Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
226/11.1GBAVV.G1
Relator: FILIPE MELO
Descritores: ARMA DE FOGO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Para o efeito das normas dos arts. 97 nº 1 e 2 nº 1 al. aac) da Lei 5/2006 de 23-2, para se aferir se um objeto é uma «reprodução de arma de fogo» não é suficiente que a sua «aparência» permita confundi-lo com uma arma dessa espécie. É igualmente necessário atender às suas «características».
II – Não é uma «reprodução de arma de fogo» um objeto de plástico que, tendo embora a aparência duma pistola de calibre 6,35mm, não possui cano que permita o uso de qualquer munição, nem “cão”, ou seja, qualquer peça que permita percutir direta ou indiretamente a espoleta dum cartucho, duma munição.
Decisão Texto Integral: Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, após julgamento, foi decidido:
Condeno o arguido Ernestino L..., como autor imediato, pela prática de:
- um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no art.º 86.º n.º 1 c), por referência aos artigos arts.º 2º, nº 1, al. ad) e ar) e 3º, n.º 1 e n.º 6, al. a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à taxa diária de € 12,00 (doze euros), o que perfaz o montante global de € 2 640,00;
- uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 97.º n.º 1, por referência ao art.º 2º, n.º 1, al. aac) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na coima de € 1 200,00 (mil e duzentos euros); e de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 97.º n.º 1, por referência aos artigos 2.º n.º 1 af) e 3.º n.º 9 b) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na coima de € 1 200,00 (mil e duzentos euros), e em cúmulo jurídico na coima única de € 2 000,00 (dois mil euros).

Inconformado, o arguido Ernestino L... recorre desta decisão, com as seguintes conclusões:
a) Uma arma de plástico comercializada como um brinquedo numa vulgar loja de uma superfície comercial, que não é passível de ser transformada em arma de fogo, apresentando um sistema totalmente inofensivo, pois através dela não são disparados quaisquer projecteis não apresentando quaisquer partes móveis, não se confundindo com uma arma de fogo nem como reprodução, a sua posse pelo arguido, não configura a prática de uma contra - ordenação p.p. pelo artigo 97.°, n.º 1, por referência ao art.º 2.°, n. 1, al aac) da Lei n." 5/2006, de 23/2.
b) Há alteração substancial dos factos quando da adição ou modificação dos factos resulte:
i) que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo;
ii) um facto naturalísfico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social;
iii) a perda da "imagem social" do facto primitivo, ou seja, resulte a perda sua identidade;
iv) o arguido não tenha tido oportunidade de se defender dos "novos factos", não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos;
v) o agravamento das sanções aplicáveis ao arguido, servindo de moldura padrão a constante do tipo a que, na realidade, devem ser subsumidos os factos descritos na acusação.
c) A Mm.a Juiz ao determinar no despacho exarado na acta de 29.11.2012, que o arguido ficasse acusado pela al c) do nº 1 do artº 86º da Lei nº 5/2006, em vez da ai d) de que vinha acusado pelo Ministério Público tendo como consequência directa o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, que passaram, em abstracto, de uma moldura penal até 4 anos de prisão ou pena de multa até 480 dias (al d)) para de 1 a 5 anos de prisão ou pena de multa até 600 dias ( al c)), procedeu a uma alteração substancial dos factos, pelo que deveria seguir-se a disciplina prevista no art.º 359.° do CPP, o que não aconteceu, configurando-se tal situação uma nulidade prevista no art. 379°, 1 al. b) do CPP.
d) Na determinação da concreta medida da pena, terá de ter-se atenção o artigo o art" 70° do C.P. que estabelece, com clareza, uma preferência pelas penas não detentivas, sempre que tal se mostre possível. Diz aquele preceito que, "Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
e) Por sua vez o artº 71° do C.P. estabelece no seu nº 1 a orientação base para a medida da pena a aplicar: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção".
No nº 2 do preceito faz-se referência às "circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele."
O nº 3, por último, obriga a explicitar na sentença os fundamentos da medida da pena que se elegeu.
E é bom de ver que a referida exigência, de fundamentação da concreta pena aplicada, no que diz respeito à sua medida, pode estar ao serviço da respectiva sindicabilidade em sede de recurso do art."º71º do C.P.).
f) Entende o recorrente que, face ao que ficou provado, que o arguido não tem antecedentes criminais, que só aceitou ficar com a guarda das armas até às partilhas da herança, que somente guardou as armas por questões de segurança, sendo que a espingarda é propriedade da herança, a pena de multa que lhe foi aplicada, (220 dias) é exagerada, muito próxima do meio da pena (300 dias), atendendo ainda e em comparação com outras decisões quanto a situações idênticas. Vejam-se por exemplo os seguintes acórdãos.
Ac da RC de 01-04-2009 pena de 60 dias de multa;
Ac da RP de 23.5.2012 pena de 90 dias de multa;
Ac da RP de 02-11-2011 pena de 150 dias de multa;
Ac da RP de 13.4.2011 pena de 120 (cento e vinte) dias de multa;
Ac da RC de 28.9.2011 pena de 120 dias de multa.
Assim, entende o recorrente que uma pena de 100 dias acha-se adequada, justa e equitativa ao presente caso.
g) Insurge-se ainda o recorrente contra o montante pecuniário que lhe foi aplicado por cada dia de multa 12,00 €. Neste particular aspecto, como defende o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português, pág. 127), todas as considerações atinentes quer à culpa, quer à prevenção geral quer à especial, devem exercer influência sobre a determinação da pena e, por via disso, sobre os dias de multa, e não sobre o quantitativo diário. Em contrapartida, tudo quanto respeite à situação económica - financeira do condenado deve ser considerado na fase de fixação do quantitativo diário da multa.
De tal forma, a nossa lei, (artigo 47.°, n.? 2, do C. Penal) vai para além de uma visão puramente economicista e contempla critérios de razoabilidade e exigibilidade. Assim, se é verdade que a pena de multa terá de representar uma censura do facto, e ao mesmo tempo uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, não é menos certo que deverá sempre ser assegurado ao condenado o nível existencial mínimo adequado às suas condições sócio - económicas.
Contudo, a pena de multa não pode transformar-se numa pena de confisco, pelo que, conforme dizem Jeschek (Tratado de Derecho Penal, pág. 709) e Figueiredo Dias (obra citada, pág. 129), devem ser privadas de influência na determinação do quantitativo diário circunstâncias como as de o condenado viver com sua família num imóvel de alto valor e pagar altíssimos prémios de seguros de vida ou encargos análogos.
h) No concreto caso, ficou provado, que o arguido habita em casa própria com a mulher e dois filhos maiores, um deles estudante. Pagam mensalmente um prestação de € 750,00 para aquisição da habitação. Paga uma prestação mensal de € 250,00 pela aquisição de um veículo de marca Nissan de 2006. Aufere mensalmente rendimentos não concretamente apurados, mas superiores a € 1.000,00.
Face a tal quadro táctico, é mais adequado, na opinião do recorrente, que lhe seja aplicada uma quantia de € 6,00 correspondente a cada dia de multa.
i) Por fim, insurge-se o recorrente quanto aos montantes das coimas aplicadas.
Ao arguido foi -lhe aplicado uma coima de € 1.200,00 por cada contraordenação e em cúmulo jurídico uma coima única de € 2.000,00.
Como sanção de natureza pecuniária a coima não poderá deixar de ser fixada em função da situação económica do agente. A situação económica intervém aqui num contexto diverso daquele que se passa ao nível da multa penal. Ali a situação económica só intervém na definição do "quantum" diário da multa, depois de a culpa e as exigências de prevenção terem definido a dimensão dos dias de multa que a materializam
Pelas razões que já foram aduzidas em supra, para o montante da pena de multa, como também face a outras decisões judiciais que representam alguma similitude com o presente caso, como por exemplo:
Ac da RP de 7.11.2012 RP201211071245/11.3TBVLG.P1 - coima aplicada € 600,00.
Ac da RC de 29-02-2012, 1109/09.0JACBR.C1 - coima aplicada € 700,00; Entendemos mais justa e adequada a aplicação ao arguido de uma coima de € 600,00 por cada contra ordenação e em cúmulo jurídico uma coima única de € 1.000,00.
Ao decidir como decidiu o Tribunal "a quo" violou as seguintes disposições legais:
- Artigo 97.°, nº 1, por referência ao art.º 2.°, n.º 1, al aac) da Lei nº 5/2006, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 17/2009 de 6/5;
- Artigo 1.°, al f) e Artigo 359.°, n.s 1 e 2, ambos do CPP,
- Artigos 40.°, 47.°, nº 2, 70.°,71 n.s 1,2,3, todos do CP;


