Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1429/14.2T8CHV-A.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
SUPRESSIO
INACÇÃO DO TITULAR DO DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O abuso do direito é uma excepção peremptória de direito material, configurando igualmente uma excepção peremptória de direito adjectivo (art.º 576.º, n.º 3 do C.P.C.), que é do conhecimento oficioso, podendo ser conhecido no tribunal de recurso ainda que o tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre ele.
II- Constituindo uma ‘válvula de segurança’ do sistema jurídico, destinado a fazer face e neutralizar situações de flagrante injustiça a que por vezes pode conduzir o exercício de um direito subjectivo, o abuso do direito pressupõe que o direito exista e que o excesso cometido seja manifesto, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.
III- Na modalidade da suppressio, entendida como um subtipo do venire contra factum proprium, a contraditoriedade do comportamento traduz-se no exercício do direito depois de uma prolongada abstenção, capaz de suscitar uma expectativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício, sendo esta expectativa atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulte de uma situação de confiança que seja justificada e razoável.
IV- Age com abuso do direito, na modalidade da suppressio, a locadora financeira que ao cabo de quatro anos e cinco meses da data do termo do contrato, tendo sido integral e pontualmente pagas todas as rendas, vem exigir da locatária e do avalista da livrança em branco uma importância (€ 30.017,81) que atinge quase o triplo do valor do bem locado (€ 10.490,18), e cento e quarenta e quatro vezes mais do que o valor da “dívida” inicial (€ 209,81), que era o “preço da venda”, e, calcula-se, mais do dobro do que o Apelante seria obrigado a pagar se o contrato fosse resolvido por mora no pagamento das rendas.
V- O efeito “bola de neve” resultante da inacção da locadora financeira criou, assim, uma desvantagem para a locatária e avalista que é injusta e iníqua, ferindo o sentido de justiça do cidadão comum impor o pagamento de uma tão exagerada importância a alguém que cumpriu pontualmente com todas as rendas, cumprimento que legitima a presunção de ter sido por mera falta de atenção que não foi efectuado o pagamento do valor residual, condição necessária para poder ser exercido o direito de aquisição do tractor, objecto do contrato.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- J. R., através dos presentes embargos, deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa que lhe foi movida pela “J. R. – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S. A.” (ATUALMENTE “Y – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.”), alegando que não assinou nem preencheu a livrança que esta apresenta como título executivo, alegando ainda nada ter solicitado à Exequente nem tampouco, por si ou em representação da sociedade comercial também executada, ter celebrado qualquer contrato que originasse a emissão da dita livrança.
Notificada, a Exequente apresentou contestação alegando que aquele, pelo seu próprio punho, apôs a sua assinatura no local destinado à prestação do aval à subscritora da livrança, pedindo a condenação do Embargante como litigante de má fé, por haver deduzido oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar e por alterar a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa.
Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a oposição à execução improcedente por não provada, determinou o prosseguimento da instância executiva.
Mais condenou o Embargante/Executado como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa que fixou em 1 (uma) UC.

Inconformado, traz o Embargante/Executado o presente recurso pedindo a revogação da decisão acima transcrita por ela “contrariar todos os postulados acerca do abuso de direito e da sua proibição”, decisão que deve ser substituída por outra que julgue procedentes os embargos e o absolva do pedido formulado na execução, ou, no limite, que seja apenas condenado a pagar à Embargada/ Exequente o valor residual - 209,81 € (duzentos e nove euros e oitenta e um cêntimos) - acrescido de juros, contados desde a resolução do contrato até efetivo e integral pagamento.
Contra-alegou a Embargada/Exequente propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre decidir.
**
II.- O Apelante/Embargante/Executado formulou as seguintes conclusões:

A. Por força de operação de crédito praticada no âmbito da sua atividade comercial a Exequente, é portadora de uma livrança - emitida no Porto em 12/09/2014, no valor de 30.017,81 €, e vencida a 29/09/2014 – sendo que o que subjaz a tal livrança é um contrato de financiamento para a aquisição de um trator por parte de sociedade comercial da qual o executado era sócio gerente;
B. As rendas de tal operação financeira – primeira no valor de 1.549,02 € e restantes no valor unitário de 575,46 € - foram na integra pagas pela sociedade locatária, faltando apenas pagar o valor residual de 209,81€ – tal como confessado pela exequente e tal consta de sentença;
C. A data do termino do contrato foi a 09/04/2010, tendo a embargada procedido, apenas, ao preenchimento da livrança mais de quatro anos e meio depois;
D. Assim e, em primeiro, cremos estar, nas palavras do Professor Doutor Menezes Cordeiro, perante abuso de direito sob a forma de “suppressio (que) é uma forma de tutela do beneficiário, confiante na inacção do agente. Teríamos, no fundo, uma espécie de venire, em que o factum proprium seria constituído por uma simples inacção.
E. Dado que a inação se prolongou por mais de 4 anos e, portanto, por um período significativo, gerou-se na esfera jurídica do executado/embargante, não só que não haveria qualquer direito a exercer, como uma expectativa legitima de que qualquer direito, a existir, não mais seria exercido, até porque pagou na íntegra todas as rendas;
F. A este respeito vejamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 05/06/2008 que nos ensina que: “I - O abuso do direito – art. 334.º do CC –, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.
II - O Banco exequente, ao deduzir processo executivo contra o avalista duma livrança em branco, treze anos depois desse mesmo avalista ter abandonado a sociedade subscritora da livrança (entretanto declarada insolvente), e reportando-se as responsabilidades reclamadas (só conhecidas do embargante quando foi citado para a execução), a dívidas contraídas por essa sociedade já após o seu abandono como sócio, age com manifesto abuso do direito, na modalidade da supressio.”
G. A este respeito, também, o Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão datado de 16/11/2001, que nos manifesta que: “constitui abuso do direito, no âmbito de uma SACEG, esperar 6 anos para intentar uma acção: há um agravamento desmesurado da prestação”.
H. Age, portanto, nesta perspetiva com manifesto abuso de direito a exequente/embargada violando o disposto no artigo 334º do Código Civil;
I. Até porque, viola grandemente a posição jurídico-creditícia do embargante, pois contabilizou juros desde a resolução do contrato, a 09/04/2010, até ao preenchimento da livrança a 12/09/2014, isto, por culpa da sua inação, tendo avolumado o valor dos juros em montantes exorbitantes, que não se coibiu de cobrar ao embargante, havendo um agravamento desmesurado da prestação;
J. Depois, verifica-se que estamos também no caso concreto perante uma clara desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem, o que resulta numa outra forma de abuso de direito;
(conclusões K. e L. repetem as conclusões A. e B.).
M. Ou seja, do confronto do pedido pela instituição de crédito com o débito real do embargante verifica-se uma desproporção gritante, entre o exercício do direito, por parte do seu titular e sacrifício que é imposto à contraparte;
N. Pois, pelo facto de não ter pago 209,81 € (duzentos e nove euros e oitenta e um cêntimos) foi preenchida uma livrança pelo valor de 30.017,81 (trinta mil e dezasseis euros e oitenta e um cêntimos), valor este reclamado e já a ser pago pelo executado por via das sucessivas penhoras que o afetam;
O. E cujo valor significa que o embargante/executado paga outra vez e três vezes ainda, o trator que adquiriu através da operação financeira em causa, pois como consta dos autos o valor de aquisição do trator foi de 10.490,18 €.
P. É claro que estamos perante uma clamorosa ofensa do principio da boa fé e do sentimento geral da comunidade, em que, ademais, nenhum prejuízo existe e existiu para a exequente que recebeu o montante do equipamento na integra, acrescidos de juros à taxa de 7,5 %, durante a duração do contrato, tal como consta nos autos...
Q. Vejamos sobre esta matéria a abundante jurisprudência que nos assiste:
R. Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante. Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que se pode definir como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo). Acórdão tribunal da Relação de Coimbra de 09-01-2017.
S. O instituto do abuso de direito arranca da constatação de que há certas situações em que o exercício formalmente correcto das faculdades contidas em certa esfera ou posição podem determinar uma solução jurídica que concretamente contraria os limites do seu reconhecimento e tutela. Perante o incumprimento definitivo imputável ao outro contraente, o contraente fiel pode optar pela resolução do contrato ou a recuperar a prestação já por si efectuada, em cumulação com o direito a ser indemnizado pelo ressarcimento dos prejuízos associados ao incumprimento que não foram reparados com a simples destruição negocial. O julgador, além dos danos negativos, também pode atender aos positivos se, no caso concreto, essa solução se afigurar mais equitativa segundo as circunstâncias. Nalguns casos, a boa fé estabelece o único regime aplicável, por ausência de outras regras, levando ao desenvolvimento de novos institutos jurídicos, noutras hipóteses, ela surge como um correctivo de outras normas cuja aplicação no caso concreto atentaria contra vectores fundamentais do sistema jurídico. A tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente poderá não conduzir a que o contraente cumpridor recupere, no todo ou em parte, a prestação já por si efectuada, em cumulação com o direito de indemnização dos prejuízos associados ao incumprimento sempre que tal se traduza numa clara situação de desequilíbrio ou de benefício injustificado para um dos outorgantes. Acórdão tribunal da Relação de Évora de 16-05-2019;
T. Claramente atua a exequente/embargada em abuso de direito, o que deverá originar que sejam decretados como procedentes os embargos de executado, absolvendo-o do pedido nos auto principais de execução;
U. Ou quando muito, segundo juízos de equidade, ser condenado ao pagamento, apenas, do valor residual - 209,81 € (duzentos e nove euros e oitenta e um cêntimos) - acrescido de juros, contados desde a resolução do contrato até efetivo e integral pagamento.
V. De manifestar em fim que “A questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2.” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2018.
**
III.- A Embargada/Exequente formulou as seguintes conclusões:

I – Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas.
II – O Recorrente pretende um novo julgamento da causa, invocando em sede de alegações de recurso fundamentos que nunca foram invocados na oposição à execução.
III – Em sede de oposição à execução, o ora Recorrente alegou não ter assinado a livrança que é título executivo nem o contrato que lhe subjaz.
IV – Tendo ficado demonstrado que efetivamente assinou o título dado à execução e todos os documentos que lhe serviram de base, vem o Recorrente apresentar alegações de recurso com fundamentos nunca antes invocados.
V – O ora Recorrente celebrou com a exequente um contrato de locação financeira, tanto na qualidade de sócio gerente da sociedade locatária como a título pessoal, na qualidade de fiador.
VI – Apesar de devidamente interpelada, a sociedade locatária não pagou o valor residual previsto no contrato de locação financeira celebrado, não tendo também restituído o bem locado à embargada.
VII – Não o fazendo, e nos termos previstos no contrato celebrado, constituiu-se na obrigação de pagar à exequente uma importância igual à da última renda vencida por cada mês de mora na restituição do bem.
VIII – Em 12.09.2014 e tendo a exequente perdido o interesse no bem locado, foi preenchida a livrança assinada em branco e cujo pacto de preenchimento consta também do contrato celebrado, tendo a sociedade locatária e o fiador sido interpelados para o seu pagamento.
IX – Não pode vir agora – e apenas agora, em sede de recurso – o Recorrente alegar que existia uma expectativa de que o direito não seria exercido, quando para isso foi interpelado diversas vezes, tanto pessoalmente como enquanto único sócio e gerente da sociedade locatária.
X – Não existe qualquer abuso de direito na atuação da exequente, nem aquando do preenchimento da livrança, nem aquando da instauração da execução.
XI – Em momento algum foi invocado qualquer dos argumentos que o Recorrente utiliza agora como fundamento para a revogação da douta sentença proferida pelo tribunal a quo.
XII – O ora recorrente é efetivamente responsável pelo pagamento da quantia exequenda.
**
IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a decidir é a de saber se a Exequente actuou com abuso do direito.
**
B) FUNDAMENTAÇÃO

V.- i) O Tribunal a quo julgou provado que:

1) O Y - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. é a atual denominação social de J. R. – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.
2) Por força de operação de crédito praticada no âmbito da sua actividade comercial, a Exequente é dona e legítima portadora de uma livrança, emitida no Porto, em 12/09/2014, no valor de € 30.017,81 (trinta mil e dezassete euros e oitenta e um cêntimos), vencida em 20/09/2014.
3) A Exequente apresentou a livrança a pagamento na data do vencimento e, apesar das insistências efetuadas nesse sentido junto dos seus intervenientes, a mesma não foi paga então, nem posteriormente.
4) J. R. procedeu à assinatura do contrato de locação financeira de fls. 26 e seguintes dos autos, na qualidade de locatário (em representação da empresa Quinta …, Unipessoal, Lda).
5) O nome que se encontra escrito no verso da livrança (junta a fls. 11 dos autos principais) por baixo da expressão “bom para aval à empresa subscritora” seguido de J. R. foi aposto pelo punho da ora Executada/ Embargante
6) A assinatura correspondente ao nome J. R., colocado no contrato de locação financeira de fls. 26 e seguintes dos autos, na qualidade de fiador e avalista foi aposta pelo punho do Executado/Embargante.
7) O Executado/Embargante alegou nos presentes autos que não assinou qualquer contrato com a aqui Exequente, nem enquanto representante da sociedade co-executada, quer em seu nome.
**
ii) Com interesse para a decisão, em complemento da facticidade acima transcrita, vão considerar-se os seguintes factos, que constam dos documentos juntos ao autos pela ora Apelada/Exequente e acima referidos:

A) O objecto do contrato de locação financeira referido em 4), foi um tractor corta relva cujo preço de aquisição foi de € 10.490,18.
B) As rendas estabelecidas no referido contrato foram integralmente pagas.
C) Os pagamentos foram efectuados por transferência bancária, como consta do documento de fls. 32 dos autos.
D) O tractor referido em A) foi fornecido pela empresa “… Agricultura – H. P. & Filho, Ld.ª”, com sede em Chaves.
E) Dentre as “Condições Gerais” que regem o contrato referido em a) consta a condição n.º 12, com o título “Opção de Compra e Termo do Contrato” do seguinte teor:
a) Findo o prazo de Locação Financeira, o Locatário poderá adquirir o bem pelo Valor Residual fixado nas Condições Particulares, acrescido de despesas administrativas inerentes a todos os Imposto e Encargos a que houver lugar, pago contra a apresentação de factura.
b) O exercício de Opção de Compra fica condicionado à não existência de débitos vencidos e não pagos pelo Locatário e deverá ser comunicado ao Locador até à data de vencimento da última renda do contrato, sob pena de perder esse direito de aquisição.
c) Se o Locatário não adquirir o Bem deverá restitui-lo no termo do prazo da Locação Financeira ao Locador em lugar indicado por este, por sua conta e sob a sua responsabilidade.
… … …
f) Caso não proceda à restituição do Bem no Termo da Locação, o Locatário constitui-se na obrigação de pagar ao Locador uma importância igual à da última Renda vencida por cada mês, ou fracção, em que perdurar a mora sem prejuízo da obrigação de indemnizar por maior dano e ainda sem prejuízo do exercício, por parte do Locador, do direito de reivindicar a posse física do Bem.
g) Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o Locatário a faculdade de compra do bem, o Locador pode dispor do mesmo, nomeadamente, vendendo-o ou dando-o em Locação ou Locação Financeira.”.
H) A fls. 34 dos autos consta uma carta datada 09/04/2010, com endereço da Locatária “QUINTA ... – UNIPESSOAL, LDA”, cujos dois primeiros parágrafos são do seguinte teor:
Tendo em consideração que o Contrato de Leasing supra identificado termina no próximo dia 27/04/2010, cumpre-nos informar V. Exas que caso pretendam adquirir a propriedade do veículo automóvel/equipamento em questão o preço da venda deste será de 209,81€ (IVA incluído à taxa legal em vigor) acrescido de 30,00€ para emissão do modelo 2/documento único e do acordo de resolução de Locação Financeira.
Na eventualidade de V. Exas não procederem à liquidação destes valores, consideraremos que não pretendem adquirir a propriedade do veículo/ equipamento acima identificado, pelo que ficarão obrigados a proceder à sua entrega, até ao dia 27/04/2010, nas nossas instalações sitas à RUA … – PORTO.”.
I) A fls. 36 dos autos consta uma carta datada 12/09/2014, com endereço do ora Apelante, que é do seguinte teor:
Nos termos e ao abrigo do disposto no Contrato de Locação Financeira nº … que esta Instituição celebrou com QUINTA ... UNIPESSOAL, LDA e no qual V. Exas. se constituíram avalistas/fiadores, vimos informar o seguinte:
a) No passado dia 27-04-2010, o contrato acima referido chegou ao termo do seu prazo;
b) Após a data em que foi operada o seu termo, impendia sobre V. Exa(s) a obrigação de entregar ao Y o bem locado, o que não se verificou até à presente data;
c) Em sequência, o Y procederá ao preenchimento da livrança subscrita pelo valor em dívida, acrescido de juros, encargos e penalidades contratualmente estabelecida e calculados até à data de 12-09-2014, cujo montante ascende a 30.017,81€;
d) Considerando que o bem locado ainda não foi entregue ao Y, vem pelo presente meio esta instituição informar que perdeu o seu interesse no respectivo cumprimento, sem prejuízo de se entender que a obrigação de entrega continua a impender sobre V.Exa;
e) Posto isto, de acordo com a alínea f) da Cláusula 12ª das Condições Gerais do Contrato, constituiu-se V. Exa. na obrigação de pagar a esta instituição a quantia de 29.615,46€.
Face ao exposto, informados que deverá V. Exa proceder ao pagamento imediato e integral da quantia de 30.017,81, no prazo máximo de 8 dias, no Y, S.A., sito na Rua …, no Porto, sob pena de esta instituição recorrer à cobrança judicial do seu crédito.”.
**
VI.- Defende o Apelante que, face ao que ficou provado, a Apelada/Exequente, instaurando a presente execução, actua com abuso do direito, por ter deixado prolongar a situação por mais de quatro anos, o que fez gerar em si a convicção de que não viria a exercer os direitos conferidos pelo contrato, tanto mais que tinha pago todas as prestações devidas pelo equipamento adquirido.
O abuso do direito é uma excepção peremptória de direito material, configurando igualmente uma excepção peremptória de direito adjectivo, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 576.º do C.P.C., que é do conhecimento oficioso, podendo ser conhecido no tribunal de recurso ainda que o tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre ele.
Nos termos do art.º 334.º do C.C., é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.

Como refere o Acórdão do S.T.J. de 09/09/2015, neste dispositivo legal consagra-se “um princípio fundamental da ordem jurídica, qual seja o de que o exercício dos direitos tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício” (ut Proc.º 499/12.2TTVCT.G1.S1, in www.dgsi.pt).
O abuso pressupõe a existência do direito, exigindo-se, para ser censurado, que o excesso cometido seja manifesto, que haja “uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”, como escreveu VAZ SERRA (in B.M.J., nº. 85º., pág. 253), que acrescenta que “quem abusa do seu direito utiliza-o fora das condições em que a lei permite, e o efeito deve ser, portanto, em princípio, o que resultaria de um direito só aparente, isto é, falta de direito”.
Como vem sendo observado, o abuso do direito “constitui uma ‘válvula de segurança’ do sistema jurídico, destinado a fazer face e neutralizar situações de flagrante injustiça a que por vezes pode conduzir o exercício de um direito subjectivo” – cfr., v.g., Ac. do S.T.J. de 12/02/2004 (ut Proc.º 03B4273, in www.dgsi.pt).
De acordo com o Ac. do S.T.J. de 9/04/2013, “O instituto do abuso do direito relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça” e prossegue ainda, citando o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 28/11/1996, “O abuso do direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito e casos em que se excede os limites impostos pela boa fé” (in Colectânea de Jurisprudência (C.J.), Acórdãos do S.T.J., ano IV, tomo III, págs. 118-121).
Escreveu ANTUNES VARELA que “para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder”, acrescentando que “para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade”, e a “consideração do fim económico ou social do direito apela, de preferência, para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei” (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10.ª ed., págs. 545-546).
Dentre os tipos de comportamentos abusivos releva o «venire contra factum proprium», em que incorre quem contradiz o seu próprio comportamento. A doutrina dominante tem neste instituto uma manifestação da tutela da confiança.
Como ficou referido no Acórdão do S.T.J. de 24/03/2015, “A tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. O fundamento da proibição do comportamento contraditório é, justamente, a tutela da confiança, que mantém relação íntima com a boa-fé objectiva (ut Proc.º 296/11.2TBAMR.G1.S1, in www.dgsi.pt).
Segundo BAPTISTA MACHADO “o instituto do «venire contra factum proprium» caracteriza-se pela combinação de dois elementos. Por um lado, ser conforme à ideia de justiça distributiva que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devam ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida de relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente. Por outro lado, ser possível alcançar esse resultado sem sujeitar tal agente a uma obrigação, sem lhe impor a constituição de um vínculo, mas pelo simples desencadear de um efeito inibitório ou inabilitante” (in Revista de Legislação e Jurisprudência (R.L.J.) ano 118 (1985/1986), pág. 104).
Na modalidade da suppressio, entendida como um subtipo do venire contra factum proprium, a contraditoriedade do comportamento traduz-se no exercício do direito depois de uma prolongada abstenção. Como escreve PEDRO PAIS DE VASCONCELOS “A abstenção prolongada no exercício de um direito pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expectativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício. Esta expectativa é atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulta de uma situação de confiança que seja justificada e razoável” (in Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina, 5.ª ed., 2008, pág. 274).
Também MENEZES CORDEIRO observa que “a suppressio” é, no fundo, uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito”, certo que “teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes: não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não exercente” (Tratado de Direito Civil Português – I – Parte Geral, Tomo IV, pág. 313 e ss., nomeadamente, 323 e 324).
**
VII.- Vem sendo normalmente entendido que o simples decurso do tempo sem que o seu titular exerça o direito não é suficiente para consubstanciar a supressio, ou seja, para justificar a confiança do devedor de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação – cfr., por todos, o Acórdão do S.T.J. de 19/10/2017 (ut proc.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1, in https://www.direitoemdia.pt/ document/s/f2c509).
Na situação sub judicio, como acima se deixou referido, a Apelada/ Exequente terá enviado uma carta à Sociedade Unipessoal que figura no contrato como locatária em 09/04/2010, chamando a atenção de que o contrato terminaria no dia 27 do mesmo mês, e dando-lhe conhecimento da quantia a pagar caso pretendesse “adquirir a propriedade do veículo automóvel/ equipamento em questão” - € 209,81 -, acrescendo mais € 30 para a emissão do documento único.
A seguir manteve-se silente durante quatro anos e cinco meses, ao fim dos quais enviou uma carta à referida Sociedade Unipessoal e outra ao ora Apelante exigindo-lhes o pagamento da importância total de € 30.017,81, da qual € 29.615,46 corresponderão à “penalização” prevista na alínea f) do ponto 12 das Condições Gerais do contrato pela não restituição do bem (importância igual à da última renda vencida por cada mês ou fracção em que perdurar a mora).
Como alega o Apelante, e ficou a constar da fundamentação da decisão de facto, o contrato de locação financeira era na verdade “um contrato de financiamento para aquisição de um tractor” (cfr. fls. 139v.º, 2.º parágrafo).
Foram integralmente pagas todas as rendas que ficaram estabelecidas, ou seja, o valor do financiamento.
Ora, a exiguidade da quantia que teria de pagar, aliada à circunstância de o contrato ter sido integral e pontualmente cumprido, e o longo tempo decorrido, conjugadas à luz da experiência comum, do comportamento do homem médio, afiguram-se circunstâncias justificativas para suscitar no ora Apelante uma razoável expectativa de que a Apelada/Exequente não iria exigir-lhe o pagamento da referida quantia.
A Apelada/Exequente sabia que a intenção que presidiu à celebração do contrato era, simplesmente, a aquisição do referido bem – um tractor corta relva.
O contrato de locação financeira é reconhecidamente um contrato complexo a exigir um esclarecimento profundo e detalhado de todas as suas cláusulas, designadamente as que se referem à mora do locatário e à opção pela compra, pela extrema gravosidade das consequências aí previstas – no contrato que a Apelada/Exequente celebrou com a Executada “Quinta do ..., Unipessoal, Ld.ª” as “Condições Gerais” são 23, na sua esmagadora maioria com diversas alíneas ou parágrafos, sendo de realçar o n.º 12, que rege sobre a opção de compra no termo do contrato, que impõe ao locatário o dever de comunicar ao locador a sua intenção de exercer a opção de compra “até à data de vencimento da última renda”, “sob pena de perder o direito de aquisição”; a escolha pelo locador do lugar onde o bem deve ser entregue, ficando o transporte por conta e sob a responsabilidade do locatário (a ora Apelada/ Exequente indicou como local da entrega a sua sede, no Porto, obrigando a fazer deslocar o tractor de cortar a relva desde a cidade de Chaves, onde foi fornecido) e penalização para o locatário que não tenha, no prazo previsto, exercido o direito de opção de compra - “o pagamento de uma importância igual à da última renda vencida, por cada mês ou fracção em que perdurar a mora”, acrescida de “indemnização por maior dano”, ficando ainda o locador com o direito de reivindicar a posse física do bem.
Tendo o direito de exigir a entrega efectiva do tractor, a Apelada/ Exequente não o fez, optando por deixar a situação prolongar-se durante o longo tempo referido, até o valor da “penalidade” atingir quase o triplo do valor do tractor, e cento e quarenta e quatro vezes mais do valor da “dívida” inicial, e, a considerar a alínea b) do n.º 14 das Condições Gerais, decerto que mais do dobro do que o Apelante seria obrigado a pagar se o contrato fosse resolvido por mora no pagamento das rendas.
O efeito “bola de neve” resultante da inacção da Apelada/Exequente criou uma desvantagem para o ora Apelante que é injusta e iníqua, podendo, sem hesitação, afirmar-se que fere o sentido de justiça do cidadão comum impor o pagamento de uma tão exagerada importância a alguém que cumpriu pontualmente com todas as rendas a que estava obrigado, cumprimento que legitima a presunção de ter sido por mera “falta de atenção”, como refere o Tribunal a quo (penúltimo parágrafo de fls. 139v.º) que o ora Apelante “não exerceu o direito a adquirir o tractor”, não pagou o modesto valor residual, “nem procedeu à sua entrega” à Apelada/Exequente.
Termos em que se impõe conceder provimento à pretensão recursiva do Apelante, e, assim, julgando procedente a excepção peremptória do abuso do direito, reduzir a quantia exequenda para o valor residual em dívida - € 209,81 – a que acrescem os juros de mora estabelecidos no contrato (ponto 8. das Condições Gerais), (salvaguardados os limites máximos que estiverem legalmente estabelecidos para operações desta natureza) a contar da data da resolução – 12/09/2014 – até efectivo e integral pagamento.
**
C) DECISÃO

Considerando quanto se deixa exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, e, revogando a decisão impugnada, reduzir a quantia exequenda para o valor residual em dívida, que é de € 209,81, acrescido dos juros de mora, nos termos acima referidos, a contar da data da resolução – 12/09/2014 – até efectivo e integral pagamento.
Custas dos Embargos e da Execução pelo Apelante e pela Apelada/Exequente, na proporção do vencido, cabendo apenas a esta pagar as custas da apelação.
Guimarães, 09/06/2020

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho