Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1183/15.0T9BRG.G1
Relator: FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
LEGISLAÇÃO COVID-19
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) As causas de suspensão da prescrição integram, ainda que tenham também um cunho processual (isto é, ainda que a sua natureza seja mista e não puramente material) o direito penal substantivo, o qual tem como princípio fundamental, entre outros, a não retroactividade da lei penal in pejus.
II) Não há dúvida que a Lei nº 1-A/2020 de 19-03, e posteriores alterações operadas no âmbito do Estado de Emergência, e que integram a legislação Covid, estabelece uma nova causa de suspensão da prescrição penal.
III) As normas provenientes da Lei nº 1-A/2020 de 19-03 e da restante legislação que foi sucessivamente alterando e adequando aquela lei, têm como limite as imposições referidas no artº 19º da CRP, mormente as constantes do seus nºs 3 e 6.
IV) Pelo que a Lei nº 1-A/2020 de 19-03 está sujeita ao limite constitucional da não retroactividade da lei penal in pejus.
V) O artigo 19º da CRP, embora regulando uma situação excepcional, não a define e, por isso, constitui uma norma geral e abstracta aplicável a qualquer situação nela enquadrável, pelo que a pandemia em torno da Covid 19 traduziu apenas uma de um sem número de situações potencialmente susceptíveis de enquadrar um Estado de Emergência.
VI) A excepcionalidade das situações previstas no artº 19º CRP já se mostra acautelada pelo facto de poder ser decretado um Estado de Sítio ou um Estado de Emergência com a suspensão de alguns direitos constitucionais.
VII) Pretender ir para além disso e considerar que, dentro da excepcionalidade que o artº 19º CRP já contempla, há ainda situações mais excepcionais do que outras, é cair num subjectivismo muitas vezes ditado pelo pânico, receio ou trauma que resultou do evento que determinou o decretamento do Estado de Emergência.
VIII) Não se pode dizer que o decretamento do Estado de Emergência tem de obedecer à Constituição enquanto se afirma que, mesmo em caso de guerra, grave perturbação da ordem constitucional ou de uma calamidade pública (ou seja os fundamentos do Estado de Emergência), se pode decidir em cada momento, e perante circunstâncias específicas, que alguns fenómenos subjacentes ao decretamento do Estado de Emergência podem escapar àquele controle constitucional.
IX) Isso seria, transformar leis que já são, de per se, excepcionais e transitórias na ordem jurídica (porque decretadas por causa de um Estado de Emergência) em arbitrárias quanto aos seus efeitos porque subtraídas ao controle constitucional.
X) A aplicação das salvaguardas da nossa Constituição, desenhadas para manter incólume aquele núcleo fundamental de direitos que foram sendo conquistados ao fim de muitos séculos e convulsões políticas e socias, e que são os alicerces de um Estado de Direito Democrático, não pode ficar sujeita a que cada um de nós, em cada momento, e de acordo com a nossa própria sensibilidade perante o fenómeno que determinou o decretamento do Estado de Emergência possa considerar de excepcional dentro da excepcionalidade que o artº 19º da CRP já consagra.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito da Instrução que corre termos pelo Juiz ... do Juízo de Instrução Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 1183/15...., requerida a instrução, foi proferida decisão instrutória em 18-10-2022, com a refª ...86, relativamente aos arguidos supra identificados, do qual ora recorre o MºPº, nos seguintes termos:

“DECISÃO INSTRUTÓRIA

1. RELATÓRIO
2. Declaro encerrada a instrução.
3. O Tribunal é competente, as partes são legítimas e não existem nulidades.
4. O Ministério Públio deduziu acusação imputado aos arguidos, em coautoria, factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo art. 227.º, n.º 1, al. a) e c) e n.º 2 e 229.ºA, do Código Penal.
5. O arguido AA requereu a abertura da instrução – cf. fls. 724 ss.
Para tanto, alegou, em síntese, que não praticou o crime que lhe é imputado, que apenas prestou serviços enquanto advogado.
Concluí pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
6. O arguido BB requereu a abertura da instrução – cf. fls. 774 ss.
Para tanto, alegou, em síntese, que não praticou o crime que lhe é imputado, que efetivamente adquiriu o veículo e procedeu ao seu pagamento.
Concluí pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
7. O arguido CC requereu a abertura da instrução – cf. fls. 822ss.
Para tanto, alegou, em síntese, que o procedimento criminal estava prescrito à data em que foi constituído como arguido. Alegou, ainda, que não praticou os factos descritos na acusação.
Concluí pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
8. A arguida DD requereu a abertura da instrução – cf. fls. 831ss.
Para tanto, alegou, em síntese, que o procedimento criminal estava prescrito à data em que foi constituída arguida. Alegou, ainda, que não praticou os factos descritos na acusação.
Concluí pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
9. A presente instrução foi declarada aberta.
Procedeu-se ao interrogatório do arguido AA.
Teve lugar o debate instrutório, com observância dos requisitos legais.
10. Da Prescrição do Procedimento Criminal relativamente aos arguidos CC, DD, BB E EE.
Cumpre, antes do mais, conhecer esta questão prévia.
Efetivamente o procedimento criminal está prescrito.
Nos presentes autos, os arguidos foram acusados da prática de um crime de insolvência dolosa agravada, previsto e punível, pelo art. 227.º, n.º 1, al. a), b) e c) e n.º 2 e agravado pelo artigo 229.º-A, do Código Penal.
Cumpre esclarecer que a qualificação jurídica relativamente aos arguidos está correta.
De facto, este crime, nos termos do nº 1, só pode ser praticado por “devedor cuja insolvência possa ser objecto de reconhecimento judicial” [PEDRO CAEIRO, Comentário Conimbrincense, pág. 408]; só o devedor insolvente pode praticar o crime.
Trata-se, assim, de um “crime específico puro” só pode ser cometido “por determinadas pessoas, às quais pertence uma certa qualidade ou sobre as quais recai um dever especial” Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 304. Como refere MIGUEZ GARCIA/ J. M. CASTELA RIO “gira em torno de uma qualidade típica, a de «devedor»”, in Código Penal anotado, p. 1006.
Todavia, o art. 227º, nº 2 permite, enquanto autor imediato, a punição do terceiro que pratique alguma das condutas típicas, com conhecimento do devedor ou em seu benefício. Terceiro será “todo aquele que é estranho à organização empresarial do devedor, não desempenhando aí as funções de sócio, de gerente ou administrador, de titular de qualquer outro órgão social, de trabalhador ou funcionário” [PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., p. 707].
Parece-nos claro, aliás, tal como foi enquadrado na acusação, que a arguida é estranha à organização empresarial da sociedade, porquanto, não é gerente de direito ou de facto, tendo a sua atuação limitada à aceitação da transferência da propriedade de um veículo automóvel.
Feita esta breve introdução e no que concerne à prescrição propriamente dita, primeiramente, cumpre determinar o limite máximo da pena aplicável à arguida. Para o efeito, recorremos aos ensinamentos do douto acórdão da Relação de Coimbra, datado de 30.06.2020 [processo 2946/15.2T9VIS-A.C1], relatora ELISA SALES, in DGSI, “resulta que para a determinação do máximo da pena aplicável a cada crime, a que se refere o n.º 1, só não são levadas em conta as circunstâncias modificativas previstas na Parte Geral. Portanto, todas as circunstâncias previstas na Parte Especial contam, sempre que com elas se crie um novo tipo”.
Em consonância, aplicando a atenuante prevista na parte especial [n.º 2, do artigo 227.º, do CP], o limite máximo da moldura penal estabelecida para o crime fixa-se em 3 anos e 4 meses de prisão. Aplicando agora a agravante prevista na parte especial [artigo 229.º-A, CP], o limite máximo da moldura penal fixa-se nos 4 anos 1 mês e 10 dias. Assim sendo, nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º 1, al. c), do CP, àquele ilícito corresponde o prazo prescricional de 5 anos.
Por sua vez, prescreve o artigo 119, n.º 1, do Código Penal que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, ou seja, desde a data da verificação do crime. Como decidiu o acórdão de 2-10-2013, da Relação de Coimbra [proc. 253/05.8TAPMS.C1], in www.dgsi.pt, “sem o reconhecimento judicial da insolvência o agente não pode ser perseguido pelo crime de insolvência dolosa. Assim, independentemente da data em que tenham sido praticados os actos integradores daquele ilícito penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal não pode começar a correr antes da declaração de insolvência, por a tal obstar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal”. Ou seja, o reconhecimento judicial da insolvência constitui apenas uma condição objectiva de punibilidade.
Tendo em conta que:
i) Foi declarada a insolvência em 23-03-2015;
ii) CC foi constituído arguido em 27-05-2021;
iii) DD foi constituída arguida em 27-05-2021;
iv) BB foi constituído arguido em 21-05-2020;
v) EE foi constituído arguido em 01-06-2021.
No caso, este último acontecimento, constitui a única causa de interrupção do prazo prescricional aplicável [artigo 121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal].
Em face das considerações expendidas, tendo o facto que constitui condição objetiva de punibilidade ocorrido a 23 de março de 2015 [data da declaração de insolvência] e tendo apenas ocorrido a constituição como arguidos a 27 de maio de 2021, 21 de maio de 2020 e 1 de junho de 2021, o procedimento criminal prescreveu em 23 de março de 2020, em virtude de não terem ocorrido entre estas duas últimas datas quaisquer causas de interrupção ou suspensão da prescrição.
FACE AO EXPOSTO, declaro extinto o procedimento criminal no que respeita ao crime de insolvência dolosa agravada imputado aos arguidos CC, DD, BB E EE, por efeito da prescrição.
Notifique.
Declaro cessadas as medidas de coação aplicadas – cf. art. 214.º, nº1, al. b), do CPP.”

