Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
37/16.8T8VRM.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CASO JULGADO
CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRECLUSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- A exceção dilatória inominada da autoridade de caso julgado prescinde da tripla identidade entre duas ações quanto a sujeitos, pedido e causa de pedir, mas impede que decidida determinada questão de mérito, na primeira ação, por sentença transitada em julgado, em posterior ação entre as mesmas partes essa questão possa ser novamente discutida entre elas, quer a título principal, quer a título prejudicial, tendo o efeito positivo de impor a primeira decisão, transitada em julgado, como pressuposto indiscutível nessa segunda ação.

2- A ação de divisão de coisa comum destina-se ao exercício do direito potestativo conferido aos comproprietários de porem termo à comunhão e, do ponto de vista processual, desenvolve-se em duas fases distintas: uma fase declarativa e uma fase executiva.

3- Na fase declarativa define-se o direito do autor, através da determinação da natureza da coisa, da existência ou subsistência da invocada compropriedade sobre a coisa, fixação das quotas dos comproprietários e determinação do caráter divisível ou indivisível da coisa.

4- Instaurada ação de divisão de coisa comum, o aí réu tem, em sede de contestação, de deduzir todas as exceções de que disponha ao direito de compropriedade que o autor se arroga titular sobre a coisa (art. 573º do CPC), sob pena de não fazendo não poder suscitar essas exceções posteriormente.

5- Não suscitando o réu da ação de divisão de coisa comum essas exceções (ou fazendo-o, mas não logrando fazer prova dessa matéria de exceção que deduziu), caso seja proferida sentença, na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, declarando que o autor e o réu são comproprietários da coisa dividenda, não pode esse réu, posteriormente, instaurar ação contra o autor da ação de divisão de coisa comum pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade exclusiva sobre essa coisa, por a isso se opor o princípio da concentração da defesa (art. 573º do CPC) e a autoridade do caso julgado da decisão, transitada em julgado, proferida na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, que julgou procedente essa ação, reconhecendo que a coisa dividenda é compropriedade desse autor e réu.

6- No entanto, caso a ação de divisão de coisa comum seja julgada improcedente, por decisão transitada em julgado, nada obsta que o réu na ação de divisão de coisa comum, instaure ação contra o autor dessa anterior ação (julgada improcedente), pedindo que se reconheça que a coisa é sua exclusiva propriedade.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.
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I. RELATÓRIO.

Recorrente: Américo (…)
Recorrida: Maria (…)

Américo (…), residente na Rua de (…), n.º …, (..), Maia, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Maria (…), residente na Rua …, (…) Póvoa de Varzim, pedindo que:

a- se condene a Ré a reconhecer que o prédio denominado “(…) e (...)”, sito no Lugar da …, na freguesia de (…), concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, e inscrito na matriz predial urbana …º da freguesia de (…), concelho de (...) (sendo certo que à data da escrituras se encontrava omisso à matriz), foi adquirido apenas pelo Autor, e que o Autor construiu a habitação no dito prédio a expensas exclusivamente suas, e que o prédio identificado é da exclusiva propriedade do Autor;
b- ordene a notificação da Conservatória do Registo Predial de (...) para que corrija o registo do prédio descrito naquela Conservatória sob o n.º…, da freguesia de (…), o qual foi adquirido apenas pelo Autor, e cuja propriedade é apenas sua;

Subsidiariamente;

c- se reconheça e condene a Ré a reconhecer o direito do Autor a adquirir a propriedade do terreno ocupado – in casu, a parte da Ré – pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, nos termos e para os efeitos do art. 1340º, n.º 1 do Código Civil;

Ainda subsidiariamente;

d- se condene a Ré a indemnizar o Autor na proporção da metade de que a mesma beneficia ou tem direito no imóvel supra melhor identificado.

Para tanto alega, em síntese, ter casado com a Ré em 13/01/2001, em regime de separação de bens;
Em 28/04/2001 celebrou contrato-promessa de compra e venda tendo por objeto o prédio acima identificado, mediante o qual se obrigou a comprá-lo, tendo a escritura de compra e venda sido celebrada em 04/05/2001;
Não obstante na escritura de compra e venda figurarem como compradores o Autor e a Ré, foi efetivamente o primeiro que comprou esse prédio, pagou o respetivo sinal e o preço com dinheiro exclusivamente seu, não existindo qualquer intenção daqueles em comprarem esse prédio em comum;
Foi também o Autor quem mandou construir nesse prédio uma moradia, contratando para o efeito vários construtores, a quem pagou com dinheiro seu a obra executada, tendo para o efeito contraído, inclusivamente, empréstimos;
A Ré nunca contribuiu com qualquer quantia para a aquisição do prédio, sequer para a construção da dita moradia.

A Ré contestou defendendo-se por exceção e impugnação.

Invocou a exceção dilatória da litispendência, sustentando que existe identidade entre a presente ação e a que corre termos no mesmo tribunal sob o n.º 22/15.7T8VRM, que se consubstancia numa ação especial de divisão de coisa comum intentada pela ora Ré contra o ora Autor, em que este alegou os mesmos factos que agora aduz na presente ação e onde lhe foi permitido fazer prova que o prédio e a moradia nele construída é da sua exclusiva propriedade;

Invocou a exceção do abuso de direito, alegando que ainda que o capital relativo à aquisição do prédio e da construção da moradia fosse maioritariamente do Autor, o que se não concebe, este doou metade de todo o investimento para que tudo figurasse na aquisição e na construção da casa metade para cada um e como a doação sempre foi realizada em dinheiro, não existe formalidade alguma externa, ao contrário do que acontece com a aquisição do terreno, que, por isso, foi celebrada em nome dos dois;

O Autor sempre afirmou que a casa era para a Ré, já que ela não tinha habitação própria e os filhos daquele nunca viriam para Portugal, vindo apenas agora colocar em causa tudo quanto disse e foi executado ao longo de quase quinze anos, de que a casa era um bem comum, em compropriedade, só porque se divorciou daquela.

Impugnou parte dos factos alegados pelo Autor.

Pede que por via da procedência da exceção da litispendência, se absolva aquela da instância e, subsidiariamente, dos pedidos.

Convidou-se o Autor para se pronunciar, querendo, quanto à exceção da litispendência suscitada pela Ré, o que fez, concluindo que os pedidos formulados na presente ação são distintos dos formulados naquela outra ação n.º 22/15.7T8VRM, isto porque nesta aquele pede que se condene a Ré a reconhecer que o prédio denominado “(…) e (...)” foi adquirido apenas pelo Autor e a expensas suas, e que também foi ele que construiu a habitação no dito prédio e a expensas exclusivamente suas, sendo o prédio propriedade exclusiva deste, enquanto naquela outra ação, a ali Autora, aqui Ré, parte do pressuposto errado que é comproprietária do imóvel em crise.

Suscitou-se oficiosamente o incidente do valor da causa e fixou-se o valor desta em 70.710,00 euros.

Consentaneamente com o assim decidido, julgou-se incompetente, em razão do valor, o Juízo de Competência Genérica de (...) para tramitar os ulteriores termos dos autos, e atribuiu-se essa competência ao Juízo Central Cível de Braga, para onde os autos transitaram.

Designou-se data para realização de audiência prévia, onde se ordenou a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir nos autos de ação de divisão de coisa comum n.º 22/15.7T8VRM, a correr termos pela Instância de Competência Genérica de (...), com fundamento em prejudicialidade da presente ação em relação àquela outra.

Transitada em julgado a decisão proferia naquela outra ação, declarou-se cessada a suspensão da instância e designou-se data para a continuação de audiência prévia, onde após suspensão da instância com vista à resolução amigável do presente litígio, gorando-se essa possibilidade, proferiu-se saneador, julgando procedente a exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado e absolveu-se a Ré da instância, constando essa decisão da seguinte parte dispositiva:

“Pelos fundamentos expostos e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 576º, n.º 1 e 2 e 619º, n.º 1 e 621º do Cód. Proc. Civil, decide-se julgar verificada a exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado e, em consequência, absolver a ré Maria (…) da instância”.

Inconformado com o assim decidido, veio o Autor interpor o presente recurso de apelação, em que apresenta as seguintes conclusões:

A) Radica a discordância do recorrente - que dá azo ao presente Recurso - precisamente no facto de o Douto Tribunal a quo considerar existir identidade entre o pedido de uma e outra ação judicial (esta e o Processo n.º 22/15.7T8VRM), o que levou o mesmo a decidir existir autoridade de caso julgado.
B) Da compaginação entre o vertido pelas partes nos presentes autos (especialmente o pedido principal e os pedidos subsidiários formulados pelo Recorrente), e o Doutíssimo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito do Processo n.º 22/15.7T8VRM, verificamos que estão em causa pedidos diferentes.
C) Atendendo a que em nada se podem confundir os pedidos subsidiários formulados pelo Autor, ora recorrente, com o pedido formulado pela Ré no Processo n.º 22/15.7T8VRM, não é, com o devido respeito, exata a conclusão da existência de caso julgado, ou mesmo de autoridade de caso julgado (figura que nem sequer é consensual na doutrina e jurisprudência portuguesa, atenta a larga amplitude de entendimento que permite).

Termos em que, sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Excelências:

Deve o presente Recurso ser julgado Provado e Procedente, revogando-se a Sentença recorrida, e considerando não existir autoridade de caso de caso julgado, deverá o Processo ser remetido ao Douto Tribunal a quo para elaboração de Despacho Saneador que contenha o elenco de matéria assente e de factos a provar, com as devidas consequências legais, nomeadamente seguindo o Processo os seus termos até final”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cf. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, a única questão que se encontra submetida pelo apelante ao conhecimento desta Relação consiste em saber se o despacho saneador recorrido padece de erro de direito ao ter julgado procedente a exceção dilatória inominada da autoridade do caso julgado e ao absolver a apelada da instância relativamente a todos os pedidos formulados nos autos pelo primeiro.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal a quo não fixou a matéria de facto, limitando-se, na subsunção jurídica que operou, a respigá-los da prova documental junta aos autos e a considerá-los nessa subsunção jurídica que operou.

Porque nos termos do disposto no n.º 3 do art. 607º do CPC, na decisão a proferir se impõe discriminar os factos que se considera provados, ónus este que é extensível ao presente acórdão atento o preceituado n.º 3 do art. 663º do mesmo Código, tendo em conta a prova documental junta aos autos, os factos a considerar para efeitos de decisão a proferir no âmbito da presente apelação são, para além dos já consignados no relatório acima elaborado (quanto aos contornos da presente ação), os seguintes:

A- Maria (…) instaurou ação de divisão de coisa comum contra Américo (…), pedindo que este seja condenado na divisão do prédio urbano, situado no Lugar de …, freguesia de …, concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº …, pondo-se fim à compropriedade existente, pela adjudicação ou venda, seguindo os ulteriores termos dos artigos 925º e seguintes do Código de Processo Civil, alegando, em síntese, que aquela e o Réu foram casados entre si, no regime da separação de bens e, em 04/05/2001, ambos adquiriram um prédio rústico, denominado (…) e (...), com a área de 720 m2, sito no Lugar da …, da freguesia de …, concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, prédio esse no qual, durante a constância do matrimónio e com as poupanças de ambos, construíram uma moradia de férias, com vários quartos, sala, cozinha, casas de banho, garagem, churrasco e jardim, que não pode, pela sua natureza, ser dividido em substância, ação essa que correu termos como ação de divisão de coisa comum n.º 22/15.7T8VRM, pelo Juízo de Competência Genérica de Vieira da Minha, comarca de Braga – cf. certidão junta aos autos em 20/11/2007.

B- No âmbito da ação identificada em A), o aí Réu, Américo (…) , contestou alegando que aquele prédio foi adquirido, única e exclusivamente, pelo mesmo, que o pagou na íntegra e que nele mandou erigir uma moradia a expensas suas, sustentando que em 28/04/2001, celebrou com Maurício (…) um contrato promessa de compra e venda do referido imóvel, no qual figura como promitente-comprador e, em 04/05/2001, o contrato definitivo, pelo que resulta claro que o negócio de aquisição foi celebrado pelo mesmo e não pela Autora. Além disso, o preço pago a título de sinal foi liquidado pelo Réu, através de cheque emitido sobre a sua conta bancária, a qual municiou com dinheiro que transferiu de outra conta bancária sua, sediada nos Estados Unidos da América, o que também sucedeu com o remanescente do preço, pago na data da escritura pública de compra e venda. Como tal, não existiu qualquer intenção em adquirir o prédio em comum entre aquele e a Autora.

Nesse imóvel, o Réu mandou construir uma moradia, cuja empreitada, em 25/02/2003, entregou a José (…), pelo preço de 92.500,00 euros, que pagou faseadamente, com o avançar da construção. Para o efeito, o Réu contraiu junto da sua irmã e cunhado vários empréstimos, tendo vendido um imóvel, sito em Vila do Conde, pelo preço de 90.000,00 euros.

Assim, o Réu pagou o terreno e a moradia correspondente ao prédio em questão, pelo que deve a ação ser julgada improcedente e, em consequência, o Réu absolvido do peticionado – cf. mesma certidão.

C- Após resposta à contestação apresentada pela aí Autora, foi proferido saneador e uma vez realizada a audiência final, proferiu-se sentença que decidiu declarar o direito de compropriedade da Autora, Maria (…), e do Réu sobre o prédio urbano sito no Lugar de …, freguesia de …, concelho de (...), inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº … condenando-se o Réu na sua divisão, com vista a pôr fim à compropriedade existente e, bem assim a indivisibilidade desse prédio – cf. mesma certidão.

D- Por acórdão proferido por esta Relação em 21/09/2017, transitado em julgado em 25/10/2017, foi concedido provimento ao recurso interposto pelo ali Réu daquela sentença e julgou-se a ação improcedente, absolvendo-se o Réu Américo da (…) do pedido respetivo – cfr. mesma certidão.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURIDICA

Entendeu-se no despacho saneador recorrido que entre a presente ação e a ação especial de divisão de coisa comum intentada pela aqui Ré/apelada contra o aqui Autor/apelante, que correu termos na Instância Local, Secção de Competência Genérica - Juiz 1, de (...), sob o n.º 22/15.7T8VRM, intercede a exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado e, em consequência, absolveu-se a aqui Ré (Autora naquela outra ação) da instância quanto a todos os pedidos que nele são deduzidos pelo apelante, decisão esta com o qual o último não se conforma, imputando erro de direito a essa decisão.

A elucidação da questão que esta Relação é chamada a decidir passa pela análise, ainda que necessariamente perfunctória, dos institutos do caso julgado, autoridade do caso julgado e, bem assim, pela análise da ação de divisão de coisa comum.

B.1.1- Da exceção dilatória do caso julgado.

Como é entendimento doutrinário e jurisprudencial consensual e resulta do expresso no art. 580º, n.º 1 do CPC, a exceção do caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e “exerce duas funções: i) uma função positiva e ii) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal” (1).

Trata-se de uma exceção que no ordenamento jurídico processual atualmente vigente vem qualificada expressamente como exceção dilatória (art. 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. i) do CPC.), obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição do réu da instância.

A exceção do caso julgado tem como fundamento teleológico o prestígio dos tribunais, o qual seria altamente comprometido caso a mesma situação concreta, uma vez definida, pudesse posteriormente ser decidida em sentido diverso pelos tribunais, mas assenta, sobretudo e é este o mais importante e essencial dos seus fundamentos, em razões de certeza e segurança jurídicas, as quais seriam fortemente abaladas, com a inerente instabilidade no tráfego jurídico, caso, uma vez decidida determinada questão, o tribunal pudesse rever essa decisão, alterando-a.

Deste modo, decidida determinada questão e transitada em julgado a decisão, isto é, não admitindo aquela já recurso ordinário, essa decisão torna-se inatacável, promovendo-se, assim, a justiça, a segurança jurídica, a paz social, mas também o prestígio dos tribunais.

No entanto, a inatacabilidade ou incontestabilidade das decisões judiciais pode projetar-se apenas intra processualmente ou, ainda, extra processualmente e daí que se imponha distinguir entre caso julgado formal e caso julgado material.

O caso julgado formal, também designado de externo ou de simples preclusão, significa que a decisão, uma vez tomada e transitada em julgado, tem força obrigatória, mas apenas dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma ação, alterar a decisão proferida, mas não impede que numa outra, em que a mesma questão processual seja suscitada, esse ou outro tribunal tomem decisão diversa.

Constituindo o processo um encadeamento de atos e de decisões que vão sendo tomadas ao longo do iter processual até à decisão final, à medida que se vai percorrendo esse iter processual e que nele vão sendo proferidas decisões que recaiam apenas sobre a relação processual ou, inclusivamente, tomada nele uma decisão final que apenas verse sobre essa relação processual, não definindo a concreta relação controvertida entre as partes, ou seja, não decidindo de mérito, essas decisões que, reafirma-se, apenas versam sobre a relação processual, logo que transitem em julgado, não admitindo recurso ordinário, tornam-se incontestáveis e imodificáveis, mas tão-somente dentro do processo, ficando o tribunal e as partes submetidas ao que ficara decidido, de modo que, posteriormente, não podem naquele processo ter um comportamento processual contrário ao decidido, sequer o tribunal pode decidir de forma diversa ao anteriormente decidido.

No entanto, porque essas decisões apenas recaíram sobre a relação processual, deixando intocada e por definir a relação controvertida, isto é, o mérito da causa, em posterior ação que venha a ser proposta, o mesmo tribunal ou outro que venha a ser convocado a decidir essa segunda ação, não está subordinado à decisão anteriormente proferida.

Com efeito, não provendo essas decisões, como é o caso daquelas que conheçam de exceções dilatórias, sobre “os bens litigados, pensou-se não haver inconveniente de maior na possibilidade de serem desrespeitadas noutro processo” (2), sendo isto que resulta do comando ínsito no art. 620º do CPC, onde se estatui que, com exceção dos despachos que não admitem recurso por se tratar de despachos de mero expediente ou proferidos no uso legal de um poder discricionário, “as sentenças e os despachos que recaiam sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.

Diversamente do caso julgado formal, o caso julgado material tem como pressuposto a prolação de uma sentença ou despacho saneador que decidam sobre o mérito da causa, isto é, que versem “sobre os bens discutidos no processo; definam a relação ou situação jurídica deduzida em juízo; estatuam sobre a pretensão do Autor”.

Tais decisões de mérito, logo que transitem em julgado, por não admitirem recurso ordinário, impõem-se a todos os tribunais e às partes (mas não só, conforme infra se verá), intra e extra processualmente, de modo que quando seja submetida aos tribunais “a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (ação destinada a fazer valer outro efeito dessa relação), todos “têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”. “Quanto a estas o caso julgado material acresce ao formal” (3).

Na sua dimensão de “efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda ação (proibição de repetição)”, o caso julgado material funciona como bloqueio ao direito de acesso aos tribunais, e na sua “dimensão de efeito positivo da constituição da decisão proferida constitui pressuposto indiscutível para outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado)”, impedindo a suscitação de solução para uma controvérsia jurídica já decidida.

Dados os efeitos severos do caso julgado material, o mesmo encontra-se sujeito a contornos rígidos e rigorosos que se reconduzem ao requisito da denominada “tripla identidade”, segundo a qual para que estejamos perante a mesma questão jurídica é necessário que ocorra identidades de partes, causas de pedir e de pedidos.

Assim é que o art. 619º, n.º 1 do CPC., estatui que “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º”, acrescentando o art. 621º que “a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga”, o que nos remete para os limites objetivos e subjetivos do caso julgado.

Quanto aos limites objetivos, visando o caso julgado apenas obstar a decisões concretamente incompatíveis, que não possam executar-se sem detrimento de alguma delas, visando evitar a contradição prática de decisões e já não a sua colisão teórica ou lógica, tem sido entendimento maioritário que o caso julgado abrange a parte dispositiva da decisão e já não os seus fundamentos de facto ou de direito, confinando-se os limites objetivos do caso julgado à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado os fundamentos da mesma (4).

No entanto, outros sustentam que “toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respetivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor do caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão” (5).

Por último, uma posição intermédia sufraga o entendimento segundo o qual, embora o caso julgado se restrinja à parte dispositiva do julgamento, a sua força obrigatória deve ser estendida à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada, estendendo a força do caso julgado a todas as questões que forem antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da decisão em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e à estabilidade e certeza das relações jurídicas (6), posição esta que adotamos, uma vez que a parte dispositiva da sentença não é algo que surge desgarrado, mas assenta em determinadas pressupostos que lhe serviram de antecedente lógico e jurídico, do qual, sob pena de incerteza e insegurança jurídicas e se atentar contra a economia processual e o prestígio dos tribunais, não se pode abstrair.

Deste modo, embora se restrinja os limites objetivos do caso julgado à parte dispositiva da sentença, estendemos que é de estender a sua eficácia à resolução de questões preliminares que a sentença teve necessidade de resolver, como premissa da conclusão retirada.

No que respeita aos elementos subjetivos, o caso julgado apenas vincula, em regra, as partes da ação, não podendo, também, por norma, afetar terceiros, daqui derivando que o caso julgado, regra geral, só tem eficácia relativa.

Trata-se de um reflexo do princípio do contraditório consagrado no art. 3º do CPC, no sentido de que quem não pôde defender os seus interesses num determinado processo judicial, não pode ser afetado pela decisão nele proferida.

Precise-se, no entanto, que a identidade dos sujeitos relevante para efeitos de caso julgado não é a simples identidade física, mas a identidade jurídica, tanto assim que nos termos do n.º 2 do art. 581º do CPC, “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”.

Deste modo, o legislador deixa claro que o caso julgado se forma em relação a todos aqueles que por sucessão mortis causa ou por transmissão inter vivos assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo, quer a substituição se tenha operado no decurso da ação, quer já depois da sentença proferida.

Por outro lado, o caso julgado aproveita a ambas as partes, quer à parte vencedora, quer à parte vencida e a sua força impõe-se independentemente da posição que aquelas ocupem como autor ou como réu nas duas acções (7).

Acresce que o enunciado princípio da eficácia relativa do caso julgado carece de sofrer restrições e desvios, pela eficácia reflexa do caso julgado em relação a terceiros, os quais não podem ignorar as sentenças proferidas e transitadas nas diferentes ações, agindo como se elas não existissem na esfera das realidades jurídicas, matéria esta que nos abstemos de tratar por fugir ao objeto da presente apelação (8).

B.1.2- Da autoridade do caso julgado.

Embora como põem em destaque a doutrina e a jurisprudência, a exceção do caso julgado e a autoridade de caso julgado sejam efeitos distintos da mesma realidade jurídica, a exceção do caso julgado, enquanto exceção dilatória, tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, pressupondo que a mesma relação jurídica seja submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto dessa mesma relação já ter sido anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão transitada em julgado.

A verificação da exceção dilatória do caso julgado material pressupõe, assim, que a relação jurídica já esteja, em definitivo, julgada por sentença transitada em julgado e impede que aquela seja objeto de novo julgamento, o que significa que entre a anterior ação e a ulterior tem de se afirmar a denominada tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

Enquanto exceção dilatória, atua a dimensão negativa do caso julgado, impedindo que essa mesma relação jurídica antes julgada seja julgada segunda vez.

Já a autoridade do caso julgado relaciona-se com a existência de relações – já não de identidade jurídica – mas de prejudicialidade entre os objetos processuais, de modo que julgada, em termos definitivos, certa matéria numa ação que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objeto desta primeira ação impõe-se necessariamente em todas as posteriores ações que venham a correr entre as mesmas partes, incidindo sobre um objeto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objeto previamente julgado, perspetivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda ação.

Deste modo, enquanto “a exceção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição de decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de ação, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior” (9).

Sintetizando, a exceção dilatória de caso julgado pressupõe o confronto de duas ações (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas de sujeitos, de causa de pedir e de pedido.

Consequentemente, visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, por forma a evitar a repetição de causas.

Já a força e autoridade de caso julgado decorre de uma anterior decisão que tenha sido proferida e em que ficara decidido, com força de caso julgado, uma determinada questão de mérito, impondo que essa questão não mais possa ser apreciada numa ação subsequente, quer nela surja a título principal, quer a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.

Prende-se com a força vinculativa da primeira decisão e do inerente caso julgado e visa o efeito positivo de impor essa primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, e pode funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela exceção, pressupondo apenas “a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida” (10).

Na dimensão de força e autoridade de caso julgado, como afirma Teixeira de Sousa, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressuposto da decisão (11).

Deste modo, se numa determinada ação se reconhece que o réu se encontra na posse de um prédio por força de um contrato de arrendamento, não pode este, em posterior ação, alegar ou, fazendo-o, o tribunal decidir, que esse contrato fora revogado por acordo escrito celebrado em data anterior ao encerramento da discussão em audiência final realizada na primeira ação.

Da mesma forma, se numa ação de reivindicação se condenar o réu/reivindicado a reconhecer a propriedade do autor/reivindicante sobre determinada coisa e a restituí-la ao último, não pode, posteriormente, o reivindicado instaurar uma ação contra o reivindicante em que venha invocar justo título que lhe conferia o direito a ocupar a coisa reivindicada (ex: contrato de arrendamento, mútuo, etc.) caso já fosse detentor desse título antes do encerramento da discussão em audiência final na ação de reivindicação, que o legitimava a deter a coisa reivindicada, quando não cuidou em invocar o mesmo na ação de reivindicação ou, tendo-o feito, não logrou provar a existência do mesmo, por a isso obstar a autoridade e a força do caso julgado operado pela decisão proferida na ação de reivindicação.

A semelhante resultado também se chega pelo princípio da preclusão dos meios de defesa do Réu.

Na verdade, embora o conhecimento das exceções não adquira, em regra, força de caso julgado material (cf. art. 91º, n.º 2 do CPC), o trânsito em julgado de sentença de mérito que reconheceu, em todo ou em parte, o direito do autor, faz precludir todos os meios de defesa do réu quanto a esse direito, mesmo os que não chegou a deduzir, impedindo-o de, em posterior ação vir exercer esses meios de defesa.

Com efeito, instaurada determinada ação contra determinado réu com vista a exercer contra o último um determinado direito, por força do princípio da concentração da defesa, expressamente enunciado no art. 573º do CPC, o réu tem de deduzir, na contestação, todos os meios de defesa que detenha contra o pedido, assente na concreta causa de pedir que contra ele é deduzida pelo autor, sob pena de se precludir o seu direito de, posteriormente, vir invocar esses meios de defesa.

Essa preclusão da invocação num processo posterior de exceções não suscitadas num processo findo reporta-se, necessariamente, àquelas que sejam anteriores ao encerramento da discussão na fase da audiência final e que, consequentemente, não puderam ali ser suscitadas, mediante a apresentação de articulado superveniente, pelo que, “para efeitos do caso julgado, apenas os factos ocorridos depois do encerramento da discussão são considerados factos novos e podem ser invocados como uma nova causa de pedir numa ação posterior” (12).

Esse princípio da preclusão vale para o réu, mas já não para o autor.
É que enquanto no ordenamento jurídico processual civil nacional, o réu tem o ónus de concentrar, na contestação, todos os meios de defesa contra o direito que contra ele vem exercido pelo autor com base na concreta causa de pedir que contra ele invoca para sustentar esse pedido (art. 573ºdo CPC), sob pena desse meio de defesa se precludir nesse processo pendente – preclusão intraprocessual – e de não o poder invocar num outro processo – preclusão extraprocessual -, já o autor não tem o ónus de alegar todas as possíveis causas de pedir do pedido que formula, não existindo obstáculo processual que deduza o mesmo pedido em posterior ação instaurada contra o mesmo réu mas com fundamento em causa de pedir diversa daquela que invocou na anterior ação que intentou contra este, mas com base em causa de pedir (distinta da invocada na segunda ação) ao abrigo da qual viu a sua pretensão naufragar (13).

Resulta do que se vem explanando e em síntese, que enquanto “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, pressupondo, por isso, que entre ambas as ações exista identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, já “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (…) Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” e prescinde daquela tripla identidade (14).

B.1.3- Ação de divisão de coisa comum.

A ação de divisão de coisa comum configura uma ação especial que se encontra regulada nos artºs. 925º a 930º do CPC e destina-se ao exercício do direito potestativo atribuído pelo art. 1412º do CC aos consortes de porem termo à comunhão.

Assim é que dispõe o art. 925º do CC., que todo aquele que pretenda pôr termo à divisão da coisa comum requer, no confronto dos demais consortes que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com a repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.

Explicite-se que sendo a propriedade individual a melhor forma de explorar uma coisa e dela tirar os proveitos possíveis, já o Direito Romano previa a possibilidade dos consortes poderem pôr termo à compropriedade, conferindo-lhes o direito potestativo de requerer a respetiva divisão ou partilha, tradição esta que lhes é reconhecido pela generalidade dos ordenamentos jurídicos dos diversos países e que é igualmente reconhecido pelo ordenamento jurídico nacional, de modo que se pode afirmar “sem grande risco, que nenhuma legislação favorece a compropriedade” (15).

No entanto a divisão ou a partilha não é a única forma de pôr termo à divisão da coisa, na medida em que esta indivisão pode cessar por outras vias, nomeadamente: a) por cessão por um dos dois comproprietários ao outro do seu direito à parte da coisa comum; b) por sucessão de um dos comproprietários no quinhão do outro; c) por exercício de opção na venda ou arrematação do direito indiviso do outro; e d) por alienação que todos os comproprietários façam da coisa comum a um terceiro.

Em todos esses casos, a propriedade comum transforma-se em singular pelo que a divisão ou partilha torna-se naturalmente inútil (16).

No entanto não ocorrendo nenhum dos enunciados casos, e reconhecendo a lei, aos consortes o direito potestativo a porem termo à indivisão, essa finalidade, nos termos do art. 1413º, n.º 1 do CC, pode ser concretizada por duas vias possíveis: a) amigavelmente, por acordo entre todos os consortes, em que a divisão é feita por via consensual, extrajudicialmente, em que os consortes acordam em vender os respetivos quinhões a algum ou alguns deles, recebendo o(s) alienante(s) o preço do(s) respetivo(s) quinhão(ões) do(s) comprador(es) ou acordando vender os respetivos quinhões a um terceiro, distribuindo depois entre eles o produto da venda de acordo com os respetivos quinhões, ou b) por via judicial, nos termos do processualismo regulado nos já identificados arts. 925º a 930º do CPC.

A ação especial de divisão de coisa comum caracteriza-se por se dirigir contra todos os consortes e ter como escopo prático a cessação da compropriedade, conferindo um caráter universal a esse tipo de ação especial.

Com efeito, nela não se trata apenas de concretizar a quota do requerente na coisa comum, mas de dissolver a relação de compropriedade entre todos os consortes.

Do caráter universal da ação de divisão de coisa comum decorre que no respetivo processo têm de intervir todos os consortes, seja na posição de autores, seja na de réus (17), sendo indiscutível estar-se na presença de um caso de litisconsórcio necessário, posto que para a realização da divisão em sede judicial é necessária a intervenção de todos os consortes na ação de divisão de coisa comum, sob pena de ilegitimidade.

Embora a ação especial de divisão de coisa comum se destine a fazer atuar o direito dos consortes a exigir a divisão previsto no art. 1412º do CC, quando, não querendo um deles permanecer na indivisão e não seja possível pôr termo à mesma por via amigável e extrajudicial, daqui não se segue que a cessação dessa indivisão se opere, necessária e sistematicamente, pela divisão da coisa em substância.

Na verdade, essa divisão em substância da coisa comum pode ser impossível de concretizar em virtude de prescrição legal (art. 1376º, n.º 1 do CC) ou atenta a própria natureza da coisa dividenda (art. 209º do CC).

Enuncia-se que conforme decorre dos artºs. 925º a 930º do CPC, a ação de divisão de coisa comum desenvolve-se, sob o ponto de vista processual, em duas fases distintas, a saber: uma fase declarativa, a que se reportam os artºs. 925º a 928º do CPC, e uma fase executiva, regulada no art. 929º do mesmo Código.

Na fase declarativa, define-se o direito do autor, através da determinação da natureza comum da coisa, a existência ou subsistência da invocada compropriedade, a fixação das respetivas quotas e a determinação do caráter divisível ou indivisível em substancia e jurídica da coisa dividenda, tendo em consideração as suas características físico-materiais.

É consequentemente, na fase declarativa, que terão de ser suscitadas, apreciadas e decididas todas as questões atinentes às concretas características físicas da coisa dividenda, designadamente, respetiva composição, área, limites e confrontações, bem como todas as questões respeitantes à natureza (ou não) comum da coisa, à identidade dos comproprietários e respetivos quinhões e ao caráter divisível ou indivisível dessa coisa.

Encerrada a fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, já não é possível discutir as referidas questões, ficando precludido o direito dos réus a suscitá-las, exceto tratando-se de questões do conhecimento oficioso do tribunal e nos casos excecionais previstos no art. 573º do CPC (18).

Discutidas e decididas essas questões, segue-se a fase executiva da ação de divisão de coisa comum, destinada ao preenchimento dos quinhões dos consortes em espécie ou equivalente.

A fase executiva da ação de divisão de coisa comum inicia-se com a realização da conferência prevista no art. 929º do CPC.

Nessa conferência, sendo a coisa divisível, na ausência de acordo entre os interessados presentes sobre a adjudicação em substância da coisa, são os quinhões adjudicados aos interessados por sorteio (n.º 1 do art. 929º).

Já sendo a coisa indivisível e não sendo possível obter o acordo dos interessados na respetiva adjudicação a algum ou algum deles, preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes, é determinada a venda da coisa, podendo os consortes concorrer à venda (n.º 2 daquele art. 929º).

Ordenada a venda da coisa, nos termos do art. 549º, n.º 2 do CPC, esta será efetuada mediante as formas estabelecidas para o processo de execução.

B.1.4- Do caso concreto.

Assentes nas premissas acabadas de enunciar, revertendo ao caso em análise, nele o Autor/apelante pede a condenação da Ré/apelada a reconhecer que o prédio denominado “(…) e (...)”, sito no Lugar da …, na freguesia de …, concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º …, e inscrito na matriz predial urbana … da freguesia de (...), concelho de (...), foi adquirido apenas pelo mesmo e que este construiu a habitação no dito prédio a expensas exclusivamente suas e, bem assim, que o prédio identificado é da sua exclusiva propriedade e se ordene a notificação da Conservatória do Registo Predial de (...) para que corrija o registo desse prédio, por forma a que a respetiva propriedade fique inscrita apenas em nome daquele.

Subsidiariamente, o apelante pede que se reconheça e condene a apelada a reconhecer o direito daquele a adquirir a propriedade do terreno ocupado – a parte da Ré – pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, nos termos e para os efeitos do art. 1340º, n.º 1 do Código Civil.

Ainda subsidiariamente pede que se condene a apelada a indemnizá-lo na proporção da metade de que a mesma beneficia ou tem direito no imóvel que identifica na petição inicial.

O Autor funda essa sua pretensão (causa de pedir) na circunstância daquele prédio ter sido comprado, única e exclusivamente, pelo mesmo e a expensas suas, o mesmo acontecendo com a casa de habitação que foi erigida nesse prédio, a qual foi construída a seu exclusivo mando, que igualmente suportou o custo do preço dessa obra.

Por sua vez, conforme resulta do teor da certidão junta aos autos, extraída da ação especial de divisão de coisa comum n.º 22/15.7T8VRM, que correu termos na Instância Local, Secção Genérica, Juiz 1, de (...), Comarca de Braga, a aqui Ré/apelada instaurou contra o aqui Autor/apelante, aquela ação de divisão de coisa comum pedindo que este fosse condenado na divisão do prédio urbano, sito no Lugar da …, freguesia de …, concelho de (...), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, pondo-se fim à compropriedade de ambos sobre esse prédio.

Como bem salienta o tribunal a quo na decisão recorrida, é apodítico que entre essa ação de divisão de coisa comum e a presente ação existe identidade de sujeitos.

Com efeito, o aqui Autor/apelante foi réu naquela outra ação de divisão de coisa comum, e a qui Ré/apelada foi autora nessa outra ação.

Por outro lado, essa ação especial tem por objeto o mesmo prédio que constitui objeto da presente ação.

Nessa ação especial o aí réu (aqui Autor/apelante) deduziu, na fase declarativa dessa ação especial, a título de exceção ao direito de compropriedade que nela a aí autora (aqui Ré/apelada) se arrogava titular sobre o identificado prédio, factos tendentes a demonstrar que esse pretenso direito de compropriedade desta sobre esse prédio não existe, mas que antes esse prédio é propriedade exclusiva do aí réu (aqui Autor/apelante), tratando-se, aliás, dos mesmos factos que este alega como causa de pedir dos pedidos que formula nos presentes autos.

Subscreve-se e concorda-se com a decisão recorrida quando pondera que entre a presente ação e aquela ação especial de divisão de coisa comum não existe identidade de pedidos, uma vez que nesta última o pedido consiste na pretensão da ali autora (aqui Ré/apelada) em pôr termo à situação de compropriedade de ambos sobre o identificado prédio.

Subscreve-se e concorda-se com a decisão recorrida quando nela se pondera que entre a presente ação e aquela outra especial de divisão de divisão de coisa comum, dada a inexistência de identidade de pedidos e, inclusivamente, de causa de pedir, antes do trânsito em julgado da decisão nela proferida, não se verificava a exceção da litispendência e agora que está transitada em julgado, desde 25/10/2019 (cfr. alínea D da matéria apurada), o acórdão nela proferida, não se verifica a exceção dilatória do caso julgado, posto que quer a exceção dilatória da litispendência, quer a do caso julgado, pressupõem a já referida tríplice identidade em ambas as ações quanto a sujeitos, pedido e causa de pedir (art. 581º, n.º 1 do CPC).

Também se subscreve integralmente a decisão recorrida quando nela se escreve que a ausência dessa tripla identidade não obsta a que se verifique a exceção do caso julgado na sua dimensão positiva, isto é, na vertente de autoridade de caso julgado.

Na verdade, caso o apelante, aqui Autor, não tivesse naquela ação especial de divisão de coisa comum, onde era réu, deduzido, em sede de contestação, os factos que ora alega, a título de causa de pedir, na presente ação, arrogando-se proprietário exclusivo do prédio rústico e, bem assim da casa que, entretanto, nele foi erigida, isto é, do atual prédio urbano, ou, tendo-o feito, conforme efetivamente o fez, mas não tivesse logrado fazer prova dessa matéria de exceção que aí tinha invocado, e a ação de divisão de coisa comum instaurada pela aí autora, aqui Ré/apelada, viesse a proceder, declarando-se que esse prédio era compropriedade da ali autora e do aí réu, não só o princípio da concentração da defesa vertido no art. 573º do CPC impedia que o aqui Autor, ali réu, viesse agora, na presente ação, discutir os fundamentos de defesa que ali, naquela outra ação especial de divisão de coisa comum, não cuidou em alegar, assim como a autoridade do caso julgado da decisão de mérito proferida nessa outra ação especial que, tendo-o feito (como aconteceu), viesse o aqui Autor/apelante novamente discutir, na presente ação, essa matéria de exceção que opôs naquela outra ação ao direito de compropriedade da ali autora (aqui Ré/apelada) sobre esse mesmo prédio mas que não cuidou todavia em fazer prova desses fundamentos de exceção nessa ação especial.

Com efeito, a ausência de alegação dessa matéria de exceção ao direito de compropriedade que a autora da ação de divisão se arrogava titular sobre o prédio ou a ausência de prova dessa matéria de exceção por parte do ali réu, agora aqui Autor/apelante, impedia-o de, nesta ação, vir a alegar esses fundamentos (não alegados ou não provados na ação especial de divisão de coisa comum) como causa de pedir para ancorar o pedido principal que formula nos presentes autos em ver condenada a ali autora, aqui Ré/apelada a reconhecê-lo como proprietário exclusivo desse prédio ou, na improcedência desse pedido principal, para lhe serem reconhecidos os pedidos subsidiários que formula contra aquela, por a isso se opor o princípio da concentração da defesa enunciado no art. 573º do CPC e, bem assim, a exceção dilatória inominada da autoridade do caso julgado operada pela decisão definitiva que julgou procedente o pedido formulado na ação especial de divisão de coisa comum pela ali autora, aqui Ré/apelada, declarando, em definitivo, que o prédio era propriedade comum desta e do aí réu (aqui Autor/apelante).

Acontece que não é nada disto que acontece naqueles autos de ação especial de divisão de coisa comum.

Na verdade, se em sede de sentença proferida pela 1ª Instância, a ali autora obteve vencimento e se declarou que aquela e o aí réu eram comproprietários do prédio e a indivisibilidade deste, essa sentença veio a ser revogada, por acórdão proferido por esta Relação, transitado em julgado em 25/10/2017, que julgou essa ação improcedente, absolvendo o aí réu (aqui Autor/apelante) do pedido.

Destarte, tendo, por decisão transitada em julgado, sido julgada improcedente a ação de divisão de coisa comum e tendo, assim, a aí autora, aqui Ré/apelada, visto, em definitivo, naufragar a sua pretensão em ver declarado o seu direito de compropriedade sobre o identificado prédio, não existe qualquer obstáculo processual, seja decorrente do princípio da preclusão, seja decorrente da autoridade do caso julgado da decisão proferida nessa ação especial de divisão de coisa comum, no sentido do aqui Autor/apelante demonstre que esse prédio é sua propriedade exclusiva ou, na improcedência deste pedido principal, faça valer os pedidos subsidiários que formula contra a aqui Ré em relação a esse mesmo prédio.

Resulta do que se vem dizendo, proceder a presente apelação, impondo-se a revogação da decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos.
*
Decisão:

Nesta conformidade, acordam os juízes desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a presente apelação procedente e, em consequência:

- revogam a decisão recorrida, que julgou verificada a exceção dilatória inominada de autoridade do caso julgado e absolveu a Ré/apelada da instância, ordenando o prosseguimento dos autos.
*
Custas pela apelada (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 21 de fevereiro de 2019

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dra. Eugénia Maria Marinho da Cunha (2ª Adjunta)


1. Ac. STJ. de 28/11/2013, Proc. 106/11.0TBCPV.P1. S1, relatado por Serra Baptista, in base de dados da DGSI.
2. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304.
3. Manuel Andrade, ob. cit., pág. 305.
4. Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 333 a 336; Antunes Varela, Miguel Bezerra a Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª ed., pág.712; Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, 3º vol., 1980, págs. 282 e 283; Acs. STJ. 01/06/2010, Proc. n.º 556/06.4TBRMR-B. L1. S1; de 28/11/2013, Proc. 106/11.0TBCPV.P1.S1, ambos in base de dados da DGSI.
5. Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2º ed., 1997, Lex, págs. 578 e 578.
6. Vaz Serra, in “RLJ, ano 110º, pág. 232; Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, III, págs. 200 a 201; Acs. STJ. 15/01/2013, Proc. 816/09.2TBAGD.C1. S1, R.G. 21/05/2013, Proc. 1152/10.7TBVVD.G1, ambos in base de dados da DGSI.
7. Para maiores desenvolvimentos, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., págs.721 a 724; Manuel Andrade, ob. cit., págs. 309 a 311.
8. Manuel Andrade, ob. cit., págs. 312 a 315; Antunes Varela, in ob. cit., págs. 724 a 729.
9. Miguel Teixeira de Sousa, “O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ, 325, págs.49 e segs..
10. Ac. STJ, de 21/03/2012, Proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1, S1, in base de dados de dados da DGSI. No mesmo sentido Acs. STJ, de 13/12/2007, Proc. 07A3739; 15/01/2013, Proc. 816/09.2TBAGD.C1. S1, base de dados DGSI.
11. Miguel Teixeira de Sousa, in ob. cit., págs. 578 e 579.
12. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit. Pág. 584.
13. Ac. do STJ, de 29/01/2019, proferido no Proc. 215/16.0T8VPA.G1. S1, desta Relação, aresto último este de que formos relator.
14. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., pág. 354.
15. António Carvalho Martins, “Ação de Divisão de Coisa Comum”, Coimbra Editora, 1992, pág. 13.
16. António Carvalho Martins, ob. cit., págs. 13 e 14.
17. António Carvalho Martins, ob. cit., págs. 25 e 26; Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed. Coimbra Editora, pág. 387; Ac. RL. de 23/02/2017, Proc. 166/12.7T2MFR.E. L1-2, in base de dados da DGSI.
18. Ac. RP. de 02/05/2016, Proc. 564/10.0TBPVZ-A. P2, in base de dados da DGSI.