Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
61/19.9T8AVV-B.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: VALOR DA CAUSA
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
CUMULAÇÃO REAL E APARENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Na ação de declaração de constituição de uma servidão de aqueduto, direito de acesso e propriedade de águas, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios dominantes não goza de independência, sendo um mero pressuposto daqueles primeiros pedidos.
II – Por se tratar de pedidos que não têm autonomia e que são dependentes dos demais pedidos formulados, no sentido de serem seus pressupostos prévios, não existe uma cumulação real de pedidos, mas apenas uma cumulação meramente aparente.
III – Em situações de cumulação meramente aparente, o valor da causa deve ser fixado apenas em função da utilidade económica dos pedidos substanciais, em conformidade com o disposto nos arts. 296º, nº 1 e 297, nº 1, 2ª parte, e 302º, nº 4, todos do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e mulher BB instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra CC e marido DD formulando os seguintes pedidos:

I- Sejam os RR condenados a reconhecer que os AA, com exclusão de outrem, são donos e legítimos proprietários dos prédios identificados sob os artigos nº 1º,2º,3º e 4º da Petição Inicial, de acordo com os títulos exibidos;
II- Que se declare que os prédios dos RR, identificado sob o artigo 5º alínea c) e d) deste articulado estão onerados a favor dos prédios dos AA, identificado sob o artigo 1º alínea a) e b) da PI com uma servidão de aqueduto na qual se integra a faculdade ou direito de acesso, pelos locais indicados, bem como a faculdade de inspecionar o aqueduto, e os depósitos, identificados nos artigos 17º, 18º, 19º, 20º, da Petição Inicial;
III- Se condene os RR a reconhecer a existência do direito de servidão e de aqueduto e de direito de acesso ao mesmo, bem como reconhecer que os AA são donos e legítimos proprietários da água da “Mina da ...”, nos dias e horas mencionados no artigos 22º e 23º deste Petitório;
IV- Que sejam condenados os RR a repor a situação inicial e a contribuir para a realização das obras em conjunto com os AA, de condução das águas através de tubo, com o seu início dentro da Mina da ..., bem como obras de represa a serem realizadas dentro da própria mina, ou se assim se entender na entrada da mina, para evitar o desvio ilícito da água e melhor aproveitamento da mesma;
V- Que os RR se abstenham de praticar atos que ponham em causa ou dificultem ou diminuam o direito de propriedade sobre as águas da “Mina da ...”, ou do exercício de servidão de aqueduto.

Os autores indicaram à ação o valor de € 8 000.
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Os réus apresentaram contestação e indicaram como valor o da ação.
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Por despacho de 24.3.2020 (ref. Citius ...98) foi admitida a intervenção principal provocada de EE e esposa FF e de GG, na qualidade de associados dos autores.
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A interveniente GG apresentou petição inicial (cf. requerimento 6.7.2020, ref. ...92) na qual formulou os seguintes pedidos:

a) DECLARAR-SE que o prédio urbano, composto por casa de ... e ... andar, para habitação, com uma dependência e rossios, a confrontar de todos os lados com proprietário, inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...65º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...33 e o prédio rústico, denominado “Campo ...”, composto por cultura arvense de regadio e vinha em ramada e 2 ..., a confrontar do Norte e Nascente com Caminho Público, do Sul com Ribeiro e do Poente com HH, inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...12º e que corresponde a 1/3 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...01, integram o acervo hereditário da herança aberta por óbito de II e pertencem, em comum e sem determinação de parte ou direito, aos seus herdeiros, a ora Interveniente e o filho JJ;
b) DECLARAR-SE que a Interveniente e o seu falecido marido - e agora os herdeiros – adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade (em compropriedade) sobre a “Água da ...” de 4ª feira à noite até 5ª feira à noite, todos os anos e todas as semanas durante o período compreendido entre 29 de Junho e 29 de Setembro e que é aproveitada para rega do prédio rústico e dos rossios do prédio urbano descritos na alínea anterior;
c) DECLARAR-SE que a Interveniente e o seu falecido marido - e agora os herdeiros – adquiriram, por usucapião, uma servidão de aqueduto da “Água da ...”, constituída ao longo dos prédios dos Réus identificados pelos Autores no art. 13º da Petição Inicial, primeiro por meio de rego a céu aberto até ao depósito onde é represada/recolhida e, depois, mediante tubos colocados subterraneamente, um desde este depósito até ao depósito/caixa de derivação e outro desde este depósito/caixa de derivação até ao caminho, por onde segue e circula em direção aos prédios supra descritos na alínea b) e em benefício destes, onde cai no tanque e é aproveitada para rega;
d) DECLARAR-SE que a interveniente e o seu falecido marido - e agora os herdeiros – têm direito de acesso e passagem pelos prédios dos Réus para, sempre que têm direito à água, procederem à abertura da torneira que lhes corresponde e à limpeza/desobstrução do depósito de derivação, bem como para acederem ao depósito que a recolhe e procederem à sua limpeza e desobstrução, para acompanharem a água até esse depósito e procederem à desobstrução, limpeza e reparação do rego a céu aberto que a encana.
e) CONDENAREM-SE os Réus a reconhecer e a respeitar o que se pede seja declarado, abstendo-se da prática de quaisquer atos que ofendam tais direitos.