II.  Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso em 23-11-2022 com a refª ...38, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“1. O arguido BB vinha acusado da prática de um crime de insolvência dolosa agravada, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 227º, nº1, als. a), b) e c) e nº2 e 227º-A do C. Penal.
2. Em sede de decisão instrutória foi, quanto ao mesmo, declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal.
3. Considerou o tribunal que, tendo os factos ocorrido no dia 23.03.15, quando, no dia 21.05.20, BB foi constituído arguido havia já transcorrido o prazo de 5 anos.
4. Os factos relacionados na acusação pública que contra o arguido BB foi deduzida são, efectivamente, integrativos da prática do apontado ilícito penal típico.
5. De acordo com a prova reunida em inquérito, que não foi objectada no decurso da fase de instrução, avultam indícios suficientes de que este arguido assumiu os comportamentos alinhados no despacho de acusação.
6. Acompanhando o que a propósito foi referido na decisão instrutória, o prazo de prescrição do procedimento criminal quanto ao ilícito em sujeito é de 5 anos.
7. Sucede, porém, ao invés do sustentado no segmento de despacho agora impugnado, que não havia transcorrido (aquando da constituição de arguido) nem, aliás, se completou, ainda, neste momento processual, quanto a BB, o prazo de prescrição.
8. Em face da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV 2 e da doença do Covid 19, foram adoptadas medidas excecionais e temporárias, em ordem a dar resposta às dificuldades que foram surgindo, nomeadamente no acesso aos tribunais e no cumprimento dos prazos.
9. Por força dos arts 7º, nºs 3 e 4 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e 6º-B, nº3 da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, diplomas que estabeleceram medidas excecionais e temporárias, em ordem a dar resposta às dificuldades que, em razão de contexto de pandemia, foram surgindo, nomeadamente no acesso aos tribunais e no cumprimento dos prazos, a suspensão da prescrição vigorou nos períodos compreendidos entre 09.03.20 e 03.06.20 e 22.01.21 e 06.04 21.
10. Pese embora a doutrina e a jurisprudência não convirjam  no que respeito diz à aplicação deste regime de suspensão aos prazos de prescrição do procedimento criminal, alinhamos, neste particular, com o que, a propósito, foi decidido nos Acórdãos da Relação de Lisboa, de 11.02.21 e 05.04.22, ambos acessíveis através de www.dgsi.pt.
11. Perante a paralisação forçada, porque incontornável, do andamento generalizado dos processos, o legislador viu-se na contingência de determinar a suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais quanto aos processos não urgentes.
12. A inactividade do aparelho judiciário repercutia-se não apenas sobre todos os intervenientes processuais, mas também sobre o próprio Estado que, enquanto prossecutor da ação penal, se viu obrigado, em virtude de tão marcante situação excecional, a suster parcialmente tal desiderato.          
13. Os factos cuja prática vem imputada a BB ocorreram no dia 23.03.15.
14. O prazo de prescrição [cinco anos (cfr. art. 118º, nº1, al. c) do C. Penal)] esteve suspenso durante os períodos temporais considerados de 09.03.20 a 03.06.20 e de 22.01.21 a 06.04.21.
15. Porque assim, quando, em 21.05.20, BB foi constituído arguido (ocorrência processual que interrompeu a prescrição nos termos do art. 121º, nº1, a) do C. Penal) ainda não havia transcorrido o prazo de 5 anos contado do dia em que o facto se consumou.
16. Entretanto, o mesmo arguido foi regularmente notificado da acusação pública (evento processual que interrompeu, novamente, a prescrição, nos termos do art. 121º, nº1, b) do C. Penal).
17. Aliás, por força do que vai disposto no art. 120º, nº1, al. b) e nº2 do C. Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal encontra-se, no caso, suspenso desde a notificação da acusação (pelo período máximo de três anos).
18. Decidindo como decidiu, violou o tribunal as normas constantes dos arts. 7º, nºs 3 e 4 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e 6º-B, nº3 da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, bem como as inscritas nos arts. 6º-A, 7º, 10º e 11º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, e 6º da Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, por conseguinte, revogado o apontado segmento da decisão recorrida, que deverá ser substituído por outro que declare não verificada a extinção do procedimento criminal, por prescrição, relativamente ao arguido BB e, consequentemente, se pronuncie sobre a existência ou não de indícios suficientes da verificação do crime que lhe foi imputado, assim se fazendo JUSTIÇA”

III. O recurso foi admitido por despacho de 29-11-2022 com a refª ...14 tendo sido fixado efeito devolutivo.

IV. Respondeu o arguido BB através das contra-alegações juntas em 23-01-2023, com a refª ...85, através das quais pugna pela improcedência do recurso não tendo oferecido conclusões.

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido douto parecer em 20-02-2023 com a refª ...96, através do qual pugna pela improcedência do recurso citando jurisprudência desta mesma Relação.

VI. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP nenhuma resposta foi oferecida ao douto parecer.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP.[1]
 
Está em causa saber se a suspensão dos prazos estabelecida na Lei 1-A/2020 de 19-03, e posteriores alterações, pode ser aplicada a processos pendentes relativamente a crimes praticados anteriormente à sua entrada em vigor, devendo, assim, revogar-se o despacho recorrido ou, se pelo contrário, tal suspensão implica a violação do princípio da irrectoactividade da lei penal in pejus devendo-se manter o despacho recorrido..

A resposta que nos é pedida vai implicar uma análise:

- da natureza jurídica da prescrição;
- do âmbito e sentido da legislação Covid no que tange à prescrição do procedimento criminal;
- de jurisprudência do Tribunal Constitucional, mormente o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 500/2021 de 09-06-2021.

Comecemos, primeiro, por anotar as normas aplicáveis ao caso concreto.

A prescrição vem prevista no Código Penal sob o título “Extinção da responsabilidade criminal” estando regulada nos seguintes artigos:

Artigo 118.º  - Prazos de prescrição
“1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:
a) 15 anos, quando se tratar de:
i) Crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos;
ii) Crimes previstos nos artigos 335.º, 372.º, 373.º, 374.º, 374.º-A, nos n.os 1 e 3 do artigo 375.º, no n.º 1 do artigo 377.º, no n.º 1 do artigo 379.º e nos artigos 382.º, 383.º e 384.º do Código Penal;
iii) Crimes previstos nos artigos 11.º, 16.º a 20.º, no n.º 1 do artigo 23.º e nos artigos 26.º e 27.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho;
iv) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril;
v) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º-A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto;
vi) Crime previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro;
vii) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar; ou
viii) Crime previsto no artigo 299.º do Código Penal, contanto que a finalidade ou atividade do grupo, organização ou associação seja dirigida à prática de um ou mais dos crimes previstos nas subalíneas i) a iv), vi) e vii);
b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos;
c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;
d) Dois anos, nos casos restantes.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes.
3 - Se o procedimento criminal respeitar a pessoa colectiva ou entidade equiparada, os prazos previstos no n.º 1 são determinados tendo em conta a pena de prisão, antes de se proceder à conversão prevista nos n.os 1 e 2 do artigo 90-B.º
4 - Quando a lei estabelecer para qualquer crime, em alternativa, pena de prisão ou de multa, só a primeira é considerada para efeito do disposto neste artigo.
5 - Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, bem como no crime de mutilação genital feminina sendo a vítima menor, o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes de o ofendido perfazer 23 anos.”

Artigo 119.º - Início do prazo
“1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;
c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
3 - No caso de cumplicidade atende-se sempre, para efeitos deste artigo, ao facto do autor.
4 - Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.”

Artigo 120.º - Suspensão da prescrição
“1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;
e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
4 - No caso previsto na alínea e) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo.
5 - Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.
6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.”

Artigo 121.º - Interrupção da prescrição
“1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) Com a declaração de contumácia;
d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.
2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.”

Da Legislação Covid temos as seguintes normas:

Versão Originária da Lei 1-A/2020 de 19-03
Artigo 7.º - Prazos e diligências
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5 - Nos processos urgentes os prazos suspendem-se, salvo nas circunstâncias previstas nos n.ºs 8 e 9.
6 - O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, e respetivos atos e diligências que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;
c) Prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares.
7 - Os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários.
8 - Sempre que tecnicamente viável, é admitida a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente por teleconferência ou videochamada.
9 - No âmbito do presente artigo, realizam-se apenas presencialmente os atos e diligências urgentes em que estejam em causa direitos fundamentais, nomeadamente diligências processuais relativas a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente, diligências e julgamentos de arguidos presos, desde que a sua realização não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes.
10 - São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.
11 - Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020.”

Lei 4-A/2020 de 06-04 que aletrou a Lei 1-A/2020 de 19-03 nos seguintes termos:

Artigo 7.º - Prazos e diligências
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação dos processos e à prática de atos presenciais e não presenciais não urgentes quando todas as partes entendam ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) A que seja proferida decisão final nos processos em relação aos quais o tribunal e demais entidades entendam não ser necessária a realização de novas diligências.
6 - Ficam também suspensos:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
7 - Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:
a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, e esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, pode realizar-se presencialmente a diligência desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes;
c) Caso não seja possível, nem adequado, assegurar a prática de atos ou a realização de diligências nos termos previstos nas alíneas anteriores, aplica-se também a esses processos o regime de suspensão referido no n.º 1.
8 - Consideram-se também urgentes, para o efeito referido no número anterior:
a) Os processos e procedimentos para defesa dos direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais, referidas no artigo 6.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na sua redação atual;
b) O serviço urgente previsto no n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de março, na sua redação atual;
c) Os processos, procedimentos, atos e diligências que se revelem necessários a evitar dano irreparável, designadamente os processos relativos a menores em risco ou a processos tutelares educativos de natureza urgente e as diligências e julgamentos de arguidos presos.
9 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de atos em:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias;
b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, incluindo os atos de impugnação judicial de decisões finais ou interlocutórias, que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem como os que corram termos em associações públicas profissionais;
c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de atos por particulares.
10 - A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os atos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles.
11 - Durante a situação excecional referida no n.º 1, são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
12 - Não são suspensos os prazos relativos à prática de atos realizados exclusivamente por via eletrónica no âmbito das atribuições do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P.
13 - Após a data da cessação da situação excecional referida no n.º 1, a Assembleia da República procede à adaptação, em diploma próprio, dos períodos de férias judiciais a vigorar em 2020.”

Lei 4-B/2021 de 01-02 que efectuou o seguinte aditamento à Lei 1-A/2020

Artigo 6.º-B - Prazos e diligências
“1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - O disposto no número anterior não se aplica aos processos para fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;
b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.”

Lei 13-B/2021 de 05-04 que procedeu à 10ª alteração à Lei nº 1-A/2020 de 19-03 tendo aditado a seguinte norma:

Artigo 6.º-E - Regime processual excecional e transitório
“1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
a) Presencialmente, nomeadamente nos termos do n.º 2 do artigo 82.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na sua redação atual; ou
b) Sem prejuízo do disposto no n.º 5, através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e a sua realização por essa forma não colocar em causa a apreciação e valoração judiciais da prova a produzir nessas diligências, exceto, em processo penal, a prestação de declarações do arguido, do assistente e das partes civis e o depoimento das testemunhas.
3 - Em qualquer caso, compete ao tribunal assegurar a realização dos atos judiciais com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 - Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Quando tal se revelar necessário, presencialmente.
5 - As partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser realizadas nos termos dos n.ºs 2, 4 ou 8.
8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não caprejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
9 - O disposto nas alíneas d) e e) do n.º 7 prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, que são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.
10 - Os serviços dos estabelecimentos prisionais devem assegurar, seguindo as orientações da DGS e da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em matéria de normas de segurança, de higiene e sanitárias, as condições necessárias para que os defensores possam conferenciar presencialmente com os arguidos e condenados.
11 - Os tribunais e demais entidades referidas no n.º 1 devem estar dotados dos meios de proteção e de higienização determinados pelas recomendações da DGS.”

O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 500/2021 termina com a seguinte decisão:

“a)  Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Valores Mobiliários, ao prever que a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima até ao limite máximo de cinco milhões de euros;

b) Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.”

Entremos, agora, na análise das questões que o recurso suscita, sendo de realçar que não está causa a validade da suspensão dos prazos prescricionais prevista na legislação avulsa que visou regular o Estado de Emergência decretado em função da pandemia propalada pela OMS, mormente os nºs 3 e 4 do artº 7º da Lei nº 1-A/2020 de 19-03, para os casos surgidos na sua vigência, apenas se discute se essas normas podem abranger situações existentes antes da sua entada em vigor.

a) Da natureza jurídica da prescrição:

A temática em apreço tem ocupado durante muito tempo inúmeros jurisconsultos sendo, pelo menos unânime, identificar-se na doutrina e na jurisprudência, quer nacionais, quer estrangeiros, três tipos de construção jurídica em torno da natureza da prescrição.

