Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
679/14.6GCBRG-B.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: ENCERRAMENTO DE INQUÉRITO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CRIME SEMI-PÚBLICO
NULIDADE
REMESSA DOS AUTOS AO M.º P.º
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) Decorre do artº 48º do CPP que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao Mº Pº, com as restrições dos artºs 49º a 52º, do mesmo diploma. O Mº Pº, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos) mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução de acusação particular (nos crimes particulares).
II) Havendo notícia e queixa por um crime de natureza semipública, o Mº Pº tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes.
III) Terminado o inquérito, ao Mº Pº cabe, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para tomar uma das posições previstas no artº 276º, nº 1 do CPP: o arquivamento (nas modalidades previstas no artº 277º, do CPP) ou de acusação.
IV) In casu, é inequívoco que ao longo do inquérito e no despacho de encerramento de inquérito a que se reportam os presentes autos, houve absoluta omissão de pronúncia do magistrado do Mº Pº sobre um crime semipúblico que lhe tinha sido denunciado pelo ofendido.
V) Nestes termos, verifica-se uma nulidade que afecta todos o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artº 122º, nº 1, do CPP) devendo o procedimento ser retomado pelo Mº Pº, nos termos em que o magistrado titular entender adequados.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nos autos de processo comum nº 679/14.6GCBRG, o Exmo juiz da Secção Criminal da Instância Local de Braga proferiu despacho com o seguindo teor (transcrição):

“Compulsados os autos, verifico que o Digno Magistrado do Ministério Público titular do processo de inquérito declarou o mesmo encerrado, proferiu despacho de arquivamento quanto ao crime de dano simples, previsto e punido pelo artigo 212.°, n.° 1, do Código Penal, relativamente ao dia 5 de dezembro de 2014, entre as 05.00 e as 05.30 horas, e deduziu acusação contra o arguido NELSON M., relativamente a factos ocorridos no dia 5 de dezembro de 2014, imputando-lhe a prática, em concurso efetivo, de:

a) Um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.°, n.° 1, do Código Penal;
b) Um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.°, n.° 1, do Código Penal;
c) Um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.°, n.° 1, do Código Penal;
d) e um crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.°, n.°s 1 e 3, do Código Penal. -
Em sede de despacho de encerramento do inquérito e de acusação não foi apreciada a queixa crime apresentada por MÓNICA A. contra NELSON M. e que deu origem ao processo de inquérito n.° 937/14.OI9BRG, o qual foi entretanto apensados aos presentes autos, conforme resulta de fls. 71 e 71.

*
Ora, na queixa crime apresentada, MÕNICA A. imputa ao arguido um ilícito de natureza semipública, previsto e punido pelo artigo 190.° do Código Penal e ocorrido no dia 10 de setembro de 2014.
Sendo um crime de natureza semipública (cfr. o artigo 198.° do Código Penal), cabia ao Ministério Público deduzir acusação, nos termos do disposto nos artigos 48.° e seguintes do Código de Processo Penal, ou proferir despacho de arquivamento nos termos legais.
Ao nada fazer quanto a um crime de natureza semipública, procedimento pelo qual tem exclusiva competência para acusar ou arquivar, o Ministério Público está a violar o dever imposto pelo seu Estatuto (cfr. os artigos 219.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 1.° do Estatuto do Ministério Público), de exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade, promovendo o procedimento criminal com a dedução da acusação com observância do respetivo e adequado processo (cfr. os artigos 48.° e 53.°, n.° 2, alínea c), ambos do Código de Processo Penal).
Consequentemente, o Ministério Público, ao não deduzir acusação por crime público ou semipúblico devendo fazê-lo, bem como ao não pronunciar-se sobre crime de natureza semipública relativamente ao qual foi apresentada queixa, violou o dever de promover a ação penal imposto pelos normativos citados, o que constitui a nulidade insanável expressamente prevista no artigo 119.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal (seguimos, quanto a esta matéria, integralmente o entendimento e fundamentação constantes do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 112000 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, 1-Série A, de 06 de Janeiro de 2000).
Por se tratar de uma nulidade insanável, a mesma não pode ser sanada pela forma sugerida pelo Ministério Público a fls. 170.
Pelo exposto, declaro nulo o despacho de fis. 107 a 113, bem como todo o subsequente processado, determinando a remessa dos presentes autos novamente para a fase de inquérito para que o Ministério Público profira despacho de arquivamento ou deduza acusação contra o arguido relativamente a todas as queixas apresentadas e em apreciação nos presentes autos.

Notifique, dê a competente baixa processual e, após trânsito, cumpra.

2. Inconformado, o Ministério Público, por intermédio da Exmª magistrada na Instância Local, interpôs recurso concluindo que a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que receba a acusação pública, que designe data para a realização da audiência de julgamento e que determine a entrega de certidão ao Ministério Público para investigação autónoma dos factos denunciados no apenso 937/14 e susceptíveis de integrar crime de natureza semi-pública.

Não houve resposta do arguido.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exmº procurador-geral adjunto exarou fundamentado parecer, concluindo que “o recurso do MºPº não deverá merecer provimento, devendo confirmar-se o despacho recorrido."

3. As conclusões da motivação delimitam o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação.

Constitui circunstancialismo assente que no despacho de encerramento do inquérito o magistrado do Ministério Público (MP) deduziu acusação pública mas não se pronunciou – deduzindo acusação ou determinando o arquivamento – quanto a factos susceptíveis de integrarem o cometimento de um crime previsto e punido no artigo 190º do Código Penal que tinha sido objecto de queixa pela ofendida e a questão a resolver consiste em saber qual a natureza e os efeitos dessa desconformidade processual.

4. Como escreveu o Exmº magistrado do Ministério Público neste Tribunal da Relação (transcrição),

“A nulidade insanável prevista no dito art.º 119, al. b) do CPPenal – “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º”, como exemplarmente se consignou no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/02/2014, proc. 154/11.0GBCVL.C1, sendo dele relatora a desembargadora MARIA PILAR DE OLIVEIRA, considera duas concretas hipóteses, “não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o MP acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido”.
No mesmo sentido se orienta o acórdão da mesma Relação, de 22/04/2015, proc. 43/13.4TASBG-B.C1, sendo relator o desembargador LUÍS TEIXEIRA, onde expressamente se fez consignar: “Da forma como interpretamos o poder/dever de promoção processual do MP, entendemos que o vício de falta de promoção deve ser o mesmo quer nos crimes públicos, quer nos crimes semi-públicos quer nos crimes particulares. Para todos eles existem regras específicas que têm que ser observadas. Se é de entender que nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119º, alínea b), do CPPenal, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado”.
Ou seja, o aresto deste Tribunal que conforta o recorrente, acórdão de 18/02/2012, relatado pelo desembargador Fernando Monterroso aprecia, em exclusivo, a segunda vertente interpretativa supra indicada, quando outrem exercer a acção penal em vez do MºPº, já não a primeira daquelas. Na realidade, o MºPº no despacho de encerramento do inquérito, porque em causa estava um crime de natureza semi-pública, nos termos do art.º 48 do CPPenal, competia-lhe exercer a acção penal. Ou seja, o MºPº tinha legitimidade exclusiva para o exercício de tal dever e não a exercitou. Ao fazê-lo, ao omitir tal acto, praticou, efectivamente, uma omissão tida como nulidade insanável.
E a ordem de remessa do inquérito para o MºPº, nestas precisas circunstâncias, não constitui uma intromissão no acusatório por parte do julgador, antes sendo uma decorrência normal do trânsito em julgado de uma decisão judicial que fez luz sobre a existência de um vício capital, insanável, verificado no inquérito. Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora, de 29/05/2012, proc. 1.7TASTB-A.E1, sendo relator o desembargador SÉNIO ALVES: “ Ao declarar-se a nulidade de falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público, a consequência lógica é a remessa dos autos ao Ministério Público, para que este realize as diligências que entenda serem de levar a cabo, dentro das funções do mesmo (artigos 262º e 263º do Código de Processo Penal)”.

Subscrevemos na íntegra este entendimento.

Decorre do artigo 48º do Código de Processo Penal que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao MP, com as restrições dos artigos 49º a 52º, do mesmo diploma. O MP, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução que acusação particular (nos crimes particulares).

Havendo notícia e queixa por um crime de natureza semipública, o Ministério Público tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes.

Terminado o inquérito, ao MP cabe, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para tomar uma das posições previstas no artigo 276º, nº1 do Código de Processo Penal: de arquivamento (nas modalidades previstas no artigo 277º do Código de Processo Penal) ou de acusação.

Afigura-se-nos como inequívoco que ao longo do inquérito e no despacho de encerramento de inquérito a que se reportam os presentes autos, houve absoluta omissão de pronúncia do magistrado do MP sobre um crime semipúblico que lhe tinha sido denunciado pelo ofendido.

No artigo 119º, al. b), do Código de Processo Penal, a lei adjectiva qualifica expressamente a falta de promoção do processo penal pelo Ministério Público como uma nulidade insanável. Salvo o devido respeito por diferente entendimento, a lei não restringe a previsão à situação em que o inquérito tenha sido promovido ou impulsionado por outra entidade e aplica-se sempre que se verifique falta de promoção pelo titular da acção penal.

Apesar de o processo ter vindo da fase de inquérito, não se vislumbra fundamento que afaste a aplicabilidade pelo juiz do regime geral das invalidades processuais constante dos artigos 118.º a 123.º do Código do Processo Penal.

Nestes termos, verifica-se efectivamente uma nulidade que afecta todo o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do Código do Processo Penal) e deve o procedimento ser retomado pelo MP, nos termos em que o magistrado titular entender adequados.

A aplicação estrita das normas referentes às nulidades processuais não significa a imposição pelo juiz de um concreto destino do inquérito, nem envolve qualquer intromissão na esfera dos poderes do Ministério Público, enquanto magistratura autónoma a quem compete o exercício da acção penal, assim se contendo no respeito pelo princípio do acusatório, constitucionalmente garantido.

5. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso do Ministério Público e em manter o despacho recorrido.

Sem tributação.

Guimarães, 12 de Julho de 2016.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.