Em suma, e como bem referido no douto parecer que antecede, entende o arguido que a sentença é nula por haver condenado a coberto duma alteração substancial dos factos, porquanto no despacho de 29/11/2012 lhe foi comunicada uma alteração não substancial, mas que assim não pode ser qualificada porque daquela decorre um agravamento da pena aplicável;
Que a pena de multa aplicada – 220 dias – é exagerada, visando a aplicação duma pena de 100 dias e que a taxa diária aplicada – 12 euros – peca por excesso, devendo esta situar-se em 6 euros
Entende ainda que não constitui contra-ordenação a detenção efectivamente verificada do que chama de “arma de plástico”, por ela ser um “brinquedo” que se comercializa “numa vulgar loja de uma superfície comercial”, porquanto “não é passível de ser transformada em arma de fogo, apresentando um sistema totalmente inofensivo, pois através dela não são disparados quaisquer projecteis, não apresentando quaisquer partes móveis, não se confundindo com uma arma de fogo, nem como reprodução”, havendo, pois, um erro de qualificação jurídica
E por fim que o valor da coima aplicado a cada uma das contra-ordenações se apresenta exagerado, batendo-se por um valor de 600 euros para cada uma delas, e por uma coima única de 1.000 euros.
A decisão recorrida assentou na seguinte matéria de facto:
No dia 12 de maio de 2011, pelas 10.30 horas, o arguido detinha, na sua residência, sita na Rua do Reguengo, n.º 303, Vila Verde, uma espingarda, calibre 9 mm, n.º 235158, marca M-5-AJ.Gaucher Saint-Etiene, uma pistola de sinalização n.º 616363, com inscrições SAPL, cat. 7340 e uma pistola em plástico GYMA p.618, SIG SP 618, sem carregador, armas que lhe foram apreendidas no âmbito de uma busca domiciliária consentida.
O arguido não possui manifesto, nem autorização da autoridade competente ou qualquer licença de uso e porte de arma ou da sua detenção ao domicílio relativamente a tais armas, as quais não se encontravam registadas.
Ao atuar do modo descrito, o arguido detinha aquelas armas ciente de que não podia nem devia detê-las e de que não possuía qualquer licença de uso e porte de arma ou licença de detenção.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e criminalmente punida, não se coibindo, no entanto, de a praticar.
O arguido é filho de Artur L... e de Rosa R....
Sucede que, no dia 8/01/2004 faleceu com 78 anos o pai do arguido Artur L....
À morte deste sobreviveu a mulher, cabeça de casal, Rosa R....
Dos bens da herança aberta por óbito de Artur L... faziam parte as armas encontradas na residência do arguido, uma espingarda, uma pistola de sinalização e uma pistola de plástico, armas melhor descritas nos autos.
A cabeça de casal pediu aos filhos, por questões de segurança e, tendo em conta o seu estado de saúde que as armas fossem guardadas em lugar seguro.
Em inícios de 2010, o arguido aceitou ficar com a guarda das armas até às partilhas da herança.
A cabeça de casal, Rosa R..., faleceu em 18/05/2012.
As armas, propriedade da herança, foram devidamente relacionadas na relação de bens a partilhar pela cabeça de casal constando como verbas 9,10,11.
Somente guardou as armas por questão de segurança.
Outra arma é uma pistola de sinalização marítima que o seu pai, em tempos embarcadiço, guardou como recordação da vida de marinheiro.
A espingarda é propriedade da herança.
O arguido possui o registo criminal limpo.
O arguido habita em casa própria com a mulher e dois filhos maiores, um deles estudante.
Pagam mensalmente uma prestação de € 750,00 para aquisição da habitação. O arguido explora um stand de automóveis, atualmente com cerca de 10 carros, num terreno de sua pertença. Pagam uma prestação mensal de € 250,00 pela aquisição de um veículo de marca Nissan de 2006.
É co-herdeiro, com mais nove irmãos, na herança indivisa aberta por óbito de seus pais, composta por um prédio urbano e seis prédios rústicos sitos em Valdreu, Vila Verde, uma espingarda e as armas apreendidas nos autos.
Possui ainda uma espingarda marca Zabala, calibre 12.
Aufere mensalmente rendimentos não concretamente apurados, mas superiores a € 1 000,00.
Tem o 4.º ano de escolaridade.
Matéria de facto não provada.
Em finais de 2009 o arguido foi contactado para guardar as referidas armas.
O arguido recusou, alegando que não queria armas em sua casa.
O arguido nunca pensou ficar com as referidas armas.
Nunca fez qualquer uso das referidas armas.
O arguido é pessoa de bem, comprovadamente, por todos no meio onde vive.
*
O Ministério Público, na 1ª instância, defende o julgado e, nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emite o douto parecer que adiante se vai inserir.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Como se vê das suas conclusões, o arguido suscita as seguintes questões:
- natureza da alteração dos factos;
- não preenchimento do tipo legal de crime quanto à arma de plástico;
- da medida pena e a sua taxa diária;
- montante da coima.

