Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5/20.5GAVLN.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ACUSAÇÃO
BUSCA DOMICILIÁRIA
CONSENTIMENTO
NÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - O art. 283º, nº 3, al. b), do CPP, apenas exige a narração sintética dos factos imputados ao arguido e, dentro do possível, a indicação do lugar e tempo da sua prática.
2 - Em caso de tráfico de estupefacientes que se prolonga por cerca de 17 anos, a referência a períodos temporais balizados e a localidades onde os factos ocorreram, além da frequência das vendas/entregas e da natureza das substâncias, é suficiente para permitir ao arguido entender os factos imputados e deles se defender.
3 - O consentimento para a realização de uma busca domiciliária não tem que ser prestado por todos os residentes na habitação, nem sequer pelo respetivo titular (dono ou arrendatário), mas somente pelo visado/afetado pela mesma, que detém a livre disponibilidade do espaço.
4 - Tendo o tráfico de estupefacientes, de substâncias de elevado poder aditivo, decorrido, ainda que com hiatos, durante cerca de 17 anos e revelando uma já sofisticada organização da atividade, a que acresce a frágil capacidade de análise crítica do arguido, não permite a formulação de um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena, apesar da primariedade criminal do arguido e da sua idade (62 anos)."
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em processo comum (tribunal coletivo) com o nº 5/20.5GAVLN, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, foi proferido acórdão, com data de 17/05/2021 e depositado no mesmo dia, com a seguinte decisão (transcrição):

“Pelo exposto, e na procedência parcial da pronúncia, os juízes que compõem este tribunal colectivo:

- condenam o arguido A. G., pela prática, em co-autoria material com a arguida, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas anexas I-B e I-C, na pena efectiva de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão;
- condenam a arguida S. M., pela prática, em co-autoria material com o arguido, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas anexas I-B e I-C, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão;
- suspendem a execução desta pena aplicada à arguida pelo período de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses, com sujeição a regime de prova, direccionado para a obrigação de manutenção e, em caso de perda, de procura activa de emprego;
- determinam a recolha de ADN dos arguidos A. G. e S. M., a fim de os respectivos perfis integrarem a respectiva base de dados prevista na Lei n.º 5/2008, de 2 de Fevereiro;
- condenam os arguidos nas custas, com 5 UC de taxa de justiça;
- declaram perdido a favor do Estado todo o produto estupefaciente apreendido nos autos, ordenando a sua destruição;
- declaram perdidos a favor do Estado € 930,00 (novecentos e trinta euros) apreendidos ao arguido;
- julgam parcialmente procedente o pedido de perda de vantagens deduzido pelo Ministério Público e condenam solidariamente os arguidos A. G. e
S. M. a pagar ao Estado a quantia de € 28.800,00 (vinte e oito mil e oitocentos euros);
- declaram perdidos a favor do Estado o telemóvel do arguido de marca “Qubo”, a tesoura, a faca de cozinha, os recortes de plástico, a balança de precisão e respectivas pilhas, o cofre preto, os blocos de apontamentos descritos em 6., 7.A1 e A2), a carteira moedeira, a caixa de plástico marca “Clic” e um porta moedas preto de couro;
- determinam a destruição destes objectos perdidos, à excepção do telemóvel, da balança e respectivas pilhas;
- determinam o cumprimento do art. 186.º, n.º 3, Código de Processo Penal, na pessoa do arguido, relativamente ao cofre metálico azul e seu conteúdo (7.A4), à mala e à quantia em dinheiro (7.A5) que nela se encontrava (sempre sem prejuízo do decidido em sede de perda de vantagens a favor do Estado), e ainda quanto às 260 munições apreendidas, face à sua irrelevância criminal.
Face ao disposto no art. 213.º, n.º 1, b), Cód. Proc. Penal, por se mostrarem inalteráveis – e até reforçados pelo teor do presente acórdão – os pressupostos de facto (perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de fuga) e de direito que deram lugar à aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica ao arguido A. G., determina-se, sem necessidade de audição deste, que o mesmo continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a tal medida (arts. 204.º, a) e c), 201.º e 215.º, n.º 1, d), e n.º 2, Cód. Proc. Penal).
Boletins à Identificação Criminal.

Notifique, deposite e comunique (art. 64.º, n.º 2, D.L. n.º 15/93), enviando cópia à DGRSP, a quem se solicita a elaboração do plano de reinserção social relativo à arguida, e à equipa de vigilância electrónica.
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2 – Não se conformando com a decisão, os arguidos A. G. e S. M. interpuseram recurso, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

“1) A acusação, no que respeita à narração dos factos, além dos elementos do crime de natureza subjetiva, deve, em princípio, ser precisa relativamente aos seguintes aspetos: a) quem cometeu o crime (relevante para a questão da autoria); quando (relevante para as questões da imputabilidade, do regime legal aplicável, da prescrição); onde (questão da competência do tribunal); c) como (questão do enquadramento típico); d) porquê (questão da motivação);
2) A matéria constante dos pontos 10.º a 65.º da acusação reporta a factos relacionados com transações de droga com 13 (treze) pessoas ali identificadas, mas, analisada cuidadosamente a douta acusação pública verifica-se que não é possível à arguida S. M. apresentar defesa porquanto o Ministério Público não especificou as datas concretas em que as transações ocorreram, balizando-as, ao cabo e ao resto, em datas não concretamente apuradas entre 2004 e 30 de Abril de 2020 e recorrendo a conceitos genéricos, imprecisos e indeterminados como “em data não concretamente apurada”; “com uma regularidade que não se apurou”; “comprava duas ou três vezes por semana” sem indicar as semanas; “em muitas dessas entregas a arguida S. M. acompanhava o arguido”, sem indicar as vezes; “por ocasião das férias de Verão, no mínimo em cinco ocasiões”; “em número de vezes não concretamente apuradas, foi a arguida quem, sozinha, lhe efetuou a entrega”; “normalmente comprava aos arguidos um grama de cocaína, duas vezes por semana”; “por norma o encontro era marcado a meio do trajeto de ambos, sempre do lado de Espanha”, etc.
3) Se em relação ao arguido A. G., atenta a sua confissão, esta temática perdeu atualidade, já quanto à arguida S. M. não se lhe imputa nada de concreto nesses pontos, apenas que “às vezes acompanhava o arguido A. G.”, mas sem se precisar, ainda que por aproximação temporal, as concretas transações em que terá estado presente.
4) Assim, na acusação devem ser mencionados todos os elementos da infração, através da descrição (ainda que sintética, o que não é o caso) dos factos que o arguido praticou, sendo perante este enquadramento factual e jurídico que o arguido terá oportunidade de elaborar a sua estratégia de defesa.
5) Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória (como, embora mitigadamente, é o nosso, por imperativo constitucional) exige, para assegurar a integridade das garantias de defesa do arguido, uma necessária conexão entre a acusação e a sentença que, em princípio, coenvolverá a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias incriminatórias que não constem do objeto do processo, uma vez este definido pela acusação.
6) Nos pontos 10.º a 65.º da acusação pública não são narrados factos suficientes para a imputação do apontado crime aos arguidos, padecendo a mesma da nulidade prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, a qual se invoca expressamente, pois ocorreu uma gravíssima violação dos direitos de defesa dos acusados, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
7) No caso concreto da arguida S. M., a acusação contra si deduzida é nula nos pontos 14.º a 19.º, 20.º a 24.º, 25.º a 27.º, 32.º a 35.º, 42.º a 45.º, 50.º a 52.º, 53.º a 57.º e 62.º a 65.º.
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8) Num domicílio com vários usuários, onde há espaços comuns e privativos, por via de dúvida e como forma de evitar a recolha de prova proibida, o órgão de polícia criminal, entre outros requisitos, deve observar o consentimento de todos os titulares do espaço, sendo que a arguida S. M. não autorizou – nem consta dos autos qualquer suporte documental donde se extraia ter consentido – a realização da busca domiciliária realizada.
9) O consentimento do visado não é uma simples formalidade, mas sim um pressuposto ou condição de validade da busca, que tendo lugar fora dos casos legalmente previstos e sem consentimento do visado geram proibição de prova nos termos dos artigos 126º, nº3 e, 118º, do Código de Processo Penal e, nos termos do artigo 32º, nº 8 da Constituição, que determina que “são nulas todas as provas obtidas mediante (…), abusiva intromissão (…) no domicílio, (…)”, sendo sabido que o visado é quem tenha a fruição da habitação ou dependência não sendo necessariamente o arguido (A. G.).
10) A sentença recorrida andou mal ao convocar para a sua ponderação a figura do flagrante delito pois é inapropriado falar-se aqui em flagrante delito, pois este ocorreu, sim, mas em momento anterior e em local diferente - na estrada - aquando da interceção da viatura automóvel - os factos ocorridos na estrada não tinham a elasticidade de justificar a manutenção do quadro de flagrante delito para uma busca a levar a cabo num outro local, na casa dos arguidos.
11) Não havendo flagrante delito, deve dizer-se que não se pode dizer que a busca tenha incidido apenas no quarto do arguido A. G., porque é óbvio, e foi reconhecido pelos próprios soldados da GNR em julgamento e consta expressamente do auto de busca, que o que foi objeto da busca foi a casa – toda ela, incluindo a garagem… - pois quando a GNR se dirigiu ao local não sabia sequer quantas divisões tinha a casa, qual era o quarto do A. G. ou da S. M., se dormiam juntos ou separados.
12) A partir dessa busca ilegal na sua casa, a arguida S. M. passou a ser, mais tarde, arguida neste processo e passou a gozar da prerrogativa de se remeter ao silêncio, de constituir advogado, gozando desse estatuto em toda a sua plenitude, mas a verdade é que já poderia ter esse estatuto logo no dia da busca, pois que naquele ato, perante o que foi encontrado no local (dinheiro e substancias estupefacientes), numa casa de morada de família, da qual era ela a inquilina, já deveria ter sido constituída arguida.
13) No momento da busca ela não tinha o estatuto de arguida (podendo-o ter, já que vivia naquela casa), não lhe foi dado o direito de se remeter ao silêncio, pelo que jamais poderiam ser usadas as suas declarações informais (ainda que as tivesse proferido, o que não se concede), contra si.
14) Era imprescindível obter o consentimento da arguida S. M., enquanto pessoa visada pela diligência e inquilina do imóvel, tanto mais que o que foi encontrado na sua casa serviu para a acusar (p. ex. o livro de notas onde constavam os números de telefone das pessoas identificadas na acusação) e a ausência desse consentimento determina como efeito jurídico a nulidade da prova obtida, que é proibida.
15) É inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 34.º da Constituição, a norma da alínea b) do n.º 3, com referência al. b) do n.º 2, do art.º 177.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o “consentimento” para a busca no domicílio do arguido possa ser dado por pessoa diferente deste, mesmo que tal pessoa seja um co-domiciliado com disponibilidade da habitação em causa.
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16) O facto da arguida “acompanhar” o arguido, indo com ele no carro, não permite a conclusão de que sabia o que o arguido A. G. estava a fazer, nem tal matéria, essencial e não apenas instrumental, está provada.
17) Não há factos provados que permitam concluir que o facto de a arguida S. M. “acompanhar” o arguido A. G. se reconduz à conduta do A. G. que “efectuava” as entregas, pelo que não estão provados factos suficientes que suportem a condenação da arguida S. M..
18) Da conjugação da prova produzida em julgamento não foi possível obter, de facto, materialidade, que permita concluir que a arguida tenha recebido contrapartidas pela venda de substâncias estupefacientes, sendo manifestamente abusivo a interpretação dada ao facto da arguida ter “acompanhado” no carro o seu marido e concluir-se que, “se não sei o porque, então foi porque foi para o coadjuvar”.
19) Resulta da globalidade do próprio texto da decisão recorrida que o tribunal violou o principio in dubio pro reo pois, apesar da insuficiência manifesta sobre a prova de determinados factos, decidiu em sentido desfavorável á arguida, arrastando-a, ao cabo e ao resto, para a conduta imputada ao arguido A. G..
20) O ponto 30.º da matéria provada, que refere que “As mesmas entregas eram efectuadas pelo arguido, sendo que por vezes a arguida o acompanhava, além de ter havido outras vezes, não concretamente apuradas, em que foi a arguida, sozinha, a entregar a cocaína a C. A.” é matéria que não poderia ser dada por provada, pois consubstancia uma factologia absolutamente imprópria, conclusiva e indeterminada, já que não se identifica a circunstância de local imputada à arguida S. M., não se identifica o tempo em que a conduta ocorreu, não se identifica o número de vezes em que a conduta ocorreu, nem sequer se identifica uma realidade concreta acerca do que se imputa à arguida S. M., usando-se o chavão “…além de ter havido outras vezes, não concretamente apuradas…”.
21) Os pontos 62.º e 68.º da acusação consubstancia uma mera generalidade, um juízo conclusivo, muito forçado, aliás, pois não resulta dos pontos anteriormente dados como provados, pelo que deve ser removido dos factos provados.
22) É exigível a intervenção do Tribunal da Relação ao nível da (re)apreciação da prova, mas também “na despistagem (identificação/qualificação/expurgação), nos pontos da matéria de facto em causa, das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito”, ao abrigo da previsão constante do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, que não no âmbito do disposto nos art.ºs. 640.º (impugnação da decisão relativa à matéria de facto feita pela parte/recorrente) ou 662.º (modificabilidade da decisão de facto) do CPC.
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23) A pena aplicada ao arguido, por se conter nos limites previstos no art. 50.º, n.º 1, é suscetível de suspensão na sua execução, “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, [se] concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
24) Não são considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos de prognose sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias de facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas, tomando por referência o momento da decisão e não da prática do crime.
25) O tribunal tem o dever de suspender a execução da prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste concluir que a simples censura do facto e da ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40º, n.º 1, do Código Penal).
26) O Tribunal recorrido não valorou adequadamente a circunstância do arguido ter a seu favor o facto de se encontrar familiarmente inserido, vivendo com a sua companheira e tendo o apoio das suas filhas, com quem mantém contacto frequente; de ter uma idade avançada – 62 anos pelo que não terá muitos mais anos pela frente; de ser primário; o arrependimento pelo cometimento dos factos que resulta claro da sua confissão; de gozar de boa imagem social, sendo que no plano pessoal, apesar de não ser português, está muito bem inserido em Valença, com excelente relacionamento com os seus vizinhos; de ter um rendimento fixo (pensão de reforma) e de ter acabado de receber no ano 2020 uma indemnização de cerca de Euros: 100.000,00 (facto provado nº 84.º – indemnização de Euros: 72.000,00 a que acrescem juros), pelo que tem todos os meios de subsistência para retomar a vida em comunidade; e, finalmente, mas muito importante, de já se encontrar detido há catorze meses, com um comportamento exemplar;
27) As condições de vida do arguido referidas na conclusão anterior constituem elementos suscetíveis de formular um juízo de prognose favorável sobre a condução de vida daquele no futuro, sendo de prever, que a simples ameaça da pena será suficiente para prevenir a reincidência, realizando a finalidade da prevenção especial.
28) O Tribunal recorrido não valorizou, adequadamente, o facto de este ser o primeiro contacto do arguido com a justiça - aos 62 anos de idade - não se reclamando, por isso, excepcionais medidas de prevenção especial, até pela consciência do arguido perante os factos, factos esses que confessou abertamente e pelos quais se arrependeu, sendo que é justamente esta a fase da vida que mais necessita de uma oportunidade de ressocialização.
29) Não obstante a gravidade dos factos, afigura-se, pois, que a simples censura dos factos a quem já experimentou 14 meses de detenção à data da condenação em n1.ª Instância (logo no primeiro contacto com o sistema penal) e a ameaça da pena de prisão apresentam virtualidades suficientes para satisfazer as exigências da punição, sem que saia irremediavelmente comprometida a defesa do ordenamento jurídico, pelo que se adequa e impõe a suspensão da execução da pena de prisão.
30) O facto em si mesmo de estar privado da sua liberdade há tanto tempo constitui, necessariamente, uma experiência de introspeção única, que o marca e lhe faz sentir a reação do sistema jurídico contra o desvalor da sua conduta, facto que deveria ter sido levado em consideração pelo Tribunal de 1.ª Instância aquando da decisão de suspender ou não a execução da pena, mas não o foi.
31) O facto de o arguido estar há catorze meses privado da liberdade já foi e é condição suficiente para o fazer aderir e melhor perceber o significado e alcance do valor duma conduta ordeira e dentro dos padrões da legalidade – por causa dos factos dos autos, o arguido já foi sacrificado em catorze meses de liberdade, pelo que se tem de conceder que é uma situação diferente da de outra pessoa que nunca tivesse sido privado da liberdade, e trata-se de um aspeto que deveria estar presente na mente do julgador no momento da decisão da suspensão da pena, o que, in casu, não ocorreu com o Tribunal recorrido.
32) A pena cominada ao arguido deverá ser suspensa na sua execução, pena essa que poderá ser sujeita a regime de prova nos termos do art.º 53º nº 1 a 3 do C. Penal, devendo ser elaborado, oportunamente, plano de reinserção social, de acordo com o art.º 54º do C. Penal, plano para o qual o arguido dá a sua concordância e/ou, fixada a condições que V. Exc.ªs entenderem.

DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS

▪ Artigos nºs 40º e 50ºdo Código Penal.
▪Artigos n.º 32 n.º1,3 e 8, 34.º n.1, n.º3 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
▪ Artigo 127º do Código de Processo Penal.
▪ Artigo 126.º 3, 118.º e 117.º, b) do Código de Processo Penal.
▪ Artigos 308º n.º 2 por referência ao artigo 283 ambos do CPP;
▪ Artigo 379, n.º 1 do Código de Processo Penal
▪ Artigo 50º do Código Penal

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E EM CONSEQUÊNCIA DEVERIA SER O DOUTO ACÓRDÃO SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE CONTEMPLE AS CONCLUSÕES ATRÁS ADUZIDAS, ABSOLVENDO A ARGUIDA S. M. DO CRIME PELO QUAL FOI CONDENADA EM 1.ª INSTÂNCIA E DETERMINANDI-SE A SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA APLICADA AO ARGUIDO A. G.. DECIDINDO DESSA FORMA, FARÃO V. EXC.ªS, UM ACTO DE SÃ JUSTIÇA!
COMO SEMPRE!

