por conseguinte, não há fundamento para considerar a lei penal portuguesa inaplicável ao caso em apreço, como foi entendido na decisão recorrida, que, nessa parte, deve ser revogada.
3.4 - Não obstante ter concluído por essa inaplicabilidade e, consequentemente, ter considerada prejudicada as tarefas de apreciação dos indícios e de seleção da materialidade suficientemente indiciada e não indiciada, o certo é que, ainda assim, a Mmª. Juíza debruçou-se sobre os termos do RAI apresentado pelo assistente, para concluir que não vêm enunciados no mesmo quaisquer factos passíveis de integrar o imputado crime de falsificação de documento, pelo que, não sendo admissível a formulação de convite para aperfeiçoamento de tal requerimento nem podendo a apontada falta ser suprida por recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal, nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia quanto a esse crime.
O recorrente não reagiu contra esse segmento da decisão recorrida, com ele se conformando, uma vez que optou por circunscrever o objeto do recurso ao crime de burla.
Assim, nessa parte, em que o tribunal a quo, independentemente de considerar inaplicável a lei penal portuguesa e de a arguida não poder ser julgada perante as instâncias judiciais nacionais, ainda decidiu que nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia quanto ao crime de falsificação de documento, a decisão transitou em julgado, o que obsta a nova apreciação da questão na sequência do ora decidido sobre a aplicabilidade da lei portuguesa.
Já no que concerne ao crime de burla, apesar de também detetar alguma insuficiência narrativa no RAI, a Senhora Juíza concede que a mesma poderia ser colmatada através de uma eventual alteração não substancial dos factos que concretizasse os aspetos em falta.
Por outro lado, na parte final da decisão recorrida, alude ainda à existência de duas versões - a dos ofendidos e a da arguida - e menciona que não deixa de causar estranheza que, no contexto da versão do assistente, tenham sido entregues à arguida cheques de garantia, bem como que aquele não chega a concretizar, pelo menos com suficiente clareza, o que é que esses títulos se destinavam a garantir.
Não obstante essas considerações, o certo é que a Mmª. Juíza não retira delas qualquer efeito, designadamente quanto à (in)suficiência de indícios relativamente ao imputado crime de burla, questão que não chegou a apreciar, o que deverá fazer na sequência do ora decidido quanto à aplicabilidade da lei penal portuguesa, apreciando se a arguida deve ou não ser submetida a julgamento pelos factos e com o enquadramento jurídico constantes do RAI, relativos ao referido crime de burla.
Ao contrário do que pretende o recorrente, está este tribunal de recurso impedido de se pronunciar sobre tal questão, uma vez que sobre ela não há, ainda, qualquer decisão da primeira instância. Com efeito, a decisão recorrida não foi um despacho de não pronúncia, isto é, uma decisão sobre o fundo ou o mérito da pretensão do requerimento de abertura de instrução, mas antes uma decisão sobre um pressuposto processual indispensável à decisão sobre o fundo da causa: a aplicação da lei penal portuguesa aos factos sob investigação.
Face ao exposto, há apenas que revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por outro que considere a lei penal portuguesa aplicável aos factos atinentes ao crime de burla. Essa revogação significa apenas que a lei penal portuguesa é aplicável a esses factos, narrados no requerimento de abertura de instrução, cabendo à Senhora Juíza de Instrução Criminal averiguar, nos termos do disposto no artigo 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se, até ao encerramento da instrução, foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo assistente, J. A. C., e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo a Mmª. Juíza de Instrução Criminal, proferir decisão instrutória, nos termos do n.º 1 do artigo 308º, do Código Processo Penal, quanto ao crime de burla, nos termos supra expostos.
Sem custas (art. 515º, n.º 1, al. b), a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 04 de dezembro de 2017

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)

[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] - Vide A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 277.
[3] - Cf. Maria Fernanda Palma e Rui Carlos Pereira, "O crime de burla no Código Penal de 1982-95", in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, pág. 323.
[4] - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 21-06-2006 (processo n.º 06P1055) e de 04-06-2003 (processo n.º 03P1528), ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] - Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 24-03-1999 (processo n.º 1271/98, 3ª Secção).