Vejamos.

Não há a menor dúvida que a prescrição e o tempo estão de mão dada, de tão inexoravelmente ligados que estão que este é fundamento daquele, ou melhor dizendo, que o decurso ou a passagem do tempo é condito sine qua non para a existência da prescrição.

No ordenamento penal português a prescrição reporta-se a duas realidades distintas: ao procedimento penal e às penas (e medidas de segurança).

No primeiro caso a prescrição não permite que se conclua ou se avance com a acção penal, isto é, não permite que se persiga o indigitado infractor em termos de investigação e julgamento penais e, no segundo caso, a prescrição não permite executar-se ou tornar eficaz a pena (media de segurança).

No caso em apreço está em causa a prescrição do procedimento criminal, contudo as considerações a tecer neste recurso aplicam-se mutatis mutandis à prescrição das penas (medida de segurança) precisamente porque, subjacente quer a uma, quer a outra das prescrições anunciadas está o decurso do tempo e os efeitos que este decurso implica.

Na génese da prescrição está a ideia muito antiga – já os Romanos previam a prescrição[2] – de que passado certo lapso de tempo não faria sentido perseguir-se um indigitado infractor por já não ser possível reconstruir-se, com a segurança necessária, os elementos do crime.

Não só porque na maior parte dos casos qualquer eventual testemunha, volvidos anos sobre o acontecimento, não teria memória suficiente para atestar os factos com segurança, como os próprios vestígios ter-se-iam apagado ou tornado inócuos.

E ainda, tendo a acção penal, nos seus primórdios, a ideia de castigo ou retribuição[3], entendia-se que não faria sentido castigar um indigitado infractor passados anos sobre o cometimento do facto.

Se olharmos a questão através da lente das concepções modernas do direito penal[4] e do que o fundamenta constatamos que, quer de um ponto de vista de prevenção geral, quer do ponto de vista da prevenção especial, com a tónica mais nesta finalidade da pena, constata-se que não faz sentido perseguir, com vista a punir, uma pessoa relativamente à cuja actuação criminosa já tenha passado tanto tempo (aqui é que entra a política legislativa de cada país definir o que se entende por tempo suficiente para se acionar a prescrição) que a pena, em si, já não faça qualquer sentido, quer porque o agente, sem notícia de quaisquer outras situações de índole penal, não mais voltou a prevaricar (portanto aprendeu com o seu acto e emendou-se, estando, assim, ressocializado), quer porque o feito criminal já caiu no esquecimento da comunidade[5] (se o acto deixou de ter relevância social ao ponto da comunidade dele ter abdicado em termos de memórias e, portanto, em termos de ofensa dos respectivos valores, deixaria de haver o fundamento para a punição).
           
A determinação do prazo de prescrição dependerá da política criminal que em cada momento um país pretenda impor e reflecte, de certo modo, os valores sociais que são tidos por importantes em determinado momento histórico.

É por isso que os prazos de prescrição são de duração diferente consoante o tipo de crime envolvido, sendo unânimente aceite pela comunidade que crimes graves, com penas de prisão mais elevadas, como o homicídio, tenham prazos de prescrição mais dilatados do que crimes de menor gravidade.

Mas o que interessa aqui aquilatar é a natureza das regras que definem e condicionam a prescrição, mormente as regras que delimitam as situações em que a suspensão na contagem do prazo prescricional ocorre e, a par destas, mas fora da nossa análise, as situações em que a contagem inicial do prazo prescricional é interrompido e recomeçado de novo.

Pois que, tanto a suspensão como a interrupção da prescrição têm uma finalidade prática e que se traduz no alargamento do prazo primitivo da prescrição.

Assim, e a título meramente exemplificativo, se estiver em causa um crime punível com uma pena máxima de prisão inferior a 5 anos mas superior a 1 ano, nos termos do artº 118º nº 1 al. c) do Código Penal o prazo prescricional é de 5 anos.

Contudo, se ocorrer uma causa de suspensão prevista no artº 120º do Código Penal, por exemplo, uma situação que não implique nem a declaração de contumácia, nem a falta de trânsito da sentença condenatória, como, por exemplo, uma paragem no processo a partir da acusação, nos termos do nº 2 do artº 120º do CP aquele prazo prescricional aumentará em mais 3 anos, passando a ser de 8 anos.

Claro se vê que as situações que permitem a suspensão dos prazos prescricionais não só não são inócuos como implicam um verdadeiro alargamento dos prazos de prescrição.

O que nos traz à quaestio vexata que é de saber se a prescrição tem natureza substantiva ou meramente processual.

A resposta que se der à pergunta é fundamental para nos auxiliar na resolução que somos chamados a dar ao recurso em apreço, ainda que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 500/2021 – que infra analisaremos melhor – tenha concluído pela quase irrelevância da natureza da prescrição, pois que entende que o que releva é o “princípio da confiança”[6] (o qual não seria beliscado com uma nova causa de suspensão da prescrição) a verdade é que despendeu páginas de argumentação em torno da natureza da prescrição tendo concluído que “o Tribunal (vem) perfilhando o entendimento de que o instituto da prescrição tem uma natureza, senão material, pelo menos mista (…)”

Ora, em nosso modesto entendimento, a questão não é irrelevante uma vez que a jurisprudência e doutrina que entende que as causas de suspensão da prescrição estão sujeitas aos limites constitucionais da não retroactividade da lei penal e da aplicação da lei penal mais favorável consideram a suspensão da prescrição como tendo natureza substantiva, ou, pelo menos, mista, isto é com efeitos a nível substantivo e a nível processual.

Disso, dá conta o próprio Acórdão nº 500/2021 que cita a jurisprudência do próprio Tribunal Constitucional nos seguintes termos:

“A perspetiva segundo a qual a prescrição do procedimento criminal constitui «para o arguido uma garantia material ou não meramente procedimental» (Acórdão n.º 297/2016) foi desenvolvida numa série de outros arestos, designadamente no Acórdão n.º 445/2012, que a sustentou nos termos seguintes:
«6. O instituto da prescrição do procedimento criminal justifica-se, desde logo, por razões substantivas, ligando-se a exigências político-criminais ancoradas nos fins das penas. Com o decurso do tempo, além do enfraquecimento da censura comunitária presente no juízo de culpa, por um lado, perdem importância as razões de prevenção especial, desligando-se a sanção das finalidades de ressocialização ou de segurança. Por outro lado, também do ponto de vista da prevenção geral positiva se justifica o instituto.
Com o correr do tempo sobre a prática do facto, vai perdendo consistência a prossecução do efeito da pena de afirmação contrafáctica das expectativas comunitárias sobre a vigência da norma, já apaziguadas ou definitivamente frustradas. Finalmente há a considerar o efeito do tempo no agravamento das dificuldades probatórias, com a consequente potenciação do grau de incerteza do resultado. O que, em associação com a ideia de que à intervenção penal deve ser reservado um papel de ultima ratio, só legitimada quando ainda se mantenham a necessidade de assegurar os seus objetivos, justifica que o Estado não prossiga o procedimento transcorrido que seja o período de tempo legalmente determinado (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 699).»
Ainda que por referência à prescrição, não do procedimento, mas da pena, a ideia de que a prescrição constitui um pressuposto negativo da punição, e não uma mera condição negativa de procedibilidade (ou de exequibilidade), foi expressamente afirmada no Acórdão n.º 625/2013:
«A prescrição das penas funciona, assim, como um pressuposto negativo da punição, sendo apontado a este instituto uma natureza mista, substantiva e processual, que leva a que as normas que integram o seu regime sejam qualificadas como normas processuais materiais (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit, pág. 702, da ed. de 1993, da Aequitas, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 383, da 2.ª ed., da Universidade Católica Editora).»”

Aliás, a solução jurídica proposta pelo Direito Alemão, que é a de excluir da protecção constitucional as causas de suspensão da prescrição assenta, precisamente, no facto de na Alemanha a suspensão prescricional ser vista como tendo natureza meramente processual.

Disso também deu conta o Acórdão do TC nº 500/2021 quando revela:

“A propósito das causas de suspensão da prescrição, disso deu expressamente conta o Acórdão n.º ...08, tirado em Plenário, que se distanciou da tese acima exposta nos termos que se seguem:
«Pode colocar-se a questão de saber se as causas de suspensão da prescrição estão, ou não, abrangidas por este princípio-garantia da legalidade criminal. Na Alemanha, por exemplo, esta matéria tem sido excluída do âmbito da garantia constitucional da legalidade, por se considerar a prescrição como mero pressuposto processual que se refere exclusivamente às condições de exercício da ação penal (assim Leibholz/Rink, Grundgesetz Kommentar, Art. 103., Köln, 1975/2005, Rz. 1492; sobre a aceitação generalizada da prescrição como mero pressuposto processual na jurisprudência, Lemke, in Strafrechtgesetzbuch, hrsg. Kindhäuser/ /Neumann/Paeffgen, Bd 1, 2. Aufl., 2005, p. 2146).
Como explica Claus Roxin, a natureza da “prescrição” não é irrelevante, pois dela depende a aplicabilidade do princípio da legalidade que “se limita ao direito penal substantivo” (Strafrecht, 3. Aufl., 1997, p. 912 s.).
A posição da nossa doutrina é porém diferente. Ela admite, e bem, que a prescrição tem, pelo menos em parte, uma natureza substantiva (sobre a dupla natureza processual e substantiva do instituto da prescrição, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra 1993, p. 698 ss. e Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, Lisboa 1999, p. 225), sendo certo que se considera em geral que o princípio da legalidade se deverá impor sempre que ele funcione como garantia do arguido, ou seja, sempre que a ultrapassagem do sentido semântico da norma criminal funcione contra o arguido».” – sublinhado nosso

Afigura-se-nos claro, até pela jurisprudência do Tribunal Constitucional ao longo dos anos, pelo menos a partir de 2008, que as causas de suspensão da prescrição integram, ainda que tenham também um cunho processual, o direito penal substantivo.

Aliás, o Tribunal Constitucional através do Acórdão n.º ...08 declarou, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redação originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia», o Tribunal parece ter atribuído à «natureza substantiva», sendo que no Acórdão nº 500/2021, que o digno recorrente chama à colação para defender a sua posição recursal, admite claramente o seguinte:

“É verdade que no Acórdão n.º ...08 (…) o Tribunal parece ter atribuído à «natureza substantiva», «pelo menos em parte», da prescrição um relevo decisivo para afirmar o efeito correspondente à subordinação das respetivas causas de suspensão à exigência de lei estrita (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição), com consequente proibição do recurso à analogia.”[7]

Não há, assim, em nosso modesto entendimento, dúvida alguma que a prescrição tem uma natureza, pelo menos, mista mas em que a existência num plano ontologicamente substantivo impõe a sua sujeição ao plano constitucional mormente às regras da não retroactividade da lei penal in pejus.