Foi a seguinte a motivação de facto do Tribunal:
A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados fundou-se na concatenação dos depoimentos testemunhais, documentos juntos aos autos, auto de notícia, auto de exame direto e auto de apreensão. Teve-se em consideração ainda os esclarecimentos prestados pela testemunha Domingos C... em sede de audiência de julgamento, local onde foram examinadas as armas apreendidas.
Desde logo importa notar que o arguido, não obstante em sede de audiência de julgamento não tenha prestado declarações, admitiu na sua contestação deter no seu domicílio as armas aí encontradas pela Guarda Nacional Republicana, que são propriedade da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, versão que foi corroborada pelos documentos de folhas 60 a 65 e pelos depoimentos de Pedro L... e Manuel L....
José A... e António A... são militares da Guarda Nacional Republicana que participaram na busca ocorrida em casa do arguido, no âmbito da qual foram encontradas as armas apreendidas nos autos. Estas testemunhas confirmaram as informações constantes do auto de notícia. Estas testemunhas fizeram referência ao ano de 2011, como data dos factos, o que aliás decorria já do teor do auto de notícia.
Relativamente às caraterísticas das armas, o Tribunal atendeu aos autos de exame de folhas 30 a 32, confirmados por Domingos C..., agente da Polícia de Segurança Pública, pessoa tecnicamente habilitada a esclarecer tais características.
Pedro L... e Manuel L... são irmãos do arguido e esclareceram que as armas apreendidas nos autos pertenciam ao seu pai, fazendo parte da herança aberta por óbito do seu pai e estavam à guarda do arguido por uma questão de segurança.
No que respeita ao elemento subjetivo o Tribunal atendeu às regras da experiência e da normalidade, sendo do conhecimento da generalidade da população que a detenção de qualquer arma carece de licença, no caso do arguido esse conhecimento é por demais evidente, visto que o mesmo é portador de licença de uso e porte de arma, é pessoa conhecedora das regras aplicáveis à detenção de armas.
Quanto à situação económica e social do arguido o Tribunal atendeu às suas declarações, não infirmadas por qualquer outro meio de prova.
Quanto à motivação de direito, foi ela a seguinte:
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
Vem o Arguido acusado da prática de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível no artigo 86.º n.º 1 c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
Os arts.º 2º, nº 1, al. ad) e ar) e 3º, n.º 1 e n.º 6, al. a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, definem como armas de fogo da classe D as armas de fogo longas de repetição, de cano de alma lisa, com comprimento superior a 60cm.. O artigo 86º, n.º 1, al. c), da mesma lei, pune com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver (conduta que interessa para a decisão do caso concreto) arma da classe D.
O artigo 97.º da Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro pune com coima de € 400,00 a € 4 000,00 quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente detiver ou guardar reprodução de arma de fogo ou armas das classes F e G.
O art.º 2º, n.º 1, al. aac) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, define como reprodução de arma de fogo o mecanismo portátil com a configuração de uma arma de fogo que, pela sua apresentação e características, possa ser confundida com mas armas previstas nas classes A, B, B1, C e D, excluindo-se armas para práticas recreativas, armas de alarme ou de salva não transformáveis ou armas de starter. Aqui se mostra prevista a arma de plástico, pois que conforme facilmente se verifica, a mesma é perfeitamente confundível com uma vulgar pistola 6,35mm. (arma da classe B1).
O artigo 2.º n.º 1 af) do diploma legal supra citado define arma de sinalização como o mecanismo portátil com a configuração de arma de fogo destinado a lançar um dispositivo pirotécnico de sinalização, cujas características excluem a conversão para o tiro de qualquer outro tipo de projétil.
O artigo 3.º n.º 9 b) inclui tal arma na classe G.
Resultou provado que o arguido detinha na sua residência a espingarda, a arma de sinalização e arma de plástico, objetos identificados na Lei das Armas como de detenção ilegal. Mais resultou provado que o arguido sabia que não podia deter aquelas armas e mesmo assim deteve-as, sabendo que praticava um crime.
Encontram-se preenchidos, pois, todos os elementos, objetivos e subjetivos, das infrações imputadas ao arguido nos termos dos artigos 86.º n.º 1 c) (espingarda) e 97.º (arma de sinalização e arma de plástico) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
Do que fica dito resulta, em conclusão, que o arguido se constituiu autor de um crime de detenção de arma proibida e de duas contraordenações de detenção ilegal de arma.
Da medida concreta da pena
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar.
Cumpre aqui salientar um dos princípios basilares e fundamentais do direito penal: o princípio da culpa, segundo o qual, como se sabe, em caso algum pode haver pena sem culpa ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa, constituindo esta, assim, um limite inultrapassável da pena.
Como vimos, o crime detenção de arma proibida apresenta uma moldura penal abstrata que se encontra compreendida entre um a cinco anos de prisão ou pena de multa até 600 dias – cfr. artigo 86.º n.º 1 c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
Não obstante as fortes necessidades de prevenção geral, as necessidades de prevenção especial são baixas atenta a integração social do arguido e a ausência de antecedentes criminais registados, entende-se adequada a aplicação de uma pena de multa.
Tendo em conta o estatuído no artigo 71.º do Código Penal, a determinação da pena concreta a aplicar ao arguido, dentro dos limites legalmente fixados (artigo 47.º n.º 1 do Código Penal), far-se-á em função da culpa manifestada no facto e das exigências de prevenção de futuros crimes. O limite máximo e inultrapassável da pena a aplicar ao arguido será fixado de acordo com a sua culpa (artigo 40.º n.º 2 do Código Penal). O limite mínimo será estabelecido em função das exigências de prevenção geral que no caso se verifiquem. E a pena a aplicar concretamente dentro da submoldura assim encontrada será determinada, finalmente, de acordo com as exigências de prevenção especial – mormente na vertente de socialização – que ao caso couberem, artigo 40.º n.º 1 do Código Penal.
Nos termos do artigo 71.º n.º 2 do Código Penal devem considerar-se ainda todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor e contra o agente.
Atendendo aos critérios supra expendidos, revelando para a medida da pena o facto de o arguido apenas guardar as armas por uma questão de segurança e a inserção social e familiar do arguido, mostra-se adequada uma pena de 220 dias de multa.
*
Nos termos do artigo 47.º n.º 2 do Código Penal, a cada dia de multa corresponde uma quantia que o Tribunal fixará entre 5,00 euros e 500,00 euros, atendendo à situação económico-financeira do condenado e aos seus encargos pessoais.
Atendendo aos factos que resultaram provados, considerando o doutamente decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de janeiro de 2004, consultado no endereço eletrónico
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ec27a5f4941650aa80256e53005db9f7?OpenDocument
«Para mais, falar, nos dias de hoje, numa multa com uma taxa diária como a proposta (€2) para a prática de qualquer crime, quando as multas por vulgar contravenção há muito que não se ficam por tal insignificância, pouco menos seria que levar ao altar do ridículo a sentença que tal pretensão viesse a contemplar e, pior do que isso, pôr em cheque absoluto a eficácia preventiva que se reclama de toda e qualquer pena, onde, em princípio, para garantia daquela eficácia, já não tem lugar aceitável qualquer multa de quantitativo diário inferior a € 5, mesmo para casos ditos de pequena gravidade.», julga-se adequada a quantia de 12,00 euros correspondente a cada dia de multa.
Relativamente às contraordenações, atendendo aos fatores e circunstâncias supra descritos para determinação da medida concreta da pena, decide-se condenar o arguido em coima de € 1 200,00 por cada uma das contraordenações cometidas.
Ao abrigo do disposto no artigo 19.º do Regime Jurídico das Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, será o arguido punido, em concurso, pela prática de duas contraordenações, na coima única de € 2 000,00.
Ao abrigo do disposto no artigo 109.º do Código Penal declaro perdida a favor do Estado a arma de plástico, tendo sido utilizada na prática do crime e sendo insuscetível de legalização.

