Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
242/15.4GEBRG.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: PERDÃO PREVISTO NA LEI Nº9/2020
DE 10/4
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
ARGUIDO NÃO BENEFICIÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril de 2020 e que entrou em vigor no dia seguinte, veio, para além do mais, estabelecer, em matéria de perdão de penas, a título excecional e no âmbito da emergência pública ocasionada pela doença COVID – 19, que são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado de duração igual ou inferior a dois anos (art.2, n.º 1).
II) É a própria lei que pressupõe de forma clara a condição de recluído em que se encontre o condenado em pena de prisão transitada em julgado no momento da sua entrada em vigor.
III) Foi propósito do legislador prevenir os elevados riscos de contágio que incidem sobre a população prisional, enquanto se mantiver em vigor a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SAR-COV-2 e da doença Covid-19, o que pressupõe que o destinatário da lei seja o recluso e não o “meramente” condenado.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o número 242/15.4GEBR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo local Criminal, foi proferido despacho a considerar que o arguido P. M. não beneficia do perdão instituído pela Lei nº9/2010, de 10 de abril.

2.
Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo das conclusões (transcrição)

«1 - O despacho recorrido indefere pedido de aplicação de perdão de pena porquanto o arguido não era/estava recluso à data da entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10/4.
2 - O despacho recorrido não indica dispositivo legal mas cita texto de um professor universitário, Dr N. B..
3 - A citação é incompleta pois após a palavra "excepcional" existe remessa para Nota de Rodapé 24, onde se lê:
"Cf. artigos 7.º/2 da Lei n.º 1-A/2020 e 10.º da Lei n.º 9/2020."
4 - Em lado algum existe norma que ordene ou sequer permita que os orgãos de polícia criminal não cumpram uma ordem de detenção para cumprimento de pena, solução preconizada por aquele professor, que diz mesmo: "Nestas situações, será aconselhável aguardar pelo termo da presente situação excepcional (24) para se dar início ao cumprimento de tais penas.”
5 - O volume de legislação publicado aquando da aprovação da lei em causa facilita a imprecisão da formulação legal.
6 - Por outro lado, o artº 13º da CRP impede a interpretação em causa.
7 - E os arts 40º e 71º do Código Penal impedem a interpretação preconizada.
8 - A interpretação defendida origina situações de absurda injustiça e desigualdade para situações similares, por detalhes sem relevância jurídico-penal e de todo alheios à vontade dos arguidos.
9 - Uma outra questão fica por resolver, a da verificação posterior do requisito "ser recluso", com benefício do perdão de pena, já que a lei fala de situações de aplicação futura, no nº 5 do artº 2º da mesma lei.
10 - A aplicação exclusiva a condenações transitadas parece violar os princípios e preceitos constitucionais e legais supra elencados, pois o trânsito da condenação em nada é influenciado muitas vezes pelo arguido, sendo que todas as leis de amnistia e perdão de penas tiveram sempre como baliza o factor temporal, a PRÁTICA DOS FACTOS, e não o trânsito, a dedução de acusação ou qualquer outra fase processual.
11 - Inexiste dispositivo legal que impeça a aplicação do perdão de pena ao arguido.
12 - A interpretação feita da lei 9/2020, na medida em que interpreta a mesma de forma restritiva aplicando-a apenas a quem se encontre recluso, viola do disposto nos arts 18, 20 e 32º da CRP.

3.
O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência, aduzindo como argumento o facto do condenado não se encontrar na condição de recluído no momento da sua entrada em vigor da Lei 9/2020.
Em conformidade, não tendo o entendimento perfilhado pelo recorrente qualquer fundamento legal e contrariando a letra da lei e as finalidades que lhe estavam subjacentes, conclui que bem andou o Juiz a quo ao decidir como decidiu, pela desnecessidade de adoção de quaisquer medidas atenta a não verificação dos pressupostos de aplicação do regime de graça do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10.04, ao arguido, inexistindo qualquer violação dos referidos preceitos constitucionais.

4.
Neste tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416º do C.P.P., emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., o arguido não respondeu ao parecer.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.


II. Fundamentação

A) Despacho recorrido (transcrição)

O arguido P. M. foi condenado, por sentença transitada em julgado, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €250,00, pela prática de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços p. e p. pelo artº 220º nº1 al. b) do CP.
Por despacho proferido a fls 385 tal pena foi convertida numa pena de 33 dias de prisão subsidiária.
A fls 452, veio o arguido P. M. requerer que tal pena seja perdoada ao abrigo do artº 2º nº3 da Lei nº 9/2020, de 10/04.
Aberta vista ao MP, o mesmo promoveu que se indeferisse o requerido.
Apreciando.
No pretérito dia 11 de Abril de 2020 entrou em vigor a Lei nº 9/2020, de 10 de Abril, a qual estabeleceu, além do mais, um perdão de determinadas penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado.
Na verdade, estatui o artº 2º nº1 da Lei nº9/2020, de 10/04, que “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.” (sublinhado nosso)
Acrescenta o nº3 do mencionado normativo que “O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa (…)”
Nos termos do artº 2º nº8 do mencionado diploma, “Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.”
Coloca-se, porém, a questão do tratamento a dar aos arguidos condenados, por decisão transitada em julgado, em penas de prisão de duração igual ou inferior a dois anos, ainda não executadas e relativas a crimes não excluídos pelo perdão.
Como muito bem salienta o MP, a Lei nº9/2020, de 10/04 teve apenas por finalidade salvaguardar a saúde das pessoas que se encontram nos estabelecimentos prisionais, as quais estão particularmente expostas a surtos de COVID-19. Assim sendo, quer o espírito, quer a letra da lei apontam no sentido de que o mencionado diploma apenas se aplica aos reclusos, isto é, a pessoas que já se encontram em cumprimento de pena, não sendo extensivo aos condenados, por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor da lei, que ainda estejam em liberdade.
Escreve N. B., “A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei nº 9/2020, de 10/04”, Revista Julgar Online de Abril de 2020: “As circunstâncias extintivas ou flexibilizadoras do cumprimento da pena de prisão previstas na Lei n.º 9/2020 só são aplicáveis a condenados que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor (11.04.2020). Com efeito, além de exigirem o trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, tais medidas pressupõem ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso.
As razões excepcionais que determinaram a aprovação da presente Lei só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor. Nessa medida, e para que fique claro que só esses condenados são destinatários deste regime excepcional, nos artigos 2.º/1, 3.º/1 e 4.º/1 faz-se menção expressa aos reclusos
– sc., os condenados privados da liberdade – como destinatários deste regime excepcional.
()
De fora deste perdão ficarão ainda aqueles que hajam sido condenados por decisão já transitada em julgado aquando do início de vigência da Lei n.º 9/2020, 11.04.2020, mas que nessa data ainda não haviam ingressado num estabelecimento penitenciário para iniciar a execução da pena de prisão que lhes foi aplicada. Voltando ao exemplo do furto simples cometido em 2019, se a condenação transitou em julgado em Janeiro de 2020, sem que, todavia, se tenha iniciado a execução da pena antes do dia 11.04.2020, não haverá lugar a perdão. Nestas situações, será aconselhável aguardar pelo termo da presente situação excepcional para se dar início ao cumprimento de tais penas.”
No caso concreto, o arguido ainda não se encontra em cumprimento de pena, o mesmo é dizer não está recluso, pelo que não beneficia do perdão instituído, não obstante o crime pelo qual foi condenado não estar excluído de tal medida de graça.
Em conformidade com o exposto, indefere-se o requerido.
Notifique»

B) Apreciando

Definindo-se o âmbito do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º, todos do C.P.P. - naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103), no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir passa apenas por saber se poderá beneficiar do perdão previsto na Lei nº9/2020, de 10/4.
A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril de 2020 e que entrou em vigor no dia seguinte veio estabelecer, a título excecional e no âmbito da emergência pública ocasionada pela doença COVID-19 (cfr. o artigo 1.º):

a) um perdão parcial de penas de prisão;
b) um regime especial de indulto das penas;
c) um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados; e ainda
d) a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.

No que ora importa, em matéria de perdão de penas, dispõe o artigo 2.º do mencionado diploma:
“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.
3 - O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.
4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.
5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.
6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos n.ºs 1 e 2 os condenados pela prática:
a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual;
b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;
c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal;
d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal;
e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código;
f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal;
g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo;
h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal;
i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;
j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal;
k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual;
l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;
m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas;
n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal.
7 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.
9 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.”

Mostrando-se clara e fora de qualquer dúvida a aplicação do referido artigo 2º quando então em causa penas em execução, ou seja, quando o condenado já está no interior do estabelecimento prisional à data da entrada em vigor da lei, situação em que o Tribunal de Execução de Penas competente aferirá dos pressupostos de perdão da pena em cada caso concreto, já se suscita a questão de saber se a lei se aplica a decisões já anteriormente transitadas em julgado, mas que à data da entrada em vigor da Lei ainda não estejam em execução, com mandados de detenção e condução ao estabelecimento prisional cumpridos, no momento da entrada e vigor da referida lei, ou seja, em 11 de abril de 2020.
Como resulta da exposição dos motivos da Proposta de Lei nº23/XIV que deu origem à Lei citada «A Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, e como calamidade pública.
Face a essa qualificação e ordenado pelo fundamento final de conter a expansão da doença, o Presidente da República decretou, no dia 18 de março o estado de emergência. Portugal tem atualmente uma população prisional de 12 729 reclusos, 800 dos quais com mais de 60 anos de idade, alojados em 49 estabelecimentos prisionais dispersos por todo o território nacional.
As Nações Unidas, através de mensagem da Alta Comissária para os Direitos Humanos de 25 de março, exortaram os Estados membros a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.
As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento.
(…)
Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade. Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.».
Em conformidade com o exposto, a Lei n.º 9/2020 criou um «regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19», estabelecendo, nomeadamente, no que ora interessa, «um perdão parcial de penas de prisão» - art. 1.º, n.º 1, al. a).
Deste modo, nos termos do seu artigo 2.º, são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado de duração igual ou inferior a dois anos (n.º 1).
Acerca do âmbito de aplicação subjectiva desta lei refere N. B., já citado na decisão recorrida, que «as circunstâncias extintivas ou flexibilizadoras do cumprimento da pena de prisão previstas na Lei n.º 9/2020 só são aplicáveis a condenados que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor (11.04.2020). Com efeito, além de exigirem o trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão tais medidas pressupõem ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso.
As razões excepcionais que determinaram a aprovação da presente Lei só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor. Nessa medida, e para que fique claro que só esses condenados são destinatários deste regime excepcional, nos artigos 2.º/1, 3.º/1 e 4.º/1 faz-se menção expressa aos reclusos – sc., os condenados privados da liberdade – como destinatários deste regime excepcional.».
No mesmo sentido propende Victor Pereira Pinto, in estudo denominado “O perdão previsto no artigo no artigo 2º da Lei nº9/2020”, publicado no SIMP, em 13/4/2020, ao referir que «parece claro dever interpretar-se o art.º 2.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 da Lei aqui em causa como aplicável apenas a “reclusos”, ou seja, a condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor desta lei (n.º 7 do art.º 2.º e art.º 11.º - até 10/04/2020, portanto) que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor (11/04/2020).
Tal significa que não beneficiam do perdão total ou parcial da pena de prisão concedido por este diploma os já condenados por decisão transitada em julgado que ainda não se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor desta lei».
Como também se assinala no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República nº10/20, disponível em ministériopúblico.pt. «[a] linha de fronteira, entre quem beneficia do perdão e quem está excluído do mesmo, passa […] pela condição de recluso na sequência de uma sentença transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei (11 de abril de 2020). Apenas aqueles que ingressaram no estabelecimento prisional e aí se mantém coartados da sua liberdade, em consequência da condenação, por sentença transitada em julgado, estão incluídos».
Na verdade, é a própria lei que pressupõe de forma clara a condição de recluído em que se encontre o condenado em pena de prisão transitada em julgado no momento da sua entrada em vigor.
Foi propósito do legislador prevenir os elevados riscos de contágio que incidem sobre a população prisional, enquanto se mantiver em vigor a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SAR-COV-2 e da doença Covid-19, o que pressupõe que o destinatário da lei seja o recluso e não o “meramente” condenado.
No sentido de que o perdão previsto no artigo 2º da Lei nº9/2020, de 10 de abril só pode ser aplicado a reclusos condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no tribunal, entendeu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/09/2020, proferido no âmbito do processo 178/20.7TXCBR-B.C1.
E não se diga, como pugna o recorrente, que tal interpretação, no sentido da exigência do “ser recluso”, suscita situações de absurda injustiça e desigualdade, violando os artigos 18º,20º e 32º da C.R.P..
De modo algum.
Com efeito, estando em causa uma lei de carácter excepcional e temporário justificado no âmbito da pandemia COVID19 e sendo pacífico o entendimento de que as leis da amnistia, aqui se incluindo as leis que consagram perdões de penas, devem ser interpretadas sem o recurso à interpretação extensiva ou restritiva, antes devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, incluir os condenados seria violar o propósito do legislador e aplicar analogicamente o perdão concedido a reclusos condenados por sentença transitada em julgado, a meros condenados, o que se mostra vedado, porquanto o perdão não comporta aplicação analógica.
Cremos, aliás, que mesmo que não se mostrasse vedada a analogia, inexistiam razões para a ela recorrer, na medida em que a lei em causa não comporta qualquer lacuna, antes se evidenciando na mesma uma opção clara em dela excluir os meros condenados, em relação aos quais, por não se encontrarem ainda no estabelecimento prisional, não valem as razões que estiveram na origem da concessão do perdão, designadamente a necessidade de aliviar os estabelecimentos prisionais e, dessa forma, evitar que no seu interior o vírus se propague.
Entende também o recorrente que a mencionada interpretação viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da C.R.P.