Tanto que esse tem sido o entendimento desta mesma Relação de Guimarães, manifestada no acórdão de 25-01-2021, em cuja Relatora é a Exmª Srª Juíza Desembargadora Cândida Martinho, e que, apesar de ter sido prolatado antes do Ac. do TC nº 500/2021, em nosso entendimento, mantém-se válido (infra explicaremos porquê) como se vê:
“V) Com as medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, criou-se, para além do mais, uma nova causa de suspensão dos prazos da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança, a par das indicadas nos artigos 120º e 125º do C.Penal, respectivamente.
VI) Em virtude de tal legislação específica, tais prazos ficaram automaticamente suspensos em 9/3/2020, retomando a sua contagem a 3/6/2020.
VII) Tendo-se alargado o prazo de prescrição em 86 dias e, desse modo, a possibilidade da sua punição, é inquestionável que tal mostra-se mais prejudicial para a situação processual dos arguidos, e dai que a sua aplicação deva reservar-se para os factos praticados na sua vigência.
VIII) Não se ignorando a discussão dogmática a respeito da natureza da prescrição do procedimento criminal - para uns de natureza substantiva, para outros de natureza adjectiva ou mista - cremos para nós que referindo-se ao exercício do direito de punir, enquanto causa de extinção da responsabilidade criminal, o seu instituto tem natureza substantiva, como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça.
Natureza substantiva essa que determina, no domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, que a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroactividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.”[8]

Bem como no acórdão por nós prolatado no recurso nº 31/20.....

Ora, a questão suscitada no recurso não nasce de uma vontade de debater novamente o que já foi amplamente debatido ao longo dos anos na nossa jurisprudência, mas, antes, nasce de uma situação nova que levou à paragem do País: a declaração do Estado de Emergência e consequente elaboração de legislação contendo medidas excepcionais e transitórias em virtude da pandemia, propalada pela OMS, em torno do coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19.

Essa natureza excepcional e transitória, assente numa questão de saúde pública, traduz uma nova vertente que carece de uma análise própria e aprofundada.

Pelo que se entrará agora na análise da segunda questão supra anunciada.

b) Da excepcionalidade da legislação Covid no que tange à prescrição do procedimento criminal:

Na óptica do digno recorrente, que se alicerça no entendimento propugnado em dois exemplares jurisprudenciais provenientes da Relação de Lisboa, a situação pandémica causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que produziu a doença COVID-19, por dizer respeito a uma questão de saúde pública que atingiu proporções globais que levaram à paralisação da vida em sociedade, mormente dos Tribunais, é fundamento suficiente para subtrair a legislação produzida no âmbito do Estado de Emergência às regras constitucionais, tendo inclusive, o Tribunal Constitucional considerado, no seu mais recente arresto, com o nº 500/2021, que as normas contidas nos nºs 3 e 4 da Lei nº 1-A/2020 de 19-03 não eram inconstitucionais no que tange ao procedimento contra-ordenacional.

Esse entendimento vem expresso no referido acórdão que aqui sintetizamos para cabal compreensão:

“No âmbito da administração da justiça — vimo-lo também —, o cumprimento desse dever de proteção conduziu à excecional contração da atividade dos tribunais (…)
Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser.
É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse — se manteve — o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário”

Em nosso entendimento este argumento é aplicável a um sem número de situações, também elas excepcionais e com potencial paralisação dos tribunais, como, por exemplo, um terramoto como aquele que se fez sentir em Lisboa em 1755, com consequências muito mais gravosas para o País[9] do que a pandemia provocada pela Covid 19[10].

Se se abra a porta a uma excepção temos de a abrir a todas e se há algo que caracteriza a nossa sociedade moderna é precisamente a imprevisibilidade dos fenómenos que a assolam por vezes.

Hoje foi a Covid 19, amanhã é uma guerra ou um fenómeno da natureza.

E, se forem admitidas excepções aos princípios constitucionais que impregnam e delimitam os princípios basilares do direito penal, mormente, o princípio da não retroactividade da lei penal, então fica aberta a porta para surgirem cada vez mais excepções para justificar um desvio àquele e a outros princípios equivalentes.

Basta decretar-se novo Estado de Emergência, para justificar uma nova excepção ao direito penal.

Não se questiona a extrema contenção que os tribunais sentiram com o decretamento das medidas excepcionais, mas os tribunais não estiveram nunca parados, nem a Justiça deixou de ser aplicada.

Aos magistrados, judiciais e do MºPº, não foram atribuídas licenças para não trabalharem, nem os recursos deixaram de ser julgados.

Ora, no acórdão do TC nº 500/2021 podemos ler:
“Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser. Relativamente aos procedimentos criminais, assim sucedeu com a dedução da acusação, a prolação da decisão instrutória e a apresentação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo (artigos 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), a declaração de contumácia (artigos 120.º, n.º 1, alínea c), e 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e a constituição de arguido (121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal).”

Salvo o devido respeito, não podemos deixar de perguntar como é que as limitações impostas ao funcionamento dos Tribunais, previstas na legislação de Estado de Emergência, alguma vez poderiam impedir a dedução de uma acusação (acto materialmente realizável em casa em computador), a prolação de uma decisão instrutória (igualmente realizável em casa em computador) ou a declaração de contumácia que não implica qualquer contacto seja com quem for, ademais se tivermos presentes que desde há uma década que os Tribunais portugueses trabalham com a plataforma citius através da qual é perfeitamente possível, e é isso que sucede diariamente, despachar processos, emitir pareceres e promoções e prolatar sentenças e acórdãos em termos electrónicos.

Os processos podem ser consultados electronicamente e mesmo os inquéritos não sujeitos à obrigatoriedade da tramitação electrónica podem ser enviados para a casa do respectivo magistrado via seguro de correio como já ocorre com os milhares de recursos que circulam pelas 5 Relações, alguns vindos dos Açores e Madeira.

Nunca se deixou de tramitar um processo judicial, ademais os urgentes, por força da pandemia.

Nem se afastou a possibilidade de fazer diligências por meios telemáticos.

Por isso, não se consegue sufragar o entendimento propugnado no acórdão do Tribunal Constitucional em análise no que tange à paralisação do sistema judicial e sua consequente incapacidade (ao que parece total) para tramitar com normalidade os processos embora sujeita a alguns inconvenientes.

Ora, a legislação Covid em apreço foi elaborada de acordo com as normas constitucionais previstas no artº 19º da Constituição da República Portuguesa subordinado ao epígrafe “suspensão do exercício de direitos” que determina o seguinte:

“1. Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição.
2. O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública.
3. O estado de emergência é declarado quando os pressupostos referidos no número anterior se revistam de menor gravidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias susceptíveis de serem suspensos.
4. A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respectivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.
5. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites.
6. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, a capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.
7. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afectar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respectivos titulares.
8. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.”

Assim, as normas provenientes da Lei nº 1-A/2020 de 19-03 e da restante legislação que foi sucessivamente alterando e adequando aquela lei, tinham como limite as imposições referidas no artº 19º da CRP, mormente as constantes do seus nºs 3 e 6.

O artigo 19º da CRP, embora regulando uma situação excepcional, não a define e, por isso, constitui uma norma geral e abstracta aplicável a qualquer situação nela enquadrável, pelo que a pandemia em torno da Covid 19 traduziu apenas uma de um sem número de situações potencialmente susceptíveis de enquadrar um Estado de Emergência.

Sendo de notar que o artº 19º da CRP não prevê excepções isto é, não diz, por exemplo, “se a causa subjacente à declaração do Estado de Emergência for uma pandemia decretada pela OMS, então o nº 6 já não se aplica”.

Pelo que, qualquer situação apta a implicar o decretamento de um Estado de Emergência, isto é, qualquer situação que possa ser reconduzida a “casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública” insere o potencial paralisante das instituições estatais e, nem mesmo assim, fica subtraídas ao disposto no nº 6 do citado artº 19º da CRP.

Repare-se que o artº 19º da CRP prevê situações como agressão efectiva por forças estrangeiras, e se ativermo-nos um pouco nessa ideia, facilmente se verifica que ela, mais até do que uma pandemia, poderia implicar uma paralisação dos centros nevrálgicos do Estado e dos tribunais se um bombardeamento ocorresse que inutilizasse as respectivas estruturas ou, pior ainda, se o sistema informático fosse alvo de um “hack” total.

O mesmo se diga em relação a uma calamidade de proporções pré-históricas, que não foi o caso da pandemia em torno da Covid 19[11], e que o legislador constitucional seguramente admitiu como possível (daí não ter elencado as situações, que deixou como conceito aberto para preenchimento em cada momento) mas que, nem mesmo assim, subtraiu ao disposto no nº 6 do artº 19º da CRP.

A aplicação das salvaguardas da nossa Constituição desenhadas para manter incólume aquele núcleo fundamental de direitos que foram sendo conquistados ao fim de muitos séculos e convulsões políticas e sociais, não pode ficar sujeita a que cada um de nós, em cada momento, e de acordo com a nossa própria sensibilidade possa considerar de excepcional dentro da excepcionalidade que o artº 19º da CRP já consagra.
           
Há que manter a objectividade das situações para evitar cair em exageros que, apelando aos sentimentos que possam surgir a partir da perspectiva pessoal que cada um faz deste ou daquele fenómeno, nos levam a esquecer os princípios basilares absolutamente fundamentais a um Estado de Direito Democrático.

Por isso se nos afigura, modestamente, que mesmo as normas contidas na Lei nº 1-A/2020 de 19-03 e restante legislação emitida ao abrigo do Estado de Emergência, não podem sobrepor-se a tudo quanto temos vindo a referir acerca da natureza substantiva da prescrição e da sua sujeitabilidade à regra da não retroactividade da lei penal in pejus.

A excepcionalidade das situações previstas no artº 19º CRP já se mostra acautelada pelo facto de poder ser decretado um Estado de Sítio ou um Estado de Emergência com a suspensão de alguns direitos constitucionais.

Pretender ir para além disso e considerar que, dentro da excepcionalidade que o artº 19º CRP contempla, há ainda situações mais excepcionais do que outras ou que há situações que podem ser tão excepcionais porque transitórias  (repare-se que o Estado de Emergência é já de per si transitório, só podendo vigorar por apenas 15 dias, embora susceptível de prorrogação)[12] é cair no subjectivismo muitas vezes ditado pelo pânico, receio ou trauma que resultou do evento que determinou o decretamento do Estado de Emergência.

Se pensarmos que, de cada vez que possa haver a necessidade de se decretar um Estado de Emergência, se pode concluir que o evento futuro é ainda mais grave que o anterior, justificando as tais medidas cada vez mais excepcionais, dentro de muito pouco tempo não haverá núcleo de direitos incólumes pois se se admite que, por causa da Covid 19, que não levou ao encerramento dos tribunais, se possa aplicar retroactivamente a lei penal à prescrição, então um evento futuro ainda mais calamitoso daria lugar à suspensão total de direitos.
           
Muito modestamente, não se nos afigura ser este o caminho a trilhar o qual abre a porta para futuras violações dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

Dito isto, entremos então no último aspecto que nos propomos analisar.

c) O acórdão do Tribunal Constitucional nº 500/2021:

Chegados aqui muito já foi referido em relação ao acórdão em apreço.

Contudo, afigura-se-nos que há ainda alguns pontos específicos que carecem de um tratamento mais aprofundado.

Vejamos.

Em primeiro lugar é importante reter o facto de que o acórdão em referência não só não estabelece jurisprudência obrigatória, como o seu escopo de aplicação é o direito contra-ordenacional.

Pese embora a maior parte do acórdão tenha feito uma análise indiscriminadamente da prescrição, isto é, sem estar directamente vocacionada para o direito de mera ordenação social, a verdade é que o recurso foi interposto de uma decisão proferida em sede de uma contra-ordenação e é o próprio Tribunal Constitucional que afirma em tal arresto que:

“A circunstância de a interpretação sindicada se cingir aos procedimentos contraordenacionais pendentes por factos anteriores ao início da vigência da Lei n.º 1-A/2020 apenas serve para tornar mais evidente a conclusão que acima se alcançou. Com efeito, apesar de o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, ser influenciado ou “matizado” pelos princípios constitucionais do direito penal, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal obsta a que tais princípios possam ser transpostos deste para aquele de forma automática ou imponderada ou que possam aí valer com na mesma exata extensão ou com o mesmo grau de intensidade  (cf. Acórdão n.º 76/2016; no mesmo sentido, a propósito da liberdade de conformação do legislador na modelação do instituto da prescrição, v.  Acórdão n.º 297/2016).” – sublinhado nosso

Pelo que, quaisquer consequências que este acórdão possa ter para o caso dos autos será sempre, e apenas, em termos indirectos não sendo vinculativo desta Relação.

Contudo, os argumentos ali expendidos, porque desenvolvidos com referência a preceitos penais, obriga-nos a tomar posição.

Assim, e no que tange ao argumento expendido no Acórdão do TC nº 500/2021 de que (e já fizemos uma ligeira alusão a este argumento supra a propósito da análise sobre a natureza da prescrição) o que releva não é a natureza substantiva ou processual da prescrição mas, antes, o princípio da confiança, entendemos que este argumento implica duas vertentes: uma referente à aquilo que é o objecto visado por tal princípio e, o segundo, transposto para o caso concreto de modo a definir – ao contrário do caso concreto subjacente à prolação do acórdão em análise – se a criação de um novo prazo de suspensão da prescrição se enquadra no princípio da confiança.

Vejamos.

A proibição da rectroactividade da lei penal assenta na ideia de que uma pessoa não pode ser acusada da prática de um crime que não era assim considerado ao tempo da imputação, nem ser punida numa pena que não estava prevista ao tempo da alegada prática dos factos.

Ou seja o que esta proibição visa garantir é “nullum crimen sine lege” e “nullum poena sine lege”.

Mas ela também visa evitar que, embora existindo já incriminação, isto é, embora existindo lei previa escrita, o arguido seja punido por uma lei que agravou a moldura penal ou tornou a sua verificação dependente de outros factores.

O corolário deste princípio orientador da nossa lei penal é a da aplicação ao arguido da lei penal mais favorável consagrada no artº 2º do Código Penal.

Ora, um dos argumentos avançados no Acórdão do TC é o facto da prescrição não se situar no mesmo patamar que as penas ou, nas palavras do referido acórdão:

“As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal.”

E continua o referido Acórdão por afirmar que:

“A proibição da retroatividade in pejus explica-se inteiramente a esta luz: ao contrário do que sucede com a imposição da retroatividade in mellius, «que possui uma génese e um fundamento especificamente  político-criminal», ligado à «ausência de exigências de prevenção que justifiquem a persistência da aplicação ao caso da lei (mais severa) que vigorava no momento da prática do facto», a proibição da retroatividade in pejus tem uma génese e um fundamento «marcadamente político-jurídico», diretamente associado à «defesa da liberdade e da segurança dos cidadãos contra o arbítrio do Estado» (Pedro Caeiro, loc. cit., p. 235-236, itálico aditado). É justamente isso que explica que, não obstante «ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie» (Acórdão n.º 205/1999), as normas relativas à prescrição, designadamente as que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão do prazo respetivo, se encontrem, prima facie, subordinadas à proibição da retroatividade in pejus.
Apontam para essa conclusão dois dados essenciais.
Em primeiro lugar, importa levar em conta que tanto as causas de interrupção como as causas de suspensão da prescrição se destinam a tornar «efetiva a possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia relativamente à interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999): as primeiras porque têm por efeito a inutilização do tempo de prescrição já decorrido (artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal); as segundas porque originam a paralisação do decurso do prazo de prescrição pelo tempo em que perdurar o evento suspensivo, observados os limites máximos fixados na lei (artigo 120.º, n.º 6). Assim, a exigência de que umas e outras se encontrem fixadas em lei prévia tenderá a considerar-se justificada a partir da ideia de controlo do exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou: as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia em matéria de interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999). Neste sentido, a proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal partilhará dos fundamentos da proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem os pressupostos da responsabilidade: tal como esta, também aquela será imposta em nome da defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto.
Em segundo lugar, importa não perder de vista que a ratio da proibição da retroatividade in pejus se liga igualmente ao princípio da confiança. Como se escreveu no Acórdão n.º 261/2020, as garantias inerentes àquela proibição assentam «numa ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição)» (Acórdão n.º 261/2020). Na síntese do Tribunal Constitucional italiano, formulada em jurisprudência posterior à chamada “saga Taricco”, a «proibição em causa visa garantir ao destinatário da norma uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal» (Acórdão n.º 32 de 2020, ponto 4.3.1.), previsibilidade que é, em regra, afetada quando se alteram para o passado as condições em que o facto criminoso pode ser sancionado.” – sublinhado nosso

Ou seja, o Acórdão do TC até aceita, no plano dos princípios e num primeiro momento de análise, que a prescrição e as regras que determinam as causas da sua suspensão e interrupção devem ser abrangidos pelo princípio da não retroactividade da lei penal in pejus e, portanto, deve estar abrangida pelas normas constitucionais contidas no artº 29º da CRP, àquele princípio referentes.

Só que, o Acórdão em apreço depois acaba por criar, em nosso modesto entendimento, uma redoma em torno da Lei nº 1-A/2020 de 19-03 e subsequente alterações, subtraindo-a àquele princípio constitucional com base na seguinte argumentação:

“Mesmo não pondo em causa que, em matéria de prescrição, o conceito de retroatividade é dado tempus deliti e não pelo terminus do prazo - o que, conforme se viu, não corresponde sequer à orientação sufragada no Acórdão n.º 449/2002 -, não restam dúvidas de que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade.” – sublinhado nosso

Ora, não podemos, em boa consciência, sufragar este entendimento pois, como já tivemos oportunidade de afirmar a propósito da nossa análise sobre a excepcionalidade da legislação Covid, percebe-se claramente que as normas previstas nos nºs 3 e 4 do artº 7º da Lei nº 1-A/2020 não devem, nem podem escapar – muito menos de forma total – a ambas as rationes acima explicitadas pelo próprio TC para justificar o motivo pelo qual a prescrição está subordinada ao princípio da não retroactividade da lei penal in pejus.

Se o Estado de Emergência já é um regime excepcional que, por o ser, também teria de estar previsto na própria Constituição – único instrumento legislativo apto a prever uma excepção à própria ordem constitucional – e se esse assento constitucional mesmo em relação a um regime excepcional, que é o Estado de Emergência, proíbe a violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, a capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião, não podem os Tribunais definir o conteúdo do Estado de Emergência e ir para além daquilo que a própria constituição rejeitou.

Ou seja, não é porque alguns tribunais possam entender que a situação de pandemia ocorrida é uma excepção dentro de uma excepção, ou que é uma situação diferente de todas aquelas contempladas pelo legislador constitucional, quando ele admitiu o decretamento do Estado de Emergência em casos de “agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”, que assim se pode subtrair as normas que informam o Estado de Emergência àqueles ditames constitucionais, mormente a não retroactividade de lei penal in pejus.

Até porque, como também já tivemos oportunidade de referir, a situação de pandemia, em termos de funcionamento do Estado, não foi, assim, tão singular nem tão catastrófico.

Aliás, a partir do momento em que o legislador constitucional não definiu – e fê-lo deliberadamente – o que se deve entender por grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional e calamidade pública, aceitou que variadas situações poderiam enquadrar-se em tais conceitos, incluindo, como já havia ocorrido em 1918, uma pandemia provocada pela Gripe Espanhola, e como já havia ocorrido em Portugal, um terramoto desastroso como o de 1755, ou ainda a epidemia provocada pela Peste Negra em Portugal em 1569 que dizimou a vida de 700 pessoas por dia só em Lisboa.

Estes três exemplos revelam com clareza que a pandemia em apreço não é inédita na nossa história e que o mundo está sujeito a fenómenos, quer da natureza, quer do próprio ser humano (no caso de guerras) que podem levar a uma intervenção de emergência.

Mas essa intervenção não pode afectar o núcleo base de direitos constitucionalmente consagrados, sob pena da própria ordem constitucional sofrer um ataque em virtude da decretação do próprio Estado de Emergência.

Ou seja, não se pode dizer que o Estado de Emergência obedece à Constituição enquanto se afirma que, mesmo em caso de guerra, grave perturbação da ordem constitucional ou de uma calamidade pública (ou seja os fundamentos do Estado de Emergência), pode-se decidir em cada momento e perante circunstâncias específicas que alguns fenómenos subjacentes ao decretamento do Estado de Emergência podem escapar àquele controle constitucional.

Isso seria, a nosso modesto ver, transformar leis que já são, de per si, excepcionais e transitórias na ordem jurídica (porque decretadas por causa de um Estado de Emergência) em arbitrárias quanto aos seus efeitos porque subtraídas ao controle constitucional.

Assim, e no tocante à primeira vertente supra enunciada acerca do princípio da confiança, não há, para nós, a mais pálida dúvida de que a prescrição e sobretudo as suas causas de suspensão e interrupção estão abrangidas por aquele princípio e nele se abrigam.

Mas o TC, socorrendo-se, ainda, do princípio da confiança (na segunda vertente onde queremos chegar) prossegue o seu raciocínio no sentido de entender que a suspensão da prescrição prevista na legislação excepcional da doença Covid não bule com aquele princípio da confiança porquanto, sendo a pandemia algo que escapa à previsibilidade, e não imputável ao Estado, nenhuma expectativa poderia sequer se gorada.

Vejamos.

No Acórdão em análise o TC desenvolve o seguinte raciocínio para fundamentar a bondade da sua tese:

“Como refere Gian Luigi Gatta a propósito de norma congénere aprovada em Itália (artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020), «[t]rata-se de uma disposição temporária pensada precisamente para os processos em curso e, como tal, para ter eficácia retroativa. Suspende-se uma atividade em curso por força da impossibilidade do seu prosseguimento, determinando-se um prazo para o seu reatamento, congelando-se o intervalo de tempo entretanto volvido. A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja» (loc. cit., p. 303).
Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.
30. Dizer-se que a suspensão «não é imputável a ninguém» é o mesmo que dizer-se que a suspensão não é imputável ao Estado.
Tendo em conta os fundamentos inerentes ao princípio da legalidade penal, tal constatação, para além de correta, é particularmente esclarecedora.
A suspensão do decurso do prazo de prescrição dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.  
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global.”

Ora, em nosso modesto entendimento, este raciocínio peca pelo facto de assentar na ideia de que a suspensão dos prazos de prescrição e de interrupção estariam ligados a uma inércia do Estado e, portanto, o princípio da confiança ditaria que um arguido tem o direito de saber até quando pode ir a autoridade punitiva do Estado, e garantir que não haja abusos por parte do mesmo.

Esse até será o paradigma normal, mas não será único.

