Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
91/18.GAVNH.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CONDUÇÃO VEÍCULO ESTADO DE EMBRIAGUEZ
TESTE NO AR EXPIRADO
IMPOSSIBILIDADE REALIZAÇÃO DO ARGUIDO
COLHEITA DE AMOSTRA DE SANGUE
VALIDADE DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A impossibilidade de realização do teste de pesquisa de álcool no ar expirado reporta-se não apenas à hipótese de o examinando não poder, por razões de saúde, efetuar o teste, porque fisicamente não consegue soprar, mas também às situações em que há necessidade de o transportar ao hospital para receber tratamento médico de que careça, independentemente de o mesmo se apresentar consciente, orientado e colaborante.

II) Nos casos em que o seu estado físico, fruto nomeadamente de ferimentos graves sofridos em acidente de viação, não lhe permita realizar o teste no ar expirado nem prestar ou recusar o seu consentimento à recolha de sangue, esta diligência de prova, destinada a quantificar a sua taxa de alcoolemia, apesar de contender com o direito à integridade pessoal e o direito à reserva da vida privada do examinando, não comporta um juízo de desconformidade constitucional.

III) No caso dos autos, ainda que o examinando se encontrasse em condições de prestar ou recusar esse consentimento, por estar consciente, orientado e colaborante, o facto de não ter sido informado da finalidade da colheita de sangue não é suscetível de afetar o valor do exame, uma vez que nada permitir inferir que pretenderia opor-se a ele com fundamento em o mesmo violar a sua integridade física, tanto mais que não se opôs à colheita de sangue efetuada no mesmo circunstancialismo, para efeito das análises clínicas com vista ao tratamento médico dos graves ferimentos que apresentava.

IV) O que se pretende assegurar com a observância dos procedimentos previstos nos arts. 4º a 6º da Lei n.º 18/2007, de 17 de maio (que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool) e nos n.ºs 3º a 10º da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de abril (que fixa o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, bem como os procedimentos a aplicar na realização das análises para deteção do estado de influenciado por álcool), é a imprescindibilidade da manutenção da cadeia de custódia do sangue, isto é, que não haja dúvida de que o sangue examinado com vista à averiguação e quantificação da taxa de álcool é o sangue que foi extraído à pessoa a que posteriormente serão imputados os resultados do exame.

V) Todavia, o incumprimento de alguns dos procedimentos aí referidos ou o seu cumprimento de forma diferente da exatamente prevista, só afetará o valor do respetivo exame de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, em termos de o mesmo deixar de poder ser utilizado para o fim a que se destina, se e na medida em que a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame forem postas em causa pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso do concreto passo estabelecido nos mencionados preceitos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o NUIPC 91/18.8GAVNH, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, no Juízo Local Criminal de Bragança, realizado o julgamento, foi proferida sentença, a 05-06-2019, a condenar o arguido F. S. pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, perfazendo o montante de € 385,00, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista na al. a) do n.º 1 do art. 69º do Código Penal, pelo período de 5 meses e 10 dias.

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição[1]):
«EM CONCLUSÃO:

1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nos autos por se entender que se impõe a modificação da decisão sobre a matéria de facto considerada não provada.
2. Mais se impõe de igual forma a modificação da decisão do tribunal “a quo” sobre a matéria de direito, de cujo enquadramento feito na douta sentença ora recorrida se discorda,
3. Ainda que assim não se entenda, sempre se verificaria insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada;
4. Assim, impugna a decisão recorrida por três razões distintas, a saber: matéria de facto ter sido erradamente julgada; a errada subsunção jurídica dos factos provados; insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada;

PONTOS DE FACTO QUE O RECORRENTE CONSIDERA INCORRETAMENTE JULGADO (art. 412º., nº 3, al. a), do CPP).

5. O considerar-se como NÃO PROVADO que: “O tubo de colheita utilizado não contém anticoagulante”. (negrito e sublinhado nosso)
6. Sendo que o documento constante dos autos e junto com a contestação sob a designação de doc. nº 2, o qual se dá novamente por reproduzido para os devidos e legais efeitos, impõe decisão diversa da recorrida,
7. Constitui o invocado documento nº 2 resposta fornecida pela Exma. Senhora Diretora do Serviço de Patologia Clínica da Unidade Local de Saúde do Nordeste E.P.E., - local onde o arguido recebeu assistência médica - relativo ao pedido de informação solicitado via postal no âmbito do qual, a referida Diretora clínica reconhece que a amostra não continha anticoagulante, contrariamente ao exigido no disposto do artigo 5º alínea a) da Portaria 902-B/2007 de 13 de Abril
8. Acresce que referido documento nº 2 foi emitido por entidade oficial, cuja genuinidade não pode ser negada sendo certo que dúvidas houvesse acerca da mesma deveriam ter sido dissipadas pelo tribunal recorrido, lançando mãos do poder-dever de promover todas as diligências que se mostrem relevantes para a descoberta da verdade material, o que manifestamente não fez.
9. Entende, assim, o recorrente que a decisão de que ora se recorre padece, pois, de flagrante erro notório na apreciação da prova, pelo que estamos na presença de um vício da decisão recorrida nos termos do art. 410.º, n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal, o que expressamente se invoca, devendo, em conformidade, ser alterada a matéria de facto, dando por assente e PROVADO que “ o tubo de colheita utilizado não contém anticoagulante”.

DA ERRADA SUBSUNÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS (art. 412º., nº 2, do CPP):

10. Uma vez provados os factos descritos na douta sentença recorrida no número 2 (Ocorreu, nessa sequência, embate do motociclo, com o ligeiro de passageiros matrícula BA); no nº 6 (Após a chegada do INEM, o Arguido foi imobilizado com tala e colar cervical); no nº 7 (O Arguido tinha dores, mas estava consciente, orientado e colaborante); no nº 8 (Foi transportado para o hospital de Bragança, onde lhe foi retirado sangue pelas, 00:53 horas, para análise e despistagem da presença de álcool, sendo para o efeito usada a bolsa n.º 54728; e no nº 9 (O Arguido não foi informado da finalidade da mencionada colheita;),
11. O respetivo enquadramento jurídico não poderia deixar de ser outro, impondo-se decisão diversa da proferida, pugnando-se, s.m.e., pela absolvição do arguido.
12. Porquanto não poderia o tribunal “a quo” deixar de entender que o exame de recolha de sangue, pela forma como foi obtido – ilegalmente -, não constitui meio válido de prova e assim sustentar a condenação do arguido
13. Pois que, a determinação da taxa de alcoolemia no caso de acidentes de trânsito, como é o caso dos autos, terá de ser feita como previsto e nos termos do disposto no artigo 156º do Código da Estrada e de igual forma no artigo 4 º Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influencia do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, o que manifestamente não sucedeu;
14. Sendo certo que a pesquisa deve fazer-se, em primeiro lugar, mediante exame de pesquisa de álcool no ar expirado, e subsidiariamente no caso de tal não ser possível é que se deverá proceder à colheita de amostra de sangue.
15. Não obstante a previsão detalhada de todo o procedimento, foi o arguido, sem mais, submetido a colheita de sangue para estudo analítico e bem assim para pesquiza do álcool e substâncias psicotrópicas, sem que previamente - tenha sido efetuada qualquer tentativa de pesquisa de álcool no sangue através de teste ao ar expirado, conforme decorre de informação prestada pelo Militar da G.N.R. e vertida no modelo do anexo i) a que se faz referencia na Portaria 902-B/2007 de 13 de Abril, impresso, esse, constante dos autos em anexo à participação e para o qual remetemos e se dá por integralmente reproduzido para os devido se legais efeitos.
16. Note-se que no referido modelo resulta claro que “ não foi realizado “ o teste ao ar expirado, não referindo sequer a existência de alguma tentativa ou o motivo da não realização.
17. Sendo certo que do facto de o arguido acidentado ter sido conduzido ao hospital para receber cuidados de saúde não decorre, sem mais, que estaria impedido de ser submetido ao exame através do ar expirado, para assim justificar a recolha de amostra sanguínea,
18. Tanto mais que resultou provado da audiência de discussão e julgamento que o arguido “tinha dores mas estava consciente, orientado e colaborante. “ vide ponto 7 da matéria de facto provada (negrito e sublinhado nosso)
19. Não se inferindo do referido ponto 7 da matéria de facto provada, qualquer perda de consciência por parte do arguido, paragem respiratória, indução em coma, ou qualquer outro episódio cuja urgência no tratamento permita excecionar de forma imediata a submissão ao teste ao ar expirado;

Por outro lado,

20. Como não fosse suficiente, e ainda associada à recolha de amostra sanguínea, verificamos o incumprimento grosseiro de outros procedimentos legalmente previstos, cuja inobservância não pode deixar de ser igualmente cominada com a proibição de valoração da prova assim obtida, ou seja do relatório pericial a que se refere o auto de notícia e a acusação e a sentença recorrida.
21. Pois que contrariamente ao previsto no artigo 9º da Portaria 902-B/2007 de 13 de Abril:

i) O modelo do anexo i) não está correta nem completamente preenchido, contrariamente ao previsto alínea a) daquele diploma legal, não indicando a medicação ministrada ao arguido antes da recolha de sangue e bem assim nas 48 h anteriores, questão não despicienda na medida em que alguma medicação pode influir com o resultado do exame;
ii) O original do modelo do anexo i) não contém a vinheta do profissional de saúde, à revelia do disposto na alínea b) daquele diploma legal, desconhecendo-se quem fez a recolha, se foi médico ou outro profissional de saúde.
iii) O duplicado do impresso não foi entregue ao arguido nem ao seu representante legal conforme resulta da alínea c) do artigo 9º do citado diploma legal, o qual não contém a assinatura do mesmo nem de testemunha conforme possibilidade constante do formulário, questão, de natureza procedimental mas concomitantemente de natureza substantiva já que associado ao direito de informação que assiste ao arguido.
22. Acresce, ainda, que foi violado o disposto no número 3 do artigo 6º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influencia do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas,
23. Na medida em que o resultado do exame Toxicológico de sangue para quantificação da taxa de álcool não foi enviado à entidade fiscalizadora no prazo máximo de 30 dias a contar da data da recção, mas antes passados dois meses da receção.
24. Tudo verdadeiros atropelos aos invocados diplomas legais e arbitrariedades das quais não se poderá deixar de retirar consequências jurídicas,
25. pois que efetivamente não foi seguido o procedimento técnico estabelecido na lei o que põe em causa a integridade da amostra e por maioria de razão inquina o valor probatório do relatório de exame sanguíneo de fls. 6 , impondo-se – repita-se - a absolvição do arguido.

Por outro lado, ainda:

26. O arguido não prestou – nem verbalmente nem por escrito de forma expressa e/ou presumida - o seu consentimento à recolha de sangue.
27. Pelo que deve o exame ser declarado inválido, porquanto representa um meio de prova proibido, que não pode ser valorado, nos termos dos artigos 1º, 2º, 18º, 25º nº 1, 26º nº 1 e 32º nº 8 da Constituição e 126º nº 1 do Código de Processo Penal,
28. Ainda que se aceitasse como escusada a necessidade consentimento expresso deve ainda o exame e respetivo relatório pericial ser considerado inválido e de nenhum valor probatório,
29. Porquanto, independentemente do consentimento expresso, deve o arguido/sinistrado ser sempre informado do fim a que a recolha de sangue se destina, designadamente a finalidade de a mesma instruir eventual processo de natureza criminal contra si. – neste sentido vide Acórdão Tribunal Relação de Guimarães com data de 02/05/2018 proferido no âmbito do processo 34/17.6GCGMR.G1.
30. De contrário, a não ser necessário prestar informação ao arguido sinistrado acerca da recolha, não teria o mesmo a possibilidade de se pronunciar sobre o exame, e se bem entendesse de se lhe opor, ainda que sob pena de incorrer num crime de desobediência. Sendo certa que tal possibilidade não lhe foi sequer facultada!
31. Não deixa de constituir grosseira deslealdade processual para com o arguido, acidentado numa cama de hospital, efetuar recolha de sangue sem que o mesmo saiba, ao menos, que aquela se destina a despistar a presença de álcool no sangue e não a servir de meio auxiliar de diagnóstico que permita proporcionar-lhe cuidados de saúde.
32. Tanto mais que no caso concreto o arguido está consciente, orientado e colaborantevide ponto 7 dos factos provadose, portanto, plenamente capaz de perceber a informação e o alcance da mesma, nomeadamente do fim específico a que a recolha se destinava.
33. Aqui chegados temos que a obtenção desleal do sangue do arguido para efeitos de quantificação da taxa de álcool no sangue, sem que o mesmo tenha sido informado do propósito da recolha viola as garantias de defesa do arguido e a direito a um processo justo e equitativo, no âmbito do qual as provas sejam obtidas de forma “clara” e não “ à falsa fé” como nos presentes autos
34. Em Conclusão no que toca à errada subsunção jurídica dos factos, impõe-se, assim, que o Tribunal ad quem afira da arbitrariedade da decisão proferida na sentença,
35. Claramente violadora dos critérios legais impostos ao julgador na obtenção da prova, e concretamente por violação dos artigos 156º nºs 1 e 2 do Código da Estrada; artigos 4º e 6 nº 3 da Lei 18/2007 de 17 de Maio, artigos 5 e 9º da Portaria nº 902-B/207 de 13/8; 1º, 2º, 18º, 25º nº 1, 26º nº 1 e 32º nº 8 da Constituição; 126º nº 1, 127º do Código de Processo Penal e 292º do Código Penal.

Sem prescindir e subsidiariamente da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada:

36. Analisada a sentença temos que, pese embora, condene o arguido o tribunal “ a quo” omite a apreciação e decisão sobre factos alegados pela defesa quer em sede de contestação quer no âmbito da audiência de discussão e julgamento.
35. Factos, esses, dos quais podia e devia conhecer porque relevantes para a decisão sobre a determinação da sanção, não podendo deixar de os considerar provados ou não provados, a saber:

a) QUAL ERA A CONDIÇÃO DE SAÚDE DO ARGUIDO APÓS O ACIDENTE QUE DETERMINOU SER IMPOSSÍVEL E INEXEQUÍVEL A PESQUISA DE ÁLCOOL NO AR EXPIRADO
b) SE A OMISSÃO NO PREENCHIMENTO DO MODELO DO ANEXO I PREVISTO NA PORTARIA 902-B/2007 NO QUE TOCA À MEDICAÇÃO MINISTRADA AO ARGUIDO JÁ NO HOSPITAL E NAS 48 H ANTERIORES AO SINISTRO PODERÁ TER INFLUENCIADO A TAXA DE ÁLCOOL QUE VEIO A SER APURADA? E DE IGUAL MODO COM QUE MATERIAL/SUBSTÂNCIA É FEITA A DESINFEÇÃO DO LOCAL DA PICADA DA AGULHA PARA RECOLHA DO SANGUE?
36. Sendo o apuramento da matéria elencada em a) – saber se o exame de sangue ocorreu por não ter sido possível a realização de exame de pesquisa de álcool por ar expirado - elemento pertinente à validação do exame de sangue realizado,
37. No que toca à questão elencada em b) a mesma consubstancia omissão de pronúncia e do poder/dever que incumbe ao Tribunal recorrido de investigar tal questão, na medida em que se impunha apurar que medicamentos foram ministrados ao arguido/sinistrado nomeadamente quando recebe os primeiros cuidados clínicos e se tal medicação é suscetível ou não de influir na taxa de álcool no sangue, pois que decorre da regras da experiencia comum que determinados medicamentes tem efeito potenciador do álcool.
38. O mesmo se diga a propósito do material utilizado para desinfeção do local da picada da agulha para recolha do sangue porquanto, a ter sido desinfetada com recurso a álcool etílico o mesmo tem a virtualidade de alterar o resultado da recolha.
39. Uma vez que o Tribunal recorrido não apurou tais questões cumpre entender haver insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, devendo, por isso, subsidiariamente, ser anulada a decisão recorrida e os autos reenviados à 1.ª instância para nova decisão, antecedida de novo julgamento para suprir em concreto tais dúvidas.

Termos em que se deve conceder integral provimento ao recurso, modificando-se a douta Sentença recorrida, considerando-se, nos termos supra expostos, como provado o facto constante da alínea a) Dos factos não provados constante da douta sentença e bem assim julgar procedente a errada subsunção jurídicas dos factos provados e em consequência, absolver o arguido do crime pelo qual foi condenado

Caso V. Excias. assim não entendam, subsidiariamente, não poderão deixar de determinar o reenvio do processo para novo julgamento, porquanto se encontra verificado o vício do art. 410.º, n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal.»

3. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, no sentido de lhe dever ser negado provimento, pelas razões que sintetizou assim (transcrição):
«CONCLUSÕES:

1. O Tribunal «a quo» julgou escorreitamente toda a prova produzida, sem incorrer em qualquer erro de julgamento.
2. A prova documental junta pelo arguido não é suscetível de alterar os factos dados como provados e não permite a absolvição do arguido.
3. A custódia de prova foi respeitada e não colocada em causa pelo arguido.
4. O arguido confessou a prática dos factos, razão pela qual, atendendo também à prova pericial, se impunha a sua condenação, carecendo de sentido o por si alegado quanto à alegada insuficiência da matéria de facto e errada subsunção jurídica dos factos.
5. Os factos que motivaram a sujeição do arguido ao exame de pesquisa de álcool no sangue por meio de recolha de amostra sanguínea sucederam na sequência da intervenção do mesmo num acidente de viação e de não ter sido possível aferir a taxa de álcool por meio de teste ao ar expirado.
6. Nessas circunstâncias, em que o arguido estava caído no chão, com uma fratura exposta e colar cervical, fácil é de concluir que não estava em condições de efetuar o teste de álcool por ar expirado.
7. Nos casos como o dos autos, para efetuar o exame de álcool no sangue não é necessário obter o consentimento do arguido, uma vez que a lei não o impõe ou exige, com exceção dos exames coercivos, o que não era o caso.
8. No circunstancialismo dos autos, a recolha de amostra de sangue efetuada ao arguido constitui um meio de obtenção de prova legal, sendo o respetivo resultado válido, sem qualquer violação dos princípios legais e do direito à não auto incriminação, pelo que a prova recolhida não padece de qualquer nulidade.
9. A recolha de sangue para aferição da TAS lesa em medida muito reduzida os direitos fundamentais do arguido, pelo que, não é desproporcional face aos interesses superiores que a incriminação do art. 292.º do CP visa proteger.
10. O recorrente faz meras alegações genéricas e vagas para manifestar o seu descontentamento com a sentença, sem demonstrar concretamente razões objetivas para que o tribunal devesse ter dado como provados outros factos que imporiam a sua absolvição.
11. A inobservância do preenchimento do anexo I não acarreta qualquer invalidade ou irregularidade de prova.
12. Não há nenhum vício que cumpra reparar por via do recurso, sendo que não ocorre qualquer erro de julgamento se, simplesmente, o Tribunal não acolhe a versão do arguido.
13. Não foi violado qualquer dispositivo legal, pelo que
14. A decisão tomada deve ser mantida nos seus exatos termos.»

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, que culmina nos seguintes termos (transcrição):

«Em conclusão: inexiste prova pericial ilegalmente produzida e valorada, pois que a recolha de sangue efetuada ao arguido recorrente, após ser vítima de um acidente de viação, realizou-se com plena observância do disposto n.º 3 do art.1º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio e artigo 156 do Código da Estrada, não sendo necessário o seu expresso consentimento para que tal colheita se processasse, até porque nunca ele à mesma apresentou oposição, sendo, aliás, a sua impossibilidade de realização de exame para pesquisa de álcool através do ar expirado certificada pelo médico no hospital onde o mesmo se encontrava e que ordenou aquela recolha; não existe qualquer erro notório na apreciação da prova que, sob este ângulo, importe reparar, pois que deve reconhecer-se que são diversos os procedimentos de recolha de sangue a que o arguido se submeteu, destinando-se uns a fins estritamente clínicos e outros à verificação da TAS para efeitos criminais, sendo que, neste caso, todos os tubos para a recolha de sangue disponibilizados pelo INML às autoridades policiais contêm, por exigência legal, uma substância anticoagulante; de igual modo, não se verifica uma qualquer situação de insuficiência da matéria de facto para a decisão em face da plena legalidade dos procedimentos concretizados para a realização da perícia médico-legal; valorando-se plenamente a prova científica produzida e dando-se, por isso, eficácia ao laudo produzido pelo INML revelador de uma TAS no sangue de 2,13 +/- 0,27g/l, sendo então variável a dita TAS, a que deve ser atribuída ao arguido será a menor, fixando-se ela, então, em 1,86g/l; consequentemente, deverá modificar-se a matéria de facto dada como assente, no seu ponto 1), alterando a fixada de 2,13 para 1,86 g/l, modificação justificada em função do erro notório na apreciação da prova e que deve ser reparado; em função desta diminuição da TAS, a pena principal aplicada ao arguido deverá ser reduzida para 60 dias de multa e a pena acessória para 4 meses e 10 dias. Recurso que deverá ser julgado, então, parcialmente provido.»
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer.
6. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Dispõe o artigo 412º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “[a] motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso[2].

Atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, importa conhecer das seguintes questões, elencadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

a) - A invalidade da prova obtida por recolha e análise de amostra de sangue para quantificação da taxa de alcoolemia;
b) - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
c) - O erro notório na apreciação da prova.

3. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1 - É do seguinte teor da fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):

«Matéria de Facto Provada

Da audiência de julgamento resultaram provados, os seguintes factos:

1. No dia 25 de Abril de 2018, cerca das 23h00m, o arguido conduzia o motociclo, matrícula ..., na EM 505, ao km 6,380, em Paçó – Vinhais, nesta comarca, com a taxa de álcool no sangue de 2,13 g/l sangue;
2. Ocorreu, nessa sequência, embate do motociclo, com o ligeiro de passageiros matrícula BA;
3. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que conduzia veículo por via de circulação terrestre, afeta ao trânsito público, com a referida taxa de alcoolémia;
4. Ao assim proceder bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se apurou que,

5. Na sequência do embate o Arguido sofreu fratura exposta na perna, com grande hemorragia;
6. Após a chegada do INEM, o Arguido foi imobilizado com tala e colar cervical;
7. O Arguido tinha dores, mas estava consciente, orientado e colaborante;
8. Foi transportado para o hospital de Bragança, onde lhe foi retirado sangue pelas, 00:53 horas, para análise e despistagem da presença de álcool, sendo para o efeito usada a bolsa n.º 54728;
9. O Arguido não foi informado da finalidade da mencionada colheita;
10. O Arguido é solteiro e não tem filhos;
11. Está de baixa médica e recebe o montante de € 420,00 líquidos;
12. Vive com os pais;
13. É proprietário de 15 animais, os quais tem um valor de € 700,00 por cabeça;
14. Estudou até ao 8.º ano de escolaridade;
15. O Arguido não tem antecedentes criminais;
*
Matéria de Facto Não Provada

Da audiência de julgamento não resultaram provados, os seguintes factos:

a) o tubo de colheita utilizado não contém anticoagulante;
*
Inexistem outros factos que relevem para a decisão da causa.
*
Motivação da Decisão de Facto

A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada no ponto 1. a 7., radicou na análise crítica, concatenada e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal), concretamente, no depoimento do Arguido e das testemunhas F. F., L. G. e H. L., militar da GNR, o qual confirmou na íntegra o vertido no auto de notícia junto aos autos.
Com efeito todas estas testemunhas confirmaram o embate entre o veículo conduzido pelo Arguido e um carro ligeiro, mais relatando as consequências de tal embate no Arguido, isto é, os respetivos ferimentos.
F. F., amigo do Arguido e uma das primeiras pessoas a chegar ao local, relatou que o mesmo tinha dores e afirma que a sua via ia acabar ali, tendo tentado fazer um garrote na perna deste para estancar a hemorragia.
Também H. L. afirmou que o Arguido tinha muitas dores e gemia, identificando-o através de F. F., sendo que o Arguido foi tratado pelo INEM e levado para hospital.
Tal tratamento foi confirmado por L. G., bombeiro, que o descreveu e contextualizou.
Especificamente quanto à taxa de álcool no sangue, consta dos autos o exame sanguíneo de fls. 6, que é concludente e fidedigno.
Ademais, o Arguido confirmou ter bebido um a dois copos de vinho ao almoço e um a dois copos de vinho ao jantar, mais confidenciando que não costuma beber.
É certo que o Arguido juntou aos autos uma declaração do hospital a informar que não tem auditoria externa (nem tal se afigura como necessário para este tipo de efeito) e que o tubo de colheita não contém anticoagulante (fls. 96).
Ora, esta informação do hospital, em resposta a questões do Arguido, não tem o condão de surtir o efeito pretendido pelo Arguido. Pois o exame efetuado no hospital foi-o mediante a bolsa n.º 54728 (conforme referido no auto de notícia de fls. 10 e na própria informação do hospital de fls. 8).
Ou seja, o tubo de colheita utilizado, tal como resulta dos documentos atrás citados, vem numa bolsa fornecida pela ANSR às autoridades policiais (prevista em 5.º da portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril) que estas autoridades entregam na Unidade de Saúde (como efetivamente ocorreu face aos elementos constantes dos autos), e a que os estabelecimentos hospitalares são alheios (pelo que nunca a declaração emitida pode significar o que o Arguido conclui).
A hora do exame consta de fls. 8.
Relativamente aos elementos subjetivos (descritos a 3. e 4.), os mesmos resultam da conjugação dos restantes elementos de facto, mais se inferindo das declarações do Arguido que sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que se encontrava sob a sua influência, não desconhecendo que tal conduta era proibida e punida.
No tocante ao exame efetuado em ambiente hospitalar, o Arguido reconheceu que o mesmo foi efetuado, sendo certo que não o informaram da finalidade de tal exame, designadamente, que o mesmo se destinava a apurar a taxa de álcool no sangue.
Os elementos pessoais resultaram das declarações do Arguido.
No que que concerne aos antecedentes criminais foi tido em conta o teor do certificado do registo criminal.
*
Consigna-se que não foram considerados os factos negativos (dos factos provados), os factos meramente conclusivos e os factos desprovidos de interesse e/ou relevância para a decisão da causa.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 – Da invalidade da prova obtida através da recolha e análise da amostra de sangue para quantificação da taxa de alcoolemia

Ao longo das conclusões 10ª a 35ª, o recorrente põe em causa a validade da colheita de sangue a que foi sujeito e que serviu para, mediante análise toxicológica, quantificar a taxa de álcool no sangue que apresentava no exercício da condução, pretendendo dessa forma obter a sua absolvição do crime pelo qual foi condenado, para o que invoca vários fundamentos:

- Por um lado, que a determinação da taxa de alcoolemia não foi feita em conformidade com o disposto no art. 156º do Código da Estrada e no art. 4 º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, por a recolha da amostra sanguínea não ter sido precedida de qualquer tentativa de pesquisa de álcool no sangue através de teste ao ar expirado, sem que houvesse motivo para a não realização desta (conclusões 13ª a 19ª).
- Por outro lado, alega o recorrente que não prestou qualquer consentimento à recolha de sangue, o que torna o meio de prova proibido, não podendo ser valorado, nos termos dos arts. 1º, 2º, 18º, 25º, n.º 1, 26º, n.º 1, e 32º, n.º 8, da Constituição e 126º, n.º 1, do Código de Processo Penal (conclusões 26ª e 27ª) e que, independentemente desse consentimento, não foi informado do fim a que a recolha se destinava, designadamente a instruir eventual processo de natureza criminal contra si, impedindo-o de se pronunciar sobre o exame e, se bem entendesse, de se lhe opor, o que viola as garantias de defesa e o direito a um processo justo e equitativo (conclusões 28ª a 33ª).
- Por último, invoca o recorrente não ter sido seguido o procedimento técnico estabelecido na lei, o que põe em causa a integridade da amostra e inquina o valor probatório do relatório de exame sanguíneo, por, concretamente: - o modelo do anexo i) não indicar a medicação ministrada antes da recolha de sangue e bem assim nas 48 horas anteriores, o original não conter a vinheta do profissional de saúde, desconhecendo-se quem fez a recolha, e o duplicado do impresso não ter sido entregue ao arguido nem ao seu representante legal, contrariando o disposto no art. 9º, als. a), b) e c), respetivamente, da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de abril; - e o resultado do exame toxicológico não ter sido enviado à entidade fiscalizadora no prazo máximo de 30 dias a contar da data da receção, mas antes passados dois meses da mesma, em violação do disposto no n.º 3 do art. 6º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (conclusões 20ª a 25ª).

O Ministério Público, em ambas as instâncias, discorda desta argumentação em toda a linha, concluindo, em suma, pela plena validade do meio de prova em apreço.

3.1.1 - Para a apreciação das questões suscitadas pelo recorrente importa começar por ter presentes os procedimentos legalmente estabelecidos para a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, destinado à averiguação do grau de alcoolemia de que sejam portadores os condutores de veículos ou outros intervenientes na circulação rodoviária, para efeito de apuramento de responsabilidade criminal ou contraordenacional.
Esse regime jurídico encontra-se previsto nos arts. 152º e ss. do Código da Estrada, na Lei n.º 18/2017, de 17 de maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, e na Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de abril, decorrendo da conjugação destes diplomas legais que a fiscalização da condução sob a influência do álcool obedece a um procedimento legal vinculado.

Com efeito, de acordo com o estatuído no art. 1º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, primeiramente é efetuado um teste qualitativo no ar expirado, destinado a despistar a presença de álcool no sangue do examinando, sem qualquer finalidade de medir a respetiva taxa, embora a possa acusar.

Sendo o resultado positivo, segue-se a realização de um teste quantitativo ou análise de sangue quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo, com a finalidade de quantificar a efetiva taxa de álcool no sangue (n.ºs 2 e 3 do art. 1º e n.º 1 do art. 2º do mesmo diploma).

Para o caso de impossibilidade de realização do teste no ar expirado, dispõe o art. 4º, n.º 1, da mesma Lei, que “[q]uando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue”.

Por seu turno, de acordo com o preceituado no art. 153º, n.ºs 1, 2, al. c), 3, als. a) e b), e 8, do Código da Estrada, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, sendo que, em caso de resultado positivo, a contraprova que venha a ser requerida pelo examinando deve ser realizada, de acordo com a vontade do mesmo, por novo exame, a efetuar através de aparelho aprovado, ou por análise de sangue, sendo que, se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.

Especificamente para as situações de exames em caso de acidente, preceitua o art. 156º do mesmo código que:

“1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º.
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.”

A colheita do sangue destinado à realização das análises para quantificação da taxa de álcool é efetuada em estabelecimento da rede pública de saúde a que o examinando seja conduzido pelo agente de autoridade, o qual, em caso de acidente de viação, pode ser o serviço de saúde em que dê entrada (cf. art. 4º da Portaria n.º 902-B/2007).
Para o efeito, o agente de autoridade deve entregar no estabelecimento da rede pública de saúde um impresso do modelo do anexo I, acompanhado de uma bolsa devidamente selada de modelo aprovado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), contendo o material destinado à recolha e acondicionamento da amostra (cf. art. 5º da mesma portaria).

3.1.2 - No caso dos autos, foi dado como provado que, na sequência do embate entre o motociclo conduzido pelo arguido e um veículo ligeiro de passageiros, aquele sofreu fratura exposta na perna, com grande hemorragia, que após a chegada do INEM foi imobilizado com tala e colar cervical e que tinha dores (cf. pontos 5, 6 e 7).

Acresce que, como resulta da motivação da decisão de facto, a testemunha F. F., amigo do arguido e uma das primeiras pessoas a chegar ao local, o mesmo tinha dores e afirmava que a sua vida ia acabar ali, tendo-lhe tentado fazer um garrote na perna para estancar a hemorragia.

Como aí também se refere, a testemunha H. L., militar da GNR que tomou conta da ocorrência, afirmou que o arguido tinha muitas dores e gemia, tendo-o identificado através do referido F. F., e que o mesmo foi tratado pelo INEM e levado para o hospital.

Por fim, consta do auto de notícia junto a fls. 4 a 5, cujo teor foi confirmado em audiência pelo referido militar da GNR que o elaborou, que quando chegou ao local já o condutor do motociclo se encontrava no interior da ambulância a receber tratamento, não sendo possível efetuar teste de despistagem de álcool, em virtude das lesões que apresentava.

Todo este quadro não pode deixar de ser reconduzido a uma situação de impossibilidade de realização do teste no ar expirado, por o examinando ter ficado gravemente ferido no acidente de viação em que interveio.

Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a tal conclusão não obsta o facto, dado como provado no ponto 7º, de, na altura, estar consciente, orientado e colaborante, porquanto, independentemente deste estado, as circunstâncias de ter sofrido uma fratura exposta na perna, com grande hemorragia, sentir fortes dores, a ponto de dizer que ia morrer ali, e de lhe ter sido aplicado um colar cervical, devido à necessidade de imobilização por suspeita de lesão grave a nível da coluna, por si só, são reveladoras da impossibilidade, física e psicológica, de sujeitar o arguido a um teste de pesquisa no ar expirado, por implicar algum esforço e colaboração que o mesmo não estava em condições de desenvolver.

A impossibilidade de realização do teste de pesquisa de álcool no ar expirado reporta-se não apenas à hipótese de o examinando não poder, por razões de saúde, efetuar o teste, porque fisicamente não consegue soprar, mas também às situações em que há necessidade de o transportar ao hospital para receber tratamento médico de que careça.

Consequentemente, verifica-se a previsão dos arts. 153º, n.º 8, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, justificadora do recurso à colheita de amostra sanguínea, sem necessidade de a mesma ser precedida de qualquer tentativa de pesquisa de álcool no sangue através de teste ao ar expirado, assim improcedendo esse primeiro segmento da argumentação do recorrente para demonstrar a invalidade do meio de prova utilizado para quantificar a taxa de alcoolemia que apresentava.
Por outro lado, defende o recorrente que a colheita de sangue efetuada constitui um método proibido de prova, nos termos do art. 32º, n.º 8, da Constituição e do art. 126º do Código de Processo Penal, por não a ter consentido nem ter tido a possibilidade de a recusar, tratando-se, pois, de um ato que viola a integridade física e moral (art. 25º, n.º 1, da Constituição) e que tem como objetivo uma possível incriminação, bem como a reserva da intimidade da vida privada (art. 26º, n.º 1, da Constituição).
Todavia, tal questão tem sido objeto de decisão pelos tribunais superiores no sentido da legalidade desse meio de prova, como sucedeu, nomeadamente, no acórdão desta Relação de 05-06-2017[3], onde se refere que “o exame de sangue é a via excecional de recolha de prova admitida na lei para deteção de álcool, apenas admissível em casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível” e que “em momento algum a lei impõe ou exige o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, pelo que, nesta matéria, se encontram apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em sujeitar-se ao exame[4].

Com pertinência para a questão sub judice, na vertente da ofensa à integridade física e moral do examinando, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 397/2014[5], considerou que «(…) o disposto no artigo 25.º, n.º 1, da Constituição, corolário do reconhecimento da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição), não implica que ao direito à integridade física seja reconhecida uma prevalência absoluta, imune a qualquer limitação, mas apenas uma “interdição absoluta das formas mais intensas da sua violação”, conforme resulta do seu n.º 2 (cf. PEDRO GARCIA MARQUES, in JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, 2010, pp. 553 e 554). Intensidade que não tem correspondência na colheita imposta de sangue prevista no n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada, em que a interferência no corpo é muito reduzida – similar, por exemplo, a ações de vacinação que recaem sobre recém-nascidos -, relevando ainda a circunstância de ser realizada em ambiente hospitalar e por pessoal de saúde qualificado (artigo 4.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento n.º 18/2007, de 17 de maio)».

Também no acórdão n.º 418/2013[6], proferido a propósito da norma paralela do art. 156º, n.º 2, do Código da Estrada, que impõe a recolha de sangue em caso de acidente, o Tribunal Constitucional, consignou o seguinte, transponível para o caso dos autos:

«(…) a recolha de amostra de sangue, envolvendo uma punção venosa e a subtração de material biológico que não seria naturalmente expelido pelo organismo, corresponde a uma interferência na integridade física de outrem. Porém, tendo em conta as características de tal intervenção - nomeadamente o facto de ser obrigatoriamente realizada em estabelecimento de saúde, com observância das leges artis médicas; o grau de afetação da integridade corporal envolvido, designadamente a duração, a dor ou incómodo infligido, bem como a reversibilidade da lesão, na perspetiva da facilidade de recuperação dos tecidos afetados e da sua (ir)relevância no contexto do funcionamento global do organismo - poderemos concluir que se traduz numa violação do direito à integridade física do visado de grau muito baixo. (…)

No tocante à integridade moral ou psíquica, enquanto bem jurídico relativo à autodeterminação e livre manifestação de vontade de cada pessoa, diremos que a ressonância que sobre a mesma se produz pela recolha de amostra de sangue, nas circunstâncias em análise, resulta não da direta violação da vontade do examinando - como sucederia, caso se admitisse a execução forçada da recolha, perante a recusa - mas da impossibilidade de considerar tal vontade, no sentido de executar a intervenção, apesar do estado do examinando não lhe permitir prestar ou recusar o consentimento.
Igualmente se pode considerar que o direito à reserva da vida privada, tutelado no artigo 26.º da CRP, é afetado pela recolha de amostra de sangue. Porém, o alcance intrusivo de tal intervenção é reduzido, tanto mais que envolve apenas a extração de uma amostra de um definido material biológico, com vista a uma informação muito circunscrita, destinada a fins legalmente fixados, sendo que a recolha se desenrola num espaço recatado - o estabelecimento hospitalar -, sendo realizada por profissionais de saúde sujeitos a segredo profissional.»

No que concerne à igualmente invocada violação do direito à não autoincriminação, refere-se no mesmo aresto que:

«O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, não se encontrando expressa e diretamente consagrado no texto constitucional, constitui um corolário da tutela de valores ou direitos fundamentais, com direta consagração constitucional, que a doutrina vem referindo como correspondendo à dignidade humana, à liberdade de ação e à presunção de inocência.
Encontra-se sobretudo associado ao direito ao silêncio, ou seja, à faculdade de o arguido não prestar declarações autoincriminatórias, nomeadamente não respondendo a questões sobre os factos que lhe são imputados e cuja prova pode importar a sua responsabilização e sancionamento. Protege igualmente o arguido contra o exercício impróprio de poderes coercivos tendentes a obter a sua colaboração forçada na autoincriminação, nomeadamente mediante a utilização de meios enganosos ou coação (cf. M. Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, pp. 120 e ss.).
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado que o direito à não autoincriminação não se estende à utilização, num processo criminal, de meios de prova que possam ser obtidos do arguido e que existam independentemente da sua vontade, por exemplo, recolha de amostras de sangue (cf. caso Saunders v. Reino Unido, decisão de 17 de dezembro de 1996).
Assim, (…) a recolha de amostra de sangue, para deteção do grau de alcoolemia, em condutor incapaz de prestar ou recusar o seu consentimento, não implica uma violação do direito à não autoincriminação, sendo que tal recolha constitui a «base para uma mera perícia de resultado incerto», não contendo qualquer declaração ou comportamento ativo do examinando no sentido de assumir factos conducentes à sua responsabilização.»

Por fim, questionando se a aludida interferência no direito à integridade pessoal (nas componentes de direito à integridade física e à autodeterminação) e no direito à reserva da vida privada do examinando, é justificada pela proteção de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, refere-se ainda no mesmo acórdão que:

«A circulação rodoviária, constituindo uma atividade de manifesta utilidade social, acarreta riscos consideráveis de lesão de bens jurídicos fundamentais como a vida, a integridade pessoal, a propriedade privada.
Atendendo à elevada sinistralidade das nossas estradas e a preponderância de circunstâncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes, tornou-se imperioso garantir a adoção de especiais medidas legislativas destinadas a garantir a segurança rodoviária, nomeadamente através da imposição da abstenção de conduzir a indivíduos que se encontrem em condições psicomotoras suscetíveis de propiciar um aumento do risco de produção de acidentes.
Sendo conhecida a interferência do consumo de álcool no comportamento dos condutores - designadamente quanto ao processamento e interpretação de estímulos exteriores, bem como quanto ao tempo e qualidade da reação aos mesmos - o legislador intensificou a tutela dos bens jurídicos afetados pelo incremento do risco resultante da condução sob influência de tal substância.
Neste contexto, no âmbito da tutela penal, antecipou a proteção do bem jurídico segurança rodoviária - e, reflexamente, a tutela da vida e integridade pessoal, bem como do direito à propriedade privada - a um momento prévio à produção do resultado de dano ou de perigo, consagrando um tipo legal de perigo abstrato, no artigo 292.º do Código Penal (condução de veículo em estado de embriaguez). (…)
Acontece que, correspondendo a proteção dos direitos fundamentais a uma exigência positiva de atuação dos poderes públicos, consubstanciada na garantia de efetiva tutela material de tais direitos, nomeadamente tutela penal (cf. J. Miranda e R. Medeiros, op. cit., p. 557), a criação de tipos legais incriminatórios não pode deixar de ser acompanhada de meios legais que permitam tornar exequível e operante a produção de prova dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento, sob pena de ficar prejudicada a satisfação das necessidades de proteção dos bens jurídicos tutelados e as restantes finalidades de prevenção das penas.
No caso da condução em estado de embriaguez - que pressupõe uma exata quantificação da taxa de alcoolemia, apenas aferível com recurso a meios técnicos legalmente definidos e num período de tempo muito limitado (tratando-se de informação perecível) - a eventual proibição da recolha de amostra de sangue, em condutores incapazes de prestarem ou recusarem o seu consentimento, corresponderia à impossibilidade de produção de prova relativa aos elementos objetivos do tipo legal e, em consequência, à impunidade dos eventuais crimes praticados por tais condutores. Aliás, tal proibição poderia conduzir ao perverso resultado de os condutores com mais elevada taxa de álcool no sangue, cuja incapacidade de prestar ou recusar o consentimento à recolha da amostra de sangue esteja mais ligada à presença de tal substância no organismo do que às consequências do acidente - maxime, os que chegam ao estabelecimento hospitalar em situação próxima do estado de coma alcoólico - não serem responsabilizados pela prática do crime previsto no artigo 292.º do Código Penal.»

Em suma, na linha desta jurisprudência do Tribunal Constitucional, a admissibilidade da colheita de amostra de sangue, para exame do estado de influenciado pelo álcool, não comporta, por si, um juízo de desconformidade constitucional, pois a Constituição autoriza, atendendo às finalidades em causa, e respeitadas as demais exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informativa.
Posto isto, é de concluir que, nos casos em que o estado físico do examinando, fruto nomeadamente de ferimentos graves sofridos em acidente de viação, não lhe permita realizar o teste no ar expirado nem prestar ou recusar o seu consentimento à recolha de sangue, esta diligência de prova, destinada a quantificar a sua taxa de alcoolemia, apesar de contender com o direito à integridade pessoal e o direito à reserva da vida privada do examinando, não comporta um juízo de desconformidade constitucional.
Com efeito, a intervenção em análise é obrigatoriamente realizada em estabelecimento de saúde, com observância das leges artis médicas, envolve um grau de afetação da integridade corporal muito baixo, tem um alcance intrusivo reduzido e não envolve uma direta violação da vontade do examinando, mas sim uma impossibilidade de consideração da mesma - dada a circunstância de o examinando não estar em condições de prestar ou recusar o consentimento - correspondendo, assim, a uma forma menos grave de interferência no direito à autodeterminação.
Trata-se, pois, de uma restrição adequada, por corresponder ao meio idóneo à prossecução do objetivo de proteção dos direitos fundamentais em análise, necessária, por corresponder ao único meio, face ao caráter perecível da prova, que ainda permite a satisfação da pretensão punitiva do Estado, e proporcional, por ser equilibrada e correspondente à justa medida imposta pela proteção dos direitos que cumpre acautelar.
É certo que, no caso vertente, apesar da gravidade dos ferimentos sofridos pelo arguido (fratura exposta na perna, com forte hemorragia, e lesões na coluna, que justificaram a aplicação de um colar cervical), foi dado como provado que o mesmo estava consciente, orientado e colaborante (ponto 7) e que não foi informado da finalidade da mencionada colheita de sangue (ponto 9º), circunstância esta invocada pelo recorrente para fundar a alegação de que não teve oportunidade de se opor à realização do exame, ainda que sob pena de incorrer num crime de desobediência, devendo, por isso, o mesmo ser considerado inválido e de nenhum valor probatório, chamando à colação o acórdão desta Relação de 02-05-2018[7], em cujo sumário se pode ler que: «I) Se ao ser submetido ao teste de pesquisa do álcool no ar expirado, qualquer condutor sabe a que se destina, o mesmo já não se pode dizer quando se está internado num Hospital ou estabelecimento de saúde e um médico faz uma colheita de sangue ao sinistrado. Aqui, o sinistrado adquire a qualidade e é tratado como doente. E deve ser nesta qualidade que se deve interpretar e presumir qualquer consentimento seu, ainda que tácito quanto aos atos médicos. II) A colheita de sangue para análise do álcool do condutor sinistrado, embora praticado por um médico, não tem a natureza de ato médico em sentido estrito mas sim de um ato ou diligência de prova para efeitos de procedimento criminal. III) E tratando-se de uma ato que viola a integridade física e tem como objetivo, uma possível incriminação da doente/sinistrada, a mesma deve ser informada ou estar devidamente esclarecida do fim a que se destina a recolha do sangue. IV) No caso dos autos, verifica-se que a recolha de sangue à arguida, constitui um meio de obtenção de prova não legal, constituindo o respetivo resultado da pesquisa quantitativa de álcool efetuada nessa amostra um meio de prova não válido.».
Porém, para além da já explicitada irrelevância de o arguido não ter manifestado o seu consentimento, afigura-se-nos ser igualmente irrelevante que não tenha sido previamente informado da finalidade da colheita de sangue.
Com efeito, como condutor encartado e até como cidadão comum, não podia desconhecer o regime legal da proibição de condução sob o efeito de álcool, nem a obrigatoriedade de sujeição a exame, por pesquisa no ar expirado e, em caso de impossibilidade, como manifestamente sucedeu, por recolha de sangue.
Não obstante, em momento algum o arguido manifestou a vontade de se recusar à realização do exame toxicológico de sangue, para o que sabia ser necessária a respetiva colheita.
Acresce que não consta dos autos qualquer circunstância que permita inferir que pretenderia opor-se a esse exame com fundamento em o mesmo violar a sua integridade física, da mesma forma que, naturalmente, não se opôs à colheita efetuada no mesmo circunstancialismo, quiçá até através da mesma extração de sangue ou com utilização do mesmo cateter, para efeito das análises clínicas cujos resultados foram juntos a fls. 97 a 99, com vista ao tratamento médico dos graves ferimentos que apresentava (fratura exposta da perna, com forte hemorragia).
O que significa que a eventual recusa que o recorrente agora sustenta não lhe ter sido permitido manifestar, por desconhecer o fim a que se destinava a recolha de sangue, nunca poderia ter como fundamento a ofensa à sua integridade física, mas sim um nítido propósito de obstar à descoberta da verdade e à sua consequente responsabilização pelo crime de condução em estado de embriaguez.
Por último, nas conclusões 20ª a 25ª, o recorrente invoca não terem sido observados os procedimentos legalmente previstos no art. 9º, als. a), b) e c), da Portaria n.º 902-B/2007, e no art. 6º, n.º 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, o que, em seu entender, põe em causa a integridade da amostra sanguínea que lhe foi colhida e inquina o valor probatório do relatório do respetivo exame.
A referida Portaria fixa, nomeadamente, o modo como se deve proceder à recolha, acondicionamento e expedição das amostras biológicas destinadas às análises laboratoriais, bem como os procedimentos a aplicar na realização das análises para deteção do estado de influenciado por álcool, prevendo no seu n.º 5, como já referimos, que, para a realização da colheita de sangue destinado à realização das análises para quantificação da taxa de álcool, o agente de autoridade deve entregar no estabelecimento da rede pública de saúde um impresso do modelo do anexo I, acompanhado de uma bolsa devidamente selada de modelo aprovado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), contendo o material destinado à recolha e acondicionamento da amostra.

E de acordo com o n.º 9 desse diploma:

"O médico que promover a colheita deve:

a) Preencher, correta e completamente, o impresso do modelo do anexo i;
b) Entregar ao agente de autoridade que requisitou o exame o original preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional;
c) Entregar o duplicado ao examinado ou, caso não seja possível, ao agente de autoridade que requisitou o exame para que, posteriormente, o entregue ao examinado ou a quem legalmente o represente;
d) Providenciar para que sejam introduzidos na bolsa referida no número anterior a amostra de sangue, devidamente acondicionada no tubo e contentor respetivos, e o triplicado do impresso preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional;
e) Providenciar para que a bolsa selada seja remetida, de imediato, à delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., da sua área ou, caso não seja possível, que seja mantida refrigerada até à sua remessa.".

Alega o recorrente que, in casu, não foram respeitados os procedimentos previstos nas referidas als. a), b) e c), uma vez que o modelo do anexo I não indica a medicação ministrada antes da recolha de sangue e nas 48 horas anteriores, o original não contém a vinheta do profissional de saúde e o duplicado do impresso não foi entregue ao arguido nem ao seu representante legal.

Por seu turno, de acordo com o disposto no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, o exame para quantificação da taxa de álcool no sangue é sempre efetuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (n.º 2), preceituando o seu n.º 3 que "[n]o prazo máximo de 30 dias a contar da data da receção da amostra, a delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal que proceder ao exame envia o resultado obtido à entidade fiscalizadora que o requereu, em relatório de modelo aprovado em regulamentação".

Mais invoca o recorrente a inobservância deste procedimento, uma vez que o resultado do exame toxicológico apenas foi enviado passados dois meses após a receção da amostra.
Efetivamente, como resulta do teor do próprio relatório elaborado pela delegação do Norte do INML, junto a fls. 6, o mesmo foi elaborado em 25-06-2018, tendo a amostra sido recebida no dia 26-04-2018, não tendo, pois, sido observado o referido prazo de 30 dias.
O que terá eventual justificação no pedido de suspensão/anulação da realização do exame, mencionado no campo das observações desse relatório, embora, em face dos elementos constantes dos autos, não se alcance o que terá sucedido e motivado tal pedido.
Com efeito, aí consta que "[e]m 21.05.2018 foi emitido Auto de Ocorrência que suspendia/anulava o pedido de realização de exame(s) toxicológico(s). Em face da resposta do Comandante do Posto Territorial de Bragança (GNR), recebida em 15.06.2018, foi dado seguimento aos procedimentos para concretização das análises solicitadas".

Por outro lado, da observação do original do anexo I resulta que as linhas destinadas ao preenchimento com a "Medicação efetuada antes da realização da colheita e após a entrada no hospital" e com os "Medicamentos e dosagens administradas nas últimas 48 horas" se encontram em branco, bem como que não lhe foi aposta a vinheta de identificação profissional do médico que promoveu a colheita de sangue.
Já em relação à alegada não entrega do duplicado do impresso ao arguido ou ao seu representante legal, nada consta dos autos que a comprove.
A questão relativa à inobservância dos referidos procedimentos foi analisada na sentença recorrida, sob a epígrafe "Questão prévia - Análise sanguínea", por haver sido suscitada pelo arguido em sede de alegações orais, tendo o Mmº. Juiz entendido que «(…) no tocante ao prazo máximo de envio do resultado, o mesmo não foi, objetivamente, respeitado. Mas daí não se pode retirar qualquer consequência processual nestes autos. Tal não tem o condão de invalidar o resultado alcançado, nem tal resulta de qualquer norma ou princípio legal. O mesmo se diga quanto às falhas no preenchimento do anexo I da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril.».

Não podemos deixar de concordar com o decidido, apenas se nos afigurando útil acrescentar o seguinte:


O não preenchimento dos referidos espaços do anexo I comporta o significado de que o examinando não foi medicado antes da realização da colheita de sangue e após a entrada no hospital nem lhe foram administrados quaisquer medicamentos nas últimas 48 horas, facto este que o próprio em momento algum alega, do mesmo modo que está completamente por demonstrar que não lhe foi entregue o duplicado do impresso.
Resta, assim, a não aposição da vinheta no original do anexo I e a inobservância do prazo de 30 dias para remessa do relatório.
Todavia, pese embora a ausência de vinheta, o certo é que o impresso contém a assinatura do médico que promoveu a colheita, seguida do n.º 43205, elementos que permitem a sua identificação, porquanto, como refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, tal número corresponde à cédula profissional do médico ortopedista Dr. D. P..
Saliente-se que o que se pretende assegurar com os citados normativos é a imprescindibilidade da manutenção da cadeia de custódia do sangue, isto é, que não haja dúvida de que o sangue examinado com vista à averiguação da presença de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas ou à averiguação e quantificação da taxa de álcool é o sangue que foi extraído à pessoa a que posteriormente serão imputados os resultados do exame.
Para assegurar essa fidedignidade, instituiu o legislador uma série de procedimentos, os quais são, para o caso de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, descritos nos arts. 4º a 6º da Lei n.º 18/2007, e nos n.ºs 3º a 10º da Portaria n.º 902-B/2007, sendo certo que o legislador não estabeleceu qualquer consequência legal para a sua inobservância.
Todavia, o incumprimento de alguns dos procedimentos aí referidos ou o seu cumprimento de forma diferente da exatamente prevista, só afetará o valor do respetivo exame de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, em termos de o mesmo deixar de poder ser utilizado para o fim a que se destina, se e na medida em que a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame forem postas em causa pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso do concreto passo estabelecido nos mencionados preceitos.

Ora, no caso dos autos, não se vê que a falta de aposição no original do modelo I da vinheta do médico que promoveu a colheita de sangue (que aliás está identificado com a respetiva assinatura e número da cédula profissional), bem como a inobservância do prazo de 30 dias para envio do relatório do exame possam afetar a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame.
Assim, improcedem as objeções agora em apreço, colocadas pelo recorrente em relação ao valor probatório do exame toxicológico.
Por tudo quanto fica exposto, conclui-se que a recolha de amostra de sangue efetuada ao arguido, destinada ao apuramento do estado de influenciado pelo álcool no exercício da condução, constituiu um meio de obtenção de prova legal, pelo que o tribunal a quo se socorreu de prova válida para dar como provada a taxa de álcool no sangue por ele apresentada, não tendo violado os preceitos legais e constitucionais invocados pelo mesmo.

Termos em que improcede este segmento do recurso.

3.2 - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Nas conclusões 36ª a 39ª (havendo um lapso de escrita na respetiva numeração, com atribuição duplicada dos n.ºs 35º e 36º), imputa o recorrente à sentença recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os artigos doravante citados sem referência de origem, preceito esse que, a par da impugnação (ampla) a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, consagra uma segunda e distinta forma de impugnar a matéria de facto (através da chamada revista alargada).

3.2.1 - Nos termos daquele primeiro normativo, "[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (…)”.

Conforme resulta desse texto legal, qualquer dos vícios aí mencionados, que são de conhecimento oficioso[8], tem que emergir da própria decisão recorrida, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[9]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, quanto a eles, esta terá que ser autossuficiente, não se podendo recorrer à prova documentada.
No âmbito da revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito ou quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Reporta-se, pois, à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não sindicável em sede de reexame restrito.

Como uniformemente tem sido decidido pelos tribunais superiores[10], o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão.

Na invocação desse vício critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. O vício consiste, pois, numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente[11].

Em suma, a insuficiência da matéria de facto para a decisão verifica-se quando há lacuna, deficiência ou omissão no seu apuramento e investigação, o que se vem a repercutir na qualificação jurídica dos factos e/ou na medida da pena aplicada e/ou em qualquer outra consequência que, em sede de decisão, se tomou sobre o caso, como, por exemplo, o resultado do pedido cível ou o destino a dar a bens e objetos apreendidos nos autos, acarretando a normal consequência de uma decisão viciada por falta de base factual.

3.2.2 - Defende o recorrente, para fundamentar a existência deste vício, que o tribunal a quo omitiu a apreciação e decisão sobre determinados factos, alegados pela defesa, quer em sede de contestação quer no âmbito da audiência de discussão e julgamento, dos quais podia e devia conhecer, porque relevantes para a decisão, concretamente para a validade do meio de prova (exame toxicológico) através do qual se apurou a taxa de álcool no sangue.

Tais factos são os seguintes:

a) - Qual era a condição de saúde do arguido após o acidente que determinou ser impossível e inexequível a pesquisa de álcool no ar expirado;
b) - Se a omissão no preenchimento do modelo do anexo I previsto na Portaria 902-B/2007 no que toca à medicação ministrada ao arguido já no hospital e nas 48 horas anteriores ao sinistro poderá ter influenciado a taxa de álcool que veio a ser apurada e, de igual modo, com que material/substância é feita a desinfeção do local da picada da agulha para recolha do sangue.

É manifesta a falta de razão do recorrente, porquanto, no que concerne ao primeiro dos apontados factos, a sua condição de saúde após o acidente encontra-se cabalmente descrita na factualidade provada, concretamente onde se refere que sofreu fratura exposta na perna, com grande hemorragia, que foi imobilizado com tala e colar cervical e que foi transportado para o hospital, factos estes que, pelas razões supra expostas (no ponto 3.1), permitem concluir por uma situação de impossibilidade de pesquisa de álcool no sangue através de teste ao ar expirado, verificando-se, consequentemente, a previsão dos arts. 153º, n.º 8, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, justificadora do recurso à colheita de amostra sanguínea, sem necessidade de a mesma ser precedida de qualquer tentativa de pesquisa de álcool através daquele teste.

Por seu turno, como também já referimos, o facto de o anexo I não se encontrar preenchido na parte relativa à medicação ministrada ao examinando antes da realização da colheita e após a entrada no hospital, bem como nas últimas 48 horas, mostrando-se em branco os respetivos espaços do impresso, não significa que a recolha tenha sido realizada sem a observância dessa regra, essencial para a viabilidade do resultado do exame, sendo apenas reveladora da inexistência dessas circunstâncias, sendo certo que, em relação à segunda, o próprio arguido em momento algum alegou ter tomado qualquer medicação nas 48 horas anteriores ao acidente.

Por fim, quanto ao apuramento do material ou substância com que foi feita a desinfeção do local da picada da agulha para recolha do sangue, sendo esta sido efetuada por um médico, num estabelecimento da rede pública de saúde, concretamente no Centro Hospitalar do …, em Bragança, segundo um procedimento legalmente previsto e com a finalidade de determinar a taxa de álcool no sangue, seguramente que aquele profissional de saúde não deixou de observar os procedimentos habituais para esse tipo de situações, nomeadamente sem usar álcool como desinfetante cutâneo.
Aliás, em momento algum o arguido afirmou ter sido utilizada essa substância, pelo que a sua argumentação assenta em meras conjeturas ou hipóteses abstratas.
Não tinha, pois, o tribunal a quo qualquer motivo sério para investigar esse facto, assim, como os restantes invocados pelo recorrente.

Improcede, assim, a questão do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

3.3 - Do erro notório na apreciação da prova

O recorrente imputa também à sentença recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410º (conclusões 5ª a 9º).
Todavia, fá-lo em termos que revelam uma confusão nítida entre as duas formas perfeitamente distintas que existem de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto: por um lado, a invocação dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2 (a chamada revista alargada), entre os quais o erro notório na apreciação da prova [al. c)], os quais, como já mencionámos no ponto 3.2, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento como seja a prova documentada, e, por outro, a impugnação (ampla) da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, n.ºs 3 e 4.

O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, bem como quando se violem as regras sobre prova vinculada ou as leges artis.
Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, isto é, dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente[12].
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[13]. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova. No âmbito do controlo ínsito na identificação desses vícios, o que releva é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
Do teor das referidas conclusões e da respetiva densificação no corpo da motivação, resulta inequivocamente que, embora aludindo à existência de erro notório na apreciação da prova e invocando expressamente o art. 410º, n.º 2, al. c), todavia, o recorrente situa tal erro numa incorreta valoração da prova produzida, concretamente na existência de prova suficiente que permitia ao tribunal a quo ter considerado como provado o facto de que "o tubo de colheita utilizado não contém anticoagulante", dado como não provado.
Para tanto, invoca o teor do documento n.º 2 junto com a contestação, consistente na resposta fornecida pela Exma. Senhora Diretora do Serviço de Patologia Clínica da Unidade Local de Saúde do …, E.P.E. - local onde o arguido recebeu assistência médica e lhe foi feita a colheita sanguínea para exame de determinação da taxa de álcool no sangue - relativa ao pedido de informação solicitado via postal, na qual a referida diretora clínica responde que "o tubo de colheita não contém anticoagulante", contrariamente ao exigido no art. 5º, al. a), da Portaria n.º 9902-B/2007.

Documento esse que foi objeto de ponderação pelo Mmº. Juiz na motivação da decisão de facto, tendo, porém, concluído o seguinte (transcrição):

«Ora, esta informação do hospital, em resposta a questões do Arguido, não tem o condão de surtir o efeito pretendido pelo Arguido. Pois o exame efetuado no hospital foi-o mediante a bolsa n.º 54728 (conforme referido no auto de noticia de fls. 10 e na própria informação do hospital de fls. 8).
Ou seja, o tubo de colheita utilizado, tal como resulta dos documentos atrás citados, vem numa bolsa fornecida pela ANSR às autoridades policiais (prevista em 5.º da portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril) que estas autoridades entregam na Unidade de Saúde (como efetivamente ocorreu face aos elementos constantes dos autos), e a que os estabelecimentos hospitalares são alheios (pelo que nunca a declaração emitida pode significar o que o Arguido conclui).»

Independentemente da valia das considerações tecidas, o que aqui não releva, o Mmº. Juiz explicitou cabalmente a razão pela qual, apesar do teor do referido documento, deu como não provado o facto em apreço.
Aquilo que o recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da mesma, consagrado no art. 127º, sem apontar à decisão recorrida qualquer erro notório em tal apreciação, no sentido em que este vício deve ser entendido, ou seja, como resultando do próprio texto da decisão posta em crise.
Ao invés, o recorrente não se atém ao texto da decisão recorrida, para demonstrar que da mera leitura da mesma resulta que o tribunal a quo incorreu em erro ao dar como não provado o facto de que "o tubo de colheita utilizado não contém anticoagulante", como se impunha que fizesse, o que afasta liminarmente a existência daquele vício decisório.
Pelo contrário, extravasando o âmbito da arguição do vício em questão, socorre-se da prova documental junta aos autos para demonstrar que o tribunal recorrido a apreciou e valorou erradamente, visando, assim, a reapreciação da mesma pelo tribunal de recurso, com vista a ser dado como provado o facto em questão.
Tal erro, nos termos em que é invocado, a existir, traduzir-se-á antes em erro de julgamento, objeto da impugnação alargada de decisão de facto ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4, e não da impugnação restrita prevista no art. 410º, n.º 2, confundindo, pois, o recorrente vícios da decisão judicial com erro de julgamento.
Confusão essa, aliás, manifesta, uma vez que, a anteceder a conclusão 5ª e também no corpo da motivação, o recorrente cita expressamente o art. 412º, n.º 3, al. a), para indicar o ponto de facto que considera incorretamente julgado, bem como, agora só na motivação, cita a al. b) do mesmo preceito para indicar as provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz no cumprimento dos ónus de impugnação especificada previstos para a impugnação ampla da matéria de facto.
Todavia, como o Exmo. Procurador-Geral Adjunto assertivamente demonstra no seu parecer, o recorrente é que lavra em equívoco, na medida em que, na referida resposta, vertida no documento n.º 2 junto com a contestação, a Diretora do Serviço de Patologia Clínica da Unidade Local de Saúde do … EPE, não se está a reportar à colheita de sangue efetuada para efeitos de exame destinado à quantificação da taxa de álcool no sangue, a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, nos termos previstos nos arts. 153º, n.º 8, do Código da Estrada, 4º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, e n.ºs 4 a 10 da Portaria n.º 902-B/2007, mas sim à colheita de sangue feita no serviço de urgência da referida unidade de saúde, para que fossem realizadas no seu laboratório análises sanguíneas de natureza clínica, com vista ao tratamento dos graves ferimentos que o arguido apresentava, análises essas cujos resultados o mesmo juntou com a contestação (doc. 3), contendo também o doseamento de etanol, assim se compreendendo a informação prestada no referido documento n.º 2 de que "o parâmetro Etanol é doseado no soro, pelo que o tubo de colheita não contém anticoagulante".

Saliente-se que de acordo com o n.º 5 da Portaria n.º 902-B/2007, para a realização da colheita do sangue destinado à realização das análises para quantificação da taxa de álcool, efetuada em estabelecimento da rede pública de saúde a que o examinando seja conduzido pelo agente de autoridade, este deve entregar no referido estabelecimento, para além do um impresso do modelo do anexo I, uma bolsa devidamente selada, de modelo aprovado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, contendo o material destinado à recolha e acondicionamento da amostra, constituído, nomeadamente, por um tubo com a capacidade mínima de 5 cc, contendo um anticoagulante e conservante adequados destinado à amostra de sangue, bem como um contentor adequado ao acondicionamento do referido tubo.

Ora, conforme resulta dos autos, a colheita de sangue efetuada, a solicitação da GNR, para efeitos de quantificação da taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido, mediante exame a realizar pelo INML, obedeceu a esse procedimento legalmente estabelecido, isto é, foi feita mediante a utilização da referida bolsa, devidamente selada e entregue na unidade de saúde pela autoridade policial, contendo um tubo de colheita de sangue que já possui um anticoagulante.

Acresce que, dispondo o ponto 1.1 do Anexo ao Despacho n.º 3652/99 do Secretário de Estado da Justiça, que aprovou as regras relativas à colheita e envio de amostras e procedimentos analíticos relativos ao exame toxicológico de quantificação da taxa de álcool no sangue[14], que "[a] amostra para exame toxicológico de quantificação da taxa de álcool no sangue compreende: a) Nos indivíduos vivos, um volume de 10 cc de sangue, em tubo apropriado e de volume igual à amostra colhida, contendo anticoagulante e conservante adequados; (…)", o ponto 3.5 do mesmo diploma prevê que "[q]ualquer não conformidade com os procedimentos adequados deve ser comunicada à entidade requisitante. Neste caso, o laboratório não deve analisar a amostra até ao completo esclarecimento dos factos."

Sucede que a delegação do INML que efetuou o exame toxicológico em apreço nada observou relativamente ao acondicionamento e envio para exame da respetiva amostra sanguínea, sendo, pois, de inferir que se o tubo em causa, por razões que não se alcançam, não contivesse anticoagulante, seguramente que tal circunstância não deixaria de ser notada e transmitida à entidade requisitante.
Impõe-se, pois, concluir que a sentença recorrida não padece de erro de julgamento quanto ao referido facto dado como não provado, que assim se mantém.
Todavia, como mais uma vez aponta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova no que concerne à concreta taxa de álcool no sangue dada como provado no ponto 1º (2,13 g/l).
Com efeito, como resulta da respetiva motivação, a decisão sobre tal facto assentou exclusivamente no resultado do exame sanguíneo a que se reporta o relatório junto a fls. 6, elaborado pelo INML, e que constitui prova pericial em sentido estrito, atenta a intervenção de estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado (cfr. art. 152º, n.º 1).
Sucede que desse relatório consta que a análise efetuada para quantificação de etanol no sangue, pelo método HS/GF-FID, apresentou um resultado de 2,13 ± 0,27 g/l, esclarecendo-se em nota de rodapé que "a incerteza apresentada corresponde a uma incerteza expandida calculada com aplicação de um fator de cobertura k=2, o qual, para uma distribuição normal, corresponde a um grau de confiança de 95%".
O referido valor de ± 0,27 corresponde, assim, à estimativa da incerteza, sempre presente, mesmo tratando-se de análise sanguínea.
A representação da incerteza como ± 0,27 significa que este valor (0,27) caracteriza a dispersão dos valores que podem ser atribuídos ao resultado final obtido.
No presente caso, considerando o valor expresso no relatório, um resultado expresso como 2,13 ± 0,27 g/l, significa que foi analiticamente determinada uma alcoolémia de 2,13 g/l e que, tendo em consideração a incerteza estimada para o método em vigor, a mesma poderá variar entre 1,86 e 2,40 g/l".
Pelo que não se pode concluir que o arguido, aquando da prática dos factos, apresentava uma TAS de 2,13 g/l, como foi dado como provado no ponto 1º, mas apenas que teria uma taxa entre 1,86 e 2,40 g/l
Assim sendo, por se desconhecer ao certo a TAS aquando da prática dos factos e existir a possibilidade dela ser inferior a 2,13 g/l, podendo ir, na possibilidade mais benéfica para o arguido, até ao valor de 1,86, deverá ser este o valor a dar como provado, desde logo por imposição do princípio in dubio pro reo.
Como já referimos supra, o vício de erro notório na apreciação da prova abrange as situações em que um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Na hipótese de erro notório na apreciação da prova, as regras da experiência comum podem, em princípio, ser invocadas quando da sua aplicação ressalte, sem margem para dúvidas, a existência desse erro, ou seja, quando, contra o que resulta de elementos que constem dos autos, e cuja força probatória não haja sido infirmada, ou de dados do conhecimento público generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.

No caso vertente, o facto provado relativamente à taxa de álcool no sangue diverge da prova pericial junta aos autos, em que o juízo científico dela constante se presume subtraído à livre apreciação do julgador (cf. art. 163º, n.º 1), o qual deverá fundamentar a sua divergência em relação ao mesmo.

Conclui-se, assim, que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, vício que é de conhecimento oficioso, ao dar como provado que o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,13 g/l, quando, em face do teor do relatório pericial existe uma margem de incerteza de +- 0,27, que aplicada àquele valor, conduz a um limite inferior de 1,86 g/l, que deve ser dado como provado por aplicação do princípio em dubio pro reu.
Em termos de consequências de tal erro, dispõe o art.º 426º, n.º 1, que "[s]empre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento (…).".
Por seu turno, de acordo como a al. a) do art. 431º, al. a), sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base.
In casu este tribunal dispõe de todos os elementos para suprir o aludido vício, bastando para tanto alterar o facto relativo à taxa de alcoolémia, tornando-se desnecessário o reenvio do processo.

Deste modo, o ponto 1º dos factos provados passa a ter a seguinte redação:

«1. No dia 25 de Abril de 2018, cerca das 23h00m, o arguido conduzia o motociclo, matrícula ..., na EM 505, ao km 6,380, em Paçó – Vinhais, nesta comarca, com a taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,86 g/l sangue;».
Esta alteração factual tem implicações a nível do grau de ilicitude do facto, que assim se vê reduzido em medida não despicienda.
Considerando que, como não podia deixar de ser, o grau de ilicitude do facto foi ponderado na determinação da medida concreta da pena principal e da pena acessória, fixadas, respetivamente, em 70 dias de multa e 5 meses e 10 dias de proibição de conduzir veículos motorizados, grau de ilicitude esse que foi considerado pelo tribunal a quo como "elevado, atenta a taxa de alcoolemia apresentada pelo Arguido", impõe-se fazer refletir a referida alteração factual na medida das penas.
Assim, reputa-se adequado reduzir a pena principal para 60 dias de multa e a pena acessória para 4 meses e 10 dias, medidas que se apresentam adequadas, atentas as demais circunstâncias elencadas na sentença recorrida e com cuja ponderação se concorda.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente provido o recurso interposto pelo arguido, F. S., e, em consequência, decidem:

A) - Alterar a decisão sobre a matéria de facto, passando o ponto 1º dos factos provados a ter a seguinte redação:

«1. No dia 25 de Abril de 2018, cerca das 23h00m, o arguido conduzia o motociclo, matrícula ..., na EM 505, ao km 6,380, em Paçó – Vinhais, nesta comarca, com a taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,86 g/l sangue;».
B) - Reduzir a pena principal para 60 (sessenta) dias de multa, mantendo-se a taxa diária de € 5,50, perfazendo a multa de € 330 (trezentos e trinta euros), e reduzir a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor para 4 (quatro) meses e 10 (dez) dias.
C) - Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

Sem custas (art. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
*
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

*
Guimarães, 09 de março de 2020

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)



1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a ortografia e a formatação, que são da responsabilidade do relator.
2. - Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
3. - Proferido no processo n.º 70/16.0PTBRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
4. - Cf. ainda os acórdãos do TRE de 06-06-2017 (processo n.º 344/15.7GCSLV.E1) e de 21-04-2015 (processo n.º 45/09.5GECUB.E3), ambos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
5. - Datado de 07-05-2014 (processo n.º 937/13) e disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20140397.html.
6. - Proferido a 15-07-2013 (processo n.º 120/11), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 20140397.html.
7. - Proferido no processo n.º 34/17.6GCGMR.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
8. - Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão citado na nota 2.
9. - Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª edição, pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª edição, pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, pág. 77 e ss..
10. - Cf., nomeadamente, o acórdão de STJ de 20-04-2006 (processo n.º 06P363), disponível em http://www.dgsi.pt.
11. - Cf. o acórdão do TRL de 18-07-2013 (processo n.º 1/05.2JFLSB.L1-3), disponível em http://www.dgsi.pt.
12. - Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341.
13. - Vd. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74.
14. - Publicado no Diário da República - II Série - n.º 45, de 23-02-1999, pág. 2637.