Indicou como valor o da ação.
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Os intervenientes EE e FF apresentaram petição inicial (cf. requerimento de 8.1.2021, ref. ...15) na qual formularam os seguintes pedidos:

a) Declarar-se que os Intervenientes são donos e legítimos proprietários dos prédios identificados no artigo 1.º alínea a) e b) deste articulado;
b) Declarar-se que os Intervenientes, por si e por seus antepossuidores adquiriram, por servidão de destinação de pai de família e por usucapião, o direito à “Água da ...”, e têm direito a cinco andadas de água, que corresponde a dois dias e meio de água e que a referida água é aproveitada para rega dos rossios do prédio urbano e do prédio rústico identificados no artigo 1.º alínea a) e b) deste articulado, de quinta feira-feira à noite até a sexta-feira à noite e de sexta-feira à noite até domingo de manhã;
c) Declarar-se que os Intervenientes adquiriram, por usucapião, uma servidão de aqueduto da “Água da ...”, constituída ao longo dos prédios identificados pelos Autores no art. 13º da Petição Inicial, primeiro por meio de rego a céu aberto até ao depósito onde é represada/recolhida e, depois, mediante tubos colocados subterraneamente, desde este depósito até ao depósito/caixa de derivação e outro desde este depósito/ caixa de derivação até ao caminho, por onde segue e circula em direção aos prédios supra descritos na alínea a) e em beneficio destes, onde cai no tanque e é aproveitada para rega;
d) Declarar-se que os intervenientes têm direito de acesso e passagem pelos prédios identificados no artigo 13º da Petição Inicial para, sempre que têm direito à água, procederem à abertura da torneira que lhes corresponde e à limpeza/desobstrução do depósito de derivação, bem como para acederem ao depósito que a recolhe e procederem à sua limpeza e desobstrução, para acompanharem a água até esse depósito e procederem à desobstrução, limpeza e reparação do rego a céu aberto que a encana.
e) Condenarem-se os réus a aterrar o espaço escavado no prédio referido no artigo 13.º alínea c) da Petição Inicial.
f) Condenarem-se os Réus a repor a situação prévia às alterações concebidas no verão de 2018 e a contribuírem para a realização das obras que vierem a ser determinadas.
g) Condenarem-se os Réus a reconhecer e a respeitar o que se pede e seja declarado, abstendo-se da prática de quaisquer atos que ofendam tais direitos.

Indicaram como valor o da ação.
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Por despacho de 1.6.2022 (ref. Citius ...54), BB, KK e LL foram habilitados como sucessores do falecido autor AA.
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Em 8.9.2022, foi proferido despacho (ref. Citius ...50) com o seguinte teor:

Considerando as regras contidas nos art. 296º e ss. do CPC e os pedidos formulados, notifique AA e intervenientes para indicarem os critérios subjacentes ao valor que atribuíram à acção.”
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Notificados deste despacho:

a) a interveniente GG veio dizer que o pedido de reconhecimento/declaração de que os prédios rústico e urbano integram o acervo hereditário da herança aberta por óbito de II e pertencem, em comum e sem determinação de parte ou direito, aos seus herdeiros é um mero antecedente lógico do que a Interveniente pretende com a ação e que consiste no reconhecimento do direito de propriedade (em compropriedade) sobre a água, o reconhecimento da servidão de aqueduto da água e o reconhecimento do direito de acesso e passagem.
Por isso, na indicação do valor da ação, a interveniente não atendeu ao valor do prédio rústico nem ao valor do prédio urbano e considerou apenas a propriedade da água, a servidão de aqueduto e os direitos de acesso e passagem e, embora não tenha feito qualquer avaliação desses direitos, considerou adequado o valor de 8.000,00 € que os autores atribuíram aos mesmos na p.i. (requerimento de 20.9.2022, ref. ...71);

b) os autores vieram dizer que entenderam fixar o valor da ação em € 8.000,00, atendendo ao critério geral de utilidade económica imediata, cfr artº 296º e dos critérios especiais previstos nos artigos nº 297º e 302º do CPC.
Ou seja, consideraram a propriedade da água, a servidão de aqueduto, os direitos de acesso de passagem bem como as obras a levar a cabo na condução da água. (requerimento de 26.9.2022, ref. ...04).
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Em 29.10.2022 foi proferido despacho (ref. Citius ...61) com o seguinte teor decisório:

“Por conseguinte, nos termos do preceituado no art. 296º, 302º, n.º 1, 308º e 306º, n.º 1 do CPC, fixo à causa o valor de € 79275.45, correspondente ao valor dos prédios cuja propriedade AA. e intervenientes pretendem ver reconhecida a seu favor, por referência ao valor patrimonial dos mesmos, constante das certidões matriciais juntas aos autos, acrescido do valor atribuído aos demais pedidos (€8000), visto que o reconhecimento da propriedade sobre os prédios em causa reveste interesse para os AA e intervenientes, correspondendo, por isso e também à utilidade de tal pedido.
Notifique.
Em consequência da alteração do valor, este juízo local cível carece de competência para a tramitação desta acção, sendo competente o Juizo central cível.”
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A interveniente GG não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1º O previsto art. 302º do Cód. Proc. Civil é a concretização do critério geral consagrado no art. 296º do mesmo diploma legal e que lhe serve de base.
2º De acordo com esta última norma, para fixação do valor da causa, o critério fundamental é o da utilidade económica imediata que se pretende obter com a ação, ou seja, “a expressão monetária do benefício que pela ação se pretende assegurar” (cf. José Alberto dos Reis, in “Cometário ao Código de Processo Civil”, Vol. 3º, pág. 593).
Ora, o benefício que se pretende alcançar com a ação é-nos fornecido pelo pedido em confronto com a causa de pedir, que o explica e delimita.
4º Nos presentes autos está em causa a defesa do direito de compropriedade sobre uma água (“Água da ...” ou “Mina da ...”), e respetiva servidão de aqueduto e direito de acesso e passagem, localizada num prédio dos Réus e cujo aproveitamento foi posto em causa por atos praticados por estes.
5º A Recorrente foi chamada e admitida a intervir nos autos por ser consorte da referida água.
Pretendendo assegurar a sua quota parte no direito à água, a Recorrente apresentou a sua Petição.
7º O pedido de reconhecimento/declaração de propriedade dos prédios rústico e urbano referidos nos arts. 8º a 13º da Petição [alínea a) do pedido] é um mero antecedente lógico do que a Recorrente pretende com a ação e que está identificado nas alíneas b), c) e d).
8º A Recorrente invoca-os porque são os prédios onde a água é usada/aproveitada e para onde é conduzida (cf. art. 14º da Petição).
9º O mesmo fazem os Autores e Intervenientes Principais EE e mulher quanto aos prédios rústicos e urbanos referidos no ponto I. e alínea a) dos respetivos pedidos.
10º O interesse/pretensão da Recorrente (e das demais partes ativas - Autores e Intervenientes Principais) cinge-se ao direito à água, à servidão de aqueduto e direito de acesso e passagem.
11º Não há utilidade no reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios rústicos e urbanos identificados nos pedidos [alínea a) quanto à Recorrente, ponto I. no que respeita aos Autores e alínea a) no que se refere aos Intervenientes Principais EE e mulher].
12º O valor da ação deve, portanto, ser fixado em 8.000,00 €, correspondente à real utilidade económica e imediata do pedido.”

Termina pedindo que seja revogada a decisão que fixou o valor à causa e que se determine que esta tenha o valor de 8.000,00 €, com todas as legais consequências..
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se nos autos há uma cumulação real de pedidos e, por isso, na fixação do valor da ação se deve ter em conta o valor dos imóveis cujo reconhecimento da propriedade é peticionado, ou se, pelo contrário, há uma mera cumulação aparente e o valor desse pedido, não deve ser considerado para efeitos de fixação do valor da ação.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão são os que se encontram descritos no relatório e resultam do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

A decisão recorrida considerou que o valor da ação deveria incluir também o valor patrimonial dos imóveis cujo reconhecimento da propriedade é pedido na ação, aduzindo para tal decisão a seguinte fundamentação:

A propósito do valor da acção, preceitua o art. 302º, n.º 1 do CPC que, se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa.
Ora, os AA e os intervenientes principais alegam, além do mais, serem proprietários dos prédios que identificam e concluem peticionando o reconhecimento de tal propriedade, nos termos alegados e a condenação dos Reus a reconhecê-la.
Peticionam ainda o reconhecimento do direito à agua que melhor identificam, na qualidade de consortes. Resulta dos autos (certidões matriciais), o valor patrimonial dos prédios em causa.
De acordo com a regra enunciada (art. 302º, n.º 1 do CPC), o valor da causa terá de coincidir com o valor patrimonial dos prédios cuja propriedade a A. reclama, a que acrescerá o valor dos demais pedidos.
Não se mostra em crise que o valor de €8000 atribuído à acção, como resulta das respostas apresentadas, se reporte apenas aos demais pedidos formulados que não a declaração de propriedade, mas tal valor, terá de ser corrigido, considerando também a formulação destes pedidos.
Assim, considerando que o pedido formulado quanto ao reconhecimento do direito à agua e consequências daí advenientes foi formulado pelos AA e intervenientes na qualidade de consortes dessa mesma água e, caso a acção tivesse sido proposta inicialmente por todos, sempre nos reportaríamos ao mesmo direito, o valor será comum e de €8000, atenta a falta de impugnação.
A este valor, terá de se acrescentar o valor dos prédios em causa.”

A recorrente discorda deste entendimento e considera que o valor dos prédios não deve ser incluído no valor da ação argumentando, em abono desta sua posição, que na fixação do valor da causa o critério fundamental é o da utilidade económica imediata do pedido previsto no art. 296º e, face a tal critério, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade não tem relevância pois é um mero antecedente lógico do que se pretende com a ação e que se cinge à água, à servidão de aqueduto e ao direito de acesso e passagem.
Quanto à propriedade dos prédios onde a água é usada/aproveitada e para onde é dirigida, não há qualquer diferendo.
Daí que não haja utilidade no reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios rústicos e urbanos identificados nos pedidos dos autores e dos intervenientes.
Por isso, entende que o valor da ação deve ser fixado em 8.000,00 €, correspondente à real utilidade económica e imediata do pedido.

Vejamos, então, qual das duas posições merece acolhimento à face do regime legal aplicável.

Dispõe o art. 296º, do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) sob a epígrafe “Atribuição de valor à causa e sua influência” que

1 - A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
2 - Atende-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.
3 - Para efeito de custas judiciais, o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no presente diploma e no Regulamento das Custas Processuais.

Conforme resulta desta norma “[a] utilidade económica imediata do pedido, expressa em dinheiro, constitui o critério geral para a determinação do valor da causa.(...) As disposições sobre o valor da causa que consagram critérios especiais (arts. 298, 300 a 304) representam a concretização e adaptação deste critério geral, em função da modalidade do pedido formulado” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, Vol. I, pág. 601).

Assim, e efetuando tal concretização, dispõe o art. 297º, nº 1, 1ª parte, que se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário. Compreende-se que assim seja pois se o pedido consiste no pagamento de uma determinada quantia naturalmente que é esta a utilidade económica do pedido, pelo que o valor da ação tem necessária e impreterivelmente de coincidir com esse montante.
De acordo com a 2ª parte dessa mesma norma, se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
Neste segundo caso ter-se-á que atender simultaneamente ao pedido e à causa de pedir para aferir qual a utilidade económica imediata que o autor pretende obter, isto é, qual o benefício, expresso em dinheiro, que corresponde à sua pretensão.
Neste sentido pronunciam-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in ob. cit, pág. 601) dizendo que “o pedido se funda sempre na causa de pedir (...) que o explica e delimita. Dela não abstrai o critério da utilidade económica imediata do pedido, pelo que este não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir, para o apuramento do valor da causa”.
Por seu turno, dispõe o art. 302º, nº 1 e 4, que se a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa; tratando-se de outro direito real, atende-se ao seu conteúdo e duração provável.

Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles (art. 297º, nº 2).
Porém, se os pedidos forem alternativos atender-se-á unicamente ao pedido de maior valor e se forem subsidiários atender-se-á unicamente ao pedido formulado em primeiro lugar (art. 297º, nº 3).
São cumulativos os pedidos deduzidos por um mesmo autor contra um mesmo réu, num único processo (art. 555º, nº 1); são alternativos os pedidos referentes a direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa (art. 553º, nº 1); e são subsidiários os pedidos apresentados ao tribunal para serem tomados em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior (art. 554º, nº 1).

