Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
330/21.8T8VCT.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE BENS LOCADOS
SUSPENSÃO
PER
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Na previsão do n.º 1 do art. 17º-E do CIRE integram-se as ações executivas, ou as diligências executivas e também as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra o devedor, e respeitantes a quaisquer “dívidas”, mesmo as que tenham por objeto a entrega de coisa certa.
II- Em razão do referido em I, também o procedimento cautelar de entrega judicial de bens locados, na sequência de incumprimento dos contratos de locação financeira imobiliária, deverá ser suspenso, se estiver em curso um processo especial de revitalização (PER) da locatária.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1 RELATÓRIO

Nos presentes autos (1) de procedimento cautelar comum que CAIXA … requereu contra X, ... LICENSEE UNIPESSOAL LDA., pretendia aquela que fosse ordenada a entrega judicial à requerente do bem imóvel objeto do contrato de locação financeira acima mencionado e que houvesse pronúncia quanto a composição definitiva do litígio, para tando declarando a resolução definitiva do contrato de locação financeira nos precisos termos expostos e condenando a requerida na entrega do bem imóvel em apreço.

Citada a requerida, veio a mesma opor-se, requerendo a suspensão destes autos de procedimento cautelar ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 17º-E do CIRE, pois encontra-se submetida a um PER que corre termos sob o nº 7720/20.1T8VNG no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5, e, caso assim se não entendesse, a sua improcedência, por não provada e por não preenchimento dos requisitos que determinam o seu decretamento.

Junta certidão das peças processuais apresentadas naqueles autos de PER, bem como informação narrativa do estado dos mesmos, foi ouvida a requerente, que pediu a improcedência da oposição.

Foi então, proferido o seguinte despacho:
«Conforme resulta da certidão judicial junta aos autos em 10.03.2021 com o número ….7 (referência número 3082342), extraída do processo especial de revitalização que, sob o número 7720/20.1T8VNG, corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, a aqui devedora, X, ... Licensee – Unipessoal, Lda., figura igualmente como devedora naqueles autos de revitalização.
De acordo com o teor da mencionada certidão já foi proferido o despacho a que alude o disposto no artigo 17º-C, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, encontrando-se em curso, no âmbito do referido processo especial de revitalização, as negociações.
No artigo 16º da oposição, a requerida alega que desenvolve a sua actividade no imóvel cuja entrega é requerida, facto que não foi impugnado pela requerente.
Dispõe o artigo 17º-E, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que “a decisão a que se refere nº 4 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer acções de cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas, logo que aprovado e homologado o plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
A questão de se saber se a previsão da norma ínsita no artigo 17º-E, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas inclui, no seu âmbito, pretensões processuais que não coincidam com o literalismo da enunciação normativa tem dividido a jurisprudência, podendo apontar-se, a título exemplificativo e com sentido divergente, os acórdãos invocados pela requerida na oposição e os acórdãos invocados pela requerente na resposta à oposição.
Ponderados os argumentos que são aduzidos num e noutro sentido, consideramos que a interpretação da norma ínsita no artigo 17º-E, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não se pode desligar dos interesses e valores que são tutelados pelo específico regime onde a mesma se insere e pelos valores e interesses que estão pressupostos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. A viabilização da empresa é, pois, o valor tutelado pela norma em causa, não podendo escapar o intérprete a empreender a interpretação teleológica do seu enunciado. Daí que uma interpretação que se atenha unicamente à estrita subsunção da factualidade pertinente à expressão dívida, vista na relação literal entre significante e significado não cumpra de forma adequada os fins da interpretação jurídica e, em última análise, os da realização da justiça. Estamos também, como alguma jurisprudência bem invoca, perante razões de interesse público que têm de ser ponderados em cada caso.
No nosso caso, tendo em conta que decorrem negociações no âmbito do processo especial de revitalização da requerida e que esta labora no imóvel cuja entrega é peticionada, consideramos que o disposto no artigo 17º-E, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é aplicável no presente procedimento cautelar de entrega.
Em face do exposto, e nos termos do disposto no artigo 17º-E, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, determino a suspensão do presente procedimento cautelar.
Notifique.».
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Inconformada com esse despacho, a Requerente interpôs recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo faz interpretação errada do art 17º-E/1 CIRE ao considerar que a presente providência cautelar se suspende com a pendência de Plano Especial de Revitalização da requerida.
2. O disposto no art. 17º-E/1 CIRE deve ser interpretado com mínimo de correspondência verbal, como impõe o art. 9º/2 Código Civil de forma a que resulte que apenas as acções de cobrança de dívidas da revitalizanda sejam suspensas.
3. Consultando a exposição de motivos da proposta de lei que deu origem à Lei 16/2012 de 2 de Abril, que regula o PER, verifica-se que o legislador entendeu que: “O processo visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente que sem pôr em causa os respectivas obrigações legais, designadamente para regularização de dividas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social
4. Sendo que o fim último de viabilização de uma empresa não a legitima a não cumprir, de imediato, todas as suas obrigações legais.
5. Permitindo-se apenas a suspensão de qualquer litígio atinente a afetar o cômputo dos créditos da qual é devedora.
6. Pelo que falha a interpretação teleológica do Tribunal a quo em não considerar que o legislador, ao legislar como fez, pretendeu equilibrar os interesses da revitalização e dos seus eventuais credores, estipulando que apenas as acções de cobrança de dividas seriam suspensas.
7. Por outro lado, qualquer interpretação extensiva ou analógica do preceito não procede atento que não existe lacuna ou omissão legal a suprir.
8. Sendo que, nos termos do art 9º/3 do Código Civil, o Julgador-interprete haverá que presumir que o legislador se exprimiu de forma adequada, atento os fins que pretendeu prosseguir: o equilíbrio entre a intenção de proporcionar condições de revitalização à devedora e o direito do credor ora recorrente de obter decisão judicial que determine a entrega de bem do qual é proprietária.
9. Pelo que, existindo uma errada interpretação e aplicação do art 17º-E/1 Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, deve o despacho que determina a suspensão do procedimento cautelar ser substituído por interpretação contrária, assim fazendo Vexas, Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!
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Foram apresentadas contra-alegações, nas quais se pugna pela improcedência do recurso com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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O Exmº Juíz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos.
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Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, a questão a decidir contende com a reapreciação do despacho de 26 de Março de 2021 que suspendeu esta instância.
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3OS FACTOS

Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Pretende a apelante não ser a providência requerida susceptível de integrar a previsão do nº 1 do art. 17º-E do CIRE, como foi entendimento da decisão recorrida. Donde pretender com o presente recurso a reapreciação de tal decisão.
Ora, como bem se refere na decisão recorrida, os entendimentos sobre esta matéria têm dividido a doutrina e a jurisprudência, razão pela qual se encontra facilitada a nossa tarefa, que se reconduz em eleger um dos entendimentos sobre o exacto alcance da norma do CIRE ora em questão.
E assim, antecipando desde já a decisão, diremos que, in casu, bem andou a primeira instância ao considerar verificado o pressuposto da disposição legal referida, pois é o entendimento que também perfilhamos.
Mas comecemos por rememorar o teor do nº 1 do art. 17º-E do CIRE: “A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.”.
De efeito, temos para nós mais assertivo, o entendimento perfilhado, entre outros, pelo Acórdão desta Relação de Guimarães proferido em 11-02-2016 (2), prolatado numa situação similar, bem como mais recentemente, em 26-09-2019 (3), pela Relação do Porto.
Passamos, pois, a transcrever aquele acórdão, pois a ele aderimos:
Ora, começando pela Proposta de Lei nº 39/XII que despoletou o procedimento legislativo que veio a desembocar na Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, e que veio a final a instituir o processo especial de revitalização, para justificar o regime jurídico decorrente da previsão legal antes citada, na mesma refere-se que “O processo terá o seu início com a manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, no sentido de se encetarem negociações que não poderão exceder os três meses”, e que, durante este período, “suspendem-se as acções que contra si sejam intentadas com a finalidade de lhe serem cobradas dívidas, assegurando-se assim, a existência da necessária calma para reflexão e para criação de um plano de viabilidade para o devedor que se encontre em negociações.”
Por sua vez, também o DL 178/2012, de 3/8, o qual veio a instituir o SIREVE (Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial) , integra disposição legal cuja ratio está também presente no nº1, do artº 17º-E, do Cire, rezando o respectivo nº 2, do artigo 11º, que “o despacho de aceitação do requerimento de utilização do SIREVE obsta à instauração contra a empresa de quaisquer acções executivas para pagamento de quantia certa ou outras acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias enquanto o procedimento não for extinto e suspende, automaticamente e por igual período, as acções executivas para pagamento de quantia certa ou quaisquer outras acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias, instauradas contra a empresa que se encontrem pendentes à data da respectiva prolação.”
Por fim, ainda com ligação/pertinência com a presente questão, importa atentar que, desembocando o per em processo de insolvência (cfr. artº 17º-G,nº4) , e sendo declarada a insolvência do devedor, a regra que vigora no tocante às acções declarativas à data existentes (v.g. intentadas contra o devedor/insolvente) é a de, quando muito, serem as mesmas – não suspensas – apensadas ao processo de insolvência, caso tal apensação seja requerida pelo administrador da insolvência (cfr. artº 85º, do Cire).
Já relativamente a quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente, a declaração de insolvência determina a sua suspensão, obstando ainda à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência (cfr. artº 88º, nº1, do CIRE).
Em face do acabado de aduzir, considerando que o termo “cobrança” (utilizado no artº 17-E, nº1, do CIRE) de dívidas, pressupõe prima facie estar-se na presença de um crédito já reconhecido, isto por um lado e, por outro, que no âmbito da interpretação da lei, não deve o intérprete cingir-se à respectiva letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (cfr. artº 9º,nº1, do Código Civil), a primeira conclusão/ilação que para nós merece ser subscrita, é a de que na previsão da disposição legal do CIRE ora em apreço (artº 17-E, nº1) não cabem as acções declarativas, que o mesmo é dizer, as acções judiciais cujo desiderato essencial dirige-se para a declaração da solução concreta resultante da lei para a situação real exposta pelo requerente (acção que se limita a pronunciar o ius - jus dicere -. correspondente à pretensão, ou seja, a declarar a vontade concreta da lei, que não a diligenciar pela execução dessa vontade) (4).
De resto, não se descortina sequer qual a real e efectiva inconveniência e/ou o estorvo para a criação e conclusão de um plano de viabilidade para o devedor – e que se encontre em plena fase de negociações de um Per –, a pendência ou o prosseguimento de uma simples acção declarativa que tenha tão só por desiderato o reconhecimento de um crédito, que não a cobrança coerciva do mesmo, caso em que, então sim, é afectado de imediato o activo e a liquidez da entidade que almeja ser revitalizada.
Acresce ainda que, dispondo o normativo em sindicância que as acções de cobrança de dívidas entretanto suspensas, são extintas logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, a menos que este proveja a sua continuação, fica por perceber a ratio de a suspensão abranger também as acções declarativas, e isto porque nestas não se discute o pagamento da dívida, mas tão só a sua existência, e, ademais, incidindo o plano de recuperação do devedor sobre a forma de pagamento dos créditos [pois a forma e o timing do seu pagamento passam a estar regulados no plano aprovado de recuperação conducente à revitalização do devedor], são especificamente as acções executivas aquelas cujo prosseguimento deixa de fazer qualquer sentido.
Ou seja, como entende Maria do Rosário Epifânio (5), no artº 17º-E, nº1, “estão abrangidas apenas as acções executivas, ou as diligências executivas e ainda as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra o devedor, e respeitantes a quaisquer dívidas“, não fazendo qualquer sentido suspender [em razão a existência de um PER, também de cariz concursal, à semelhança do processo de insolvência] as acções declarativas (6).
Porém, ultrapassado um primeiro obstáculo, logo um outro surge, qual seja o de aferir se, no âmbito das acções referidas de natureza executiva, se integram apenas as que se dirigem para a prestação de uma quantia em dinheiro [obrigação pecuniária, em sentido estrito, que não uma qualquer dívida de valor (7)] ou, sob pena de o interesse que o legislador tem por desiderato alcançar (com a noma do nº1, do artº 17º-E) e salvaguardar se frustrar, deve a suspensão incidir também [como é entendimento de Maria do Rosário Epifânio (8)] sobre as acções de natureza executiva direccionadas para a prestação de coisa ou de facto.
Relativamente a esta última questão, e divergindo v.g. de Maria do Rosário Epifânio, é entendimento de Salazar Casanova e Sequeira Dinis (9) que, na previsão do artigo 17.º-E, n.º 1, cabem tão só as acções executivas para pagamento de quantia certa, e aqueloutras que acabam convertidas (nos termos dos artigos 867.º e 869.º , ambos do Código de Processo Civil) e , bem assim, os procedimentos cautelares antecipatórios de acções executivas para pagamento de quantia certa, escapando já à suspensão as acções executivas para entrega de coisa certa, as acções executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares.
Pela nossa parte, temos como mais ajustado o entendimento perfilhado por Maria do Rosário Epifânio [amparado em parte no pressuposto de que, o débito (ou dívida) corresponde ao lado passivo de uma relação obrigacional, ou seja, ao dever de realizar uma prestação (de coisa, designadamente quantia em dinheiro), ou de facto (positivo ou negativo) – cfr. Antunes Varela (10), de resto mais consentâneo com a regra interpretativa plasmada no nº3, do artº 9º, do Código Civil, no sentido de que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
De resto, se ninguém põe em causa que, como bem refere Madalena Perestelo de Oliveira (11), a suspensão dos processos [por causa da existência do Per] consubstancia uma “forma de protecção do devedor, que fica com a faculdade de tentar a recuperação da empresa, liberto de todas as tentativas dos credores se fazerem pagar e da pressão do mercado que o levou à insolvência (…)”, concretizando o PER o entendimento dominante nos Estados Unidos, quanto ao processo de insolvência, no sentido de dever “ ser concedido à empresa um «breathing space», ou seja, um período durante o qual os credores não possam reclamar os seus créditos, para que as tentativas de recuperação sejam mais bem sucedidas, “é difícil de aceitar/compreender que uma acção executiva para cobrança coerciva de quantia certa, qualquer que seja o seu montante, residual que seja, deva ser suspenso, mas, ao invés, já uma execução para entrega de coisa certa susceptível de afectar de forma imediata, significativa e drástica – senão mesmo de forma irremediável – o património ou a actividade da empresa devedora, fica porém imune à suspensão.
Convenhamos que, um tal entendimento, e não obstante ser desiderato visado pelo legislador com a aprovação do PER (com a Lei 16/2012 de 20/4), o de “colocar a recuperação do devedor no centro das finalidades do processo, em detrimento da liquidação imediata do seu património para satisfação dos credores» (12), prima facie, teria o legislador acabado em última análise – em sede de lege lata - por deixar entrar pela janela o que quis impedir e evitar que entrasse pela porta.
Ora, porque em sede de interpretação da lei e de compreensão de textos jurídicos, é para nós essencial que o juiz não se limite tão só em encontrar a solução “legal”, mas também, se possível, a solução tanto quanto possível “justa” [o que as partes de resto também esperam do julgador] (13), e, bem assim, que para alcançar tal desiderato, fundamental é que o intérprete se socorra do elemento histórico da interpretação, perguntando qual a solução que melhor corresponde à intenção reguladora do legislador ou à sua ideia normativa, conduzidos somos a perfilhar o entendimento (acima indicado) que defende Maria do Rosário Epifânio.
Ademais, como já há muito preconizava Francesco Ferrara (14), entender uma lei, não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal, é antes indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito intimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas conexões possíveis (scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestam).
Isto dito, e descendo agora ao concreto, é vero que o presente procedimento cautelar de entrega judicial de bens imóveis integra também uma fase de natureza eminentemente declarativa, mas, o certo é que, a ser deferida, o respectivo comando decisório desencadeia no essencial verdadeiros efeitos executivos, obrigando à apreensão e entrega coerciva de bens que se encontram na posse da requerida.
Está-se na presença, sem margem para dúvidas, de uma providência cautelar de natureza executiva, pois que, apurados os pressupostos da providência, deve o juiz ordenar a entrega imediata do bem locado, sendo que a execução da entrega insere-se na própria providência (15).
Logo, integrando – no nosso entendimento – o objecto da providência também a previsão do nº1, do artº 17º-E, do CIRE, tudo visto e ponderado, e mais não se justificando acrescentar [tanto foi já dito sobre a matéria], forçoso é concluir, portanto, que a decisão recorrida não é merecedora de censura, tendo a mesma sido proferida ao abrigo de específica norma legal que de resto obrigava à sua prolação.
Diga-se ainda, que, tal como refere a recorrida, “A interpretação flexível, teleológica, racional é a que melhor responde àquele interesse público de protecção do tecido empresarial em tempos de crise, poupando a empresa a revitalizar – é esse o objectivo – a agressões de cariz patrimonial que poderiam pôr em risco sério, e até logo naufragar, o escopo revitalizador, como no caso em apreço, levando ao estrangulamento produtivo, em total dissonância com a filosofia recuperatória, que ficaria comprometida.”.
Como assim, seguindo-se este entendimento, improcede, pois, a apelação.

A recorrente sucumbe no recurso. Deve por essa razão, satisfazer as custas dele (art. 527º/1 e 2 do CPC).
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (art. 663º/7 CPC)

I – Na previsão do nº 1 do art. 17º-E do CIRE integram-se as acções executivas, ou as diligências executivas e também as providências cautelares de natureza executiva, propostas contra o devedor, e respeitantes a quaisquer “dívidas”, mesmo as que tenham por objecto a entrega de coisa certa.
II – Em razão do referido em I, também o procedimento cautelar de entrega judicial de bens locados, na sequência de incumprimento dos contratos de locação financeira imobiliária, deverá ser suspenso, se estiver em curso um processo especial de revitalização (PER) da locatária.
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a presente apelação, assim se confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 27-05-2021

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Maria Cristina Cerdeira)



1. Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, V.Castelo - JC Cível - Juiz 3
2. In Proc. nº 1355/15.8T8VRL.G1, que se encontra acessível em www.dgsi.pt.
3. In Proc. nº 685/19.4T8PNF.P1, que se encontra acessível em www.dgsi.pt.
4. Cfr. Prof. Antunes Varela e outros, in Manual de Processo Civil, 1984, pág. 69, e Jorge Augusto Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 9ª Edição , pág. 19.
5. In O Processo Especial de Revitalização, 2015, Almedina, pág. 33.
6. Entendimento que, no tocante à exclusão das acções declarativas, é outrossim subscrito por Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis (in Per – O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artºs 17º-A a 17º-I, do CIRE, Coimbra Editora, 2014, págs. 97 e segs.) e por Isabel Alexandre, in Efeitos Processuais da abertura do processo de revitalização, II Congresso do Direito de Insolvência, Almedina, 2014, págs. 243 e segs. Em sentido contrário, vide v.g. o Ac. do STJ de 5/1/2016, Proc. nº 172724/12.6YIPRT.L1.S1, in www.dgsi.pt.
7. Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 16/11/2015, Proc. nº 8176/11.5TBMTS.P1, in www.dgsi.pt.
8. Ibidem, pág. 33/34.
9. Ibidem , pág. 97 e segs.
10. In Das Obrigações em Geral, Volume I, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 63/64.
11. In Processo Especial de Revitalização: o novo CIRE, páginas 718, 719 e 720, em Revista de Direito das Sociedades, ano IV , número 3.
12. Cfr. Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, in CIRE Anotado, Almedina, 2013, pág. 64.
13. Cfr. Hruschka , in Das Verstehen von Rechtstexten, citado por Karl Larenz , in Metodologia da Ciência do Direito, 3ª edição, F.C.Gulbenkian, pág. 281.
14. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, Almedina, pág. 346.
15. In Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, 4ª Edição, 1987, pág. 128.