Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1186/20.3T8VNF-B.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: HERANÇA
CABEÇA DE CASAL
BENEFÍCIO DE APOIO JUDICIÁRIO
ARROLAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Pertencendo a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, ao cabeça-de-casal, pode o mesmo pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído;
2) É lícito que o cabeça-de-casal deduza, na qualidade de administrador da herança, arrolamento contra os demais interessados na partilha, com vista a apurar os bens deixados pelos inventariados que existam no interior da residência que foi destes, verificados os respetivos pressupostos legais, beneficiando do apoio judiciário que a herança possa ter.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) Dr. A. V., na qualidade de cabeça-de-casal no processo de inventário nº 1186/20.3T8VNF, que corre termos no Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, por apenso ao referido processo de inventário, veio intentar procedimento cautelar de arrolamento contra:

a) C. F. e marido L. S.;
b) J. V. e esposa M. P.;
c) J. A. e esposa R. B.;
d) A. R. e marido J. P.,
onde conclui entendendo que deve a requerida Providência Cautelar de arrolamento ser decretada e realizada nomeadamente nos termos do disposto no artigo 406º do CPC, descrevendo-se todos os bens que existam no interior da casa de habitação que foi dos inventariados e colocando-se novas fechadura e chave de fecho da casa, que ficará na posse do cabeça-de-casal e ora requerente, tudo a constar do respetivo Auto de Arrolamento.
Para tanto alega, em síntese, que há justo receio do cabeça-de-casal e ora requerente da imputação que lhe possa ser feita de desvio, ocultação ou dissipação de bens, uma vez que não foi o cabeça-de-casal quem fechou à chave a porta da indicada residência, nem é ele quem tem até ao presente possuído a chave da casa, além de que tal "justo receio" advém também do facto de uma outra cópia da atual chave poder estar na posse de outrem.
Foi junto um requerimento de proteção jurídica, apoio judiciário para pessoa coletiva ou equiparada, em que é requerente Herança indivisa por óbito de M. A. e A. V., assinado por A. V., sendo a assinatura idêntica à que consta da procuração outorgada pelo mesmo ao seu mandatário, nos autos.
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A fls. 9 foi proferido o seguinte despacho:
“A. V., veio, na qualidade de cabeça-de-casal no processo de Inventário nº 1186/20.3T8VNF a que a presente providência se encontra apensa, requerer providência cautelar de arrolamento contra os demais interessados na partilha.
Juntou comprovativo de pedido de apoio judiciário em benefício da herança. Ora, o requerente não está a atuar em representação da herança.
Com efeito, a atuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.
No caso dos autos, o que se verifica é o requerimento de uma providência cautelar de um herdeiro, no caso o cabeça-de-casal, contra os demais interessados na partilha.
Nesse sentido deverá o mesmo proceder, no prazo de 10 dias, ao pagamento da taxa de justiça devida nos termos do artigo 570º, nº 3, do CPC.”
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Não se procedeu à citação dos requeridos, tendo em conta que estes, no procedimento cautelar de arrolamento, não devem ser ouvidos antes do seu decretamento (artigo 641º nº 7 NCPC), a que acresce a circunstância de a matéria em questão na presente apelação não contender com os direitos dos requeridos, uma vez que está em causa apenas apurar se o cabeça-de-casal, nesta qualidade, pode ou não beneficiar do apoio judiciário que a herança possa usufruir.
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B) Inconformado com a decisão recorrida, veio o requerente Dr. A. V., na qualidade de cabeça-de-casal no processo de inventário nº 1186/20.3T8VNF interpor recurso, que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (ref. 8426613).
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Nas alegações de recurso do apelante Dr. A. V., são formuladas as seguintes conclusões:

A) No processo principal de Inventário (que com o nº 1186/20.3T8VNF corre termos no Juízo Local Cível de V. N. Famalicão – Juiz 1) o ora recorrente foi designado cabeça-de-casal para representar a herança, (conforme dispõe o artigo 2079º do Código Civil).
B) E, no exercício das suas funções de cabeça de casal, não pôde tomar posse dos bens que se encontram no interior da casa de habitação que foi dos inventariados, por a mesma estar fechada à chave, e assim o cabeça-de-casal e ora recorrente impedido de tomar posse de tais bens e de os administrar.
C) Os bens que eventualmente existam no interior da casa de habitação que foi dos inventariados estão assim fechados à chave e na posse do herdeiro que fechou a casa à chave e assim os manteve na sua posse.