Relativamente a todas as questões colocadas pelo arguido, é emitido o seguinte parecer pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto Ribeiro Soares:

«……
Quanto à alteração dos factos mencionada pelo arguido, importa dizer que, efectivamente, por despacho 29/11/2012 e na audiência de julgamento nessa data realizada – vd. fls. 92, uma se declarou e que então se qualificou como sendo não substancial, invocando-se expressamente o disposto no artigo 358, n.ºs 1 e 3 do CPPenal. Consistiu aquela e atentando-se na acusação, onde nesta constava de 12 de Maio de 2010, ficaria a constar “12 de Maio de 2011” e onde nela constava “carabina, calibre n.º 32, n.º 235158, marca M-5-AJ.Gaucher Saint-Etienne” , ficaria a dizer-se “espingarda, calibre 9mm, n.º 235158, marca M-5-AJ.Gaucher Saint-Etienne”. E justificaram-se estas modificações considerando-as “meras rectificações”, afirmando-se:

a) Quanto à data que esta vem expressa no auto de notícia e
b) Quanto à descrição da arma, que esta decorre do respectivo exame pericial.

A modificação da data dos factos, sendo efectivamente relevante tendo em vista o concreto e efectivo direito de defesa do arguido, por não ser a esta indiferente o momento, o tempo do delito, não constitui uma alteração substancial dos factos. Mas será uma de natureza não substancial. Nesse sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/06/2013, proc. 327/11.6SAGRD.C1, relator desembargador Calvário Antunes. Em relação a esta modificação, foi dado cumprimento efectivo ao disposto no art. 358, n.º1 do CPPenal.

No que concerne à outra modificação fáctica supra referida, deve notar-se que se alterou-se a natureza da arma que como tal figurava na acusação – de carabina de calibre 32mm, passou a aparecer uma espingarda de calibre 9mm. Esta alteração – de facto – é relevante tendo em vista a sanção penal prevista para a detenção de uma ou de outra – de direito.

Na verdade, na acusação – vd. fls. 43, e como tal recebida – vd. fls. 51, foi imputada ao arguido recorrente um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86, n.º1, al. d), com referência aos artigos 3, n.º 8, al. a) e b), 2.º n.º1, al. ad) da Lei 5/2006 citada e que é punido com uma pena abstracta de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias – “Artigo 86.º - Detenção de arma proibida e crime cometido com arma - 1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: a) …; b) …; c) …; d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”; artigo 3.º – Classificação das armas, munições e outros acessórios – n.º 8 - São armas da classe F: a) As matracas, sabres e outras armas brancas tradicionalmente destinadas às artes marciais ou a ornamentação; b) As réplicas de armas de fogo; - Artigo 2.º Definições legais - Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual, entende-se por: 1 - Tipos de armas: (…)ad) «Arma de repetição» a arma de fogo com depósito fixo ou com carregador amovível que, após cada disparo, é recarregada pela acção do atirador sobre um mecanismo que transporta e introduz na câmara nova munição, retirada do depósito ou do carregador ou que posiciona a câmara para ser disparada a munição que contém;”.
.
Todavia, no despacho a que se vem fazendo referência, afinal três coisas consignou:

a) Que os próprios factos vertidos na acusação não constituíam o crime que nela se indicou – o da alínea d) acima referido, mas sim o previsto no art.º 86, n.º1, al. c) daquela Lei – “1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo … c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;”
b) Que em causa não se encontrava, como já referido uma carabina de calibre 32mm, mas sim uma espingarda calibre 9mm; e
c) Que esta alteração, de facto e de direito, constituía uma alteração não substancial.

A reafirmação deste entendimento decorre até da parte inicial da sentença que expressamente o exarou.

É nosso entendimento que, desenhada que está a situação in judicio, a razão se encontra do lado do recorrente.

O citado despacho procede, então, a duas modificações: uma de facto e uma de direito. A de facto é que altera o objecto do processo. A acusação dizia que o arguido detinha ilicitamente uma carabina com calibre 32mm. Realizado o julgamento, este facto transforma-se noutro diverso, o arguido passou a não deter aquela arma, mas sim uma outra, uma espingarda de calibre 9mm. Obviamente que sendo ambos armas de fogo, são objectos diversos e quando se trata de armas de fogo, a natureza de uma ou outra arma faz toda a diferença. Uma arma com um calibre de 9mm e distinta de uma com 32mm.

Já a de direito é que esta variação fáctica agrava a moldura penal do crime imputado ao arguido. Uma coisa é enquadrar os factos na citada alínea d) do art. 86 e outra, mais gravemente punida, nos termos citados, é fazer a inclusão daqueles na dita alínea c).

Porque se mostra eloquente na forma como trata a questão aqui em apreço, e porque se afigura útil para o entendimento da mesma, seja-nos permitido aqui extractar parte do acórdão da Relação do Porto, de 20/11/2013, proc. 438/12.0SLPRT.P1, sendo dele relatora a desembargadora Eduarda Lobo, que se debruça sobre o entendimento interpretativo do art. 358 do CPPenal, normativo aqui em causa e expressamente invocado na sentença in casu.

Diz-se nesse aresto:

“Constitui princípio fundamental do processo penal, com raiz constitucional, o princípio da acusação – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República.
Uma das implicações do dito princípio é a de que a acusação ou a pronúncia definem e fixam o objecto do processo, limitando a actividade cognitória e decisória do tribunal através da “vinculação temática” (em que se consubstanciam os princípios da identidade, da indivisibilidade e da consunção).
A evolução jurisprudencial e legislativa que se verificou na última década do século XX, é claramente reveladora da importância e dificuldade das questões relacionadas com os contornos da vinculação temática do tribunal e com a eventual incidência nesses contornos das questões de qualificação jurídica.
Dentro da perspectiva de que a alteração da qualificação jurídica era livre e totalmente isenta de restrições, por não representar nenhuma alteração do objecto do processo, mantendo-se os factos idênticos e apenas variando a subsunção jurídica, o Supremo Tribunal de Justiça emitiu em 1992.12.02 o assento n.º 2/93 (in DR, I-A de 1993.03.10) que fixou a seguinte jurisprudência:
«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 389.º, n.ºs 1 e 2 e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a simples alteração da qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.»
Mas, de tal acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, no seu Acórdão n.º 279/95, de 95.05.31, apreciou a constitucionalidade do art. 1.º, alínea f) do CPP, à luz do referido assento, vindo a «julgar inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1 da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, al. b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.»
A doutrina deste acórdão foi seguida no Acórdão do TC n.º 16/97, de 1997.01.14 (in www.tribunalconstitucional.pt), tendo sido, finalmente, acolhida no Acórdão do mesmo tribunal n.º 445/97, de 1997.06.25 (in DR, I-A de 1997.08.05), que fixou esta doutrina ao declarar inconstitucional, “com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de «assento n.º 2/93», na 1.ª série - A do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão n.º 279/95, do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.” (in DR, I-A de 1997.08.05).
Ante a revogação operada pelo Tribunal Constitucional, o STJ reformulou em 13.11.1997 o assento 2/93, nos seguintes termos: “ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a sua defesa jurídica”[3].
Na reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, esta doutrina passou para o texto da lei, com a introdução do n.º 3 do art. 358.º, de acordo com o qual a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia no decurso da audiência obedece ao mesmo regime da alteração não substancial dos factos, prescrito no n.º 1 do mesmo normativo.
Resulta patente desta evolução jurisprudencial e legislativa a preocupação com a salvaguarda dos direitos de defesa no processo criminal, constitucionalmente garantidos no artigo 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental.
Mas a liberdade de qualificação jurídica pelo tribunal está pressuposta na jurisprudência do Tribunal Constitucional, sendo as decisões proferidas sempre justificadas pela necessidade de compatibilizar a referida liberdade com um mecanismo que tornasse efectivo o direito do arguido a ser ouvido nos casos em que, mantendo-se os factos os mesmos, fosse alterada a qualificação para incriminação mais grave.
E está, também, pressuposta na alteração legislativa subsequente. Teresa Beleza, a propósito das alterações de 1998 aos artigos 339.º, n.º 4 e 358.º, n.º 4, deixa escrito que estas alterações significam que o legislador quis estatuir expressamente duas coisas: “a liberdade de qualificar os factos como prerrogativa do juiz; o direito a contra-argumentar sobre essa qualificação como garantia da defesa”.
A alteração legislativa operada em 1998 ao Código de Processo Penal passou a contemplar especificamente a hipótese de se verificar no decurso da audiência de julgamento uma alteração de qualificação jurídica. Nesse caso, a alteração tem de ser comunicada ao arguido nos termos do n.º 1 do art. 358.º, uma vez que o n.º 3 desse artigo manda aplicar esse regime. A comunicação é oficiosa ou efectuada a requerimento e, se o arguido assim o requerer, é-lhe concedido prazo para preparação da sua defesa, pelo tempo estritamente necessário.

Usando os saberes acabados se enunciar, estamos cientes que o despacho em causa não procedeu a uma mera modificação da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. O despacho não manteve os factos vertidos na acusação. Se assim tivesse ocorrido, legítimo lhe seria alterar a qualificação jurídica deles, mesmo que dela agravasse a imputação efectuada. Mas ao assim proceder estaríamos sempre ao nível do art. 358, n.º3 do CPPenal.

O despacho em apreço, contudo, alterou os factos, nos termos citados. E essa modificação dos factos, com a reserva de outro melhor entendimento, entendemos revestir a natureza de substancial a reclamar a aplicação do art. 359, n.º3 do CPPenal.

Há crime diverso, uma vez que, o facto novo difere, em natureza, do que serviu de suporte à acusação. Uma realidade diferente se impõe.

No art.º 359º do CPPenal encontra-se subjacente o princípio do contraditório e pretende assegurar ao arguido todos os seus direitos de defesa como decorre do art. 32.º, n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República.

É certo que, no caso, se deu cumprimento ao disposto no art. 358, n.º3 do CPPenal, concretizando-se um contraditório, mas não foi ele dirigido ao facto, antes foi dirigido à qualificação jurídica pressupondo-se uma inalteração à factualidade. E o contraditório previsto no art. 359 tem diverso alcance conduzindo-se à apreciação dos “novos factos”.

A situação exposta cai, então, na previsão do art. 379, n.º1, al. b) do CPPenal.

A sentença é nula, nesta parte, havendo que reabrir a audiência paegvra dar cumprimento ao sobredito art. 359 do CPPenal quanto ao novo facto apurado em audiência tanto mais que não se trata de uma “mera rectificação”, um lapso ou erro de escrita.

Aqui, pois, a razão encontra-se, em nosso parecer, e como já referido, do lado do arguido recorrente.

3.
O acabado de expor retira completa utilidade e interesse, por ficar prejudicada, a apreciação da questão da dosimetria penal.

4.4.1
Resta ainda apreciar a matéria contra-ordenacional. Nesta parte, apenas se pode conhecer de direito – vd. art. 75, nº1 do DL 433/82 de 27/10.

Discorda o arguido da qualificação jurídica que foi dada ao provado objecto que detinha no dia 12/05/2011 – “uma pistola em plástico GYMA p.618,SIG SP 618, sem carregador”.

O decisor entendeu que o citado objecto se enquadrava na previsão do art.º 97 da citada Lei 5/2006 – “1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo reprodução de arma de fogo, arma de alarme, munições de salva ou alarme ou armas das classes F e G, é punido com uma coima de (euro) 400 a (euro) 4000”.

E apelou ao conceito legal de “reprodução de arma de fogo” – art. 2.º, n.º1, al. aac) daquela Lei – “ «Reprodução de arma de fogo» o mecanismo portátil com a configuração de uma arma de fogo que, pela sua apresentação e características, possa ser confundida com as armas previstas nas classes A, B, B1, C e D, com exclusão das reproduções de arma de fogo para práticas recreativas, das armas de alarme ou de salva não transformáveis e das armas de starter”.

E referiu, claramente, que o citado objecto era uma reprodução de uma arma de fogo – “Aqui se mostra prevista a arma de plástico, pois que, conforme facilmente se verifica, a mesma é perfeitamente confundível com uma vulgar pistola 6,35mm arma da classe B1) “ – fls. 102.

Ou seja, e como resulta igualmente da sentença, considerou-se para chegar a essa conclusão, o exame pericial que consta de fls. 30 a 32 destes autos – vd. fls. 101 e os esclarecimentos prestados pelo agente da PSP sobre o assunto – vd. idem.

Considerou-se, como critério definidor de que se estava perante uma reprodução de arma de fogo, o facto desse objecto se confundir com uma vulgar pistola 6,35mm.

Sucede que tal critério, o da aparência – a “apresentação” - não basta para que se conclua como se decidiu. Importa que se atente, ainda, nas suas “características”. São estes dois os requisitos previstos na própria definição.

E vistas as características do objecto em causa, considerando o exame ao mesmo realizado – vd. fls. 32, da sua observação, em primeiro lugar, resulta que o mesmo não possui calibre, ou seja, não possui cano que permita o uso nele de uma qualquer munição. Em segundo, ele não possui cão, ou seja, não possui uma qualquer peça que permita percutir directa ou indirectamente a espoleta dum cartucho, duma munição. Este objecto reconhecidamente com a aparência de uma pistola de calibre 6,35mm, não possui nem cano nem cão. E sem estes atributos, seguramente que o mesmo não possui qualquer capacidade de fogo, com ele não se pode dar um qualquer tiro. Nem nunca o poderá fazer por via duma transformação. E sendo assim, reconhecidamente que não recolhe qualquer justificação que se consigne no exame e quando se trata do funcionamento do objecto se escreva “tiro a tiro”. Esta referência não faz qualquer sentido, como resulta evidente. O objecto não pode realizar qualquer tiro.

Ou seja, apreciado o objecto pelo lado das suas características, de forma alguma se pode dizer que ele se confunde com uma “arma de fogo”, que constitua uma sua “reprodução”.

Por outro lado, recorde-se que estão fora das “reproduções de arma de fogo”, como menciona o normativo citado, as “reproduções de arma de fogo para práticas recreativas, das armas de alarme ou de salva não transformáveis e das armas de starter”.

Ou seja, estes tipos de objectos que reproduzam armas de alarme ou de salva, armas starter ou mesmo armas de fogo para práticas recreativas, apesar de poderem ser confundidas com os tipos de armas das classes A, B, B1, C e D, ou seja malgrado poderem possuir a aparência de armas integradas nestas classes, não são tidas como “reproduções de armas de fogo”. Constituem uma excepção que se justificam porque, como o próprio normativo legal refere, não são armas transformáveis, não possuem capacidade alguma de fogo, não oferecem qualquer risco para um utilizador.

É, então, o dito objecto, um “brinquedo Artigo 1.º da Directiva 88/378/CEE: A presente directiva é aplicável aos brinquedos. Por «brinquedo» entende-se qualquer produto concebido ou manifestamente destinado a ser utilizado em jogos, por crianças de idade inferior a 14 anos. como afirma o recorrente?

Importa aqui recordar que há objectos que legalmente não podem ser considerados “brinquedos”. Conforme dispõe o DL 43/2011 de 24/03, não podem ser como tal considerados os objectos que sejam “imitações de armas de fogo verdadeiras” - n.º 2 do artigo 2.º e Lista anexa, n.º2, al. e), sendo-o, contudo, as “armas e pistolas de água” – mesma Lista, n.º9.

O que se deve entender como sendo “imitações” foi bem explicitado no “RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU E AO CONSELHO”, de 27/07/2010, n.º 52010DC0404, quando trata da comercialização das réplicas de armas de fogo. Sobre estas, sobre as réplicas, nele se escreveu:

“AS RÉPLICAS DE ARMAS DE FOGO: ACEPÇÕES DIFERENTES DE ESTADO-MEMBRO PARA ESTADO-MEMBRO
2.1. O «Protocolo Armas de Fogo» não oferece nenhum critério verdadeiramente instrumental para o presente relatório na sua definição de «arma de fogo»: no seu artigo 3.º, consagrado à definição de uma arma de fogo, inclui, na assimilação a uma arma de fogo, apenas os objectos que podem ser modificados « facilmente para esse fim ».
2.2. O termo «réplicas» abrange objectos bastante diferentes de Estado-Membro para Estado-Membro e apresenta uma natureza, uma complexidade e uma perigosidade eminentemente variáveis; vários objectos podem assim, mais ou menos, ser considerados como réplicas de armas de fogo. De facto, o termo réplica de arma de fogo parece susceptível de se aplicar a objectos que têm uma relação que vai da simples semelhança à identidade propriamente dita com uma verdadeira arma de fogo.
2.3. Outras denominações podem igualmente cruzar-se com as de réplicas: reproduções, imitações, cópias. Parece, por conseguinte, necessário recensear alguns objectos que o senso comum pode assimilar, de perto ou de longe, a réplicas.
2.4. Algumas legislações utilizam assim o termo réplica para armas estritamente semelhantes ao original, com a mesma aparência e as mesmas propriedades que a arma original. Sabe-se que artesões experientes, em diferentes lugares do mundo, podem copiar e, em certa medida, «clonar» uma arma a partir do modelo original. É claro que se estas armas não forem fabricadas com uma patente comercial e no respeito de todas as regulamentações, nacionais ou europeias, o seu fabrico, detenção e, a fortiori, utilização, caem na pura ilegalidade.
2.5. Outras «réplicas» são igualmente espécies de «clones» de armas reais. Mas, ao contrário das precedentes, são referidas como «inertes» ou, por vezes, «armas de decoração», ou ainda armas «artificiais». A carcaça pode ser em metal ou em plástico, o peso pode ser comparável ou muito mais ligeira, mas, em qualquer caso, estes objectos são perfeitamente inaptos para atirar ou para carregar munições. Estes objectos são sobretudo cobiçados por verdadeiros coleccionadores.
2.6. Algumas pistolas (trata-se essencialmente de armas de punho), verdadeiras armas de fogo, tornam-se, sob licença comercial particular e específica, produtos desnaturados. Assim, o produtor de uma pistola verdadeira, poderá vender a sua licença de fabrico a um outro produtor que copiará real e legalmente o modelo em questão, mas apenas para fazer dela uma pistola de chumbos, e/ou destinada simplesmente ao tiro de projécteis inofensivos ou ao tiro de alarme.
2.7. De uma maneira geral, as armas de alarme podem, de facto, frequentemente imitar de forma bastante realista verdadeiras armas de fogo (sem contudo copiarem necessariamente um modelo exacto). Segundo a Commission internationale Permanente pour l’Epreuve des Armes à feu Portatives [2] (CIP), são consideradas como armas de alarme todos os aparelhos portáteis não concebidos para atirar projécteis sólidos. Uma arma de alarme é assim capaz de atirar cartuchos sem projéctil, de gás, lacrimogéneos”.