A partir do momento em que o Estado assume, de forma exclusiva, a acção penal, subtraindo à esfera das pessoas a possibilidade de fazerem justiça por suas próprias mãos, num Estado de Direito essa acção penal tem de estar muito bem delimitada o que significa que a prescrição, independentemente da sua ratio, primordial e preponderante, tem de seguir regras muito bem definidas.

Não se pode dizer que as causas de suspensão da prescrição ínsitas no Código Penal estão sujeitas ao princípio constitucional da não retroactividade da lei penal in pejus e, no mesmo momento, afirmar que a causa de suspensão da prescrição prevista na Lei nº 1-A/2020 de 19-03 já não está sujeita àquele mesmo limite constitucional porque o Estado não tem culpa da pandemia.

Ambas são causas de suspensão da prescrição sendo certo que é a própria Constituição que, a propósito do Estado de Emergência, de onde surge a Lei nº 1-A/2020 de 19-03 e que fundamenta aquela nova causa de suspensão da prescrição, determina que em caso algum um Estado de Emergência pode bulir com a não retroactividade da lei penal in pejus.

E tanto assim é que o Tribunal Constitucional acaba por admitir – embora depois não lhe tenha dado consequência alguma – no Acórdão sob análise o seguinte:

“Contra o que acaba de dizer-se, pode argumentar-se, é certo, que a antecipação em lei contemporânea da prática dos factos da causa de suspensão da prescrição que veio a constar do conjunto de medidas de emergência aprovadas pelo Parlamento teria sido, em rigor, possível. Bastaria que o legislador português tivesse integrado no elenco das causas de suspensão da prescrição previstas no artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal, uma disposição idêntica à que consta do artigo 159.º do Código Penal italiano, que prevê a suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal nos «casos em que a suspensão do procedimento ou do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei».

E é aqui que se pretende chegar.

Traduzindo os nºs 3 e 4 do artº 7º da Lei nº 1-A/2020 de 19-03 uma nova causa de suspensão da prescrição deveria o legislador, para precaver situações como aquela que a pandemia e a legislação excepcional veio criar, elaborar uma nova alínea no nº 1 do artº 120º do Código Penal em que prevê precisamente a possibilidade de, em termos excepcionais, e mediante legislação especial a possibilidade de ser criada nova causa de suspensão.

Argumenta contra isto o Tribunal Constitucional afirmando que:

“Perante a causa de suspensão que veio a constar do artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020, a posição do agente italiano não é, por isso, muito diferente daquela em que se encontra o agente português em face da causa de suspensão da prescrição constante do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020: tal como este não podia saber, no momento em que praticou o facto criminoso, que a suspensão da prescrição do procedimento instaurado viria a ser imposta pela Assembleia da República em consequência do lockdown da justiça penal originado pelo súbito avanço da pandemia, também aquele não podia ter conhecimento, quando tomou a decisão de praticar o crime, de que a suspensão do processo — e, com ela, a suspensão do prazo de prescrição — viria a ser determinada em norma posterior, editada no mesmo exato contexto.”

Mas em nosso modesto entendimento esta conclusão não se nos afigura aceitável uma vez que as situações não são, de todo, equiparáveis.

É que no caso italiano, existe uma norma específica que determina que pode vir a ser criada uma nova causa de suspensão da prescrição em norma especial que haja necessidade de ser prevista.

Enquanto que no caso português, não estando prevista essa possibilidade, não pode um qualquer arguido contar com a possibilidade, ainda que remota, de vir a ser criada em lei excepcional avulsa uma nova causa de suspensão da prescrição.

No primeiro caso, embora a norma excepcional seja desconhecida e até pode não existir no momento da prática do facto, o arguido sabe, ainda que de forma abstracta que, em qualquer momento no futuro, pode surgir uma nova causa de suspensão da prescrição.

No segundo caso, o português, o arguido confia que as causa da suspensão da prescrição são as já previstas no momento em que pratica os factos.

A imprevisibilidade da pandemia, como qualquer outra situação que pudesse ocorrer no nosso mundo, não pode servir de fundamento para sancionar uma nova causa de suspensão da prescrição.

Aliás, sendo a pandemia algo de imprevisível, e não imputável ao Estado, por maioria de razão não deve o arguido, que como todas as pessoas afectadas já sofreram com as consequências da pandemia, ser sujeito ainda a enfrentar um segundo imprevisto: uma nova causa de suspensão.
             
A argumentação do Tribunal Constitucional leva-nos a concluir que, como a pandemia já era, de per si, imprevisível, deixaria de haver uma tutela da confiança e, portanto, poder-se-ia agravar aquela imprevisibilidade criando uma nova situação também ela imprevista.

Ora, o Acórdão em análise acaba com uma declaração de voto, elaborada pelo Exmº Sr. Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro que, embora votando de forma favorável a orientação e decisão seguida no Acórdão, não deixa de oferecer um entendimento que se nos afigura mais consentânea com o que temos vindo a afirmar acerca do princípio da confiança.

Diz aquele Sr. Juiz Conselheiro no seu voto de declaração o seguinte:

“O único aspeto de substância que me separa da fundamentação diz respeito à ideia segundo a qual a aplicação desta causa de suspensão singular e transitória aos procedimentos pendentes à data da entrada em vigor da lei não constitui nenhuma lesão de confiança legítima dos arguidos, daí se inferindo que «escapa totalmente» ao âmbito de incidência da proibição da retroatividade penal in pejus. Claro que a confiança de que o regime da prescrição vigente no momento da prática do facto é merecedor não é a que se traduz na possibilidade de o agente, com base em cálculos mais ou menos esdrúxulos, estimar a probabilidade de evitar a punição. A confiança legítima traduz-se na definição antecipada do horizonte temporal máximo em que o agente pode gozar de um estado de absoluta paz jurídica, consumada na condenação, na absolvição ou na prescrição do procedimento. No direito português, em traço grosseiro, esse horizonte é determinado pela conjugação entre os prazos de prescrição fixados na lei, as regras que limitam a operação das causas de interrupção a certo acréscimo sobre o prazo de prescrição e o facto de a esmagadora maioria das causas de suspensão vigorarem por um prazo certo ou estarem limitadas a um prazo máximo. Há exceções a este quadro geral, como as que constam das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal, mas que pelo seu carácter anómalo não põem em causa a proposição segundo a qual o regime da prescrição constitui um marco temporal, ainda que meramente aproximado, para a decisão definitiva sobre a responsabilidade. É o investimento emocional e material do agente na duração limitada de uma existência ensombrada pela possibilidade da punição, investimento esse que o regime da prescrição pode e deve alavancar dentro de certos limites, que merece a tutela da ordem constitucional.

Vistas as coisas sob esta perspetiva, toda e qualquer alteração retrospetiva do regime da prescrição em sentido desfavorável ao agente constitui uma lesão da confiança legítima. A lesão é ainda mais ostensiva e intensa quando se trate da aplicação de uma causa de suspensão, como a prevista nas normas impugnadas nos presentes autos, sem limite temporal definido. Com efeito, ao determinar a suspensão dos prazos de prescrição «até à cessação da situação excecional», o legislador criou um regime transitório, mas não temporário: não era certo o se, muito menos o quando, da cessação da situação excecional. Ao aplicar-se a procedimentos pendentes no momento da sua entrada em vigor, o regime substituiu, desta forma, o estado de relativa certeza do arguido quanto ao horizonte da definição da sua responsabilidade por um estado de absoluta incerteza, em virtude da duração indefinida da causa de suspensão. Não creio ser exagerado afirmar que isto constitui, não apenas uma lesão da confiança legítima, como uma lesão de considerável gravidade, razão pela qual – ao contrário do que se argumenta na decisão – me parece que o regime constitui um caso de manifesta retroatividade penal in pejus. – negrito e sublinhado nossos

Não podíamos estar mais de acordo.
                       
Onde discordamos, no entanto, da posição assumida naquele voto de declaração diz respeito ao seguinte:

O facto de defender que as normas sindicadas não são inconstitucionais, apesar de reconhecer que estão longe de serem inócuas no plano dos valores relevantes, coloca-me na posição aparentemente odiosa de ter de defender que a proibição da retroatividade penal não é absoluta ou, o que é dizer o mesmo, que admite ponderação com valores ou princípios de sentido contrário. Mas creio bem que isto, se for devidamente compreendido, não é nenhum drama, nenhuma negação de um adquirido civilizacional ou repúdio da humanidade no exercício do poder público. É necessário distinguir, no âmbito da proibição da retroatividade penal, a região em que esta é absoluta – a definição de crimes e penas – daquela em que, relevando exclusivamente de considerações de segurança jurídica e proteção da confiança, admite ponderação nos termos gerais. A proibição da retroatividade no primeiro domínio tem um estatuto especialíssimo na ordem constitucional em virtude da sua conexão necessária com o carácter orientador de comportamentos da lei penal e com o princípio da culpa como limite absoluto da punição. Sendo impossível orientar comportamentos passados e absurdo censurar um agente por não ter observado uma norma que não vigorava no momento em que os factos ocorreram, a punição ex novo ou agravada de factos passados é com toda a certeza o paradigma do arbítrio.
Este raciocínio não se estende, como é bom de ver, a outro tipo de normas que agravam a posição do arguido, como as que modificam o regime da prescrição em sentido desfavorável ou ampliam o elenco de meios de prova admissíveis. São em princípio censuráveis com base numa compreensão ampla da proibição da retroatividade penal in pejus, mas sem que se exclua a sua conformidade constitucional por razões extraordinariamente ponderosas. Assim o impõe o respeito pelos princípios da unidade axiológica, da concordância prática e do pluralismo democrático que devem orientar a interpretação constitucional. De resto, a insistência no carácter absoluto da proibição da retroatividade penal, sem que se reconheça a licitude de quaisquer distinções na matéria, redunda quase invariavelmente numa de duas posições deficitárias no plano das garantias do cidadão e da integridade do poder: a exclusão de tudo o que não diga respeito aos pressupostos substanciais da responsabilidade penal do âmbito de incidência daquela – reduzindo-se a proibição ao domínio em que o seu carácter absoluto é incontestável − ou a adesão nominal a uma conceção ampla do princípio acompanhada por juízos de exclusão proferidos em tom categórico – uma forma dissimulada e irrefletida de se ponderar o que se afirma ser imponderável. Não vejo nenhuma boa razão para que a justiça constitucional continue a alimentar este equívoco.”

Ou seja, para o Exmº Sr. Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeira há que fazer uma distinção entre o núcleo duro do objecto versado pela não retroactividade da lei penal in pejus, constituído pela definição dos crimes e das penas, da área relativa que gravita em volta daquele núcleo, mas que já se prende com considerações de segurança jurídica e proteção da confiança, na qual se inseria a questão da prescrição.

No entanto, em nosso modesto entendimento, esta ideia está intimamente ligada à natureza da prescrição por onde começamos.
           
Pois que a natureza substantiva ou meramente procedimentar da prescrição vai ditar se ela é vista como integrando o tal núcleo duro ou o terreno em volta.

E se concluímos, como já o dissemos, e como tem sido entendimento do próprio Tribunal Constitucional manifestado em inúmeros arrestos (citados no próprio acórdão ora sob análise) que a prescrição assume natureza substantiva, ou pelo, menos natureza mista, então deve a mesma sujeitar-se ao ditame constitucional previsto no artº 29º da CRP.

Curiosamente, é o próprio Tribunal Constitucional a afirmar, no acórdão em estudo que “tanto as causas de interrupção como as causas de suspensão da prescrição se destinam a tornar «efetiva a possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia relativamente à interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999): as primeiras porque têm por efeito a inutilização do tempo de prescrição já decorrido (artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal); as segundas porque originam a paralisação do decurso do prazo de prescrição pelo tempo em que perdurar o evento suspensivo, observados os limites máximos fixados na lei (artigo 120.º, n.º 6). Assim, a exigência de que umas e outras se encontrem fixadas em lei prévia tenderá a considerar-se justificada a partir da ideia de controlo do exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou: as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto»– sublinhado nosso
           
Para depois rejeitar esta asserção com base numa construção que já vimos supra não ser, em nosso muito modesto entendimento, de acolher.

Afigura-se-nos importante reter uma nota final sobre a recente tendência ora manifestada pelo Tribunal Constitucional.

Já após a prolação do Acórdão nº 500/2021 de 09-06-2021 que nos tem ocupado a nossa análise, surgiram já mais dois acórdãos do Tribunal Constitucional de igual resultado, a saber o Acórdão nº 660/2021 de 29-07-2021 e o Acórdão nº 798/2021 de 21-10-2021.

Em ambos aqueles acórdãos é feita uma remissão para os argumentos expendidos no acórdão nº 500/2021, pelo que se tem este acórdão como a matriz e portanto, estando efectuada a nossa análise em relação ao acórdão nº 500/2021 essa análise é válida para os acórdãos nºs 660/2021 e 798/2021, nada de novo se oferecendo estes acórdãos para a discussão da causa.

Por outro lado, e é aqui que nos devemos ater com mais pormenor, no acórdão nº 660/2021 foi proferido um voto de vencido pela Exmª Srª Juíza Conselheira Fátima Mata-Mouros.

Esse voto de vencido é claríssimo e reflecte a nossa posição sobre o assunto objecto deste recurso, por isso, aqui o transcrevemos na íntegra com sublinhado do conteúdo que se nos afigura mais premente reter.

“1. Votei a decisão do presente acórdão, mas não posso acompanhar a sua fundamentação.
Tal como a maioria, entendo que não é inconstitucional a interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido «de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso».
No entanto, afasto-me da fundamentação do presente acórdão, por considerar que a referida norma só não é inconstitucional porque se inscreve no âmbito de um processo contraordenacional, está enquadrada por uma situação excecional de emergência e corresponde a uma situação em que a lei nova se aplica a um prazo já em curso, mas ainda não completado.
Com efeito, o contexto de estado de exceção que vivemos justifica a aplicabilidade da nova causa de suspensão do prazo de prescrição a processos por contraordenações iniciados antes da sua vigência (i.e., por factos cometidos antes do início da vigência da lei que prevê a nova causa de suspensão) desde que aquele prazo ainda não tenha atingido o seu termo final. Trata-se de uma solução que responde, de forma proporcional, às necessidades impostas pela tutela de outros interesses jurídico-constitucionais, designadamente o controlo da epidemia da doença Covid-19. A necessidade de restringir os contactos sociais entre indivíduos teve implicações na administração da justiça, levando a uma paragem forçada do andamento dos processos contraordenacionais o que justificou a suspensão dos prazos para a prática dos atos processuais e, consequentemente, a justa medida da aplicação aos processos contraordenacionais pendentes da nova causa de suspensão do prazo de prescrição.
2. Esta ponderação não pode, porém, ser estendida aos processos de natureza criminal.
O princípio da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido é valorado de uma forma especial pelo nosso legislador constituinte, sendo tão importante que nem em situação de estado de sítio ou de emergência pode ser suspendido no que respeita a matéria criminal, como decorre do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição – que refere que «A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar (…) a não retroatividade da lei criminal». Esta proibição inclui todas as dimensões de retroatividade, abrangendo também, naturalmente, a aplicação a processos já pendentes de uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição cujo termo não se mostre ainda atingido (a designada retrospetividade ou retroatividade inautêntica).
Da conjugação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, resulta que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior, sendo ainda que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal, o momento de aplicação da lei penal no tempo é o da prática que leva à consumação do crime, sendo por conseguinte retroativa toda a aplicação a esses factos de lei que for posterior a esse momento. Em conformidade, o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal prescreve ainda que, quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.
Ora, no presente Acórdão, o Tribunal altera a sua jurisprudência anterior sobre esta matéria. Esta jurisprudência tinha sido ainda recentemente reafirmada pelo Plenário no Acórdão n.º 319/2021, proferido em matéria contraordenacional, em que, estando também em causa a introdução de novas causas, bem como a eliminação de outras, de suspensão do prazo de prescrição do procedimento que ainda não atingira o seu termo, se considerou, no seu ponto 5, que «as normas sobre prescrição do procedimento, para além da indiscutível vertente processual, têm natureza substantiva [o que] determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respetivas normas ao princípio da aplicação retroativa do regime concretamente mais favorável ao agente da infração [significando] que não pode ser aplicada lei sobre prescrição que se revele, em concreto, mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos, bem como deve ser aplicado retroativamente o regime prescricional que eventualmente se mostre, em concreto, mais favorável». Diferentemente, o presente Acórdão (acompanhando o Acórdão n.º 500/2021, da ... Seção), introduz inovatoriamente uma diferenciação na natureza das causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal assente na sua finalidade e razão de ser, considerando que a aplicação imediata de uma nova causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto (ponto 2.3.1). Desta forma, relativiza a natureza das causas de suspensão do prazo de prescrição, criando um fator de incerteza na sua aplicação. Para além disso, importa para o domínio penal uma lógica de diferenciação entre tipos de retroatividade que, em sede da jurisprudência constitucional, tem vindo a ser usada especialmente em matéria tributária, enfraquecendo a tutela das situações em que a alteração introduzida pela lei nova produz efeitos sobre uma situação ainda não estabilizada, o que, não só contradiz a sua jurisprudência dominante em matéria criminal, como cria um precedente que desvirtua o regime constitucional da lei criminal de há muito adquirido. Cabia ao Tribunal Constitucional defendê-lo contra o perigo de um poder penal discricionário.
Surpreendentemente, neste Acórdão, o Tribunal, invertendo jurisprudência sedimentada que afirma que a prescrição do procedimento criminal constitui para o arguido uma garantia material e não meramente procedimental (v. Acórdãos n.º 445/2012 e n.º 297/2016) e que refuta a doutrina germânica por excluir da garantia da legalidade criminal as causas de suspensão da prescrição (v. Acórdão do Plenário n.º ...08), faz recuar a proteção do princípio da proibição da aplicação retroativa da lei criminal in pejus, ao considerar que está fora do âmbito de proteção daquele princípio a aplicação imediata de uma nova causa de suspensão a processos em curso quando no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tenha iniciado mas ainda não se mostre extinto.
Ignora-se assim que, independentemente da discussão dogmática em torno da natureza da prescrição do procedimento criminal, as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção se inserem nas designadas “normas processuais materiais” que se encontram vinculadas ao princípio da legalidade por comportarem elementos relativos à punibilidade do agente. De resto, mesmo em matéria processual, em que vigora a regra da aplicação imediata da lei nova, o nosso ordenamento jurídico introduz decisivas limitações à mesma quando dela derive um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido (artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal).
É certo que o presente Acórdão é proferido no âmbito de um processo contraordenacional e que a jurisprudência constitucional sempre ressalvou que a extensão dos princípios constitucionais em matéria criminal não vale “com o mesmo rigor” ou “com mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social cuja natureza autónoma permite uma maior margem de conformação por parte do legislador. No entanto, a fundamentação do Acórdão não diferencia a força vinculativa do princípio da proibição da retroatividade da lei nova desfavorável ao arguido em sede de processo criminal e em sede de processo contraordenacional, nem sequer no contexto de um estado de emergência. Isso impõe a conclusão de que o que aqui é dito para o âmbito contraordenacional também vale para o âmbito criminal.
Por outro lado,  ao contrário da tendência de expansão dos princípios constitucionais com relevo em matéria penal que caracterizou a jurisprudência que tem vindo a estender a sua aplicação ao domínio contraordenacional, (v., por todos, os Acórdãos n.º 201/2014 e 297/2016), o presente Acórdão, lamentavelmente, vem permitir a importação para o domínio penal de uma solução que apenas é admissível no âmbito contraordenacional em contexto de estado de emergência, diminuindo o âmbito de proteção de um princípio fundamental do direito criminal. Abandona-se a visão garantística para abraçar a securitária.
Por todas estas razões não posso acompanhar a fundamentação do Acórdão.
Diferentemente da maioria, entendo que a análise da conformidade constitucional da norma em apreciação não dispensa o confronto com os limites à suspensão do exercício de direitos em estado de emergência inscritos no artigo 19.º, n.º 6, da CRP.
3. Vejamos:
A norma em análise, sendo extraída do artigo 7.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, constitui legislação de emergência, emitida numa situação de exceção.
Surge na sequência da declaração do estado de emergência pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, procedendo à ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (que estabeleceu medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – Covid 19), e à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação.
No seu artigo 7.º, n.º 1, a Lei n.º 1-A/2020 regulou a prática de atos processuais e procedimentais durante a «situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» e no n.º 3 considerou essa situação excecional causa de suspensão dos prazos de prescrição e caducidade (do n.º 4 resulta a prevalência da referida regra de suspensão dos prazos sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos de prescrição).
Estamos perante uma legislação aprovada no contexto de excecionalidade que justificou a declaração de estado de emergência e por causa dele. As medidas aí constantes inserem-se num universo mais vasto de normas editadas para dar resposta a esta situação. Nessa medida, não faz sentido sustentar que a limitação decorrente do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição não se aplica neste caso. O contrário seria admitir que apesar de o Presidente da República não poder suspender estes direitos fundamentais através de declaração de estado de sítio ou de emergência, isso não impediria a Assembleia da República, através de uma lei contemporânea, ou o Governo, na utilização de poderes fora do contexto do estado de emergência, de alcançar o mesmo resultado material, constitucionalmente vedado.
Além disso, é contraditório afastar a aplicação do regime constitucional do estado de emergência, num momento, por um motivo formal – como o acórdão faz no ponto 2.1.4. - e posteriormente, noutro momento (ponto 2.3.1. do acórdão), invocar a mesma situação de emergência como fundamento da admissibilidade da restrição do direito fundamental em causa.
4. Por estas razões não posso concordar com a limitação do escrutínio da constitucionalidade da norma ao confronto direto e exclusivo com a proibição da aplicação da lei penal desfavorável consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição por afastamento do parâmetro do artigo 19.º, n.º 6, nos moldes indicados no acórdão, i.e., por a norma se inserir numa lei da Assembleia da República (ponto 2.1.4. do acórdão).
Efetivamente, resultando a questão de um preceito instituído no âmbito do estado de emergência, incontornável se torna verificar se se mostram respeitados os limites do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição.
É a esta luz que se deve analisar se a aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição.
5. A declaração do estado de exceção constitucional só pode afetar a normalidade constitucional nos termos e com os limites previstos na Constituição (artigo 19.º, n.º 7, da Constituição).
A suspensão de direitos no estado de emergência prevista no n.º 3 do artigo 19.º da CRP não pode ser ilimitada. Está sujeita à cláusula de inviolabilidade de alguns direitos. Existem, com efeito, certos direitos fundamentais que, pura e simplesmente, não podem ser afetados pelo estado de exceção constitucional. Esses direitos estão individualizados no n.º 6 do artigo 19.º, aí se estabelecendo que o estado de emergência em nenhum caso pode afetar a não retroatividade da lei criminal.
É importante entender que «O critério de seleção destes direitos absolutamente garantidos contra os estados de exceção parece obedecer a dois aspetos: (a) serem direitos com intimidade ou proximidade com os valores pessoais fundamentais, ou seja, a vida, o estatuto pessoal, a segurança e a liberdade de consciência; (b) tratar-se de direitos de defesa, mais do que de direitos de ação dos cidadãos, pelo que em princípio não perturbam os objetivos do estado de exceção» (J. J. Gomes Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa – Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, 2014, Coimbra Editora, p. 402).
Ora, o estado de emergência caracteriza-se pela verificação de perigos graves para a existência do Estado, a segurança e a organização da coletividade, que não podem ser eliminados pelos meios normais previstos na Constituição e que, por isso, exigem medidas excecionais. Manifesto se afigura, assim, que os limites a essas medidas excecionais se caracterizem pela dignidade dos bens protegidos. Constituindo um limite aos efeitos do estado de exceção, concretamente um limite à suspensão de direitos necessária para assegurar o retorno à normalidade constitucional, mal se compreenderia que existissem limites a essa suspensão para lá do núcleo estrito e essencial de subsistência do Estado de direito democrático.
As providências excecionais impostas pela situação de necessidade têm de ser percebidas como providências de defesa da Constituição o que pressupõe que os limites a essas providências se contenham na defesa dos princípios e valores constitucionais inultrapassáveis num Estado de direito democrático.
Neste contexto, a proibição de retroatividade da lei criminal ressalvada no artigo 19.º, n.º 6, entre os direitos invioláveis em estado de exceção, não pode deixar de ser compreendida de forma estrita na sua dimensão de proibição aplicável exclusivamente ao processo criminal, enquanto instrumento de defesa dos valores humanos essenciais e bens jurídicos mais sensíveis na vida em sociedade, em especial a liberdade individual.
O processo contraordenacional não protege esses valores, sendo exclusivamente patrimonial o bem atingido pela coima.
Por conseguinte, a proibição da retroatividade enquanto limite ao estado de exceção não pode deixar de ater-se exclusivamente à lei que a Constituição expressamente designa no artigo 19.º, n.º 6, e esta é a “lei criminal”.
5. Entendo, assim, que a norma em causa não é inconstitucional, desde logo, por, ao incidir em matéria contraordenacional, não violar o artigo 19.º, n.º 6, que apenas proíbe a aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido no âmbito criminal.
Sem prejuízo da extensão ao processo contraordenacional da proteção do princípio da proibição da retroatividade penal (em consonância, de resto, também com artigo 282.º, n.º 3, da CRP), num quadro de emergência sanitária coberta pelo estado de exceção, a proibição constitucional da retroatividade da lei penal desfavorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da Constituição), impõe uma apreciação menos exigente no processo contraordenacional do que no processo criminal (já que só neste âmbito se encontra proibida a aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido).
Ora, num tal quadro, a norma em apreciação encontra justificação no estado de emergência que vigorou, exclusivamente por se reportar a ilícitos de mera ordenação social e se aplicar aos prazos que, embora já em curso à data da sua entrada em vigor, ainda não se mostravam completados.
Repito, no entanto, que uma tal ponderação não pode, de forma alguma, ser estendida aos processos de natureza criminal.”

Para nós o voto de vencido em apreço é de extrema importância e validade jurídica, não só porque explana, de forma brilhante, como é apanágio da Exmª Srª Juíza Conselheira sua autora, os princípios subjacentes ao direito penal e a todo o sistema jurídico-constitucional, revelando as fraquezas da recente orientação seguida pelo Tribunal Constitucional em matéria contra-ordenacional, como esclarece de forma ímpar o grave perigo para a segurança jurídica em matéria penal se a orientação ora adoptada pelo Tribunal Constitucional for mantida ou transposta para a área criminal.

Pois que, como se afirma no voto vencido:

Desta forma (tanto o acórdão nº 660 como o nº 500), relativiza a natureza das causas de suspensão do prazo de prescrição, criando um fator de incerteza na sua aplicação. Para além disso, importa para o domínio penal uma lógica de diferenciação entre tipos de retroatividade que, em sede da jurisprudência constitucional, tem vindo a ser usada especialmente em matéria tributária, enfraquecendo a tutela das situações em que a alteração introduzida pela lei nova produz efeitos sobre uma situação ainda não estabilizada, o que, não só contradiz a sua jurisprudência dominante em matéria criminal, como cria um precedente que desvirtua o regime constitucional da lei criminal de há muito adquirido. Cabia ao Tribunal Constitucional defendê-lo contra o perigo de um poder penal discricionário.”

É este perigo real com que nos deparamos na análise da mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional e com a qual, em boa consciência, não podemos concordar nem sufragar.

Por fim, e para concluir, se dúvidas ainda houvessem a questão em causa ter-se-ia de resolver, em nosso entendimento, com recurso à lei penal mais favorável pois que, entendendo como entende o TC que a nova causa de suspensão da prescrição prevista no artº 7º da Lei nº 1-A/2020 de 19-03 não ofende a não retroactividade da lei penal (supondo que tal decisão seria aplicável ao caso como aquele dos autos e não somente ao procedimento contra-ordenacional) a verdade é que o arguido teria sempre de beneficiar da lei que, em concreto, lhe fosse mais favorável pelo que, se com a Lei nº 1-A/2020 de 19-03 a prescrição fica deferida no tempo e o procedimento criminal se mostra ainda viável e, com a legislação penal vigente ao tempo da prática dos factos, essa prescrição já se teria verificado, no momento em que é prolatado o despacho recorrido, afigura-se-nos que tem de ser essa lei e não a norma excepcional aplicável, em benefício do arguido.

Ou seja, não há dúvida que a Lei nº 1-A/2020, e posteriores alterações operadas no âmbito do Estado de Emergência, estabelece uma nova causa de suspensão da prescrição penal.

E a previsão de uma nova causa de suspensão prescricional equivale, para todos os efeitos legais, ao alargamento do prazo prescricional, como se um novo prazo mais alargado tivesse sido contemplado para o mesmo ilícito penal.

Pelo que, conforme determinado no Assento do STJ de 15-02-1989 [13]:

“Em matéria de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-se o regime mais favorável ao réu, mesmo que no momento da entrada em vigor do CP de 1982 estivesse suspenso o prazo de prescrição por virtude de acusação deduzida.”

Face ao exposto, afigura-se-nos que o recurso interposto pelo Digno recorrente tem de improceder.
 
Decisão:

Em face do acima exposto, os Juízes Desembargadores da Secção Penal, decidem negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirmar a decisão instrutória recorrida.
Sem Tributação.
                                                          
Guimarães, 17 de Abril de 2023.

Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Paulo Correia Serafim (1º Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)


[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Embora alguns crimes fossem considerados imprescritíveis, como o parricídio, a verdade é que, em virtude da prescrição civil, o Direito Romano passou a aceitar que, relativamente a alguns crimes menores pudesse actuar o mesmo princípio, como por exemplo o crime de adultério relativamente ao qual a Lex Julia de adulteriis previa um prazo prescricional de 5 anos (jurisprudência 6/2001 localizável em http://bdjur.almedina.net/item.php?field=item_id&value=28868).
[3] Veja-se, a título meramente exemplificativo, a “Teoria da Retribuição” explicada por Claus Roxin in “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, Vega Universidade, 1986, pp. 16 e ss.
[4] “Teoria da Prevenção Especial” (com efeitos correctivos e protectores do infractor) e “Teoria da Prevenção Geral” (com efeito intimidatório sobre a generalidade das pessoas), in Claus Roxin, ob.cit. pp. 20 e ss.
[5] Quanto a este aspecto é interessante notar que ao longo da história do Direito tem havido crimes considerados imprescritíveis precisamente por se considerar que a sua gravidade era de tal ordem que jamais deveriam ser esquecidos, como, por exemplo, os Crimes contra a Humanidade e Crimes de Guerra assim considerados pela Convenção Europeia sobre a Imprescritibilidade desses crimes, celebrada em Estraburgo em 25-01-1979.
[6] O princípio da confiança postula que “o agente orienta o seu comportamento confiando que o mesmo será apreciado de acordo com a lei em vigor no momento em que decide levá-lo a cabo – cfr. Claus Roxin, Derecho Penale, Parte Generale, Tomo I, 2.ª edição, trad. de Diego-Manuel Luzon Peña e Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid, 1997, Civitas, p. 989” conforme referido no Ac. TC nº 500/2021.
[7] Embora depois afirme logo de seguida que “Mas esse não foi o caminho seguido no numeroso conjunto de acórdãos que, precedendo aquela declaração, se ocuparam previamente do problema relativo ao estabelecimento das causas de suspensão e de interrupção da prescrição do procedimento criminal originado pela desconformidade entre os regimes previstos na lei penal e na lei processual penal no período que mediou entre a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 e a revisão do Código Penal de 1995” o que só revela que o Tribunal Constitucional fez uma inversão, a partir de 2008, do seu entendimento tendo o Acórdão nº 500/2021, a nosso ver, fugido àquele entendimento.
[8]In: http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/a94d48b75258e0f9802586760051d1c4?OpenDocument
[9] De notar que o terramoto de 1755 não implicou apenas a destruição física de Lisboa, com o desmoronar dos prédios, seguido de um incêndio digno de Nero, e por fim um maremoto, como a acção conjugada dessas três circunstâncias criou as condições ideais para a propagação de uma peste (e outras doenças graves) atendendo ao elevado número dos corpos em decomposição e sem meios logísticos para lhes dar adequado destino. O terramoto inclusive destruiu o centro nevrálgico do País.
[10] Os acórdãos da Relação de Lisboa, citados no recurso interposto pelo MºPº, parecem esquecer que houve já uma pandemia de proporções mundiais com a Gripe Espanhola, cujo início surgiu em Janeiro de 1918, nos EUA tendo terminado em Dezembro de 1920, levando à morte de cerca de 30 milhões de pessoas no mundo inteiro e, em Portugal, 120,000 almas (cfr. “The Geography and Mortality of The 1918 Influenza Pandemic”, de K.D. Patterson e J.F.Pyl, National Library of Medicine, localizável em pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2021692/.
[11] Como vimos já a gripe espanhola de 1918 teve efeitos muito mais abrangentes e nefastos. O mesmo se diga em relação à Peste Negra que assolou Lisboa entre 1506 e 1507, ou ainda a Peste Negra que assolou o País entre Abril de 1569 a Julho de 1570, onde morreram, só em Lisboa, 700 pessoas por dia e em Guimarães que perdeu metade da sua população – cfr. Teresa Rodrigues “Crises de Mortalidade em Lisboa: Séculos XVI e XVII” Livros Horizonte, 1990.
[12] No entanto, a verdade é que o Estado de Emergência decretado em Portugal durou um total de 218 dias.
[13] In Diário da República 1ª série de 17-03-1989.