D) No processo principal de Inventário o cabeça-de-casal e ora recorrente informou o Mmº Juiz de então que não podia tomar posse dos bens que possam existir na casa de habitação que foi dos inventariados por a mesma se encontrar fechada à chave, por outrem, e assim por recear que lhe pudesse vir a ser imputada eventual sonegação de bens que existissem na casa, prevenindo-se assim o cabeça-de-casal e ora recorrente de eventual situação prevista no artigo 2096º do Código Civil.
E o Mmº Juiz de então notificou o cabeça de casal para proceder à substituição da fechadura da casa com a presença de testemunhas ou de Notário, constando assim no Douto Despacho referência CITIUS 177868996 de 09-03-2022:
“Refira-se que os receios invocados pelo cabeça-de-casal podem ser facilmente supridos pela intervenção de testemunhas no ato de Inventariação dos bens, ou mesmo pela presença de Notário”.
Tendo posteriormente o cabeça-de-casal e ora recorrente informado o Mmº Juiz de então que não encontrou Notário que aceitasse o ato nem quem aceitasse testemunhar a substituição da fechadura e entrada na casa que foi dos inventariados.
E) Posteriormente o herdeiro que tinha a casa fechada à chave e estava assim na posse dos bens que existam no seu interior entregou na secretaria do Tribunal a chave da casa e consequentemente foi o cabeça-de-casal e ora recorrente notificado para aí proceder ao levantamento da chave e para dar cumprimento ao disposto no artigo 1102º do CPC.
F) O cabeça-de-casal e ora recorrente renovou então ao Tribunal os receios de que lhe viesse a ser imputada eventual sonegação de bens e que essa era a razão por que entendia não poder/dever levantar a chave e ficar com ela na sua posse, (ao abrigo do disposto no artigo 2096º do Código Civil),
E comunicou ainda ao Tribunal que em consequência iria requerer a necessária, e presente, Providência Cautelar de Arrolamento,
G) O cabeça-de-casal e ora recorrente representa assim a Herança Indivisa (em partilha no processo principal de Inventário nº 1186/20.3T8VNF que corre termos no Juízo Local Cível de V. N. Famalicão – Juiz 1), conforme dispõe o artigo 2079º do Código Civil,
H) Incumbe ao cabeça-de-casal mover nomeadamente ações possessórias…, (Conforme aliás sustenta o autor João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume I, 4ª edição, página 330, ao cimo), nomeadamente para lhe serem entregues bens - e nomeadamente, na providência de Arrolamento aqui em causa, para lhe serem entregues e tomar posse dos bens que possam existir na casa que foi dos inventariados,
Bens esses que não estão na posse do cabeça-de-casal por não ter sido o cabeça-de-casal e ora recorrente quem os guardou fechando à chave a casa de habitação que foi dos inventariados no indicado processo principal de Inventário.
Bens que assim estão na posse do herdeiro que fechou à chave a referida casa de habitação e assim os manteve na sua posse.
O cabeça-de-casal e ora recorrente está na Providência Cautelar de Arrolamento a atuar assim como administrador e em representação da Herança Indivisa, (em partilha no processo principal - Inventário nº 1186/20.3T8VNF que corre termos no Juízo Local Cível de V. N. Famalicão – Juiz 1,
E para lhe serem entregues e tomar posse dos bens que existam no interior da casa de habitação que foi dos inventariados, e que ainda não estão na posse do cabeça-de-casal e ora recorrente.
Bens esses que estão (ainda) em poder do herdeiro que fechou à chave a casa de habitação que foi dos inventariados, onde tais bens se encontram e assim os manteve na sua posse.
J) O cabeça-de-casal e ora recorrente requereu assim o arrolamento, como Providência Cautelar conservatória e preventiva – visando que lhe sejam entregues e tome posse dos bens que realmente existam na casa de habitação que foi dos inventariados (ao abrigo do disposto nos artigos 2079º e 2088º do Código Civil).
E assim o cabeça-de-casal e ora recorrente, na presente Providência Cautelar de Arrolamento está a agir como cabeça-de-casal e em representação da herança, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 2079º e 2088º do Código Civil.
Termos em que pede a procedência do presente Recurso, revogando-se o Douto Despacho sub judice, (referência CITIUS 180872812 de 13-09-2022), e assim a realização de Justiça.
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Não foi apresentada resposta.
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C) Foram colhidos os vistos legais.
D) A questão a decidir na apelação é a de saber se deverá ser revogado o despacho que determinou que o requerente apelante procedesse ao pagamento da taxa de justiça devida nos termos do artigo 570º nº 3 do Código de Processo Civil, por se entender que o apelante não está a atuar em representação da herança, não beneficiando do apoio judiciário que a herança possa usufruir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) Estabelece o artigo 2079º do Código Civil que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.
Daí que possa o cabeça-de-casal pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder e, mesmo, usar contra eles ações possessórias, a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído (artigo 2088º nº 1 do Código Civil), acrescentando, ainda, a propósito deste artigo, Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, IV Volume, 4ª Edição, pág. 286, que se trata de legitimidade extraordinária ou indireta que é ainda conferida ao cabeça-de-casal relativamente aos bens da herança cuja administração lhe pertença.
Como refere Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume I, 3ª Edição, a páginas 257, “as funções de cabeça-de-casal não se limitam na verdade ao arrolamento e descrição dos bens da herança; vão mais longe.
A magnitude destas evidencia-se através de todo o processo de inventário, dentro e fora dele, e nem sempre lhe corresponde o mínimo de aptidão para o exercício do referido cargo, quando se considere a incultura da maior parte daqueles que o vêm a exercer.
Desde o início do inventário até à sua ultimação, é o cabeça-de-casal quem vai fornecendo os elementos necessários para que ele prossiga sem obstáculos e é de sua fonte que se colhem os informes por onde há-de regular-se a partilha, finalidade objetiva do inventário iniciado.”
E a páginas 317 e seguinte acrescenta que “compete também ao cabeça-de-casal ( … ) comparecer em juízo todas as vezes que assim for determinado, juntar documentos, relacionar os bens, ( … ), prestar declarações e fornecer todos os elementos necessários ao prosseguimento do inventário ( …).”
Importa notar que, nos termos do disposto nos artigos 1097º, 1098º e 1102º nº 1 alíneas a) e b) NCPC, dado que o cabeça-de-casal tem de apresentar relação de bens, tem de saber quais são e onde se encontram, para executar as obrigações decorrentes da lei, daí que tenham de lhe ser facultadas as condições para a adequada realização das tarefas que lhe estão legalmente cometidas.
Não se pode, assim, afirmar como o faz a decisão recorrida, que, no caso presente, a atuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º nº 1 Código Civil, desde logo porque o normativo em causa ressalva as situações declaradas nos artigos anteriores e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º.
Uma das exceções é, desde logo, o artigo 2088º nº 1 Código Civil onde se refere que o cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído, norma esta que legitima que o herdeiro que é cabeça-de-casal, possa agir nesta veste, necessariamente em nome e representação da herança, contra os demais herdeiros ou outros terceiros.
Importa que se tenha em conta que o cargo de cabeça-de-casal é gratuito, exceto se for exercido pelo testamenteiro e lhe for assinada pelo testador alguma retribuição (artigos 2094º e 2333º Código Civil) e que envolve uma atividade em benefício da herança e dos seus herdeiros, nem sempre consensual e nem sempre reconhecida, que constitui em encargo para quem exerce a função, pelo que mal se compreenderia que ainda se impusesse, novo encargo, agora pessoal e patrimonial, ao herdeiro / cabeça-de-casal, impondo ainda a este o desembolso do valor da taxa de justiça, como se se tratasse de uma atividade puramente pessoal e individual, quando se trata, antes, de uma atividade desenvolvida em benefício da herança e dos seus herdeiros, no cumprimento de uma obrigação legal de administração da mesma.
Como tal é lícito que o cabeça-de-casal deduza, nessa qualidade, arrolamento contra os demais interessados na partilha com vista a apurar os bens deixados pelos inventariados que existam no interior da residência que foi destes, verificados os respetivos pressupostos legais, aproveitando do benefício de apoio judiciário que a herança possa ter.
Por todo o exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de proceder e ser revogado o despacho recorrido e, em consequência determinado o prosseguimento dos autos.
Tendo em conta que que nenhuma das partes deu causa, não houve vencimento, nem proveito do processo, não há lugar ao pagamento de custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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D) Em conclusão:

1) Pertencendo a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, ao cabeça-de-casal, pode o mesmo pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído;
2) É lícito que o cabeça-de-casal deduza, na qualidade de administrador da herança, arrolamento contra os demais interessados na partilha, com vista a apurar os bens deixados pelos inventariados que existam no interior da residência que foi destes, verificados os respetivos pressupostos legais, beneficiando do apoio judiciário que a herança possa ter.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 10/11/2022

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares