Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3388/15.5T8BRG.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
SOCIEDADES COMERCIAIS
GARANTIA PESSOAL
GARANTIA REAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A atendibilidade do depoimento indireto em processo civil depende, designadamente, da sua concreta relevância, decorrente dos demais meios de prova, da livre apreciação da prova, conjugada com as regras da experiência;

2) Só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respetivos bens;

3) Considera-se contrária ao fim das sociedades a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante e, conforme vem sendo entendido maioritariamente pela jurisprudência, devendo o ato subsistir incólume se a sociedade garante não lograr provar a inexistência do interesse próprio da sociedade;

4) É proibido à sociedade prestar garantias a obrigações contraídas pelos administradores, sob pena de nulidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) FB - SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, SA., veio intentar ação com processo comum contra Aires A. e Autoridade Tributária e Aduaneira, onde conclui pedindo que a ação seja julgada provada e procedente e, em consequência, seja declarada a invalidade dos títulos de constituição de hipoteca ajuizados, ora por enfermarem de nulidade, ora de anulabilidade, ora por serem ineficazes relativamente à autora.

O MP, em representação do Estado – Autoridade Tributária e Aduaneira, apresentou contestação onde conclui dever a ação ser julgada não provada e improcedente e o réu Estado absolvido do pedido.


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Realizou-se audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

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Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que decidiu julgar a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolver os réus do pedido formulado.

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B) Inconformada com esta decisão, veio a autora FB - SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, SA., interpor recurso, através do seu requerimento de fls. 74 vº e seguintes, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 111).

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Nas alegações de recurso da apelante FB - SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, SA., são formuladas as seguintes conclusões:

1. Afigura-se que a sentença proferida não terá, salvo o devido respeito, enquadrado acertadamente de jure a questão posta à apreciação do Tribunal, assim como não terá acertadamente considerado como «não provados» os factos que como tal considerou.

2. Em termos factuais e em síntese, o anterior administrador da autora, na pendência desse seu mandato, por via de dois instrumentos notariais, em que outorgou por si e em representação dela autora, deu de garantia à Administração Tributária um bem imóvel pertença da autora, em ordem a obter a suspensão de execuções fiscais em que ele era pessoalmente executado.

3. A sentença recorrida julgou a ação improcedente, basicamente centrando-se no art. 6º nº 3 do CSC, que considerou ser aplicável ao caso, na medida em que apresentou o argumento de que cabia à autora, ora recorrente, o ónus de provar que a prestação de garantias por parte do anterior administrador dela autora não o teria sido no interesse da sociedade e que ela não teria feito essa prova, assim como considerou que a autora teria estado devidamente representada na outorga das garantias face ao art. 406º al. f) do mesmo diploma.

O que por forma alguma se tratam de argumentos rigorosos, aliás em várias sedes:

I) 4. No objeto social da autora não está incluída a oneração de imóveis da autora (cfr. doc. 1 junto à p.i.) – que foi aquilo a que o então administrador, ora 1º réu e co-recorrido, procedeu pela outorga dos referidos títulos.

5. Ao administrador (único, se a administração não for plural) compete representar a sociedade nos seus atos e contratos, «gerir as atividades da sociedade», em que ela intervenha que estejam compreendidos no respetivo objeto social (salvo autorização noutro sentido da assembleia geral – cfr. art. 405º nº 1 do CSC).

6. Ora, a oficial pública que presidiu à outorga de ambos os títulos deixou neles consignado que «A qualidade e suficiência dos poderes invocados pelo representante da parte hipotecante foram verificados por consulta hoje ao Portal da Empresa – Certidão Permanente com o código de acesso válido (…)».

7. Todavia, tal não podia corresponder nem corresponde à verdade, pois que, não constando do objeto social da autora a «oneração» de imóveis, segue-se que quer a afirmação do ora 1º Réu, quer sobretudo a suposta constatação afirmada pela oficial pública, são afirmações falsas – que, como tal, geram a nulidade dos títulos em causa (Cód. Notariado, art. 71º nº 2).

8. Na esteira do entendido pelo oficial público, a sentença recorrida considerou que o administrador detinha poderes para outorgar os títulos e que por isso estes seriam válidos, tendo principiado por invocar o art. 6º nº 3 do CSC, que estabelece que «considera-se contrário ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo» (destaque nosso).

9. E em seguida, em manifesto lapso, a sentença traz à colação o art. 406º al. f) do mesmo Código, ao afirmar que este consigna que compete ao conselho de administração (ou, como era o caso, ao administrador único) «a prestação de cauções ou de garantias pessoais ou reais pela sociedade», daí tendo extraído a suposta legitimidade do administrador ao ter feito o que fez;

10. quando, na realidade, este último preceito se reporta à prestação de garantias em dívidas da própria sociedade e de que esta seja por isso a direta beneficiária, pois no preceito «Estão em causa, em primeiro lugar, cauções e garantias relativas dívidas da própria sociedade (…)» (Jorge M. Coutinho de Abreu (Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, 2013, Vol. VI, pág. 415) – que não, pois, de terceiros, como era o caso.

11. E como não era o caso, não se trata de asserção acertada a feita na decisão recorrida de que os aludidos atos do administrador estariam legitimados pelo citado preceito, devendo, desde logo por esta via, considerarem-se os títulos, e por lógica implicância os negócios que eles titulam, nulos, por falta de poderes de quem deles se apresentou a outorgar.

Sem prescindir,

II) 12. Como se disse, a sentença recorrida centrou-se na questão de que, quando uma sociedade celebra um negócio jurídico com outra, caberia sobre aquela o ónus de provar que a prestação de garantias por parte do seu administrador não o teria sido no interesse da sociedade por ele administrada (e que, no caso, a autora não teria feito essa prova).

13. A referida questão, versada na sentença recorrida (que, como se verá, nem é a aqui em causa), que é referida como controversa, foi nela exposta citando em seu abono o Acórdão do STJ de 2013.05.28 (Proc. nº 300/04) e a doutrina no mesmo relatada (não seguindo tal doutrina, aliás, os respetivos considerandos nem a conclusão deles extraída).

14. Ora, tal Acórdão versava sobre uma situação de negócios entre duas sociedades, em que uma terceira sociedade se constituiu garante da devedora, situação essa completamente diferente à dos presentes autos e sem paralelismo com esta, não podendo merecer o mesmo tratamento:

15. Independentemente do conteúdo e finalidade dos títulos em causa (constituição de uma garantia), a relação contratual que ficou a constar dos mesmos não foi criada entre a sociedade e uma entidade estranha a ela, mas sim entre a sociedade e o seu administrador – o que faz toda diferença relativamente às situações a que o douto Acórdão se reporta, posto que o beneficiário da garantia nem sequer intervém na outorga.

16. O que conduz à constatação de que essa concessão de garantias a favor de um administrador sempre constituiria ato proibido, expressamente vedado pelo art. 397º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais e, como tal, nulo – independentemente da determinação de sobre quem impenderia o ónus da prova na situação contemplada no art. 6º nº 3 do mesmo Código.

17. Como refere Jorge M. Coutinho de Abreu (loc. cit., Vol. VI, pág. 327): «É assim vedada, sob pena de nulidade (cfr. o art. 294º do CCiv) a celebração de contratos de crédito em sentido amplo entre sociedade e administrador».

Por outro lado:

18. Afirma a sentença que, nos atos em questão, a sociedade «estava legalmente representada pelo seu administrador único», por – diz a sentença – «a prestação de garantias reais e pessoais é considerada matéria de gestão», mais referindo que «Decorre do disposto no art. 406º al. f) do CSC que compete ao conselho de administração deliberar (…) nomeadamente sobre a prestação de cauções e garantias pessoais ou reais pela sociedade».

19. E por o 1º réu ser à altura administrador único da autora, daí decorria, segundo a sentença, a «legal representação» da autora nos atos. Mas tal não é exato, salvo o devido respeito: citando novamente o Doutrinador atrás referido, a pág.s 328/9 da mesma obra: «Regressando ao nº 2 do art. 397º. Este preceito requer, para que os contratos entre sociedade e administrador não sejam nulos, autorização dada por deliberação do conselho de administração. Mas nem todas as sociedades anónimas têm ou têm de ter conselho de administração. As de estrutura tradicional e as estrutura dualística (…) podem ter um único administrador (art.s 278º, 2, 390º, 2, 424º, 2). Quid juris quando o administrador único de uma sociedade anónima (…) pretenda celebrar com a sociedade um contrato da espécie dos que entram no campo de aplicação do nº 2 do art. 397º?

E responde:

20. «Porque a ideia reguladora subjacente a essa norma é fazer intervir um órgão deliberativo autorizador para neutralizar o conflito de interesses, na impossibilidade de esse órgão ser o conselho de administração referido na norma, venho propondo assim: “Se a sociedade (com estrutura organizatória tradicional) tiver um só administrador (art. 390º, 2), parece exigível, além do parecer favorável do órgão fiscalizador, deliberação dos sócios autorizando o negócio» (no mesmo sentido, os doutrinadores e o Acórdão aí citados).`

21. Ou seja, ao contrário do afirmado na sentença recorrida, a sociedade autora não estava «legalmente representada pelo seu administrador único». O que também reforça a nulidade decorrente de o oficial público ter, ele também, consignado o inverso.

22. Conclui-se que a situação dos autos nada tem a ver com a versada no douto Acórdão e que a sentença recorrida subscreveu, pois que os mesmos se centram no art. 6º nº 3 do CSC, olvidando a situação concreta – negócio de garantia diretamente celebrado entre a sociedade e o seu administrador, negócio esse ab inicio ferido de nulidade, nos termos do art. 397º nº 1 do CSC.

23. Do exposto resulta também que o facto nº 1 «não provado» («Apenas mediante deliberação da Assembleia Geral da Autora poderiam ter sido atribuídos ao então administrador e aqui 1º réu os poderes que lhe permitissem onerar bens da Autora») padece de dois vícios: por um lado, tal afirmação resulta de uma interpretação inexacta do art. 406º al. f) do CSC – pois que, não constando do objeto social a oneração de imóveis para garantia de dívidas de terceiros, segue-se que apenas mediante deliberação da Assembleia Geral da autora poderiam ter sido atribuídos ao então administrador e aqui 1º réu os poderes que lhe permitissem onerar bens dela, não bastando a qualidade dele de administrador único para tornar válidos os atos.

24. E, por outro, a asserção versa sobre matéria de direito, quando a lei consigna que o Juiz deve declarar quais «os factos que julga provados e quais os que julga não provados» (CPC, art. 607º nº 3), não podendo fazer parte dos «factos provados» ou «não provados» conceitos de direito – pelo que deverá tal facto ser retirado da matéria dos «factos não provados».

III) 25. Ao expendido acresce que as outorgas dos títulos se traduzem em dois negócios consigo mesmo, tal como os define o art. 261º do Cód. Civil e, como tal, se não fossem nulos (que são), sempre seriam anuláveis – pois que, «no rigor dos princípios, os representantes não representam a pessoa coletiva: são parte integrante desta» (cfr. Ac. STJ de 2002.10.08, Proc. nº SJ200210080020431).

26. E acresce também que, tendo os negócios em que se traduz a emissão dos títulos sido outorgado sem que o respetivo outorgante dispusesse dos necessários poderes para o efeito, como era o caso, tal torna-os, se não nulos nem anuláveis, em ineficazes em relação à autora, face ao preceituado no art. 268º nº 1 do Cód. Civil.

IV) 27. Admitindo, unicamente por mera hipótese de raciocínio, que a situação dos autos teria um paralelismo com a constante Acórdão citado na sentença em seu abono ou seja, mesmo que estivéssemos perante a singela situação do art. 6º nº 3 do CSC, crê-se que a inexistência de «justificado interesse próprio» da sociedade aqui autora nos negócios em causa se encontra demonstrada nos autos:

28. Desde logo, consta, tanto dos títulos como dos ofícios requeridos à Administração Tributária que as garantias prestadas se destinavam a garantir dívidas, ora de «IRS», imposto a que as pessoas coletivas não estão submetidas e, como tal, nenhum interesse a autora poderia ter em assegurar, ora de «IVA», imposto a que as sociedades imobiliárias (como é o caso da autora) também o não estão e, como tal, nenhum interesse a autora poderia ter em assegurar tais tributos.

29. Sublinhando-se que, consoante consta dos títulos, o mandato do administrador 1º réu havia expirado à data da respetiva outorga, mantendo-se unicamente em vigor por não ter entretanto sido nomeado outro – pelo que também por aí se vê que a sociedade não poderia ter qualquer interesse próprio na prestação de garantias a dívidas de um administrador cessante.

30. Por outro lado, consta, tanto dos títulos como dos ofícios requeridos à Administração Tributária (fls. 10, 11vº e 54) que as garantias prestadas se destinavam a garantir, ora dívidas de «IRS», imposto a que as pessoas coletivas não estão submetidas, ora de «IVA», imposto a que as sociedades imobiliárias (como é o caso da autora) também o não estão e, como tal, nenhum interesse a autora poderia ter em assegurar tais tributos.

31. Por outro ainda, resulta do depoimento da testemunha Rui S., filho do atual administrador da autora, que a constatação da garantia prestada pelo aqui 1º réu constituiu uma surpresa, aliás desagradável, para esse administrador que lhe sucedeu, que à época dos atos era acionista da autora, apenas tendo tomado conhecimento da existência dessas onerações quando a autora, agora representada por ele, foi citada para os termos da execução fiscal.

32. Aos minutos 3:45 e seg.s do seu depoimento (gravação 201605031 44129_ 4959321_2870509), a testemunha afirma que tanto quanto sabe os estatutos da autora não permitiam onerar bens mesmo que fosse em vantagem da sociedade, muito menos para benefício do administrador;

33. aos minutos 5:15 refere que o 1º réu nunca pediu autorização para fazer essa oneração à assembleia geral, que esses atos foram um abuso (!) por parte dele 1º réu; aos minutos 07:00 e seg.s, como aos minutos 9:45 e seg.s, frisa a surpresa que constituiu para seu pai o recebimento da citação das Finanças – o que reforça a asserção de a autorização para os atos não ter sido requerida à assembleia geral, posto que sendo seu pai, à altura, acionista (qualidade referida pela testemunha mormente a minutos 01:00 e seg.s do seu depoimento), teria sabido se tivesse havido qualquer deliberação da assembleia nesse sentido.

34. Aos minutos 8:00 e seg.s, em resposta a pergunta do Ministério Público, a testemunha frisa que a sociedade não poderia ter qualquer interesse em garantir dívidas pessoais do seu então administrador, aqui 1º réu, nem mesmo sob a forma de gratificação, atitude que – afirma a testemunha – inexiste numa sociedade da natureza da da autora.

35. Sem prejuízo de tudo quanto atrás se deixou dito, destas circunstâncias se extrai que a sociedade autora demonstrou não ter colhido qualquer vantagem da oneração dos seu bens por parte do seu administrador infiel.

36. Pelo exposto, sem prejuízo da reapreciação da matéria de direito, conforme consta dos pontos I) a III) supra, em conformidade com o referido na parte final do ponto II), deverá ser retirado dos factos «não provados» o respetivo ponto 1.

37. Paralelamente, deverá alterar-se o ponto 2. dos mesmos factos no sentido de ser dado por provado que não existiu interesse próprio da autora na concessão das garantias – sendo certo que, com ou sem esta última alteração, sempre a acão deveria ter sido julgada procedente, nos termos peticionados.

38. Na sentença recorrida encontram-se interpretados e aplicados por forma inexata os normativos citados nas precedentes 3ª, 5ª, 7ª, 8ª, 9ª, 16ª, 18ª, 22ª, 23ª, 24ª, 25ª, 26ª e 27ª conclusões, impondo-se por isso a sua revogação.

Termina entendendo dever ser concedido provimento ao recurso, decretando-se a procedência da ação, em conformidade com as conclusões que antecedem.


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O MP apresentou resposta onde conclui entendendo:

- Encontrar-se corretamente decidida toda a matéria de facto provada e não provada, de acordo com os documentos 1, 2 e 3 juntos com a petição inicial, as informações do Serviço de Finanças de Esposende de 22-03-2016 e de 27-04-2016 e os depoimentos das testemunhas Rui S. e Jorge G..

- Não se demonstrou a inexistência do justificado interesse próprio da sociedade na prestação das garantias, devendo subsistir incólumes em relação a terceiros de boa-fé.

- Quando uma sociedade comercial preste garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades e pretenda obter a declaração de nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade garante tem de provar, para alcançar aquele objetivo, a inexistência de interesse próprio.

- Sendo totalmente correta a decisão, deve negar-se provimento ao recurso de apelação.


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C) Foram colhidos os vistos legais.

D) As questões a decidir no recurso são as de saber se:

1) Deverá ser alterada decisão relativa à matéria de facto apurada;

2) Se verificam as invocadas invalidades;

3) Deverá ser alterada a decisão jurídica da causa.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Resultou apurada a seguinte matéria de facto:

I. FACTOS PROVADOS

1. A autora é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste na compra para revenda de imóveis, negócios de compra e venda de imóveis, construção de imóveis, promoção imobiliária, gestão de imóveis próprios e prestação de serviços de administração imobiliária, compra e venda de máquinas têxteis, importação e exportação de produtos têxteis, comercialização de produtos têxteis e similares.

2. O 1º réu foi nomeado administrador único da autora, cargo que desempenhou desde 2007.09.20 até 2014.07.21.

3. O 1º réu, enquanto no exercício do referido cargo e agindo em representação da autora, constituiu a favor da Administração Tributária, duas hipotecas sobre um bem pertencente à autora, para garantia de dívidas de IVA, IRS e Coimas Fiscais.

4. O 1º réu, atuando em representação da autora, outorgou em 2013.03.14 e 2013.04.23 dois títulos de hipoteca na 2ª Conservatória do Registo Predial de Leiria, a favor da Administração Tributária, ora 2ª ré, apresentando a autora como hipotecante.

5. Tendo em ambos dado de garantia a fração autónoma designada pelas letras «HH», correspondente a uma habitação no 12º andar direito, apartamento nº P, a norte da caixa de escadas, no corpo principal, com entrada a nascente, do prédio urbano sito no Lugar de F, Concelho de Esposende, inscrito na matriz sob o artigo 12XX e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o nº JJJ, que era e é pertença da autora.

6. O primeiro título de hipoteca foi outorgado pelo 1º réu para garantia do pagamento integral em trinta e nove prestações mensais, de dívidas fiscais, respeitantes ao IRS e IVA dos anos 2008, 2009 e 2010, no valor global de trinta e um mil setecentos e quarenta euros e quarenta e seis cêntimos, valor este a que correspondem os processos de execuções fiscais nºs 03962012010389CC e 03962013010021TT.

7. E o segundo título outorgado depois pelo 1º réu, foi-o para «garantia do pagamento integral em vinte e quatro prestações mensais, de dívidas fiscais, respeitantes ao IRS e IVA dos anos 2008, 2009 e 2010, no valor global de trinta e três mil duzentos e noventa e nove euros e quarenta e seis cêntimos, valor este a que corresponde o processo de execução fiscal nº 03962013010042QQ e apensos.

8. As referidas hipotecas encontram-se registadas na referida Conservatória, pelas apresentações 57G, de 2013.03.14 e 91, de 2013.04.23.

9. A autora foi citada em 21 de maio de 2015, pelo Serviço de Finanças de Esposende, no âmbito do processo de execução fiscal nº 03962012010389CC e 03962013010021TT na qual lhe foi transmitida a constituição das referidas garantias e prestada a informação de que não fora paga qualquer prestação das dívidas fiscais em causa, assim como para pagar, na sua qualidade de garante.

II. FACTO NÃO PROVADO

1. Não existiu interesse próprio da autora na constituição das garantias.


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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

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C) O recurso visa a reapreciação da matéria de facto e da decisão propriamente jurídica da causa.

Quanto à matéria de facto, refere a apelante que o facto constante do ponto 1 dos factos não provados da sentença “apenas mediante deliberação da Assembleia Geral da autora poderiam ter sido atribuídos ao então administrador e aqui 1º réu os poderes que lhe permitissem onerar bens da autora” versa matéria de direito e, como tal não podia constar da matéria de facto apurada.

Tem razão a apelante, dado que a sentença deve conter, na fundamentação de facto, a enumeração dos factos que julga provados e aqueles que julga não provados, para além da análise crítica das provas (artigo 607º nº 3 e 4 NCPC).

Do que se trata na matéria de facto apurada – provada e não provada – é de valorar os factos relevantes para a decisão jurídica da causa e, portanto, apenas aí têm assento os factos e não matéria de direito, uma vez que a apreciação jurídica da causa, que igualmente deverá constar da sentença, tem lugar na fundamentação jurídica da causa que é, naturalmente, questão diversa da fundamentação de facto.

Pelas apontadas razões a matéria que consta do ponto 1 dos factos não provados terá de ser eliminada e o ponto 2 ser renumerado como ponto 1.

Entende ainda a apelante que o facto dado como não provado na sentença, onde se refere que “não existiu interesse próprio da autora na constituição das garantias” se deverá considerar como provado, invocando, para tanto o depoimento da testemunha Rui S., filho do atual administrador da autora, do qual entende que resultou que a constatação da garantia prestada pelo aqui 1º réu constituiu uma surpresa, aliás desagradável, para o administrador que lhe sucedeu, pai dessa testemunha, que, à época dos atos, era acionista da autora, apenas tendo tomado conhecimento da existência dessas onerações quando a autora, agora representada por ele, foi citada para os termos da execução fiscal, por incumprimento do 1º réu.

Refere ainda a apelante que a mencionada testemunha afirma que, tanto quanto sabe, os estatutos da autora não permitiam onerar bens mesmo que fosse em vantagem da sociedade, muito menos para benefício do administrador, que o 1º réu nunca pediu autorização para fazer essa oneração à assembleia geral, que esses atos foram um abuso por parte dele 1º réu, referindo a surpresa que constituiu para seu pai o recebimento da citação das Finanças – o que reforça a asserção de a autorização para os atos não ter sido requerida à assembleia geral, posto que sendo seu pai, à altura, acionista, teria sabido se tivesse havido qualquer deliberação da assembleia nesse sentido.

E – continua a apelante – em resposta a pergunta do Ministério Público, a testemunha frisa que a sociedade não poderia ter qualquer interesse em garantir dívidas pessoais do seu então administrador, aqui 1º réu, nem mesmo sob a forma de gratificação a este, atitude que – afirma a testemunha – inexiste numa sociedade da natureza da autora.

A partir daqui, conclui a apelante que a sociedade autora demonstrou não ter colhido qualquer vantagem da oneração dos seus bens, por parte do seu administrador infiel.

Ora, importa notar que conforme resulta do depoimento da referida testemunha Rui M. S. e não Rui S., como, por lapso, é apelidado nas alegações de recurso e na sentença, o mesmo não tem conhecimento direto dos factos sobre os quais depôs, uma vez que referiu e repetiu que teve conhecimento dos factos através do seu pai, atual administrador da autora, pelo que o seu conhecimento é apenas indireto, para além de ter emitido opiniões pessoais sobre a situação.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/02/2012, na apelação nº 1761/11.7TVLSB-B.L1-6 [www.dgsi.pt] refere-se que “como elucida o Prof. J. Alberto dos Reis, “A nossa lei assenta no pressuposto de que a função da testemunha é única e simplesmente narrar o facto.

O art.º 641º determina que a testemunha será interrogada sobre factos incluídos no questionário, articulados pela parte que a ofereceu, e deporá com precisão, indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos.

Portanto a testemunha é chamada para narrar ao tribunal os factos que tem conhecimento e para indicar a fonte desse conhecimento. Mais nada” [Código de Processo Civil anotado, Volume IV, Coimbra Editora, 1987, pp.327].

Àquela norma corresponde o atual nº 1 do art.º 638º do Código de Processo Civil [artigo 516º NCPC], mantendo no essencial aquele conteúdo e sentido.

Por outras palavras, a testemunha é chamada a referir as suas perceções de factos passados: o que viu, o que ouviu, o que sentiu, o que observou [cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 609].

Mas o que releva como prova por si trazida ao processo, é a parte objetiva dessa perceção, e já não a subjetiva, assim se excluindo a interpretação que a própria testemunha atribui aos factos.

Para além disso, não releva tão pouco o testemunho indireto, ou seja, o testemunho que foi obtido através de outrem e já contém em si uma versão e interpretação dos factos feitas por esse último.

Neste caso, o que a testemunha pode narrar é apenas o que lhe foi revelado e já não o que terá acontecido, porque esse conhecimento não foi captado por si.

Por conseguinte, o conhecimento direto sobre os factos é aquele que é adquirido pelo próprio, objetivamente, através dos sentidos, o que viu, o que ouviu, sentiu e observou.”

Ainda no domínio do anterior Código de Processo Civil, o Acórdão da Relação de Lisboa de 11/01/2011, na apelação 152/09.4TBPDL.L1-7 [www.dgsi.pt] refere que “a força probatória dos depoimentos é apreciada livremente pelo tribunal [artigos 396º do CC e 655º nº 1 do Código de Processo Civil (artigo 607º NCPC)].

A prova nunca é a certeza lógica das coisas, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica) - Manuel de Andrade, “Noções elementares de processo civil”, páginas 191 a 192.

A propósito da prova por testemunhas, afigura-se-nos importante rememorar os dois pólos que, em regra, se mostram aptos a condicionar o juízo valorativo que o decisor deve fazer, por conseguinte, a maior ou inferior aceitação do conteúdo de cada concreto depoimento.

Em 1º lugar, o patamar de fiabilidade ou credibilidade que cada testemunha mereça; com reflexo nos chamados costumes [artigo 635º nº 1 do Código de Processo Civil (artigo 513º)]; e que pretende apurar não mais do que os níveis de confiança a creditar à pessoa e ao conteúdo do que disser.

Em 2º lugar, os níveis daquilo que sabe quanto ao que importa apurar; aqui com reflexo na chamada razão de ciência, que o artigo 638º nº 1 do CPC, manda que seja, quanto possível, especificada e fundamentada; e que pretende apurar, para fixar o nível de aceitabilidade, a justificação para a posse dos conhecimentos, que se pretende que sejam exteriorizados em depoimento.”

“Em suma, tudo depende do patamar de convencimento a que conduza a articulação de todos estes instrumentos; se permite, ou não, superar a dúvida razoável e atingir o nível de segurança bastante, adequado à sua razoável probabilidade.

É a concretização do antes referido princípio da prova livre, de harmonia com o qual, e em contraposição ao princípio da prova legal, as provas se apreciam sem nenhuma escala de hierarquização, apenas de acordo com a convicção que gerem realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto controvertido - Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de março de 2001 in Colectânea de Jurisprudência XXVI-2-86.”

Conforme defende Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Testemunhal, na parte em que se refere ao depoimento indireto em processo civil, a “argumentação abrange também a relevância e a atendibilidade do depoimento indireto na precisa medida em que, nas situações insuscetíveis de outros meios de prova, o julgador apenas se poderá socorrer das declarações de parte e das testemunhas indiretas.

Deste modo, e no limite, admitimos que o juiz possa fundar a sua convicção quanto a tal tipo de factualidade apenas nas declarações de parte e/ou nos depoimentos indiretos.

Necessário é que a valoração dos mesmos, feita segundo as singularidades do caso concreto e as máximas da experiência convocáveis, permita ao julgador atingir o patamar da convicção suficiente, sendo a valoração plasmada numa explicitação racional e percetível da convicção construída.”

Conforme se referiu, a testemunha Rui M. S., não tem conhecimento direto dos factos sobre os quais depôs, apenas deles conhecendo através do seu pai, que lhos transmitiu, a que acresce o facto de ter emitido opiniões pessoais sobre a situação.

Há que dizer que, atenta a atual estrutura do nosso sistema processual civil, não estava o pai da testemunha Rui M. S., impedido de prestar declarações sobre os factos de que tinha conhecimento direto, não havendo razões substanciais que justifiquem a especial valoração do depoimento da testemunha Rui S. relativamente, a tais factos.

E a existência de tal impedimento – a impossibilidade de audição da parte a quem foi ouvido dizer, designadamente, sendo parte no processo, deixou de existir, inequivocamente, com o Novo Código de Processo Civil, ao consagrar expressamente a possibilidade de prestação de declarações de parte no artigo 466º NCPC – para alguns, tem sido a razão que justificava a consideração do depoimento indireto, à mingua de outros meios de prova que, então se invocava, para tanto.

Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/05/2014, na apelação nº 3069/06.0TBALM.L2-2 (www.dgsi.pt) que “comummente a testemunha que presta depoimento indireto é designada de testemunha de ouvir-dizer” [Luís Filipe de Sousa, in “Prova testemunhal”, 2013, Almedina, pág. 177].

E, inexistindo em processo civil norma expressa equivalente à do art.º 129º do Código de Processo Penal, ponto é que, como referia Alberto dos Reis [“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, pág. 358] “o juiz pode formar a sua convicção através do depoimento de testemunha auricular e em sentido contrário ao do depoimento de testemunha ocular”.

Considerando Lebre de Freitas [“Introdução ao processo civil…”, Coimbra Editora, 1996, pág. 156] que “não está excluída a inquirição da «testemunha de ouvir dizer», mas o depoimento daquela de quem ouviu o relato dos factos a provar tem maior valor probatório”.

Também Luís Filipe Pires de Sousa [op. cit., pág. 197] concluindo que “não pode ser afastada a admissibilidade da testemunha indireta porquanto tal colidiria com um sistema misto, mas em que a livre apreciação da prova é preponderante”.

Mas, tudo isto, sem prejuízo de existirem “factos com relevância processual que são, pela sua própria natureza e condicionalismo, insuscetíveis de prova testemunhal direta, de prova documental, inspeção judicial e mesmo de prova pericial.

Neste tipo de condicionalismos, os únicos meios probatórios admissíveis são as declarações de parte (artigo 466º do atual Código de Processo Civil) e as testemunhas indiretas.

A propósito da admissibilidade da declarações de parte com factos favoráveis ao declarante em situações insuscetíveis de outros meios de prova, Remédio Marques assinala que "(…) a recusa, nestas raras eventualidades, em admitir e valorar livremente ou apenas como base de presunções judiciais as declarações favoráveis ao autor, volve-se, desde logo, numa concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro do direito de acesso aos tribunais e ao direito e de uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20º nº 1 da Constituição)."

Acompanhamos sem reservas este raciocínio, sendo que - no nosso entender - esta argumentação abrange também a relevância e a atendibilidade do depoimento indireto na precisa medida em que, nas situações insuscetíveis de outros meios de prova, o julgador apenas se poderá socorrer das declarações de parte e das testemunhas indiretas.

Deste modo, e no limite, admitimos que o juiz possa fundar a sua convicção quanto a tal tipo de factualidade apenas nas declarações de parte e/ou nos depoimentos indiretos.

Necessário é que a valoração dos mesmos, feita segundo as singularidades do caso concreto e as máximas da experiência convocáveis, permita ao julgador atingir o patamar da convicção suficiente” [Luís Filipe de Sousa, in op. cit. pág. 198].

Tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova e as regras da experiência, não se pode afirmar que o depoimento da testemunha referida seja suficientemente esclarecedor para se considerar que o facto dado como não provado possa ser revertido e considerado como provado, tendo em conta que a testemunha nenhuma atividade tem na sociedade referida, nem demonstrou ter conhecimentos relevantes sobre o seu funcionamento e o relacionamento existente entre o autor e a sociedade, para permitir aferir, em concreto, da existência, ou não, do interesse próprio da autora na constituição das garantias, pelo que não se pode afirmar que, de acordo com as regras da experiência, nos permitiu firmar uma convicção suficiente acerca da verificação do facto.

Por todo o exposto, entende-se dever manter a formulação do facto não provado em causa.


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Refere a apelante que o seu objeto social consiste na compra para revenda de imóveis, negócios de compra e venda de imóveis, construção de imóveis, promoção imobiliária, gestão de imóveis próprios e prestação de serviços de administração imobiliária, compra e venda de máquinas têxteis, importação e exportação de produtos têxteis, comercialização de produtos têxteis e similares e, tendo a oficial pública que presidiu à outorga de ambos os títulos consignado “a qualidade e suficiência dos poderes invocados pelo representante da parte hipotecante, que verificou por consulta ao Portal da Empresa – Certidão Permanente com o código de acesso válido.

Entende a apelante que não constando da certidão permanente a oneração de imóveis, as afirmações da oficial pública são falsas e, como tal geram a nulidade dos títulos em causa.

Importa notar, antes do mais que não está em causa qualquer falsidade das afirmações, uma vez que a referida Conservadora se limitou a atestar a qualidade e suficiência dos poderes, com base na interpretação que fez dos poderes que aí constam, de acordo com o constante do ponto 1 dos factos provados, não existindo, assim, qualquer falsidade ou nulidade, quando muito existe um erro de interpretação do conteúdo da certidão, de natureza jurídica.

Refere a apelante que a sentença recorrida não fez um enquadramento correto da situação de que resultou ter considerado incorretamente que o administrador detinha poderes para outorgar os títulos e que por isso estes seriam válidos.

Vejamos.

Antes de mais, importa ter em consideração o disposto no artigo 715º do Código Civil, segundo o qual “só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respetivos bens”, referindo a este propósito o Dr. Almeida Costa (Obrigações, 4ª Edição, página 669) que “o essencial para a constituição da hipoteca é a existência de poderes de disposição sobre a coisa ou direito que se onera, muito embora não acompanhados da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”, pelo que improcede a pretensão suscitada.

A sentença recorrida entendeu que, «quanto ao regime da capacidade jurídica das sociedades comerciais, dispõe o nº 1 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) que “a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular”.

Por sua vez, no nº 3 deste mesmo preceito legal, considera-se contrária ao fim das sociedades a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, concretizando, assim e pela negativa, o âmbito do fim societário, delimitando a capacidade jurídica das mesmas.

Este mesmo nº 3 estabelece, porém, exceções à regra geral relativamente à determinação do fim societário: no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

Nestes casos, entende-se que a prestação de garantias pela sociedade a terceiros integra, ainda que de forma mediata, o fim societário desta.

Ou seja, a constituição de garantias a favor de terceiros, contraria, em princípio, a finalidade lucrativa da sociedade e exorbita a sua capacidade de gozo, sendo a sanção a nulidade do ato.

O que imporia que a constituição da hipoteca em causa tivesse de ser havida por nula.

Contudo, como vimos, há exceções, como no caso de haver por parte da sociedade garante justificado interesse próprio na prestação da garantia – já que estamos fora do âmbito da previsão da sociedade em relação de domínio ou de grupo.

Exige-se, pois, a prova do justificado interesse próprio da autora na prestação da garantia a uma dívida do 1º réu.

O justificado interesse próprio tem que ser apreciado objetivamente ponderada a situação concreta, nomeadamente as vantagens reais ou potenciais que a sociedade garante poderia obter com a garantia prestada.»

Entende a sentença recorrida que o ato deverá subsistir incólume se a sociedade garante não lograr provar a inexistência do interesse próprio da sociedade.

E cremos que bem.

Com efeito, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 28/05/2013, na revista nº 300/04.0TVPRT-A.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Fernandes do Vale (www.dgsi.pt), «na realidade, no mencionado nº 3 do art. 6º, estatui-se (ainda que por diferente terminologia) que não se considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

Estando, patentemente, fora de questão esta última previsão, centremos a nossa atenção na parte remanescente.

Por ela se exige, para afastamento da previsão inicial, a prova da existência de justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação de qualquer das mencionadas garantias.

Mas, sobre quem deve fazer-se impender o correspondente ónus de prova e, pois, as consequências adjetivo-substantivas do respetivo incumprimento? Deverá a entidade garantida ser penalizada com a nulidade do ato de prestação de garantia se não almejar provar a existência do mencionado e justificado interesse próprio da sociedade garante, ou, pelo contrário, deverá aquele ato subsistir incólume se a sociedade garante não lograr provar a inexistência, “in casu”, do mesmo interesse?

Trata-se de “vexata quaestio” que tem merecido posições antagónicas e com transcendente repercussão no tráfico mercantil.

Assim, Carlos Osório de Castro [“ROA”, Ano 56 (Agosto de 1996), págs. 565 e segs.], J. M. Coutinho de Abreu [“Curso de Direito Comercial”, Vol. II – Das Sociedades, págs. 195-197] e João Labareda [“Direito Societário Português” – Algumas Questões, “Quid Juris” (1998), págs. 190], entre outros, defendem, convicta e vigorosamente, a 1ª das enunciadas posições, ancorados, designadamente, no elemento literal do questionado preceito legal e na necessidade de proteção e defesa dos credores sociais.

Sem embargo, a jurisprudência predominante – designadamente, os Acs. do Supremo, de 21.09.00 – COL/STJ – 3º/36, de que foi relator o Ex. mo Cons. Simões Freire, de 04.06.02 – nº convencional JSTJ000, acessível em www.dgsi.pt, de que foi relator o Ex. mo Cons. Pinto Monteiro, de 17.06.04 – COL/STJ – 2º/94, de que foi relator o Ex. mo Cons. Quirino Soares e de 07.10.10, Proc. 291/04.8TBPRD-E.P1.S1, acessível, igualmente, em www.dgsi.pt, de que foi relator o Ex.mo Cons. Álvaro Rodrigues – e parte significativa da doutrina [Prof. Raul Ventura, no BMJ, Documentação e Direito Comparado, 1980, nº 2, págs. 144 e “Sociedades por Quotas”, Vol. III, págs. 169, Pedro de Albuquerque, in ROA, Ano 57, págs. 134, Cardoso Guedes, na R. D. E. XIII, págs. 155, Prof. Vaz Serra, na RLJ, Ano 103º, págs. 169, nota 1 e págs. 271 e Soveral Martins, in “Os Poderes de Representação dos Administradores das Sociedades Anónimas”, págs. 317)] têm aderido e sufragado a última das referidas teses.

Como se ponderou no sobredito Ac. do Supremo, de 13/05/03, em termos cuja aproximação e transferência a questão, aqui, decidenda consente: “A sociedade-garante embargou, sustentando que a prestação da garantia é contrária ao fim da sociedade, já que não existiu justificado interesse próprio da sociedade nem se trata de sociedade em relação de domínio ou de grupo (…) A prova deste facto impeditivo do direito invocado pelo exequente compete à sociedade embargante (…) afigura-se-nos que não é correto o entendimento de que o nº 3 do art. 6º do CSCom., para efeitos do ónus da prova, deve ser cindido em duas partes, considerando-se que «salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante» é facto a provar pela pessoa coletiva a quem foi prestada a garantia (…) Aliás, a entender-se que é a sociedade garantida que tem que provar a existência de interesse próprio por parte da sociedade garante, estar-se-ia perante uma prova que, na prática, seria muito difícil ou impossível de fazer, salvo, obviamente, se existissem prévias cautelas à prestação da garantia (…) Tirando casos-limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os atos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que, por um lado, a lei não diz o que entender por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da atividade social da sociedade e não apreciado o ato de forma isolada…”

Sem embargo de se reconhecer a complexidade e volatilidade da questão em análise, também nós perfilhamos este último entendimento, que não vemos razão para alterar.»

Aderindo a esta posição, resulta dever improceder a pretensão da apelante.

Afirma ainda a apelante que os negócios em causa se traduzem em negócios consigo mesmo, anuláveis, nos termos do disposto no artigo 261º Código Civil, porém tal não é assim uma vez que as pessoas coletivas constituem entidades jurídicas diversas das pessoas singulares, mesmo daquelas que as representam ou administram, pelo que improcede a pretensão da apelante.


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Refere ainda a apelante ter invocado o disposto no artigo 397º nº 1 CSC, na petição inicial, onde se refere que “é proibido à sociedade conceder empréstimos ou crédito a administradores, efetuar pagamentos por conta deles, prestar garantias a obrigações por eles contraídas e facultar-lhes adiantamentos de remunerações superiores a um mês.”

Ora, o que está em causa nos autos é precisamente uma garantia prestada pela autora a favor da ré, Autoridade Tributária e Aduaneira, mediante a celebração pelo réu Aires C., em representação da autora, de duas hipotecas sobre uma fração autónoma pertença da autora, como garantia de pagamento de dívidas fiscais do referido réu Aires C..

E não pode haver qualquer dúvida que tal situação é proibida pelo referido artigo 397º nº 1 do CSC e, sendo proibida tal situação, o negócio celebrado é nulo (artigo 294º Código Civil), o que se declara.

Por todo o exposto, resulta que a apelação terá de proceder e, em consequência, declarar-se a nulidade dos títulos constitutivos da hipoteca, assim se revogando a douta sentença recorrida.


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D) Em conclusão:

1) A atendibilidade do depoimento indireto em processo civil depende, designadamente, da sua concreta relevância, decorrente dos demais meios de prova, da livre apreciação da prova, conjugada com as regras da experiência;

2) Só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respetivos bens;

3) Considera-se contrária ao fim das sociedades a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante e, conforme vem sendo entendido maioritariamente pela jurisprudência, devendo o ato subsistir incólume se a sociedade garante não lograr provar a inexistência do interesse próprio da sociedade;

4) É proibido à sociedade prestar garantias a obrigações contraídas pelos administradores, sob pena de nulidade.


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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, declarar-se a nulidade dos títulos constitutivos da hipoteca, assim se revogando a douta sentença recorrida.

Custas pelos apelados.

Notifique.


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Guimarães, 11/07/2017



Relator: António Figueiredo de Almeida (63585071617)
1º Adjunto: Desembargador Joaquim Espinheira Baltar
2ª Adjunta: Desembargadora Eva Almeida