Não lhe assiste razão.
Com efeito, ainda que se admita que o perdão possa colocar problemas do ponto de vista do mencionado princípio, na medida em que apenas se aplica aos reclusos, ficando de fora da sua aplicação outros condenados, a verdade é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência do Tribunal Constitucional, têm vindo a excluir tal violação quando as eventuais diferenças de tratamento se mostram sustentadas em critérios objectivos.
A propósito deste princípio constitucional, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº273/2016, de 4/5/2016 que “Da extensa jurisprudência constitucional sobre a temática resulta que o princípio não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações (e a sua medida) materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional”
É exemplo o Acórdão de 39/88, de 9 de fevereiro, “ O princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções.
Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes”.
Ora, no caso vertente, as razões da diferenciação de tratamento entre as duas categorias de condenados - reclusos e não reclusos - têm um fundamento material bastante, o qual se prende com a eliminação dos riscos de contágio do vírus no interior do estabelecimento prisional, riscos esses que só existem relativamente aos condenados já efectivamente recluídos e já não em relação aos demais.
E assim sendo, como é, não vislumbramos pois que a interpretação da norma do artigo 2º da Lei 9/2020, no sentido de apenas abranger os condenados que se encontrem recluídos seja violadora do princípio constitucional da igualdade.
Na senda do que vimos entendendo a respeito do âmbito de aplicação do perdão e volvendo-nos no caso vertente, verifica-se que por sentença de 16/02/2017, confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 9/10/2017, foi o arguido, ora recorrente, condenado como autor de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, p. e p. pelo artigo 220º,nº1,al.b), do C.Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €250,00.
Por despacho proferido a 18/10/2018, tal pena foi convertida numa pena de 33 dias de prisão subsidiária e determinado o seu cumprimento.
Porém, o ora arguido não chegou a iniciar o cumprimento da mencionada pena à ordem dos presentes autos.
Assim, não obstante o crime pelo qual foi condenado não ser um dos excluídos do referido perdão nos termos enunciados nos n.ºs 2 do art.º 1.º e 6 do art.º 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10/04, e, por outro lado, a pena da prisão que terá de cumprir ser inferior a dois anos de prisão, o mesmo não poderá beneficiar do perdão da pena de prisão concedido pela Lei n.º 9/2020, de 10/04.
Com efeito, o arguido não se encontra em cumprimento de pena à data da entrada em vigor desta lei (11-04-2020) e as razões excepcionais que determinaram a sua aprovação só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor.
Improcede, portanto, o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC (arts. 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este último diploma).

(O acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
Guimarães, 9 de dezembro de 2020