No que concerne à formulação de pedidos cumulativos importa destrinçar a cumulação real da cumulação aparente.

Há cumulação real de pedidos quando se formula mais de que um pedido de carácter substancial, isto é, mais do que um pedido a respeito da relação jurídica material ou substancial. Há cumulação aparente quando a multiplicidade de pedidos é de caráter processual (Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3º, p. 147
Na cumulação real de pedidos o autor pretende obter utilidades económicas diversas, ao passo que na cumulação aparente de pedidos, embora tenha de formular várias pretensões correspondentes a vários estádios jurídicos da tutela do seu interesse, a utilidade económica imediata derivada da procedência do pedido é uma só (cfr. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in Direito Processual Civil, Vol. I, AAFDL, p. 437).
Como refere Artur Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, pág. 110) “há um elemento comum às acções de simples apreciação, condenação e constitutivas: o carácter total ou parcialmente declarativo da actividade do tribunal. Em qualquer destes tipos de acções há sempre a necessidade de verificação e declaração judicial de uma situação jurídica anteriormente existente. Nalgumas - típicas são as de simples declaração - o poder jurisdicional esgota-se aí; noutras, porém, a referida declaração é pressuposto de certa providência (condenatória, constitutiva, ou preventiva), assumindo, assim, a declaração um sentido meramente instrumental” .

Por assim ser, na ação de reivindicação, ao pedir-se o reconhecimento do direito de propriedade (efeito declarativo) e a condenação na entrega (efeito executivo), não se formulam dois pedidos substancialmente distintos, unicamente se indicam as duas operações ou as duas espécies de atividade que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da ação (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol.  3º, págs. 147 e 148).

Portanto, e como afirmado no acórdão desta Relação de Guimarães, de 20.10.2009, Relatora Rosa Tching (in www.dgsi.pt)o que caracteriza a cumulação real de pedidos é a cumulação de acções, no mesmo processo, contra o mesmo réu”.
Ora, na ação de reivindicação “o tribunal não pode condenar o demandado no pedido de restituição da coisa sem antes se certificar da existência e violação do direito de propriedade do demandante e, por isso, há que considerar o pedido de reconhecimento do domínio implicitamente abrangido no pedido de restituição da coisa.
Significa isto que, na acção real de reivindicação, as duas operações, apreciação e condenação, não gozam de independência, sendo o reconhecimento da existência do direito um pressuposto e não um pedido a acrescer ao pedido da entrega da coisa.
Daí que, perspectivando-se a acção de reivindicação como de condenação, não se possa deixar de concluir que nela só aparentemente existe uma acção de simples apreciação cumulada com uma acção de condenação.

Em idêntico sentido, afirma-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 12.3.2013, Relator Roque Nogueira (in www.dgsi.pt) que “a cumulação real de pedidos implica acumulação de acções ou de pretensões, por isso que, quando se pede a declaração do direito e a consequente condenação do réu, a acção é uma só, simplesmente, ao proferir a sentença, o juiz começa por exercer uma actividade declarativa e acaba por emitir uma providência condenatória.

Revertendo ao caso concreto e aplicando-lhe as considerações acima expendidas, temos de concluir que no caso existe uma cumulação meramente aparente entre os pedidos de reconhecimento da propriedade dos imóveis formulados pelos autores e intervenientes e os demais pedidos formulados, e não uma cumulação real.

Na verdade, interpretando os pedidos à luz da causa de pedir, verifica-se que o cerne do litígio consiste em saber se os autores e intervenientes são comproprietários da água (“Água da ...” ou “Mina da ...”) e respetiva servidão de aqueduto e direito de acesso e passagem, localizada num prédio dos réus e cujo aproveitamento foi posto em causa por atos praticados por estes. Estes são os verdadeiros pedidos substancialmente deduzidos nos autos. O pedido de declaração de que os autores e intervenientes são proprietários dos prédios não tem verdadeira autonomia, estando implicitamente abrangido nos demais pedidos formulados, relativamente aos quais funciona como pressuposto, pois não é possível reconhecer a existência dos demais direitos peticionados sem que previamente se declare que os autores e intervenientes são proprietários dos imóveis.
Relembra-se que está em causa uma servidão de aqueduto e de acesso e o direito de propriedade sobre a água. Ora, tratando-se a servidão predial de um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente cujo conteúdo se traduz em quaisquer utilidades suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, servidões que não podem ser separadas dos prédios a que pertencem (arts. 1543º, 1544º e 1545º, do CC), para possa ser reconhecida a existência da servidão e do direito de acesso é sempre necessário apreciar e declarar, como pressuposto prévio, a propriedade dos prédios dominantes. Porém, esta declaração e o correspondente pedido não gozam de autonomia, sendo o reconhecimento da existência do direito de propriedade um mero pressuposto e não um pedido a acrescer aos pedidos da declaração de existência de servidão de aqueduto e acesso, de propriedade sobre as águas e de violação desses direitos por parte dos réus.
Porque se trata de uma cumulação meramente aparente, o pedido de reconhecimento e declaração da propriedade dos imóveis não tem autonomia e não pode ser considerado para efeitos de determinação da utilidade económica dos pedidos, não havendo que recorrer ao critério do art. 302º, nº 1, porque a ação não tem por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa. A ação apenas tem por fim valer os demais pedidos substanciais formulados, pelo que a utilidade económica imediata é apenas integrada pelo valor desses pedidos.
O que significa que, não estando contestado nos autos que os demais pedidos tenham o valor de € 8 000, é esse o valor que constitui a utilidade económica dos pedidos, para efeitos do disposto nos arts. 296º, nº 1, 297º, nº 1, 2ª parte e 302º, nº 4, devendo ser fixado à causa o valor de € 8 000.

Assim, procede o recurso, e deve ser fixado o valor da causa em € 8 000, não ocorrendo, consequentemente, a incompetência do juízo local cível para a tramitação da ação.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Em comentário ao estatuído no citado art. 527º, refere Salvador da Costa (in As Custas Processuais, Análise e Comentário, 8ª ed., pág. 8) que “o conceito de custas envolve um sentido ‘lato’ abrangente da taxa de justiça, dos encargos e das custas de parte, e um sentido estrito, este apenas reportado aos encargos e às custas de parte, sendo este o sentido a que o normativo em análise se reporta” (sublinhado nosso).
A taxa de justiça nos recursos é paga pelo recorrente com as alegações, nos termos do art. 7º, nº 2, do RCP, sob pena de aplicação das sanções a que alude o artigo 642.º do CPC.
No caso em análise, tal pagamento não foi efetuado por a recorrente dele estar dispensado face ao benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
Importa, então, analisar a quem incumbe a responsabilidade pelo pagamento das custas em sentido estrito, ou seja, na vertente de encargos e custas de parte.
A recorrente obteve provimento total no recurso, pois viu a sua pretensão deferida.
Todavia, não foram apresentadas contra-alegações e a parte contrária não praticou qualquer ato ou sustentou posição que tenha contribuído de alguma forma para a decisão que obrigou à interposição de recurso, ou seja, não influenciou nem a decisão recorrida nem a decisão do recurso.
Assim, conclui-se que não há parte vencida, tendo que se recorrer ao critério do proveito para efeitos de definição do responsável pelas custas.
Dada a inexistência de parte vencida no recurso, apesar do seu provimento, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas a que haja lugar, por dele ter obtido proveito ou vantagem.
No caso em análise, a recorrente beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo pelo que, apesar de responsável pelas custas, encontra-se dispensada do seu pagamento.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, na parte em que fixou à causa o valor de €79 275.45, correspondente ao valor dos prédios cuja propriedade AA. e intervenientes pretendem ver reconhecida a seu favor e, em consequência dessa alteração do valor, julgou incompetente o juízo local cível para a tramitação da ação, e fixam à causa o valor de € 8 000, mantendo-se a competência do juízo local cível para a tramitação da ação.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I -  Na ação de declaração de constituição de uma servidão de aqueduto, direito de acesso e propriedade de águas, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios dominantes não goza de independência, sendo um mero pressuposto daqueles primeiros pedidos.
II – Por se tratar de pedidos que não têm autonomia e que são dependentes dos demais pedidos formulados, no sentido de serem seus pressupostos prévios, não existe uma cumulação real de pedidos, mas apenas uma cumulação meramente aparente.
III – Em situações de cumulação meramente aparente, o valor da causa deve ser fixado apenas em função da utilidade económica dos pedidos substanciais, em conformidade com o disposto nos arts. 296º, nº 1 e 297, nº 1, 2ª parte, e 302º, nº 4, todos do CPC.
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Guimarães, 2 de março de 2022

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas