Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
500/18.6T8MDL.G1
Relator: RAQUEL BATISTA TAVARES
Descritores: PRIVAÇÃO DE USO
PREJUÍZO PATRIMONIAL CONCRETO
DANO RESSARCÍVEL
DETERMINAÇÃO DO MONTANTE INDEMNIZATÓRIO
EQUIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A privação do uso de um veículo, ainda que desacompanhada de um prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano ressarcível, pelo que o facto de o veículo sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano profissional e na sua vida particular não pode deixar de determinar a atribuição de uma indemnização pelo dano da privação do uso no período em que perdurou a privação do uso da viatura, in casu, até à aquisição de uma nova viatura pelo lesado.

II- A determinação do valor dessa indemnização, que não implica um qualquer prejuízo patrimonial concreto, deve ser fixada com recurso a critérios de equidade, nos termos do artigo 566º n.º 3 do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

F. C., residente na Avenida …, Edifício …, n.º …, em Mirandela, veio propor a presente acção de processo comum contra X PLC, Sucursal em Portugal, com sede na Rua …, em Lisboa, pedindo se declare ser o veículo AD culpado do acidente e a condenação da Ré a suportar a integral reparação dos danos sofridos no veículo do autor e no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, no valor de €15,00, desde a data do acidente até efetiva e integral reparação, que, em 03/10/2018, liquida em €5.490,00.
Para tanto, alegou em síntese que no dia 23 de Setembro de 2017, conduzia o veículo com a matrícula XE, de que é proprietário, na EN 13, na localidade de ..., ao Km 60,600, quando o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula AD, conduzido por F. M., embateu na traseira do seu veículo, provocando o acidente e projetando-o para fora da via de circulação.
Mais alega que a culpa pelo acidente é de imputar ao condutor do veículo com a matrícula AD segurado pela Ré, por não ter deixado uma distância de segurança que lhe permitisse imobilizar o seu veículo, mas também por circular com velocidade excessiva, sendo a Ré responsável pelos danos que do acidente resultaram para o Autor.
Regularmente citada, a Ré veio contestar aceitando a existência do contrato de seguro, impugnando, contudo, a dinâmica do acidente e os montantes peticionados.
Foi dispensada a audiência prévia, vindo a ser proferidos o despacho saneador e o despacho a fixar o objecto do processo e os temas da prova.
Em 25/01/2019 o Autor veio requerer a retificação do objeto do litígio, o que foi deferido.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Em face do exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condeno a ré X PLC – Sucursal em Portugal, a pagar a ao autor a reparação dos danos que o veículo de matrícula XE sofreu na sequência do sinistro de 23/09/2017, danos esses a liquidar em incidente de liquidação;
b)Condeno a ré X PLC – Sucursal em Portugal a pagar ao autor a quantia de € 8,50 por cada dia de privação do uso do XE até efetivo e integral pagamento e que na presente data se liquida no montante global de € 6.162,50 (seis mil, cento e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos);
c)Absolvo a ré do demais peticionado pelo autor.
Custas por autor e ré, na proporção do respetivo decaimento.
Registe e notifique”.

Inconformada, apelou a Ré da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“A)– Deve dar-se como provado o concreto ponto de facto seguinte:
- Na estrada que provém da aldeia de ... e dá acesso à EN 213 e para quem pretende aceder a esta, existem os sinais de “Cedência de Passagem” e “STOP – Paragem Obrigatória”.
B)- O concreto ponto de facto constante do item 13º da p.i./1ª parte e item 4/1ª parte, onde se refere que:
- Para aceder à estrada o Autor respeitou a sinalização existente, designadamente fez paragem obrigatória no sinal STOP que ali se encontra,

Deve ter-se por NÃO PROVADO.

C)- Também deve ter-se por NÃO PROVADO o concreto ponto de facto constante da 2ª parte do mesmo item 13 da p.i. e 2ª parte do item 4º dos “Factos Provados” da sentença, seja:

- e só avançou depois de verificar, no espaço livre e visível que o seu posicionamento lhe permitia, que nenhum outro veículo circulava na faixa de rodagem.
D)- Como ainda se deve haver por NÃO PROVADO, o concreto ponto de facto que o Autor alega no item 14º, 1ª parte, da p.i. e consta do item 4º, última parte dos “Factos Provados” da sentença, seja:
- Depois de já se encontrar completamente na estrada nacional, e na sua via de trânsito – isto é no lado direito da faixa de rodagem”.
E)- Em consonância, a factualidade constante do item c) dos “Factos Não Provados” da sentença deverá ser dada como PROVADA, seja:
- O Autor não respeitou nem parou no sinal STOP existente no acesso do entroncamento de ... (Rua ...) para a EN 213 e não adoptou as demais cautelas inerentes a uma condução segura de quem está obrigado a ceder a passagem aos veículos que circulam na estrada onde vai passar a circular, designadamente não se certificou de que de qualquer dos lados da EN 213 não circulavam veículos a quem a sua entrada poderia perturbar a marcha.
F)- E tudo isto, atento não só os elementos objectivos e estradais constantes dos autos, como os depoimentos das 2 testemunhas presenciais do acidente, constantes do Registos supra transcritos.
G)- Os depoimentos das referidas testemunhas para além de coerentes retratam de forma verosimil a forma e as circunstâncias em que ocorreu o acidente.
H)- Quem, num cruzamento ou entroncamento, pretenda entrar em via prioritária e se lhe depara sinal STOP deve não só parar antes de entrar em tal intersecção, como se lhe impõe o dever suplementar de usar todas as cautelas e cuidados necessários, para concluir a manobra sem interferir com a velocidade e direcção de outro ou outros veículos que circulam pela via prioritária.
I)- Não basta, como o Tribunal deu como Provado que o Autor ao chegar ao referido cruzamento e STOP havia abrandado até quase parado.
J)- No CE e legislação regulamentar não existe qualquer sinal/comando normativo ou regulamentar que prescreve: abrandar até quase parar.
L)- O Autor, se parasse no Sinal STOP, dispunha de uma visibilidade de 77 m. para se certificar se do seu lado direito surgia ou não algum veículo na via prioritária por onde pretendia circular.
M)- Tanto mais que, sendo meia-noite, as luzes do veículo que circulava pela via prioritária, EN 213, eram perceptíveis a maior distância.
N)- Na decisão da matéria de facto sobre o concreto ponto: paragem obrigatória no sinal STOP o Tribunal não pode permanecer e ou construir um “limbo probatório”, não se sabendo se o Autor parou ou não parou no STOP; se cumpriu ou não os demais deveres suplementares que tal sinal impõe.
O)- A prova produzida nos autos permite concluir-se haver o A. violado o dever de respeitar os sinais e deveres que sobre si impendiam.
P)- E foi tal conduta ilícita do Autor a causa adequada e exclusiva da eclosão do acidente versado nos autos.
Q)- O que, em consequência, leva a que a acção deva ser julgada improcedente por não provada.
R)- O veículo do Autor ficou impossibilitado de circular, tendo o Autor adquirido num outro, em sua substituição em Abril de 2018.
S)- O Autor possui ainda um outro habitualmente conduzido pela esposa e filho.
T)- Em 25/10/2017 a Ré comunicou ao A. a perda total do veículo, e que o seu valor venal era de 2.700,00.
U)- A Ré e a seguradora do Autor entenderam que a responsabilidade do acidente era de atribuir à conduta do Autor.
V)- O lesado, pela privação do uso do veículo sinistrado tem direito a ser indemnizado por tal privação enquanto este é reparado ou até adquirir uma nova viatura.
X)- Ao adquirir uma nova viatura que satisfaça as necessidades/uso do sinistrado, deixa de existir a privação do uso e consequente indemnização.
Z)- A entender-se de forma diferente, exercendo tal direito, quando as necessidades de tal uso se encontram satisfeitas, e exigindo um valor diário contínuo de 15,00, tal representante manifesto abuso de direito, atento o valor significativamente superior, desproporcional e exorbitante ao dano a tutelar.
AA)- O valor diário a arbitrar nunca poderá ser superior a 5€, atentas as especiais características do veículo e o decidido pela Jurisprudência em casos e veículos congéres.
AB)- A douta sentença, ora posta em crise, ao decidir com o fez, violou e/ou não interpretou e aplicou correctamente, entre outros, os seguintes dispositivos legais:
- Código Civil – artigos 342º, nº 1, 483º, 487º, 562º e 566º.
- Código da Estrada: artigos – 13º, 29º, nº 1; e artigo 21º -B2 do Regulamento de Sinalização de Trânsito (Dec. Regulamentar nº 22-A/98, de 1/10).
- Código Processo Civil – 607º, nº 3 e 4”.

Pugna a Ré pela integral procedência do recurso e, em consequência, revogar-se a decisão relativa à matéria de facto, nos concretos pontos de factos supra pela revogação da sentença recorrida absolvendo-se a Ré dos pedidos contra ela formulados.
O Autor veio apresentar contra-alegações pronunciando-se ainda no sentido da extemporaneidade do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:

1 – Questão prévia: saber se o recurso foi tempestivamente interposto pela Ré.
2 - Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto;
2 – Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

1) O autor é proprietário do veículo automóvel, marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula XE (doravante designado XE). (cfr. documento de fls. 38)
2) No dia 23/09/2017, cerca das 00h30, na EN 213, ao Km 60,600, junto ao Entroncamento de ..., em ..., Mirandela, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula AD (doravante designado AD), conduzido por F. M., e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula XE, propriedade do autor e por este conduzido. (Cfr. Documento de fls. 6-8)
3) Naquela data e lugar, o veículo AD, conduzido por F. M., embateu na metade esquerda da traseira do XE, que foi projetado para a direita, vindo a imobilizar-se junto à estrutura de betão de encaminhamento de águas pluviais, que se vê a fls.61.
4) Com efeito, o autor, que provinha da aldeia de ..., pela rua da ..., necessitando de, pelo menos, abrandar até quase parar, tomou a estrada nacional 213, no sentido Cachão-Mirandela, avançando depois de verificar, no espaço livre e visível que o seu posicionamento lhe permitia, que nenhum outro veículo circulava na faixa de rodagem e foi embatido quando já se encontrava completamente na dita estrada nacional, no lado direito da faixa de rodagem, tendo sido embatido na metade esquerda da parte traseira do XE, sem que pudesse evitar tal embate.
5) Cerca de 300 metros antes do local do embate encontram-se dois sinais de trânsito C13, com indicação de proibição de circular a mais de 70 Km/h.
6) Pelo menos a 250 metros antes do entroncamento, existe sinal de trânsito a alertar para a aproximação de entroncamento.
7) Pelo menos 77 metros antes do local do embate, existem dois (um de cada lado da estrada) sinais de trânsito C13, indicando limite de velocidade de 50 km/h.
8) No local do acidente a via de circulação é suficientemente larga e tem uma inclinação ascendente no sentido Cachão-Mirandela.
9) Nas circunstâncias de tempo e local a que se alude em 2) o piso da estrada encontrava-se seco e em bom estado.
10)O condutor do AD não respeitou os sinais de trânsito de limitação da velocidade, circulando, na aproximação ao entroncamento que dá acesso à Rua da ..., a velocidade não concretamente apurada mas certamente superior a 50 km/h e não superior a 90 km/h.
11)Não obstante a aproximação a entroncamento, o condutor do AD não adequou a velocidade de modo a imobilizar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente.
12)No local ficaram rastos de travagem, cujo traçado retilíneo ou curvado não foi possível apurar, mas com uma extensão de cerca de 35 metros.
13)Da EN 213, para quem circule no sentido Cachão-Mirandela, só poderão ser avistáveis os veículos vindos do entroncamento que dá acesso à Rua da ..., a distância não superior a 77 metros do referido entroncamento e quando estes se encontrem a cerca de 14 metros do sinal STOP à saída do entroncamento.
14)Para quem venha do entroncamento e pretenda entrar na EN 213, os veículos que circulem do sentido Cachão-Mirandela são avistáveis apenas a cerca de 14 metros do STOP existente à saída do entroncamento e, quando junto ao STOP, a distância não superior a 77 metros.
15)Em consequência do acidente, o veículo do autor ficou danificado e com estragos que impossibilitam a sua circulação.
16)Desde a data do acidente que o autor se encontra privado do uso do XE, tendo tido que se socorrer de transportes públicos, boleia de conhecidos, vindo a adquirir veículo em Abril de 2018.
17)O veículo em questão era do ano de 2004, comercial, e teria, no mínimo, 130.000 km, tendo valor não inferior a € 2.700,00.
18)O veículo XE era usado pelo autor nas suas deslocações diárias pessoais, servindo tais objetivos e finalidades.
19)O autor possuía e possui um outro veículo, habitualmente conduzido pela esposa e pelo filho.
20)Por contrato de seguro titulado pela apólice 00743945, o proprietário do AD transferiu para a ré a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do aludido veículo.
21)Por carta datada de 25/10/2017, a ré comunicou ao autor que, tendo presente o resultado da vistoria condicional, o veículo se encontrava em situação de perda total, avaliando, então, o veículo em € 2.700,00.
22)A ré e a seguradora do AD entenderam que a responsabilidade do acidente era do autor, tendo pago ao proprietário do AD valor indemnizatório não concretamente apurado, pela perda total de tal veículo.
23)O veículo AD tem a matrícula cancelada deste
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

a) que o condutor do AD não tivesse mantido distância de segurança que lhe permitisse imobilizar o referido veículo.
b) que o XE tivesse, à data do acidente, poucos kms, valesse entre € 3.000,00 e € 4.000,00, e que o prejuízo decorrente, para o autor, da privação do uso do XE ascenda, concretamente, a € 15,00/dia.
c) que o autor não tenha respeitado e parado no sinal STOP existente no acesso do entroncamento de ... (rua da ...) para a EN 213 e que não tenha adotado as demais cautelas inerentes a uma condução segura de quem está obrigado a ceder passagem aos veículos que circulam na estrada onde vai passar a circular, designadamente, não se certificando de que de qualquer dos lados da EN 213 não circulavam veículos a quem a sua entrada poderia perturbar a marcha.
d) que o autor tenha invadido inusitadamente a via onde circulava o condutor do AD, cortando-lhe a linha de marcha; e
e) que o AD tenha ficado, concretamente, com danos no para-choques, capot, ótica, para brisas, porta e guarda lamas do lado direito.
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3.2. Questão prévia: saber se o recurso foi tempestivamente interposto pela Ré.

O Autor nas contra-alegações vem invocar a extemporaneidade do recurso alegando que no caso concreto o prazo era apenas de 30 dias uma vez que a Ré nada refere quanto à eventual prorrogação ou alargamento do prazo de recurso e nem requer a reapreciação da prova gravada.
A este propósito pode ler-se no despacho proferido pelo tribunal a quo, que admitiu o recurso, ser seu entendimento que o recurso visa a reapreciação da prova gravada não obstante a deficiente alegação da Ré.
Assiste razão ao tribunal a quo e resulta de forma linear das alegações de recurso apresentadas pela Ré que o recurso visa também a reapreciação da prova gravada, pelo que nos termos do disposto no artigo 638º n.º 7 do Código de Processo Civil ao prazo geral de 30 dias acresce ainda o prazo de dez dias.
Do exposto decorre ter sido tempestivamente interposto o presente recurso; se a Recorrente cumpriu ou não todos ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil é questão distinta que contende com a eventual rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto mas que não afeta, no caso concreto, a tempestividade do recurso.
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3.3 Da modificabilidade da decisão de facto

Decorre do n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.

De acordo com este preceito é de exigir ao recorrente que obrigatoriamente especifique:

- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- quando a impugnação dos pontos da decisão da matéria de facto se baseie em provas gravadas deverá ainda indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes e proceder se o entender à transcrição dos excertos que considere oportunos;
- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.

A este propósito escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, página 133) que “O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)” mas também que importa que “não se exponenciem os requisitos a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” e que, por outro lado, “quando houver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto; quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia; ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afetados (…)”.
Temos entendido como essencial que das conclusões formuladas pelo recorrente constem os pontos da matéria de facto que impugna; é que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, que definem as questões a reapreciar pela Relação, pelo que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar.
Conforme se lê no Acórdão desta Relação de 28/06/2018 (disponível em www.dgsi.pt) “Deverá ser rejeitado o recurso genérico da decisão da matéria de facto apresentado pelo Recorrente quando, para além de não se delimitar com precisão os concretos pontos que se pretendem questionar, não se deixa expressa a decisão que, no entender do mesmo, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
A este propósito pode ainda ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2017 (também disponível em www.dgsi.pt) que são condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza e estrutura da decisão de facto que “postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC”.

Podemos então sintetizar dizendo que o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado quando se verificar alguma das seguintes situações:

- ausência de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635º n.º 4, e 641º n.º 2, alínea b);
- Falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640º n.º 1, alínea a);
- Falta de especificação, nas conclusões ou na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
- Falta de indicação, nas conclusões ou na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, nas conclusões ou na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

Ora, analisadas as conclusões do recurso conclui-se que a Recorrente especifica os concretos pontos da matéria de facto que impugna e indica a decisão que, no seu entender deve ser proferida, e também aí refere os meios de prova em que baseia a impugnação da decisão da matéria de facto, procedendo no corpo das alegações à transcrição de excertos das declarações das testemunhas a que se refere.
Assim, e ainda que as alegações se não apresentem da forma mais perfeita, não entendemos existir falha de cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640º, cumprindo a indicação efectuada pela Recorrente minimamente as exigências que decorrem daquele preceito.
Entendemos por isso que se deverão considerar-se cumpridos pela Recorrente os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil, não sendo de rejeitar o recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo que iremos conhecer do mesmo.
Sustenta a Ré que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto ao ponto 4) dos factos provados e alínea c) dos factos não provados e que deve ser aditado um novo ponto à matéria de facto provada com a seguinte redacção: “Na estrada que provém da aldeia de ... e dá acesso à EN 213 e para quem pretende aceder a esta, existem os sinais de “Cedência de Passagem” e “STOP – Paragem Obrigatória”.
Relativamente ao aditamento deste facto adiantamos desde já que não vemos qualquer interesse e utilidade. Quanto ao sinal de “Cedência de Passagem” o mesmo não assume relevo no caso concreto pois que para quem circula no sentido do Autor, vindo da aldeia de ... e pretendendo aceder à EN 213 para ai passar a circular no sentido Cachão-Mirandela, existia efectivamente o sinal de “STOP – Paragem Obrigatória”, sendo que a existência deste consta já dos factos provados (cfr. pontos 13, 14 e 15 dos factos provados).

O ponto 4) dos factos provados tem a seguinte redação:

“4) Com efeito, o autor, que provinha da aldeia de ..., pela rua da ..., necessitando de, pelo menos, abrandar até quase parar, tomou a estrada nacional 213, no sentido Cachão-Mirandela, avançando depois de verificar, no espaço livre e visível que o seu posicionamento lhe permitia, que nenhum outro veículo circulava na faixa de rodagem e foi embatido quando já se encontrava completamente na dita estrada nacional, no lado direito da faixa de rodagem, tendo sido embatido na metade esquerda da parte traseira do XE, sem que pudesse evitar tal embate”.

Pretende a Ré que se julgue como não provado o ponto 4) quanto aos seguintes segmentos:

- “Para aceder à estrada o Autor respeitou a sinalização existente, designadamente fez paragem obrigatória no sinal STOP que ali se encontra”
- “e só avançou depois de verificar, no espaço livre e visível que o seu posicionamento lhe permitia, que nenhum outro veículo circulava na faixa de rodagem”
- “depois de já se encontrar completamente na estrada nacional, e na sua via de trânsito – isto é no lado direito da faixa de rodagem”.

E, em consonância, que seja dada como provada a factualidade constante do item c) dos “Factos Não Provados”, isto é, que “O Autor não respeitou nem parou no sinal STOP existente no acesso do entroncamento de ... (Rua ...) para a EN 213 e não adotou as demais cautelas inerentes a uma condução segura de quem está obrigado a ceder a passagem aos veículos que circulam na estrada onde vai passar a circular, designadamente não se certificou de que de qualquer dos lados da EN 213 não circulavam veículos a quem a sua entrada poderia perturbar a marcha”.
Invoca para o efeito os elementos objetivos e estradais constantes dos autos, bem como os depoimentos das 2 testemunhas presenciais do acidente: o condutor do veículo seguro, a testemunha F. M., e seu irmão A. M., que seguia também no veículo.
Analisemos então os motivos da discordância da Recorrente começando por referir que não consta do ponto 4) dos factos provados o segmento indicado pela Recorrente de que “para aceder à estrada o Autor respeitou a sinalização existente, designadamente fez paragem obrigatória no sinal STOP que ali se encontra”, não se percebendo, por isso, o sentido da sua pretensão de que seja considerado como não provado.
Por outro lado, não podemos deixar de salientar que o que a Recorrente pretende, ao fim e ao cabo, é que seja dada como provada a sua versão dos factos respeitante às circunstâncias em que ocorreu o acidente dos autos, designadamente que o Autor não respeitou o sinal de STOP, não se certificando que na EN 213 circulavam veículos, invadindo a via por onde circulava o veículo “AD”, cortando-lhe a linha de marcha.
Analisando a motivação exposta pelo tribunal a quo, e desde já antecipando a nossa decisão, entendemos não assistir razão à apelante sendo que as razões invocadas radicam essencialmente na sua discordância relativamente à convicção do Tribunal a quo, esgrimindo argumentos no sentido de dever ser dada credibilidade à versão resultante dos depoimentos das testemunhas por si indicadas, F. M. e A. M..
O tribunal a quo, na análise da prova produzida em audiência, equacionou a prova testemunhal produzida bem como a prova documental constante dos autos e a inspeção que levou a cabo ao local, considerando ainda as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador. E fê-lo de forma crítica e fundamentada, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão, designadamente porque não deu mais credibilidade às declarações das testemunhas indicadas pela Ré, esclarecendo de forma fundamentada os motivos da opção tomada perante a prova produzida.
Ora, relativamente à prova, entendemos que quer na 1.ª Instância, quer na Relação, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios, em particular o da livre apreciação da prova consagrado no artigo 607º n.º 5 do Código de Processo Civil.
Prevê este preceito que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”; tal resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º).
Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, página 384) “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, página 435 a 436). Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É claro que a “livre apreciação da prova” não se traduz numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Obra Cit. página 655).
Por isso, o “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É por isso o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, que está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando este conclua, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância, quando “tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto” (acórdão deste Tribunal de 7/04/2016 disponível em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido salienta Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, página 609) que “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.

E na motivação constante da decisão recorrida o tribunal a quo esclareceu de forma crítica e fundamentada, e através de raciocínio lógico, a forma como formou a sua convicção, e indicou especificada e justificadamente os fundamentos decisivos para a formação da mesma, analisando as declarações que foram proferidas pelas testemunhas ouvidas em audiência, designadamente no confronto com os demais elementos probatórios (prova documental e inspeção ao local), conforme se pode ler na decisão recorrida:

“Vejamos, agora, o vertido em 4), salientando-se, desde já, ser absolutamente consensual que o autor provinha do entroncamento, descendo a Rua que, no local de constatou chamar Rua da ..., havendo divergências quanto ao (des)respeito do sinal STOP por parte do autor e quanto à localização do veículo do autor quando foi avistado pelo condutor do AD.
A este respeito, temos que o Tribunal se confrontou com a versão do autor, que assegura ter respeitado o sinal STOP e que, aliás, seria impossível não o fazer ou, pelo menos, abrandar quase até parar, por força da configuração da via. Esta alegação foi corroborada pelos Cabos da GNR inquiridos e, mais do que isso, o Tribunal teve oportunidade de percecionar no local, constatando que um veículo que ali circulava teve precisamente de o fazer e a razão é simples: sem parar ou quase parar, a forte inclinação da via torna altamente provável que os veículos embatam por baixo no pavimento.
A perceção do Tribunal no local permite, igualmente, assentar que o espaço livre e visível de que dispunha o autor era extremamente limitado, como o auto de inspeção e as fotografias evidenciam, e que era absolutamente impossível que o condutor do AD tenha, como afirma, acompanhado o trajeto do autor a descer a Rua da ... e a não respeitar o sinal de STOP.
Com efeito, além da fortíssima inclinação, a Rua da ... é ladeada, à direita no sentido ...-EN 213 por um valado e vegetação que impossibilitam completamente a visibilidade da aludida rua para a EN (salvo no exato ponto em que desemboca na 213) e, logicamente, oculta igualmente quem ali circula de quem circule na EN 213.
Não se perca de vista que, por ocasião da inspeção e quando o Tribunal descia a Rua da ... só se apercebeu da passagem de um pesado de passageiros no exato momento em que passou na EN 213 em frente à Rua da ....
O condutor do AD teria, isso sim, visibilidade se e quando o autor estivesse a cerca de 14 metros do STOP que antecede a saída do entroncamento (sendo que o STOP, para quem circule na EN 213 e como o Tribunal constatou era visível a apenas cerca de 77 metros), o que deixaria muito pouco tempo para permitir que o autor percorresse esses 14 metros, abrandasse, no mínimo, como não podia ter deixado de fazer, e entrar na EN 213, em moldes tais que o condutor do AD lhe embateu no lado esquerdo da traseira, sobretudo tendo presente que há rastos de travagem com cerca de 35 metros (a que aludiram ambos os Cabos da GNR, embora em moldes diversos quanto ao traçado concreto e está vertido no documento de fls. 6-8) e é necessário contar com o tempo que mediou entre o momento em que F. M. viu o XE e o momento em que iniciou a travagem.
O local onde o XE apresenta danos e evidência de embate (traseira, lado esquerdo, afetando a lateral), são muito mais compatíveis com a hipótese de já estar o XE completamente na hemi faixa de rodagem direita (sentido Cachão-Mirandela), do que com a possibilidade de não estar. Estivesse o XE a adentrar e os danos ter-se-iam produzido ou na lateral direita, ou no canto traseiro direito de tal viatura.
Certo é que, não podendo este Tribunal considerar inequivocamente provado que autor respeitou o STOP, porque apenas ele o afirma, e é necessariamente interessado, menos ainda poderá dar como provado que não respeitou tal sinalética, quer porque o local exige que, pelo menos quase se pare a marcha, quer principalmente porque a versão do condutor do AD e do seu irmão, A. M., é absolutamente inverosímil à luz das condições que o Tribunal pode constatar existirem no local, sendo-o, ainda, quando confrontados os depoimentos de ambos com o da terceira ocupante do AD V. G., que negou ter-se apercebido de qualquer situação de embate eminente, que os outros relataram ou tê-los ouvido dizer o que quer que fosse”.
Ouvidos os depoimentos das testemunhas ora indicadas pela Recorrente, e considerando os demais elementos de prova, designadamente os depoimentos das demais testemunhas, o aditamento à participação de acidente de viação (documento de fls. 6 a 8) e a inspeção ao local (ata de fls. 57 a 58), bem como as fotografias (a fls. 59 a 73) não entendemos que se possa concluir que a prova produzida aponta em sentido diverso ou impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª Instância.
É que a prova tem de ser analisada na sua globalidade e de forma crítica, não bastando que algumas testemunhas prestem declarações no sentido da pretensão dos recorrentes.
E o tribunal a quo, analisando o depoimento das testemunhas indicadas pela Recorrente e a forma como o prestaram, esclareceu de forma fundamentada porque considerou a sua versão não credível.
E, na verdade, as declarações das duas testemunhas indicadas pela Recorrente não só não se encontram em sintonia com as da testemunha V. G., que também seguia no veículo “AD” e que, tal como se afirma na decisão recorrida, não confirmou ter-se apercebido de qualquer situação de embate eminente ou ter ouvido aqueles dizer o que quer que fosse, como não encontram sustentação nos demais elementos de prova, considerando desde logo a particular configuração do local, mas também os danos apresentados pelo veículo do Autor que foi embatido na traseira, lado esquerdo.
Tal como afirmado pelo tribunal a quo tais danos são mais compatíveis com a hipótese de já estar o XE completamente na hemi faixa de rodagem direita, atento o sentido Cachão-Mirandela, do que com a possibilidade de não estar; de facto, tendo também por base as regras de experiência comum, se o XE estivesse a entrar na via, de forma repentina e inesperada, os danos ter-se-iam produzido ou na lateral direita, ou no canto traseiro direito de tal viatura.
Não entendemos, por isso, que, em face da prova produzida se possa considerar provado que o Autor não respeitou nem parou no sinal STOP existente e nem se certificou de que de qualquer dos lados da EN 213 não circulavam veículos a quem a sua entrada poderia perturbar a marcha pois que tal é a versão resultante das referidas testemunhas que, como vimos, não se mostra credível.
E, se de facto, o tribunal a quo entendeu não poder formar convicção segura e inequívoca de que o Autor parou por nesse sentido ter apenas as suas declarações, a verdade é que, considerando todos os elementos de prova e em particular a configuração do local, não vemos que deva dar-se como não provado que o Autor “só avançou depois de verificar, no espaço livre e visível que o seu posicionamento lhe permitia, que nenhum outro veículo circulava na faixa de rodagem” conforme pretende a Recorrente.
Não podemos ainda esquecer que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, ao que acresce o conhecimento privilegiado do local por força da inspeção realizada, e que no caso concreto assume particular relevo.
Por último e quanto ao segmento - “depois de já se encontrar completamente na estrada nacional, e na sua via de trânsito – isto é no lado direito da faixa de rodagem” – também não vemos como possa ser o mesmo julgado não provado.
De facto, a faixa de rodagem é a parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos e é composta por uma ou mais vias de trânsito; considerando desde logo os elementos objetivos constantes dos autos, como é o referido aditamento à participação do acidente de viação, conclui-se que o veículo do Autor já se encontrava na estrada nacional e na sua via de trânsito, no lado direito da faixa de rodagem, não estando aqui em causa se se encontrava mais próximo do eixo da via ou da berma.

Pelo exposto, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pela 1ª Instância, conforme com a prova constante dos autos, mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, começando por analisar os demais fundamentos constantes da apelação da Ré, designadamente se a conduta do Autor é causa adequada e exclusiva da eclosão do acidente dos autos e se é devida ao Autor indemnização pelo dano da privação do uso e qual o seu montante.
E, mantendo-se o quadro factual julgado provado, ter-se-á de manter, igualmente, a decisão jurídica da causa na parte em que julgou que a conduta do condutor do veículo segurado na Ré determinante para a ocorrência do acidente e a sua culpa e a responsabilidade da Ré pela obrigação de indemnizar o Autor.
De facto, tendo improcedido a pretensão da Recorrente quanto à reapreciação da matéria de facto (e a que fosse dado como provado que o Autor não respeitou nem parou no sinal STOP existente e nem se certificou de que de qualquer dos lados da EN 213 não circulavam veículos a quem a sua entrada poderia perturbar a marcha) e mantendo-se a mesma inalterada tem de se manter a decisão proferida uma vez que a sua alteração no sentido pretendido pela Recorrente, mesmo na perspetiva desta, pressupunha a alteração da decisão de facto, pelo que, não tendo procedido a sua pretensão de ver alterada a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, terá de se manter a decisão por este proferida quanto à responsabilidade da Ré pela reparação dos danos que o veículo XE sofreu na sequência do acidente.
A Recorrente coloca, contudo, em causa ser devida ao Autor indemnização pelo dano da privação do uso, ou a entender-se que o é, o respetivo montante.
O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem-se firmado, maioritariamente segundo julgamos, no sentido de considerar tal dano como dano autónomo indemnizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para os fins de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela privação deixou de poder fazê-lo (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Lisboa, de 05/07/2018, relator Conselheiro Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt) o qual, não podendo ser averiguado o valor exato do dano deverá ser determinado com base na equidade (artigo 566º n.º 3 do Código Civil).
Há quem venha defendendo na jurisprudência posição ainda mais favorável para o lesado atribuindo à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente de ser feita prova de que o veículo é efetivamente usado de forma habitual (v. Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso).

No caso em apreço, e atento o quadro factual que se encontra provado, não se coloca sequer tal questão quanto à ressarcibilidade deste dano.
De facto, e quanto à ressarcibilidade do dano da privação do uso em casos como o dos autos, em que o veículo é usado habitualmente pelo Autor nas suas deslocações diárias pessoais (cfr. ponto 18 dos factos provados), vem a mesma sendo admitida sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo foi causa de despesas acrescidas, sendo certo que no caso concreto vem ainda demonstrado que o Autor teve de se socorrer de transportes públicos e boleia de desconhecidos (ponto 16 dos factos provados).
Assim, quando esteja em causa a privação do uso de um veículo danificado num acidente de viação, bastará apenas que resulte dos autos que o seu proprietário o usava habitualmente para que este possa exigir uma indemnização a esse título, sem ter de fazer provar concreta de efetivos prejuízos.
Entendemos, por isso, que no caso dos autos não pode deixar de se reconhecer ao Autor o direito a obter uma indemnização relacionada com a privação do uso do seu veículo automóvel, não obstando a tal o facto do Autor possuir um outro veículo posto que este é habitualmente conduzido pela esposa e pelo filho, e não pelo Autor que usava o veículo sinistrado habitualmente nas suas deslocações diárias, assim tendo demonstrado a existência de uma concreta utilização relevante da coisa.
Uma vez assente ter o Autor direito a receber uma indemnização decorrente da privação do uso do seu veículo importa agora proceder à quantificação dessa indemnização, sendo que para o efeito terá de recorrer-se à equidade uma vez que não é possível determinar o valor exato dos danos, tal como dispõe o artigo 566º n.º 3 do Código Civil.
O tribunal a quo considerou que “o autor não provou qualquer valor de aluguer diário de viatura, nem custos acrescidos concretos decorrentes da privação do uso, pelo que resta ao Tribunal fixar o quantitativo diário equitativamente. Assim, na falta da prova das despesas concretas decorrentes dessa indisponibilidade, e das condições específicas da utilização do veículo pelo autor, mas não deixando de ter presente que a viatura automóvel constitui um bem de consumo amplamente utilizado no dia a dia da generalidade das pessoas, mas considerando, por outro lado, o tipo de carro em causa e que serviria apenas para as deslocações de trabalho, já que não transportava a família do autor (com, pelo menos, 3 elementos), configura-se como equilibrado fixar o montante indemnizatório em € 8,50 por cada dia de privação do uso (onde não se inclui, obviamente, o custo do combustível ou de eventuais manutenções, os quais o autor teria sempre que suportar no seu veículo, bem como o lucro da empresa de rent-a-car, uma vez não demonstrado o efetivo aluguer de qualquer viatura), para a utilização do veículo pelo autor e pelo seu agregado, valor que se liquida, na presente data, no montante global de € 6.162,50 (€ 8,50 x 725 dias)”.
Discorda a Recorrente do montante arbitrado pelo Tribunal a quo a este título uma vez que o Autor em Abril de 2018 adquiriu um outro veículo em sua substituição deixando de existir privação do uso e que o valor diário não pode ser superior a €5,00.
Importa, por isso, apurar em primeiro lugar até quando deve ser arbitrada uma indemnização pela privação do uso, e determinar ainda se deve ter-se por adequado e equitativo o valor diário de €8,50 fixado pelo tribunal a quo.
Conforme decorre dos factos provados o acidente ocorreu em 23/09/2017 e o Autor encontra-se privado do uso do veículo XE desde essa altura tendo vindo a adquirir em abril de 2018 outro veículo.
Trata-se de um veículo Peugeot, modelo 206, do ano de 2004, comercial, de valor não inferior a €2.700,00, usado pelo Autor nas suas deslocações diárias pessoais.
Relativamente ao valor diário da indemnização correspondente ao dano pela privação do uso do veículo o tribunal a quo fundamenta o valor atribuído tendo por base as regras de equidade; para o efeito considerou não ter sido demonstrado o efetivo aluguer de qualquer viatura, as características do veículo e a destinação dada ao mesmo, entendendo adequado atribuir o quantitativo diário de €8,50.
Afigura-se-nos correto o critério seguido pelo tribunal a quo bem como equilibrado o valor encontrado, tendo em conta o que decorre da factualidade provada mas também atendendo aos padrões seguidos em decisões jurisprudenciais recentes; de facto estando em causa a fixação de uma indemnização com recurso a um critério de equidade, a mesma deverá enquadrar-se dentro dos padrões definidos pela jurisprudência para casos idênticos.
Assim, e a título meramente exemplificativo, podemos aqui citar o recente acórdão desta Relação de 09/04/2019 (relator desembargador Paulo Reis) que julgou mostrar-se conforme à equidade fixar a indemnização devida no montante de €20,00 por dia, tal como fixado na 1.ª instância, relativamente à privação do uso de um veículo ligeiro de passageiros marca Peugeot, modelo 5008 1.6 HDI Business Line, que o autor utilizava o veículo para as suas deslocações para o trabalho; neste acórdão são citados os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 28/04/2009 (Relator Conselheiro Mário Cruz) onde foi considerado que durante 2 meses e 4 dias, o autor e o seu agregado familiar esteve privado de viatura própria nas deslocações pessoais diárias e de fins-de-semana, tendo necessitado de se socorrer de transportes públicos ou de usar um veículo cedido gratuitamente por um familiar, sofrendo, para além de incómodos, uma situação de desconforto ou desgosto, e que o custo do aluguer de um veículo com as características do sinistrado ascenderia a quantia não inferior a €25,00/dia, de 16/06/2009 (Relator Conselheiro Silva Salazar) em que se provou que o veículo do autor, devido a acidente ocorrido em 08/02/2005, ficou impossibilitado de circular, sendo que o autor o utilizava nas suas deslocações diárias, e que o aluguer diário de um veículo de idêntica classe custa cerca de €24,00 por dia, considerando-se como suficiente para compensar a privação do uso de veículo automóvel uma quantia média diária de €15,00 e de 10/05/2011 (Relator Conselheiro João Camilo), em que se considerou que devendo o valor dessa privação ser calculado de acordo com a equidade, cumpre ver, além do mais, as importâncias que para este efeito têm sido fixadas no STJ, que orçam a €25,00 diários, para veículos automóveis.
No Acórdão desta Relação de 26/10/2017 (Relator desembargador José Cravo) foi julgado exagerado o montante indemnizatório fixado na sentença de €10,00/dia e pecar por defeito o montante proposto pela apelante de €5,00/dia, antes se revelando equilibrado fixar em €7,50/dia o valor pela privação do uso do veículo, até ao pagamento da quantia fixada a título de indemnização pela perda total do veículo e até ao montante máximo de €7.299,90.
No acórdão desta Relação de 11/07/2017 (Relatora Desembargadora Maria dos Anjos S. Melo Nogueira) foi considerado que “o montante diário que têm vindo a ser fixado em casos como o dos autos, mencionando-se a título de exemplo o Ac. do STJ de 09.03.2010 e o desta Relação de 27/10/16, disponíveis em www.dgsi.pt ronda os €10,00 euros diários”.
E no acórdão desta Relação de 21/09/2017 (Relatora Desembargadora Helena Melo, todos os acórdãos disponíveis em www.dsgi.pt) afirma-se que “o valor diário de 10,00 euros dia foi tido por adequado no Ac. deste Tribunal da Relação de 27.10.2016 – proc. 224/14, onde são citados no mesmo sentido, designadamente, o Ac. da Rel. do Porto de 07.09.2010 e o Ac. da Rel. de Coimbra de 06-03-2012 e no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.05.15 – Proc. 1222/07 no qual foi considerada também a quantia de €10,00 por dia. E muito recentemente, também no Ac. desta Relação de 04.04.2017, proferido no proc. 474/13, se considerou este valor como adequado. Também nós, entendemos como equilibrado o valor de 10,00, em consonância com o entendido nas referidas decisões jurisprudenciais, montante que se mostra fixado de acordo coma equidade, tendo em atenção as concretas circunstâncias deste caso, pelo que reduzimos o valor da indemnização pela privação do uso, para a quantia de 10,00/euros dia, pelo que é devida uma indemnização no montante de 10.090,00, desde a data do sinistro até à data da propositura da ação”.

Assim, sendo a atribuição da indemnização pela privação do uso calculada mediante a ponderação da reconstituição que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do artigo 562º do Código Civil e com recurso à equidade, nos termos do artigo 566º n.º 3, afigura-se-nos equilibrado e enquadrado dentro dos padrões definidos pela jurisprudência para casos idênticos o valor de €8,50 por cada dia de privação do uso fixado em 1ª Instância.
Contudo, já entendemos que o montante da indemnização devida a este título deverá ter como limite o momento da aquisição do veículo pelo Autor que sabemos ter ocorrido em abril de 2018 (ponto 16 dos factos provados); de facto, se conforme referimos entendemos que basta que resulte dos autos que o proprietário do veículo o usava habitualmente para que este possa exigir uma indemnização pela privação do seu uso, sem ter de fazer provar concreta de efetivos prejuízos, a verdade é que com a aquisição do veículo o Autor passou a ter um veículo que, substituindo o sinistrado, satisfaz as suas necessidades quanto às deslocações diárias, não se justificando a atribuição a partir desse momento de uma indemnização que não tenha já por base concretos e efetivos prejuízos, o que não decorre dos autos.
Aliás, fica por esclarecer o motivo pelo qual o Autor não procedeu à reparação do veículo, antes optando pela aquisição de um novo em abril de 2018, quando em outubro de 2018 instaurou a presente ação peticionando a condenação da Ré a suportar a reparação dos danos sofridos pelo veículo. E, atente-se, tivesse o Autor optado pela reparação dos danos (ainda que a suas expensas), também a indemnização pela privação do uso do veículo seria de atribuir até a essa reparação; julgamos que idêntico raciocínio se terá de fazer relativamente à circunstância do Autor ter adquirido um novo veículo.
Assim, a indemnização devida pelo dano da privação do uso deverá ser fixada tendo por base a data em que ocorreu o acidente (23/09/2017) e o momento em que o Autor adquiriu um novo veículo (abril de 2018), pelo que, por se entender conforme à equidade e enquadrar-se nos valores jurisprudenciais aplicados em casos similares, afigura-se-nos adequado fixar a indemnização pelo dano da privação do uso do veículo em €1.700,00, correspondente a um período de 200 dias (considerando os meses de outubro, novembro e dezembro de 2017, janeiro, fevereiro e março de 2018, a ocorrência do acidente em 23/09/2017 e não resultando dos factos provados a data concreta da aquisição em abril de 2018), em vez dos €6.162,50 arbitrados pelo tribunal a quo.
As custas deste recurso são da responsabilidade da Ré/Recorrente e do Autor/Recorrido na proporção, respetivamente de 2/3 e 1/3, e as custas da ação são da responsabilidade do Autor e da Ré na proporção do respetivo decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
***
SUMÁRIO (artigo 663º nº. 7 do Código do Processo Civil):

I - A privação do uso de um veículo, ainda que desacompanhada de um prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano ressarcível, pelo que o facto de o veículo sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano profissional e na sua vida particular não pode deixar de determinar a atribuição de uma indemnização pelo dano da privação do uso no período em que perdurou a privação do uso da viatura, in casu, até à aquisição de uma nova viatura pelo lesado.
II. A determinação do valor dessa indemnização, que não implica um qualquer prejuízo patrimonial concreto, deve ser fixada com recurso a critérios de equidade, nos termos do artigo 566º n.º 3 do Código Civil.
***

IV. Decisão

Pelo exposto, no parcial provimento do recurso, acordam os juízes desta Relação em revogar parcialmente a sentença recorrida no que concerne ao valor arbitrado a título de indemnização pelo dano da privação do uso, condenando a Ré a pagar ao Autor a esse título a quantia de €1.700,00 (mil e setecentos euros), confirmando-se no mais a sentença recorrida.
As custas do recurso são da responsabilidade da Ré/Recorrente e do Autor/Recorrido na proporção, respetivamente de 2/3 e 1/3, e as custas da ação são da responsabilidade do Autor e da Ré na proporção do respetivo decaimento.
Guimarães, 30 de janeiro de 2020
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Margarida Sousa (2ª Adjunta)