Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
218/11.0GACBC.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Não há fundamento legal (nomeadamente nas normas do art. 111 nºs 1 e 4 do Cod. Penal) para que o autor de um furto seja condenado a pagar ao Estado um montante equivalente ao valor da vantagem patrimonial que obteve com a prática do crime, mesmo nos casos em que o ofendido não deduziu pedido de indemnização civil
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular (Proc.nº 218/11.0GACBC), foi proferida sentença que decidiu (transcreve-se):

1) Absolver André G... da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º1 e 204.º n.º1 alínea a), n.º2 alínea e) por referência à alínea d) do artigo 202.º e n.º3 do artigo 204.º, todos do Código Penal.
2) Absolver Orlando M... da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º1 e 204.º n.º1 alínea a), n.º2 alínea e) por referência à alínea d) do artigo 202.º e n.º3 do artigo 204.º, todos do Código Penal.
3) Absolver Diogo R... da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º1 e 204.º n.º1 alínea a), n.º2 alínea e) por referência à alínea d) do artigo 202.º e n.º3 do artigo 204.º, todos do Código Penal.
4) Condenar André G... pela prática em co-autoria material, a forma consumada e concurso real, um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º1 e 204.º n.º2 alínea e) por referência à alínea d) do artigo 202.º e 73.º, todos do Código Penal na pena de um ano e dois meses de prisão, substituída por 420 (quatrocentas e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade.
5) Condenar Orlando M... pela prática em co-autoria material, a forma consumada e concurso real, um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º1 e 204.º n.º2 alínea e) por referência à alínea d) do artigo 202.º e 73.º, todos do Código Penal na pena de um ano e dois meses de prisão, substituída por 420 (quatrocentas e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade.
6) Julgar improcedente o pedido de condenação do Arguido André G... a pagar ao Estado o valor de €2.787,43 (1/3 de € 5407,00 + ½ de € 2000,00 com o desconta da metade do bem recuperado a fls. 11 do apenso, ou seja, € 985,20)
7) Julgar improcedente o pedido de condenação do Arguido Orlando M... a pagar ao Estado o valor de €2.787,43 (1/3 de € 5407,00 + ½ de € 2000,00 com o desconta da metade do bem recuperado a fls. 11 do apenso, ou seja, € 985,20),
8) Julgar improcedente o pedido de condenação do Arguido Diogo R... a pagar ao Estado o valor de € 1802,23 (1/3 de € 5407,00);
6) Julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado por Joaqui O... e, consequentemente, absolver André G..., Orlando M... e Diogo R... do mesmo.

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O magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido interpôs recurso desta sentença suscitando a seguinte questão:

Não tendo sido recuperados bens no valor global de € 1970,40, furtados pelos arguidos Orlando M... e André G..., e não tendo o ofendido formulado pedido de indemnização civil, devem os referidos arguidos ser condenados a pagar ao Estado o valor correspondente à vantagem patrimonial que auferiram (cada um € 985,20), conforme pretensão formulada na acusação.

Invoca as normas dos nºs 1 e 4 do art. 111 do Cod. Penal


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Não houve resposta ao recurso.

Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos cumpre decidir.


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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
A- (NUIPC Apenso n.º 180/11.0GACBC).
1. Em data não concretamente apurada, mas seguramente entre as 20h00m do dia 4 e as 19h00m do dia 6 de Julho de 2011, os arguidos André G... e Orlando M... idealizaram assaltar a residência pertencente a Severino T..., sita no Lugar da P..., P... – Cabeceiras de Basto, área desta comarca, com o objectivo de procederem à retirada de objectos que se encontrassem no seu interior, fazendo-os seus e integrando-os nos respectivos patrimónios
2. Aí chegados, munido de um ferro que aí encontraram tentaram forçar a porta existente junto da piscina, não conseguindo, contudo, abri-la, pelo que se deslocaram até às traseiras da dita residência e, munidos com o mesmo ferro, forçaram a portada e, de seguida a janela, ao ponto de as rebentar, conseguindo assim abri-las e, através dessa janela, entraram na referida residência.
3. Daí retiraram e levaram consigo:
- Duas alianças de namorados:
- Um par de argolas (grandes):
- Um fio simples;
- Três pulseiras c/chapa de criança;
- Um alfinete com pedras (safiras);
- Uma pulseira de argolas (senhora);
- Um par de argolas de senhora;
- Um par de argolas de bebé, com uma cruz;
- Duas medalhas (gravação 5 de severino/anjinho);
- Dois anéis de senhora com pedras;
- Um anel de menina,
4. Peças estas em ouro e avaliadas globalmente em cerca de € 2.000,00.
5. Os Arguidos fizeram suas as peças acima mencionadas.
6. No dia 11, 12, 13, 21 de Julho, 2 e 3 de Agosto de 2011, os Arguidos deslocaram-se ao estabelecimento comercial de ouro usado “T... – Gold Lda, situado na B... – Cabeceiras de Basto e aí venderam várias peças em ouro, sendo que um desses objectos era uma das pulseiras de criança, a qual foi apreendida – cfr. declaração de venda de fls. 21 e fotografia de fls. 33.
7. Os Arguidos agiram em comunhão de esforços e vontades, com intenção de se apoderarem dos objectos supra referidos e de os fazer seus, o que conseguiram, tendo arrombado a janela para entrar na residência do ofendido, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam, mas sim ao ofendido e que actuavam contra a vontade deste
8. Os Arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.
B – (NUIPC n.º218/11.0 GACBC).
9. No dia 17 de Agosto de 2011, momentos antes das 15h30m, pessoa(s) cuja(s) identidade(s) não foi(ram) possível(eis) apurar idealizaram assaltar a residência pertencente a Joaquim O..., sita no Lugar E..., P... – Cabeceiras de Basto, área desta comarca, com o objectivo de procederem à retirada de objectos que se encontrassem no seu interior, fazendo-os seus e integrando-os nos respectivos patrimónios.
10. De modo não concretamente apurado, forçaram uma janela que dá acesso ao interior da habitação, conseguindo, assim, abri-la e entrar pela mesma.
11. Daí retiraram e levaram consigo:
- 01 saco castanho da marca LOUIS VITON no valor de € 485,00;
- 01 pulseira de senhora de prata no valor de € 59,00 Euros;
- 02 anéis de prata no valor de € 100,00;
- 01 relógio marca GUESS no valor de € 179,00;
- 01 par de óculos de ver da marca VERSACE no valor de € 300,00;
- 01 IPOD NANO de música de cor rosa no valor de € 149,00;
- 08 toalhas em linho no valor de € 160,00 Euros;
- 01 par de sapatilhas de cor branca da marca NlKE no valor de €70,00;
- 01 par de sapatos de cor branca no valor de € 20,00;
- 01 perfume de mulher da marca RICCI no valor de € 70,00;
- 01 creme de marca BODY SHOP no valor de € 65,00;
- 04 pares de lençóis no valor de € 200,00;
- 45 peças de roupa de mulher de vários tipos entre as quais se encontram vestidos, camisolas, calças, casacos no valor de € 1200,00;
- 01 pulseira de homem em ouro que tinha gravado “lembrança de mãe”, no valor de € 250,00;
- € 2050,00 em numerário;
- 02 garrafas de Whisky de marca J&B no valor de € 40,00 Euros;
- 01 garrafa de Bailys no valor de € 10,00;
12. Objectos e quantias estas avaliadas globalmente em cerca de € 5.407,00.
Mais se provou relativamente ao Arguido André G...:
13. Tem o 6.º ano de escolaridade.
14. Encontra-se desempregado, todavia presta ajuda numa oficina de automóveis.
15. Vive com os pais e uma irmã.
16. É bem comportado, calmo e habituado a trabalhar na lavoura.
17. Não tem antecedentes criminais averbados.
Mais se provou relativamente ao Arguido Orlando M...:
18. Tem o 6.º ano de escolaridade.
19. Encontra-se desempregado fazendo trabalhos esporádicos na agricultura.
20. Vive com a mãe e uma irmã.
21. Confessou parcialmente os factos de que vinha acusado.
22. Por decisão de 15 de Maio de 2013, transitada em jugado em 17 de Junho de 2013, proferida no Processo n.º 271/11.7GACBC, que correu termos no Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, foi condenado pela prática, Em, 16 de Outubro de 2011, de um crime de ofensa à integridade física na pena de cento e oitenta dias de multa à taxa diária de €7.00, o que perfaz um total de €1.260.
Relativamente ao Arguido Diogo R...:
23. Tem o 8.º ano de escolaridade.
24. É serralheiro, actividade de onde aufere mensalmente €485.
25. Vive com a namorada.
26. Não tem antecedentes criminais averbados.
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Considerou-se não provado que:
A) No dia 17 de Agosto de 2011, momentos antes das 15h30m, os arguidos André G..., Orlando M... e Diogo – e um indivíduo de sexo feminino – idealizaram assaltar a residência pertencente a Joaquim O..., sita no Lugar E..., P... – Cabeceiras de Basto, área desta comarca, com o objectivo de procederem à retirada de objectos que se encontrassem no seu interior, fazendo-os seus e integrando-os nos respectivos patrimónios.
B) Para o efeito deslocaram-se na viatura de marca Citroen, modelo Saxo, de cor amarela/alaranjada, com a matrícula 43-21-..., pertencente ao arguido Diogo.
C) Aí chegados, enquanto o arguido Diogo permaneceu na dita viatura, a aguardar e vigiar a eventual aproximação de terceiros – de forma a alertar e melhor permitir a fuga, caso tal fosse necessário – enquanto os outros dois arguidos e o dito indivíduo do sexo feminino, deslocaram-se à dita residência.
D) Os Arguidos fizeram seus os objectos e quantias descritas em 13).
E) Os Arguidos agiram em comunhão de esforços e vontades, com intenção de se apoderarem dos objectos supra referidos e de os fazer seus, o que conseguiram, tendo arrombado a janela para entrar na residência do ofendido, bem sabendo que os mesmo não lhes pertenciam, mas sim ao ofendido e que actuavam contra a vontade deste.
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FUNDAMENTAÇÃO
A questão:
Os arguidos André G... e Orlando M... foram condenados como autores de um crime de furto em que se apropriaram de bens no valor global de € 2000,00.
Foi recuperado um bem no valor de € 29,60 – fls. 11 do apenso.
Isto é, a “vantagem” económica conseguida pelos arguidos ascende a € 1970,40 (€ 2000,00 – € 29,60). O que dá, para cada um, a vantagem de € 985,20.
Não tendo o ofendido formulado pedido de indemnização civil, visa o magistrado recorrente que cada um dos arguidos André G... e Orlando M... seja condenado a pagar ao Estado a quantia de € 985,20, correspondente à vantagem que obteve com a prática do crime.
Invoca para tal as normas do art. 111 nºs 1 e 4 do Cod. Penal.
Já na acusação tinha deduzido pretensão nesse sentido.
Decidindo:
O essencial da argumentação do recurso consiste na afirmação de princípios que, no entendimento do magistrado recorrente, deviam nortear as opções legislativas nesta matéria.
Porém, as normas que invoca não permitem as conclusões que tira.
Na realidade, dispõe o art. 111 do Cod. Penal:
1 – Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2….
3….
4 – Se a recompensa, os direitos coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
Onde o legislador escreveu “recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito”, não deve o intérprete ler “vantagem conseguida ou obtida pelo agente com a prática do facto ilícito”. O que alguém furta não lhe é “dado” nem “prometido”. “Não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” – art. 9 nº 2 do Cod. Civil. Cabem no âmbito da norma, nomeadamente, os casos em que o mandante do crime ou promete ao autor material alguma recompensa com valor económico.
Finalmente, ao contrário do que parece ser o entendimento do magistrado recorrente, nas normas invocadas nenhuma distinção é feita quanto ao regime de perdimento de bens (ou para o pagamento do respetivo valor), consoante o legitimo proprietário tenha ou não deduzido pedido cível. Bem ou mal, na economia dos nossos direitos penal e processual penal, só os lesados podem reclamar ser compensados pelos prejuízos diretamente decorrentes da prática de um crime. O perdimento de bens visa outros fins, diferentes da “substituição” do Estado aos direitos dos lesados.
O recurso improcede.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso.
Sem custas.