E nele se acrescentou aludindo a “OUTROS PRODUTOS APRESENTAM SEMELHANÇAS COM ARMAS DE FOGO SEM SEREM GERALMENTE ASSIMILADOS A RÉPLICAS”
3.1. Assim, imitações mais ou menos realistas de armas de fogo são utilizadas no contexto de divertimentos ou de actividades de lazer relativamente novos, como o « airsoft »; trata-se, no caso em apreço, de uma actividade de lazer sob a forma de um jogo que opõe, em geral, duas equipas cujos jogadores estão equipados com uma imitação de arma (geralmente em plástico) que propulsa, por gás ou ar comprimido, esferas de 6mm ou 8mm em plástico. A potência de propulsão está, em geral, compreendida entre 2 e 7 joules.
3.2. As pistolas ditas de chumbos podem, por vezes, apresentar uma semelhança com uma verdadeira pistola (mas também não são necessariamente imitações de um modelo particular). Atiram cartuchos que contêm pequenas esferas de aço/chumbo ou borracha. O princípio da propulsão por gás continua a ser o mesmo que para as pistolas de airsoft , a diferença essencial reside na natureza do cartucho utilizado.
3.3. Outros objectos oferecem uma certa semelhança com armas de fogo, sem necessariamente as imitarem de forma muito realista: pode assim referir-se os lançadores utilizados na prática de «paintball». Trata-se de uma actividade de lazer, praticada sobre terrenos privados de tipo natural ou urbano, que pode ser qualificada de jogo que opõe, em geral, jogadores munidos de um lançador com propulsão a gás ou ar comprimido de esferas de tinta. As esferas de tinta são projectadas com uma energia compreendida entre 10 e 13 joules.
3.4. Outros objectos podem ainda apresentar uma certa semelhança com verdadeiras armas de fogo, nomeadamente as pistolas de êmbolo cativo ou ainda as pistolas de alarme/sinalização.
3.5. O termo «réplicas» também pode, em certas terminologias, ser aplicável a reproduções de armas antigas: estes objectos reproduzem mais ou menos fielmente (mas às vezes perfeitamente) modelos de armas históricas, pedidas emprestadas a museus, que são assim copiados para ser vendidos a coleccionadores.
3.6. Por último, convém recordar que uma directiva específica clarifica a distinção que deve ser feita entre uma «réplica» de arma de fogo e um brinquedo. Nos termos do ponto 20 do anexo I da Directiva 88/378/CEE, com efeito, as «imitações fiéis de armas de fogo verdadeiras» não podem ser consideradas como brinquedos [3]. Esta exclusão vai de resto ser precisada e alargada pela nova Directiva 2009/48/CE que revoga a Directiva 88/378/CEE e deve ser transposta nos direitos nacionais antes de 20 Janeiro de 2011”.

Ou seja, malgrado os entendimentos díspares que se possam ter sobre réplicas de armas de fogo, imitações, reproduções de armas de fogo e cópias de armas de fogo e que o relatório citado dá conta, certo é que para que um certo objecto possa ser considerado como “brinquedo”, e de acordo com a Directiva citada, ele não poderá ser uma “imitação fiel” de uma “arma de fogo verdadeira”.

No caso, o objecto referido, possuindo, é certo, uma configuração de uma pistola de 6,35mm, mas porque não possui nem calibre, nem cão, não pode ser tido como uma “imitação fiel” deste tipo de arma de fogo, não a copiando, então, verdadeiramente. Nem nunca o poderá ser por via duma transformação.

Assim, temos como seguro que o citado objecto, pelas suas características já evidenciadas, deve ser considerado como “brinquedo”. Aliás, se este objecto tivesse um sistema para arremessar água, não obstante a sua plena semelhança com uma pistola 6,35mm, dúvida alguma haveria que seria, como decorre do exposto, um “brinquedo”. Não possuindo tal sistema, ainda mais neutral tal objecto se apresenta. Ele não é uma reprodução de arma de fogo. E não pode transformar-se numa destas.

E assim sendo, cremos que a condenação do arguido pela detenção deste objecto não recolhe fundamento legal. A sua conduta não é subsumível ao disposto no art.º 97 da citada Lei 5/2006.

Assiste-lhe razão, neste particular.

5.
Há, por último, que atentar no quantum da coima para a outra contra-ordenação pelo qual o arguido foi condenado e que dela diverge. Visa uma coima com o valor de 600 euros, metade da que lhe foi aplicada.

O artigo 18.º do RGCO dispõe no seu n.º 1 que “A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”.

O dever de fundamentação da decisão condenatória proferida impõe na determinação da coima, a ponderação dos elementos descritos no citado normativo.

Cingindo-nos ao caso dos autos, verifica-se que a sentença na determinação da coima fez a referência de atendimento “aos factores e circunstâncias supra descritos” (fls. 104). Não é mencionado nela o sobredito normativo, considerando-se, no entanto e sem especificar, as necessidades de prevenção geral e especial, apenas se referindo serem estas baixas, aludindo, ainda, ao disposto no art. 71 do CPenal – vd. fls. 103 e 104.

A ilicitude da contra-ordenação não é elevada, e a detenção pelo arguido da pistola de sinalização – o objecto do ilícito –, como resultou provado, foi motivado “por questão de segurança”, constando ela do acervo da herança aberta dor óbito da mãe do arguido, sendo ele uma “recordação da vida de marinheiro” do pai. Estas circunstâncias fazem diminuir a culpa do arguido, que não possui quaisquer antecedentes criminais.

Assim sendo, e verificando-se uma moldura abstracta para a contra-ordenação praticada que tem um mínimo de 400 e um máximo de 4000 euros, a coima fixada – 1200 euros, apresenta-se fora dos citados pressupostos previstos no art. 18.

Tal como o recorrente avança, a coima justa situar-se-á nos 600 euros. E esta que se deverá determinar, dando, então, plena razão ao recorrente, neste particular.

E fica sem qualquer interesse a questão do valor da coima única por inexistência, nos termos já vistos, dum qualquer concurso de contra-ordenações….»

Face a este douto trabalho, seria perda de tempo estar a procurar dizer por outras e menos sábias palavras o que lapidarmente está dito.
E assim, na plena adesão a tal parecer, temo-lo como fundamentação bastante da razão, por ora, parcial, do recorrente, pois que a sentença é nula nos termos propugnados neste douto parecer, do mesmo modo que tem que se acolher o entendimento quanto à não existência de contra-ordenação pela detenção da arma de brinquedo e, por último, reduzir ao seu justo valor, de € 600,00, a coima pela contra-ordenação por detenção da pistola de sinalização.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em se julgar o recurso parcialmente procedente, e em consequência:
- declarar nula a sentença no que respeita ao crime imputado, ordenando-se a abertura da audiência para cumprimento do disposto no artº 359ºdo C.P.Penal;
- absolver o arguido da contraordenação pela detenção do objecto em plástico (prevista e punida pelo artigo 97.º n.º 1, por referência ao art.º 2º, n.º 1, al. aac) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro
- reduzir a coima pela contraordenação por detenção da arma de sinalização (prevista e punida pelo artigo 97.º n.º 1, por referência aos artigos 2.º n.º 1 af) e 3.º n.º 9 b) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro) para € 600,00 (seiscentos euros).
Sem custas.
Guimarães, 19 de Maio de 2014