3 – A Exma. Procuradora da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, após formular as seguintes conclusões:

“1) A Acusação/Pronúncia não padece de nulidade, balizando os factos no tempo e no espaço, bem como a sua autoria.
2) A Busca domiciliária efectuada pela GNR à residência do arguido no seguimento de detenção por flagrante delito de crime de Tráfico do art. 21º do DL 15/93, de 22/01, não padece de nulidade.
3) De qualquer forma o arguido A. G., na altura da Busca único visado e suspeito do crime, consentiu na mesma.
4) Na busca apenas foram apreendidos objectos e produtos estupefacientes no quarto do arguido, unicamente utilizado por este, sendo o arguido que forneceu a chave quer do quarto quer do cofre que estava no quarto, chaves que guardava no veículo.
5) A arguida S. M., esposa/companheira do arguido, na altura da Busca não era suspeita, sendo constituída arguida 5 meses depois, no seguimento das diligências de inquérito e da inquirição de consumidores, pelo que não foi violado o art. 34º da CRP.
6) Os recorrentes limitam-se a discordar da análise da matéria de facto, sem invocar os concretos pontos de facto e os concretos meios de prova que deveriam levar à prova do contrário ou à não prova dos factos dados como provados (art. 412º, n.º 3, als. a) e b) do CPP).
7) Inexiste lugar à aplicação do Princípio in dubio pro reo quando o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida, muito menos razoável.
8) Não há lugar à suspensão da execução da pena de prisão quando não se criou uma relação de confiança entre o arguido e o Tribunal que a simples ameaça de prisão servirá para o afastar da prática de crimes..
4 – Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto sufragou a posição do Ministério Público na primeira instância, emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelos arguidos.
5 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
6 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso aí dever ser julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.
* * *
II - Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da respetiva motivação - artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas - artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48).
2 - As questões invocadas no recurso são as seguintes:
- Nulidade da acusação (por falta de adequada narração dos factos Imputados à arguida S. M.);
- Nulidade da busca domiciliária realizada;
- Inexistência de factos provados susceptíveis de preencher o ilícito típico quanto à arguida S. M. (aflorando a violação do princípio in dubio pro reo);
- A pena concreta aplicada ao arguido A. G. deve ser suspensa na execução.

3 – Fundamentação (de facto) constante do acórdão recorrido (transcrição):
FACTOS PROVADOS (com relevância para a decisão da causa)

(Da acusação)
1. A 30 de Abril de 2020, após as 20.30h, quando uma patrulha da GNR-NIC de Valença, composta pelo Guarda S. E., o 1.º Sargento R. C. e o Cabo P. B., efectuava patrulhamento de prevenção e repressão de criminalidade, os seus elementos avistaram a circular na E.N. 101, na Zona Industrial …, em Monção, o veículo de matrícula MS, conduzido por D. B., conhecido por ser consumidor de cocaína, o qual se fazia acompanhar de dois amigos, A. S. e H. T., e do primo M. B..
2. Iniciado o seguimento deste veículo, e depois de várias paragens, D. B. imobilizou o veículo automóvel que conduzia na Rua …, em ..., Valença.
3. Volvido pouco tempo, chegou ao local o veículo automóvel “Audi A4” de matrícula espanhola BT, conduzido pelo arguido A. G., que o imobilizou na retaguarda do referido veículo conduzido por D. B..
4. Este, que já se encontrava no exterior do seu veículo, entrou, apeado, no veículo automóvel do arguido, local onde ia adquirir ao arguido 1 g de cocaína, por cerca de € 60,00.
5. De imediato, o 1.º Sargento R. C. e o Cabo P. B. abordaram o arguido e D. B..
6. Nesta sequência, efectuada revista pessoal e busca, autorizada pelo arguido, ao veículo que este conduzia, foram encontrados na sua posse, no interior de um porta moedas preto de couro, 16,3 g de cocaína acondicionada em 17 sacos herméticos, € 630,00 em notas do BCE e, por baixo do travão de mão, um bloco de notas com apontamentos relacionados com a venda de estupefacientes.
7. Após, foi o arguido conduzido ao Posto da GNR de Valença, e, de seguida, foi efectuada busca domiciliária na residência do arguido, sita na Rua ..., n.º ..., Valença, sendo que, no decurso da mesma, foram encontrados e apreendidos os seguintes objectos, no quarto do arguido:
A1) No interior de um cofre metálico de cor preta (cuja chave o arguido tinha), que estava no quarto gavetão da cómoda:
- uma tesoura com dedeiras de cor azul/branco, apta a efectuar recortes para embalagem de produto estupefaciente para venda;
- uma faca de cozinha metálica, com vestígios de estar queimada na zona de corte;
- quatro recortes de plástico em forma circular, aptos para embalar produto estupefaciente para venda;
- uma balança de precisão preta “Tanita”, até 120g;
- três pilhas “Hinlell”, que serviam para a referida balança;
- vários plásticos aptos para fazer recortes para embalagem de produto estupefaciente para venda;
- oito embalagens de plástico de 0,5 g, 0,8 g e 1 g (respectivamente brancas, verde e azul), no interior de uma carteira moedeira preta, com os dizeres “Bar …”, contendo cocaína com peso total ilíquido de 7,30 g;
- um saco plástico dentro de um “Tupperware” com arroz, contendo cocaína com peso ilíquido de 58 g;
- uma embalagem plástica a vácuo, contendo 114,4 g de cocaína;
A2) No interior da primeira gaveta da mesa de cabeceira, lado direito:
- um bloco de apontamentos A6, com manuscritos relacionados com a venda de
estupefacientes;
- um caderno de apontamentos A5, com manuscritos relativos à venda de estupefacientes, contendo seis notas de € 50,00 do BCE, no total de € 300,00;
A3) No interior da segunda gaveta da mesa de cabeceira, lado direito, duas caixas de cartão, contendo no seu interior 10 e 3 petardos;
A4) No interior da terceira gaveta da mesa de cabeceira, lado direito, um cofre metálico azul, que continha:
- um bloco de apontamentos A6;
- 175 notas de € 20,00 do BCE, no total de € 3.500,00;
- 60 notas de € 50,00 do BCE, no total de € 3.000,00;
A5) Por cima do roupeiro, uma mala azul de plástico marca “Pryse”, com os dizeres “Zoo …”, contendo onze maços de notas do BCE (com valores de € 50,00, € 100,00 e € 200,00), no total de € 54.950,00.
8. A cocaína apreendida ao arguido, supra referida em 6. e 7., tinha o peso bruto total de 197,11 g, era suficiente para 870 doses individuais e o seu grau de pureza ia de 92,6% a 96,6%.
9. Entre Novembro de 2019 e um ou dois dias antes de o arguido ser detido à ordem destes autos, L. A., com o contacto telefónico n.º ……… e à data residente em Ponte da Barca, consumidor habitual de haxixe, comprava ao arguido, de duas em duas semanas, entre € 25,00 e € 30,00 de haxixe, em quantidade não apurada.
10. Em data não apurada mas depois de Novembro de 2019, L. A. comprou uma vez ao arguido 0,5 g de cocaína, por € 30,00.
11. Para tais compras, L. A. telefonava para o telemóvel do arguido e este determinava sempre os locais onde seria efectuada a entrega, geralmente no supermercado “…” ou numa capelinha perto da residência do arguido, em Valença.
12. Essas entregas eram efectuadas pelo arguido.
13. Entre Outubro/Novembro de 2019 e Março de 2020, V. H., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Monção, comprava 0,5 g de cocaína ao arguido, duas ou três vezes por semana, por € 30,00 e, outras vezes, 1 g de cocaína, por € 50,00, dependendo da sua disponibilidade financeira.
14. O arguido embalava a cocaína por cores, sendo a embalagem azul de 1 g e a branca de 0,5 g.
15. Para aquelas compras, V. H. telefonava para o telemóvel do arguido e este determinava sempre os locais onde seria efectuada a entrega, por norma ao longo da Estrada Nacional Valença/Monção.
16. As entregas de cocaína eram feitas pelo arguido que, pelo menos uma vez, foi com a arguida S. M. no carro.
17. J. B., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Monção, começou a comprar cocaína ao arguido entre 2013 e 2014, quando este ainda estava em Salvaterra, Espanha, ocorrendo as entregas em Espanha ou em Portugal.
18. Após um interregno, e a partir do início de 2020, J. B. passou a comprar cocaína aos arguidos, uma vez por semana, 0,5 g, por € 30,00.
19. Para as entregas de cocaína, J. B. telefonava ao arguido e este determinava o local da entrega que, por regra, era na E.N 101, no trajecto Valença/Monção.
20. Em algumas das entregas, a arguida acompanhava o arguido.
21. M. M., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Monção, começou a comprar cocaína ao arguido desde o início de 2019, pelo menos uma vez por mês, sendo cada compra de 0,5 g, por € 30,00, o que fez até à data da detenção do arguido.
22. Para as entregas de cocaína, M. M. ligava para o telemóvel do arguido e este indicava-lhe um local, normalmente no Café ..., na E.N.,, Valença.
23. Tais entregas eram efectuadas pelo arguido e em algumas delas a arguida acompanhava-o.
24. Entre 2004 e 2006, J. P., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Monção, comprou, por ocasião das férias de Verão de cada um desses anos e de cada vez, 10 g de haxixe ao arguido, pagando € 25,00 de cada vez.
25. Tais transacções ocorriam num bar situado em frente da estação de caminhos de ferro, em Salvaterra, Espanha.
26. Era unicamente o arguido quem lhe entregava o produto estupefaciente.
27. C. A., com o contacto telefónico n.º ......... e residente em Monção, comprou cocaína aos arguidos entre meados de 2018 e Dezembro de 2019, sendo que, normalmente, comprava 0,5 g por € 30,00, duas ou três vezes por mês.
28. Quando começou a comprar cocaína aos arguidos, estes ainda residiam em Espanha, mas as entregas eram feitas em Portugal.
29. Para tais entregas, C. A. telefonava ao arguido e este determinava o local da entrega, geralmente em ... ou ..., freguesias de Monção, realizando-se a transacção na berma da E.N. 101.
30. As mesmas entregas eram efectuadas pelo arguido, sendo que por vezes a arguida o acompanhava, além de ter havido outras vezes, não concretamente apuradas, em que foi a arguida, sozinha, a entregar a cocaína a C. A..
31. M. E., com o contacto telefónico n.º ......... e residente em Monção, comprou cocaína ao arguido entre 2018 e Setembro de 2019.
32. Nesse período, normalmente comprava 1 g por € 50,00, duas vezes por semana; para o efeito, telefonava ao arguido e marcavam encontro na E.N. 101, entre Valença e Monção, onde a transacção era realizada.
33. Tais entregas de cocaína eram efectuadas pelo arguido.
34. J. D., com o contacto telefónico n.º ……. e residente em Arcos de Valdevez, comprou cannabis aos arguidos, no período que mediou entre Abril de 2019 e Abril de 2020.
35. Para tal, J. D. ligava ao arguido para um dos contactos por aquele utilizados, e marcavam o local de encontro, geralmente em Valença, o que acontecia no máximo três vezes por mês.
36. J. D. pagava ao menos € 10,00 de cada vez.
37. Tais entregas de cannabis eram por vezes efectuadas pelo arguido.
38. A. R., com o contacto telefónico n.º ……… e residente nos Arcos de Valdevez, comprou ao arguido, em datas não concretamente apuradas mas entre 2017 e 2018, por duas vezes, 1 g de cocaína por € 50,00.
39. Para marcar encontro destinado a essas compras, A. R. ligava para o arguido a combinar o local, do lado de Espanha.
40. Tais entregas de cocaína eram efectuadas pelo arguido, que em ambas foi acompanhado pela arguida.
41. D. B., com o contacto telefónico n.º ……… e residente nos Arcos de Valdevez, comprou cocaína ao arguido, pelo menos entre 2017 e 2020, sem regularidade nem quantidades definidas e, mais raramente, comprava cannabis ao arguido, em quantidade não apurada.
42. Para marcar encontro, D. B. telefonava ao arguido e este indicava-lhe o local que, geralmente, era junto à E.N. 13.
43. No dia referido em 1., metade da cocaína a adquirir por D. B. era para o seu primo M. F..
44. As entregas de cocaína eram efectuadas pelo arguido.
45. M. A., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Ponte da Barca, comprou cocaína ao arguido entre 2017 e 2020, duas vezes por mês, 1 g de cada vez, por € 60,00.
46. Para marcar encontro, M. A. telefonava ao arguido e este indicava-lhe o local que, geralmente, era na E.N. 13, em Valença, perto de uma bomba de gasolina.
47. As entregas de cocaína eram efectuadas pelo arguido, que em algumas delas vinha acompanhado por uma mulher.
48. J. V., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Vila Nova de Cerveira, comprou cocaína ao arguido, pelo menos 10 vezes, durante mais de um ano.
49. De cada vez, J. V. comprava 1 g, por € 60,00.
50. Às vezes, a cocaína adquirida por J. V. era para partilhar com amigos.
51. Para marcar encontro, J. V. telefonava ao arguido, que marcava normalmente por trás do “Supermercado …” e ou junto a umas fábricas.
52. As entregas de cocaína eram efectuadas pelo arguido que, em algumas delas, levava uma mulher no carro.
53. R. C., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Ponte de Lima, em dia não apurado de Janeiro de 2020, telefonou ao arguido com o fito de lhe comprar € 60,00 de cannabis, transacção que foi efectuada pelo arguido.
54. Entre Janeiro e Abril de 2020, R. C. comprou cannabis ao arguido, uma vez por semana, pagando, de cada vez, entre € 40,00 e € 80,00.
55. Para marcar encontro, R. C. telefonava ao arguido e combinavam ir ter às bombas da …, em Valença, seguindo depois para a zona industrial de ..., onde se concretizava a transacção.
56. Tais entregas de cannabis eram efectuadas pelo arguido.
57. C. G., com o contacto telefónico n.º ……… e residente em Ponte da Barca, em data não apurada do início de 2019, comprou ao arguido 0,5 g de cocaína por € 30,00.
58. Depois de tal compra e durante pelo menos um ano, uma vez por mês ou de dois em dois meses, C. G. comprava ao arguido 0,5 g de cocaína por € 30,00.
59. Para as entregas, C. G. telefonava para um telemóvel do arguido e marcavam encontro junto das bombas de combustível da Repsol, em Valença.
60. As entregas de cocaína eram efectuadas pelo arguido, e em algumas delas a arguida ia dentro do carro com este.
61. À data dos factos descritos supra, os arguidos eram casados entre si, vivendo na mesma casa.
62. A venda e entrega de estupefaciente era realizada por ambos os arguidos, em comunhão de intentos, coadjuvando a arguida o marido, quer através de entregas sozinha quer atendendo chamadas de compradores.
63. O arguido não exerce qualquer actividade profissional em Espanha desde 2006, auferindo uma pensão atribuída pelo Instituto de Segurança Social espanhola, cujos valores foram de € 9.489,62 (2015), € 9.513,28 (2016), € 9.537,08 (2017), € 9.689,96 (2018) e € 9.864,26 (2019).
64. Os arguidos não possuem registo de contas bancárias.
65. O arguido não aufere quaisquer rendimentos ou pensões em Portugal.
66. A arguida é, desde Novembro de 2019, trabalhadora por conta de outrem.
67. Os arguidos conheciam a natureza e características da cocaína e da cannabis que vendiam, bem como sabiam que a compra e detenção daqueles produtos, sem autorização, para posterior cedência a terceiros, não lhes era permitida por lei e constituía crime, tendo agido com intenção de auferir lucros.
68. Os arguidos agiram em comunhão de esforços e de forma livre, voluntária e consciente.

(Da perda de vantagens pedida pelo Ministério Público)
69. No âmbito da compra e venda de estupefaciente, os arguidos obtiveram € 800,00 por mês de lucro, durante pelo menos 36 meses.
70. Os € 630,00 referidos em 6. e os € 300,00 aludidos em 7.A2) provinham da actividade de venda de produtos estupefacientes.

(Da contestação dos arguidos)
71. O arguido é visto pelas pessoas que o conhecem como ordeiro, afável e simpático, vive numa casa antiga, arrendada por € 375,00 mensais.
72. O veículo referido em 5. é de 2004.
73. Em Portugal, o arguido trabalhou na Zona Industrial de …, em Monção.
74. Após, trabalhou alguns anos em Viana do Castelo.
75. O arguido convive com os vizinhos com muita frequência, mesmo durante o tempo em que tem estado com obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, sendo apoiado por aqueles.
76. O arguido é seguido num hospital em Vigo.
77. A arguida tem, com o arguido, duas filhas, e é supervisora de serviços de limpeza em supermercados.
78. A arguida é vista pelas pessoas das suas relações, que a respeitam, como trabalhadora e boa profissional e mãe.
79. A 28 de Maio de 2019, pelas 11.39h, o arguido levantou em numerário na agência de … do Banco …, em Espanha, da conta 0049 4093 71 23140189, € 41.895,00.
80. Essa conta era titulada pela sua filha D. G., sendo o arguido autorizado a mobilizar a mesma.
81. Dias antes da sua detenção, o arguido vendeu uma mota de modelo CDR, 1000cc, com a matrícula X, ao Stand …, de J. F., em …, Pontevedra, Espanha, por € 6.000,00.
82. Tal valor foi pago em numerário.
83. O arguido recebeu em 2017 da “Y Companhia de Seguros” uma indemnização de € 10.000,00, arbitrada por sentença proferida pelo Tribunal de Monção.
84. Pela perda de um filho num acidente rodoviário, em 2016, e na sequência de um processo judicial que correu em Espanha, o arguido recebeu de uma seguradora, já em 2020, € 72.000,00, acrescidos de juros de mora.

(Da discussão da causa)
85. O arguido não tem antecedentes criminais.
86. Em Espanha, a arguida foi condenada, em Março de 2019, numa pena de multa pela prática, em Outubro de 2018, de um crime de coacção.
87. Segundo o arguido, o seu processo de desenvolvimento decorreu numa família estável e organizada, com orientações normativas e afectividade, de condição económica modesta. Para obter autonomia e auxiliar economicamente os pais, o arguido deixou a escola aos 17 anos e começou a trabalhar como aprendiz de construção naval no estaleiro onde já estava o pai. Embora com várias entidades patronais, o arguido manteve-se sempre ligado a este sector até há cerca de 26 anos, quando sofreu um acidente de trabalho, com lesões permanentes numa perna, com 75% de incapacidade para o trabalho; não obstante, o arguido afirma que manteve actividade, em tarefas menos forçadas, de carácter sazonal e sem vínculo laboral. Há sensivelmente três anos, por dificuldades económicas, desemprego da mulher e existência de dívidas, o arguido decide mudar para Portugal, na expectativa de trabalhar no Estaleiro de Viana do Castelo. O arguido teve dois filhos do primeiro casamento e dois do segundo (e actual); do primeiro, o arguido tem uma filha de 27 anos, a viver em Espanha e que o apoia, tendo o filho falecido há cerca de 3 anos num acidente de moto. Os arguidos são casados entre si há 23 anos; a filha mais velha, de 20 anos, está autonomizada em Espanha, e a filha de 17 anos integra o agregado dos pais. À data dos factos, como no presente, o arguido residia com a arguida e a filha menor do casal numa moradia unifamiliar arrendada, com condições de habitabilidade, em …, Valença. O arguido era beneficiário de uma pensão de invalidez da Segurança Social espanhola de cerca de € 716,00, e a mulher do salário mínimo, como empregada de limpeza de um hipermercado em tempo parcial. Segundo o arguido, estes montantes eram insuficientes para as despesas (renda, água, luz, internet, gás e estudos da filha menor em Espanha). À data dos factos, o arguido não tinha actividade estruturada, convivendo com o grupo de pares e realizando algumas tarefas domésticas. Durante o cumprimento da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, desde 19 de Maio de 2020, o arguido tem tido uma conduta adaptada, dirigindo o quotidiano à família, aos amigos e às actividades domésticas. O arguido demonstra frágil capacidade de análise crítica relativamente ao seu percurso de vida e parca capacidade reflexiva, com dificuldades em identificar adequadamente a ilicitude e censurabilidade do comportamento que lhe é imputado, em identificar o estatuto de vítima, o dano associado ao crime em causa e o impacto deste em terceiros. Sem impacto a nível profissional ou económico, o arguido identifica como principais consequências do processo a privação da liberdade, a vergonha e o desgaste emocional; mostra ansiedade e angústia face ao desfecho do processo, o que diz já ter motivado a realização de consultas de psicologia e a toma de ansiolíticos. A família tem conhecimento do processo e mantém o seu apoio ao arguido; embora deixe transparecer uma dinâmica familiar funcional, o arguido identifica fragilidades no seu relacionamento conjugal, potenciados pelo desgaste inerente ao processo. O arguido manifesta motivação para a execução de uma pena na comunidade, caso venha a ser condenado. As fontes contactadas demostraram surpresa pelo envolvimento do arguido no processo, definindo-o como uma pessoa integrada na comunidade, educado e respeitador; apesar do conhecimento da sua situação processual na área de residência, o arguido não é alvo de rejeição por parte dos vizinhos, que o apoiam.
88. A arguida cresceu em Espanha com a mãe e três irmãos, sendo a segunda mais velha de quatro filhos; não conheceu o pai. Frequentou o ensino espanhol até aos 15 anos, referindo ter o equivalente ao 9.º ano português. Depois, optou por trabalhar para poder ajudar a mãe, o que fez quase sempre na restauração e nas limpezas; num período de desemprego, refere ter concluído um curso de formação profissional de ajudante de cabeleireira e outro na área administrativa. A arguida começou a viver com o arguido aos 17 anos, tendo casado com ele em 2006; têm duas filhas, de 20 e 17 anos, estando a mais velha autonomizada, em Espanha. A relação do casal tem sido instável: divorciaram-se um ano após o casamento, voltaram a reconciliar-se e casaram novamente em 2018. Segundo a arguida, a desestruturação familiar deve-se ao alcoolismo que afecta o marido/co-arguido, condicionando inclusive a sua condição económica. Em Novembro de 2018, por razões económicas, o casal decidiu fixar residência em Portugal, tendo a arguida o estatuto de trabalhadora transfronteiriça. Vivendo com o marido e a filha mais nova, estudante, a arguida descreve a dinâmica intrafamiliar como disfuncional, alegando que isso se deve à ingestão abusiva de bebidas alcoólicas por parte do marido; verbaliza a intenção de, a curto prazo, se divorciar, não tendo ainda informado o marido dessa decisão. A arguida mantém contacto próximo com o agregado de origem, de quem diz receber apoio afectivo e económico, de que a arguida admite necessitar. O agregado ocupa o primeiro andar de uma moradia com boas condições habitacionais numa freguesia periférica de Valença. A arguida trabalha há cerca de dois anos numa empresa de serviços de limpeza, estando afecta a um supermercado em Vila Nova de Cerveira; considera ser uma trabalhadora dedicada, aceitando todas as horas extraordinárias que lhe são possíveis e chegando a trabalhar nos dias de folga. Desde Outubro de 2020, a arguida está de baixa médica, por ter sido submetida a uma intervenção cirúrgica. Segundo a arguida, o seu salário médio, por referência a Setembro de 2020, é de € 1.200,00 (com subsídio de refeição, horas extraordinárias e complemento de retribuição de domingos); com baixa, recebe cerca de € 500,00 a € 600,00 mensais. Recebe ainda € 680,00 da Segurança Social espanhola, atribuída à filha enquanto menor. O marido/co-arguido tem uma pensão de invalidez de € 716,00€. Pagam € 375,00 de renda de casa, € 120,00 de despesas de manutenção desta e € 35,00 de consulta de psicologia da filha, em Espanha; anualmente, gastam € 361,00 de seguro automóvel e € 49,00 de IUC. Ainda em recuperação, a arguida é acompanhada em consulta de psicologia, em Espanha, pela qual não paga. Na comunidade de residência, a arguida mantém um comportamento discreto e reservado, estabelecendo relações de vizinhança adequadas: interage com um grupo de amigos e conhecidos associados a comportamentos pró-sociais, nada constando em desabono da sua conduta ou sobre os demais elementos do agregado familiar. A arguida vive este processo com grande ansiedade: desgastada com a relação conjugal, com a fragilidade emocional da filha mais nova e com o estatuto de arguida, refere estar muito abalada, tendo necessitado de recorrer a apoio psicológico, à semelhança do que acontece com a filha, também ela por causa da situação processual dos pais. Dispõe de todo o apoio da mãe e de dois irmãos, residentes em Espanha. Sobre os factos dos autos, a arguida formula um juízo crítico, de valoração e reconhecimento do dano, bem como da existência de vítimas; adopta uma postura de vitimização, demarcando-se de qualquer responsabilidade, não se revendo no teor da acusação, estando na expectativa de um desfecho processual favorável.
*
FACTOS NÃO PROVADOS

(Da acusação)
- Que, na altura descrita em 4., D. B. tenha adquirido cocaína ao arguido;
- que o bloco de apontamentos referido em 7.A4) contenha manuscritos relativos à venda de produto estupefaciente;
- que L. A., V. H., M. E., A. R., D. B., M. A., C. M., J. V., R. C. e C. G. tenham comprado cannabis ou cocaína à arguida;
- que, entre 2008 e 2014, V. H. tenha comprado cocaína aos arguidos;
- que, no período referido em 17., a arguida tenha vendido cocaína a J. B.;
- que, a partir do início de 2020, apenas o arguido tenha feito entregas de cocaína a J. B.;
- que o descrito em 21. ocorresse pelo menos uma vez por semana;
- que o descrito em 24. tenha ocorrido em cinco ocasiões, mais do que uma vez no mesmo ano;
- que o referido em 34. tenha tido início no final de 2018;
- que os encontros de 35. fossem em …, em frente à E.N. 101;
- que a cannabis de 36. viesse numa saquinha que não pesaria mais de 1 g;
- que o descrito em 38. ocorresse também em 2019 e, ao todo, três vezes;
- que A. R. ligasse para o n.º ……… e que fosse o arguido a indicar-lhe o local para a transacção;
- que D. B. comprasse por norma, 0,5 g de cocaína por € 30,00, e cannabis por € 20,00, a € 7,00/g;
- que os encontros de 42. ocorressem normalmente próximo do stand “… Car”;
- que, no dia referido em 1., tenha sido a primeira vez que D. B. e o arguido tinham combinado o local aludido em 2. para a entrega de cocaína;
- que o descrito em 45. tenha ocorrido também em 2016;
- que o referido em 48. tenha ocorrido entre o final de 2018/início de 2019 e Setembro/Outubro de 2019, quatro vezes por mês e de 0,5 g de cada vez, por € 30,00;
- que o arguido marcasse os encontros aludidos em 51. na estrada sita nas traseiras do restaurante “…”;
- que a mulher referida em 47. e 52. fosse a arguida;
- que o descrito em 58. tenha ocorrido até à data em que o arguido foi detido;
- que C. G. tenha comprado ao arguido 1 g de cocaína por € 60,00;
- que o arguido não exerça qualquer actividade profissional em Portugal desde 2006;
- que os arguidos não possuam bens móveis sujeitos a registo ou imóveis em Portugal;
- que a arguida aufira um vencimento mensal de € 638,00;
- que os arguidos vivessem dos proveitos obtidos com a venda de estupefacientes, fazendo de tal actividade o seu modo de vida;

(Da perda de vantagens pedida pelo Ministério Público)
- que, com a venda de estupefacientes descrita na matéria provada, os arguidos tenham tido um incremento patrimonial de € 62.380,00;

(Da contestação dos arguidos)
- que o arguido não vá a restaurantes caros ou não tenha relógios de alta gama;
- que o descrito em 73. tenha ocorrido durante 5 anos e até a empresa fechar;
- que o arguido se tenha reformado aos 55 anos, com 75% da pensão de reforma, no valor de € 710,00, por não ter saúde para trabalhar;
- que o arguido tivesse uma incapacidade de 33% por lesões sofridas num acidente de mota e uma pancreatite crónica;
- que o arguido consiga trabalhar num restaurante em Valença, pertença de um vizinho, ainda disponível para o acolher;
- que a arguida nunca tenha tido quaisquer problemas relacionados com a justiça criminal até ao momento;
- que a arguida aufira actualmente uma média de € 950,00 e que comece a trabalhar por volta das 6h da manhã;
- que o dinheiro referido em 79. tenha sido levantado por o casal ter uma dívida contraída e o seu advogado ter dado esse conselho, perante a ameaça da execução;
- que esse dinheiro fizesse parte do montante referido em 7.A5);
- que o valor referido em 81. tenha sido guardado na mala descrita em 7.A5);
- que a quantia referida em 83. tenha sido depositada em Espanha, depois levantada em dinheiro e guardada na mala descrita em 7.A5);
- que a quantia de € 7.430,00 encontrada noutras gavetas viesse dos serviços de limpeza extras que a arguida fazia;
- que a quantia de € 3.000,00 fosse de uma indemnização por acidente de trabalho em Espanha.
*
FUNDAMENTAÇÃO

A convicção do tribunal resultou da análise crítica da prova produzida, à luz das regras da experiência comum, como se passa a explicitar.
Relativamente ao teor de 1. a 7., serviram os depoimentos circunstanciados e detalhados dos militares da GNR R. C., P. B. e S. E., que compunham a patrulha e levaram a cabo as diligências aí descritas (e também documentadas a fls. 12 a 17, 26 a 32 e 40 a 48). Foi também útil o depoimento de D. B., quanto à não concretização do negócio que ia fazer com o arguido naquela ocasião (o que também este esclareceu), face à intervenção da GNR.
As declarações do arguido foram de admissão, apenas por si, da actividade de venda, mas só de cocaína, concretizando os preços que praticava, a margem de lucro obtida (daí o teor de 69.) e as cores dos pacotes em relação às quantidades que continham (também útil para 14.).
Quanto ao uso dado aos blocos de apontamentos (7.), que o próprio arguido admitiu genericamente servirem para a actividade de venda de estupefacientes, foi ex abundantiae útil a respectiva análise feita pelo cabo da GNR Fernando Rodrigues (apenso n.º 1), complementada pelo depoimento deste; desses blocos – à excepção do referido em 7.A4), conforme fls. 26 a 29 do apenso – constam referências a nomes e números de telemóveis também presentes na agenda do telemóvel do arguido (fls. 162/163) e comuns a várias testemunhas/compradores, as mais das vezes identificadas com alcunhas, referências profissionais ou veículos que conduziam – como, a título de exemplo, “V.”, “P.”, “C.”, “G.”, “I.”, “A.”, “M.” e ““C.””, referências a contas (fls. 25 e 40 a 126 daquele apenso, que claramente se reportam a doses de cocaína, pelos valores escritos e pelo cálculo das quantidades – “1, 0,8, ½”) e rasuras de valores à frente dos aludidos nomes (por exemplo, fls. 7 do mesmo apenso), o que indicia montantes que foram pagos ao arguido em momento posterior às vendas de estupefaciente (o que ele próprio confirmou).
Para o teor de 8., serviu o relatório pericial de fls. 298/299.
Não tendo sido o arguido capaz de identificar cabalmente os consumidores que a ele recorriam, a concretização dos períodos temporais, locais, preços, frequência, substância e quantidades adquiridas assentaram nos depoimentos consonantes dos compradores, aos quais foi possível chegar pelas diligências de fls. 169 a 198, 206 a 209, 227, 243 a 253, 272/273 e 334 a 339: L. A. (9. a 12.), V. H., o “V.” (13. a 16.), J. B., o “I.” (17. a 20.), M. M. (21. a 23.), J. P. (24. a 26.), C. A., o “C.” (27. a 30.), M. E., o “S.” (31. a 33.), J. D., o “A.” (34. a 37.), A. R., o ““C.”” (38. a 40.), D. B., o “D.” (41. a 44.), M. A. (45. a 47.), J. V., o “P.” (48. a 52.), R. C. (53. a 56.) e C. G., o “G.” (57. a 60.).
Foram inócuos os depoimentos de C. M. (que acompanhava J. V. nas compras deste de cocaína, mas não sabe quem lha vendia), de V. A. (que nada comprou aos arguidos) e de J. L. (que não chegou a comprar ao arguido a cannabis que pretendia, por este dela não dispor).
Face ao silêncio da arguida em julgamento, valeram, quanto à intervenção desta na actividade de venda de estupefacientes, os depoimentos dos compradores que lhe adquiriram directamente, os supra referidos C. A. (que chegou a ser atendido várias vezes pela arguida quando ele ligava para o telemóvel do arguido para combinar a entrega de cocaína, e a quem a arguida vendeu cocaína fazendo-se transportar num “Seat” azul), J. D. (a quem pelo menos três vezes a arguida foi entregar cannabis, conduzindo um “Seat”) e J. B. (a quem a arguida também fez entregas); os militares da GNR R. C. e S. E. confirmaram que, à data da busca, estava aparcado na rua junto à casa dos arguidos um “Seat Leon” azul, que o segundo referiu como sendo da arguida. Os aludidos V. H., J. B., M. M., A. R. e C. G. confirmaram presenças da arguida no veículo do marido na altura das compras de estupefaciente; os demais afirmaram não ter comprado à arguida ou não saberem quem era a mulher que por vezes viram no carro do arguido por ocasião de idênticos negócios (e, no caso de M. A., da mulher que lhe entregou cocaína em vez do arguido).
As intervenções directas da arguida referidas no parágrafo anterior justificam o teor de 62. e 68., sendo que a ligação marital entre ambos (61.) decorre da sua identificação e dos depoimentos das testemunhas de defesa (infra identificadas), duas das quais filhas do casal (D. G. e MA.). A informação de fls. 628 serviu para 63. e 64. (sendo que o próprio arguido confirmou não ter contas bancárias à data dos factos), e a de fls. 613/614 para 65.; para 66., foram úteis as declarações do arguido e os depoimentos de P. F. (vizinho do casal), D. O. e A. O. (seus senhorios) e da filha D. G..
O descrito em 67. decorre do conhecimento do comum dos cidadãos, reforçado no caso porque o próprio arguido declarou já ter sido consumidor de cocaína; porém, não se fez prova cabal de que os únicos proventos do casal resultassem da actividade de venda de estupefacientes.
A directa relação dos valores aludidos em 70. com a venda de droga é evidente face aos locais onde foram encontrados (o primeiro, no veículo, quando o arguido é apanhado em flagrante delito, e o segundo dentro de um dos blocos de apontamentos relativo à mesma actividade). Já para os demais valores – os € 6.500,00 aludidos em 7.A4) (juntamente com um bloco em relação ao qual não há prova de estar ligado à venda de estupefacientes) e os € 54.950,00 encontrados numa mala em cima do roupeiro –, a recente venda da moto pelo arguido (conforme documento n.º 10 junto com a contestação dos arguidos e depoimento do comprador, J. F. – 81. e 82.) e o levantamento de Maio de 2019 (79. e 80.) – conforme docs. nºs. 8 e 9 juntos com a contestação, este último traduzido (ref.ª 3136395), e o depoimento de E. M., que acompanhou o arguido ao banco nessa altura –, embora o somatório destas duas operações seja inferior às quantias apreendidas, lançam dúvidas insanáveis sobre a sua proveniência ilícita, que só podem ser resolvidas a favor dos arguidos (mas que também não permitem, dados os lucros deste tipo de actividade e o período em causa, a prova do contrário).
O demais alegado pelo Ministério Público no pedido de perda de vantagens configura uma conclusão, pelo que não é susceptível de prova; o mesmo se diga do ponto 9 da acusação, uma espécie de “resumo” do que importava concretizar nos subsequentes.
Para 71., serviram o contrato de fls. 696 a 698 e os depoimentos das testemunhas de defesa (os já aludidos P. F., D. O. e A. O., bem como G. A., de cujo restaurante os arguidos são clientes, D. D. e J. V., amigo do casal, todos também úteis para 75., 77. e 78. O teor de 73. e 74. louva-se nas declarações do arguido e no documento de fls. 613/614, embora sem as balizas temporais que o arguido alega.
O documento de fls. 21 serviu para 72., os docs. n.º 1 a n.º 7 com a contestação serviram para 76., perante o seu cabeçalho (mas, sem tradução, nada mais provam), os documentos n.º 11 e n.º 12 juntos com a mesma peça foram úteis para 83. e, para 84., valeu o doc. n.º 13 ainda da contestação, cuja parte relevante foi objecto de tradução para língua portuguesa (ref.ª 3147853).
Quanto à situação pessoal dos arguidos (85. a 88.), serviram os relatórios sociais (refªs. 3113187 e 3113374) e os certificados de registo criminal (refªs. 46705491 e 46705449).
Careceram os autos de prova, nomeadamente documental, da existência ou ausência de actividade profissional por parte do arguido após 2006, dos bens que (não) possuem, do vencimento concreto da arguida, do trem de vida dos arguidos, dos motivos e data da reforma do arguido, da sua incapacidade, da sua possibilidade de emprego, do horário concreto de trabalho da arguida, dos motivos que levaram o arguido a levantar o dinheiro do banco em Espanha (a que se referiram apenas a sua cunhada E. M. e as suas filhas, cuja fonte comum foi apenas o arguido…) nem da proveniência de dinheiro de serviços de limpeza da arguida e de uma indemnização por acidente de trabalho.
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III - Apreciação do recurso

Nulidade da acusação.

Os recorrentes começam por alegar a nulidade da acusação deduzida, nos termos do disposto no art. 283º, nº 3, al. b), do CPP (conclusões 1 a 7).
A invocação tem especial ênfase no caso da recorrente S. M., já que, atenta a confissão produzida pelo arguido A. G., a questão está ultrapassada quanto a ele – cfr. conclusão nº 3, parte inicial.
Em síntese, a questão reside, na opinião dos recorrentes, em a acusação não especificar as datas concretas das transacções em que a arguida S. M. participou, balizando-as em termos amplos (entre 2004 e 30 de Abril de 2020) e mediante conceitos genéricos e imprecisos, inviabilizando a sua defesa e violando o disposto no art. 32º da CRP.
Preceitua o art. 283º, nº 3, do CPP, que “A acusação contém, sob pena de nulidade: al. b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; “.
Importa referir que a questão já anteriormente foi suscitada, quer em fase de instrução, quer na contestação apresentada, tendo sido indeferida a pretensão da recorrente.

O acórdão recorrido tratou a invocada nulidade, como questão prévia, nos seguintes termos (transcrição):
“Na contestação, os arguidos invocam a nulidade da acusação pública, nos termos do art. 283.º, n.º 3, b), Código de Processo Penal, por falta de adequada narração dos factos, de concretização de datas, regularidade e local dos actos, preço pago ou quantidade de estupefaciente, o que torna impossível a defesa dos arguidos, e mais ainda no que respeita à arguida, por não se especificar as transacções em que terá estado presente.
Decidindo: nos termos do art. 283.º, n.º 3, b), Código de Processo Penal, a acusação deve conter (entre outros elementos, aqui não postos em causa), e sob pena de nulidade,b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Como decorre desta redacção, o próprio legislador teve presente que nem sempre se mostra possível precisar o lugar e o tempo da prática dos factos, bem como a descrição destes, ao referir a narração sintética.
Na acusação (e na pronúncia que para ela remete), estão em causa actos de tráfico de estupefacientes entre 2003 e 2006 (apenas para o arguido – 28) e, para ambos os arguidos, entre 2008 e 2014 (por exemplo, 14) e entre 2016 e a detenção do arguido, no final de Abril de 2020 (como em 50).
Ora, para um período tão longo – que, embora com hiatos, corresponde a 17 anos – e para actos de venda de estupefacientes (cuja natureza é furtiva e cujo comprador não anota em qualquer agenda nem é capaz de reconstituir as concretas datas de aquisição, que só lhe serviram para satisfazer uma necessidade premente, ou um vício), nunca seria possível ao Ministério Público concretizar dias e horas dos factos. Não é papel do acusador deitar-se a adivinhar o que não conseguirá provar, por testemunhas ou de outra forma.
Apesar disso, na acusação referem-se períodos temporais concretos em relação a cada um dos alegados compradores de estupefacientes, quase sempre balizados em anos (1, 10, 11, 14, 15, 20, 25, 28, 32, 36, 39, 42, 46, 50, 53, 59, 62 e 63).
Quanto à localização dos factos, também a acusação não é avara, como decorre do descrito em 2, 12, 18, 23, 26, 30, 34, 37, 40, 44, 47, 51, 56, 60 e 64, indicando às vezes vários para cada consumidor; a mesma indicação existe, em relação a cada comprador, quer para as quantidades, preço e tipo de estupefaciente adquirido (4, 10, 11, 14, 15, 22, 25, 29, 32, 36, 37, 39, 40, 42, 46, 50, 53, 55, 58, 59, 62 e 63), quer para a periodicidade ou o número dos negócios (10, 16, 22, 25, 29, 32, 37, 40, 42, 50, 54, 59 e 63).
Em relação à arguida, a acusação configura-a como co-autora do crime de tráfico de estupefacientes, juntamente com o arguido, seu marido (ambos são tidos como vendedores); além da sua presença em várias das transacções (19, 24, 27, 35, 45, 52, 57 e 65), imputa-lhe também entregas a pelo menos um consumidor (35), naturalmente impossíveis de situar em dias concretos, pelas razões já referidas.
Ou seja, no caso dos autos, resulta “suficientemente caracterizado, nas diferentes vertentes, o evento a julgar, de modo a permitir a sua percepção e, consequentemente, a reacção da defesa. Ademais, sempre se dirá que não estando em questão um acto isolado mas uma repetida actividade, prolongada no tempo, com múltiplos actos de venda, seria praticamente impossível a identificação, em todas as circunstâncias, das datas precisas em que, ao longo dos anos2, os factos terão sido praticados.
Assim, entende-se que a acusação (para a qual remete a pronúncia) não padece da nulidade invocada, sendo por isso possível aos arguidos defender-se dos factos que lhes são imputados; está, por isso, respeitado o citado art. 283.º, n.º 3, b) e o art. 32.º, n.º 1 e n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, este relativo às garantias em processo criminal.
[Nota: Os números citados entre parêntesis reportam-se aos pontos da acusação, que a pronúncia deu como reproduzidos. (acrescento nosso)].
Ora, como resulta da disposição legal invocada, a descrição do lugar, do tempo, da motivação e do grau de participação do agente, só é exigível quando seja possível a sua concretização. Isto sem prejuízo de, necessariamente, conter a indicação mínima indispensável à perceção pelo acusado dos factos que lhe são imputados, de molde a deles se poder defender.
As indicações contidas na acusação permitiram ao arguido A. G. entender o que lhe era imputado, tendo inclusive procedido à confissão, ainda que parcial, dos factos – apesar da sua muito maior amplitude, em número e no tempo.
Os factos imputados à arguida S. M. assumem uma muito menor amplitude, circunscrevendo-se aos pontos da matéria de facto provada com os números 18 (a partir do início de 2020 e até 30 de Abril do mesmo ano, data da detenção do A. G.), 27 a 30 (entre meados de 2018 e Dezembro de 2019), 34 (entre Abril de 2019 e Abril de 2020) e 38 a 40 (entre 2017 e 2018).
Os períodos indicados, apesar de ainda amplos (respectivamente, 4 meses, 1 ano e meio, 1 ano e cerca de 2 anos), não impedem a suficiente e adequada compreensão dos factos imputados, porque descrevem os locais de entrega (em Valença, em Monção ou ao longo da estrada que liga estas duas localidades), a frequência temporal das entregas e a natureza das substâncias.
Também não é despiciendo mencionar que a arguida – em vez de ter optado pelo seu direito ao silêncio, opção que não a prejudica - podia ter negado a prática dos factos imputados (designadamente qualquer venda ou entrega de estupefacientes e as razões porque desconhecia as “transacções” quando acompanhava o marido nas mesmas), contrariando os depoimentos das testemunhas e, assim, podendo deixar alguma dúvida no espírito do tribunal.
O que a arguida não pode é querer tirar partido do direito ao silêncio, perante os depoimentos assertivos dos adquirentes que atestaram algumas entregas feitas por ela e a sua frequente presença ao lado do seu marido (arguido A. G.) aquando das feitas por este (ou por ambos).
Nem é fácil de aceitar, face às regras da experiência, que, perante um tão longo período de desenvolvimento da actividade de tráfico por parte do A. G., e ainda que este guardasse as substâncias e artefactos no seu quarto, a S. M. desconhecesse a actividade a que ele se dedicava. E ao acompanhá-lo nas entregas comparticipava na mesma.
Também não é demais referir que a actividade desenvolvida pelo menos pelo arguido A. G., apesar da sua extensa duração, era desconhecida das autoridades. E só mediante a sua detenção ocasional (quando a GNR seguiu um consumidor e surpreendeu a transacção que ia ocorrer) veio a ser detetada. Já a participação da S. M. na actividade só se logrou obter na sequência das diligências de inquérito então realizadas, designadamente da recolha de depoimentos.
Em suma, os factos constantes da acusação e da pronúncia (que os reproduziu) estão suficientemente caracterizados, de modo a permitir a sua compreensão e perceção pela arguida/recorrente, possibilitando-lhe a defesa dos factos imputados, não ocorrendo qualquer violação das garantias de defesa consagradas constitucionalmente.
A arguida nulidade da acusação vai indeferida.
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Nulidade da busca domiciliária.

Os recorrentes também suscitam a nulidade da busca domiciliária realizada – conclusões 8 a 15.
Para este efeito e em síntese, alegam que a inquilina da residência onde ocorreu a busca domiciliária era a arguida S. M., que não a autorizou, sendo imprescindível o consentimento de todos os titulares do espaço, pelo que a prova assim obtida é proibida. Acrescentam que sendo a S. M. visada na diligência, que decorreu na casa de que é inquilina, deveria ter sido imediatamente constituída como arguida, não sendo usadas as suas declarações informais.
A questão também já foi levantada na contestação apresentada (ainda que com fundamentos acrescidos e onde se incluiu a nulidade da busca realizada no veículo automóvel).

O acórdão recorrido tomou posição nos seguintes termos (transcrição):

Importa agora conhecer da nulidade da busca ao veículo automóvel e à residência. Alegam os arguidos que as buscas e revistas deviam ter sido – e não foram – autorizadas ou ordenadas pela autoridade judicial competente, o Ministério Público ou o juiz de instrução (arts. 267.º e seguintes do Código de Processo Penal), o que deve ser obervado, salvo casos excepcionais (arts. 174.º, n.º 5, e 251.º do mesmo Código).
A regra do art. 174.º, n.º 3, estipula que tanto a revista como a busca devem ser “autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência., porém, as aludidas excepções, que importa confrontar com o que sucedeu nestes autos.

In casu, o arguido foi surpreendido pela GNR em flagrante delito, como é patente no último parágrafo de fls. 6 e no primeiro parágrafo de fls. 7 dos autos (e reafirmado pela Mm.ª Juiz de Instrução, a fls. 84): perante a entrada de um indivíduo, conhecido como consumidor de cocaína (fls. 6), no veículo do arguido, era dever daquela força militar abordar ambos, por suspeita de se estar a proceder a uma transacção de estupefacientes: “É flagrante delito o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer” (art. 256.º, n.º 1, Código de Processo Penal).
Portanto, nos termos do art. 174.º, n.º 5, c), do mesmo Código, já a lei não exige aos órgãos de polícia criminal, para se proceder a revistas e buscas, o despacho prévio do citado n.º 3: “Ressalvam-se das exigências contidas no n.º 3 as revistas e buscas efectuadas por órgãos de polícia criminal aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, como é o caso do tráfico de estupefacientes, cuja pena é de 4 a 12 anos de prisão (art. 21.º, n.º 1, D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro). E bem se compreende esta excepção: não se pode deixar que um crime se cometa na frente, no caso, da GNR, sem que a lei lhe confira poderes para intervir, antes que o suspeito esconda objectos ou instrumentos do crime! De outra forma, a própria autoridade do Estado e a ordem pública ficariam manifestamente postas em causa.
Acresce que, no caso, os militares da GNR usaram uma cautela reforçada, ao diligenciar por uma autorização expressa do visado – o arguido – para proceder quer à busca ao veículo que este conduzia quer à sua residência (art. 174.º, n.º 5, b), Código de Processo Penal); ora, já havia o requisito do flagrante delito que permitia esta última busca, à hora que ocorreu (após as 21 h, conforme fls. 13), mas ainda assim a GNR optou – e bem – por obter também o consentimento escrito do visado, assim estando preenchidas as excepções do art. 176.º, n.º 2, c) e b), Código de Processo Penal.
Ora, é nessa autorização que reside outro “cavalo de batalha” dos arguidos: desde logo, porque não teria sido assinada pelo arguido e porque está redigida em língua portuguesa (sendo o arguido espanhol), o que não lhe teria permitido compreender o alcance daquela autorização.
Desde a instrução que o arguido insiste na realização de uma perícia à assinatura de fls. 12, que aí – mas também em sede de contestação – lhe foi negada, por absolutamente inútil: não são precisos especiais conhecimentos para reconhecer sem dificuldade a absoluta identidade de assinaturas com muitas outras constantes dos autos, que o arguido não põe em causa serem suas: no auto de detenção (fls. 54), no boletim individual do arguido detido (fls. 57), no auto relativo aos seus direitos (fls. 59), na prestação de termo de identidade e residência (fls. 61), no termo de notificação de apoio judiciário (fls. 63), na constituição de arguido (fls. 65), nos documentos congéneres em espanhol (fls. 69 e subsequente novo 613) e, finalmente, nas várias páginas do auto de interrogatório de arguido, presidido por Juiz de Instrução e em que o arguido estava naturalmente assistido por advogada (fls. 85 a 87, que dizem respeito aos factos que lhe são imputados, e 96, relativamente ao consentimento para instalação de meios de vigilância electrónica).
Não restando, assim, dúvidas quanto à autoria do arguido no que respeita à assinatura do auto de consentimento de busca, também à residência, de fls. 12, é evidente não se verificar a falsidade invocada.
Acrescente-se, ainda, e se necessário fosse, que dos depoimentos prestados em julgamento pelo sargento R. C. e pelo guarda S. E. (intervenientes na abordagem do arguido e na busca), também resulta que é da autoria do arguido a assinatura constante da autorização da busca.
Quanto à questão de o arguido ser espanhol e não entender a língua portuguesa, é uma alegação absolutamente contrária às suas próprias declarações perante Juiz de Instrução e devidamente assistido por advogada: “como cidadão de nacionalidade Espanhola, foi perguntado ao mesmo se percebe bem o Português, ou se necessita que lhe seja nomeado um intérprete, pelo mesmo foi dito que entende bem o português não necessitando de interprete” (fls. 85). Como o interrogatório foi realizado na manhã de 2 de Maio de 2020 e a autorização de busca foi assinada a 30 de Abril do mesmo ano, à noite, é evidente que o português que o arguido sabia naquele dia também sabia um dia e meio antes, sendo os termos da autorização absolutamente claros e nada técnicos. Ex abundantiae, os militares da GNR R. C., P. B. e S. E. afirmaram, em julgamento, que o arguido, na abordagem que lhe foi feita e nos actos posteriores (incluindo a busca), apesar da sua nacionalidade espanhola, estabeleceu um diálogo com eles sem equívocos nem incompreensões.
Assim, também aqui não se verifica qualquer nulidade.
Finalmente, invocam os arguidos que a busca foi nula porque não se obteve o consentimento da titular do contrato de arrendamento, a (agora) arguida, e à data não visada por aquela diligência.
De facto, sabe-se (desde 22 de Setembro de 2020, conforme fls. 695 a 698, e não à data da busca, a 30 de Abril anterior) que a habitação buscada foi arrendada pelos seus proprietários à arguida a 1 de Dezembro de 2018, sendo o arguido seu fiador.
No caso, a autorização de busca assinada pelo arguido (fls. 12) reporta-se à “minha residência, sita na Rua ..., n.º ..., Valença, e que, embora tenham estado presentes na mesma casa durante a busca a (muito mais tarde) arguida e D. G., filha dos arguidos (fls. 42/43), nenhuma delas assinou autorização idêntica.
Porém, a impugnação da validade da busca resulta improcedente, desde logo, por apenas terem sido apreendidos objectos com relevância para a actividade de tráfico de estupefacientes no quarto que, segundo a mulher do arguido, só por este era utilizado (fls. 43); ao contrário do que alegam os arguidos, S. M. nem suspeita era à data da busca (nem dela resultaram quaisquer indícios do seu envolvimento em actividade ilícita), pelo que estas suas declarações à GNR não revestem qualquer tipo de prova proibida.
Por outro lado, sendo o quarto de uso exclusivo do arguido – segundo a (afinal) titular do contrato de arrendamento –, já não havia qualquer obstáculo processual nem violação de direitos na busca ao seu quarto, uma vez que o arguido a tinha expressa (e previamente) autorizado: “A validade da realização da busca domiciliária basta-se com o consentimento da pessoa afectada ou seja daquela que tenha a livre disponibilidade, quanto ao local onde a diligência é efectuada e que possa por ela ser afectado, nomeadamente o seu quarto” (Ac. da Rel. Évora de 17 de Setembro de 2009, proc. n.º 549/08.7PBBJA, in www.dgsi.pt.) .
Acresce que, ao contrário do alegado, o resultado da busca em nada incriminou a mulher do arguido nem sequer levou a considerá-la como suspeita, quanto mais como arguida; e daí a sua não constituição como tal, já que a acção policial, nomeadamente quanto à constituição de arguido, não deve ir mais longe do que a prova obtida até aí não só exige, mas também permite.
A mulher do arguido apenas passou a revestir a qualidade de arguida a 23 de Setembro de 2020 (fls. 700), quase cinco meses depois da busca e na iminência da elaboração do relatório final pela GNR, após a realização de todas as outras diligências processuais, incluindo a inquirição de testemunhas. Ou seja, só o decurso da investigação permitiu a sua indiciação e imediata constituição como arguida, numa actividade em que apenas o marido era investigado até aí. Aliás, o ponto 7 da acusação, esgrimido pelos arguidos em prol da pretensa nulidade da busca, nem sequer refere a arguida e reporta-se em exclusivo à “residência do arguido” e aos bens apreendidos “no quarto do arguido.

Refira-se, ainda, que resulta também da prova produzida em julgamento – nomeadamente dos depoimentos dos aludidos R. C., P. B. e S. E. – que quer a chave do quarto em causa quer as dos cofres apreendidos estavam na posse do arguido, que as guardava no seu carro e as disponibilizou no acto da busca (circunstância que em nada relevava a autorização de S. M., que nem tinha sequer meios para abrir o quarto…).
Assim, também esta nulidade improcede, pelo que nada afecta a validade das buscas.
A transcrição feita é elucidativa de como ocorreram os factos que levaram à realização da busca domiciliária: o arguido foi detido no seu veículo automóvel em flagrante delito de tráfico de estupefacientes, tendo autorizado a busca domiciliária a efectuar na sua residência.
E não resta qualquer dúvida de que se tratava da sua residência. Era onde pernoitava (no quarto de que possuía acesso exclusivo) e guardava os seus bens pessoais e íntimos.
O que se visa preservar com as restrições legais previstas, quer na CRP (que no art. 34º trata da inviolabilidade do domicílio), quer no CPP (arts. 174º a 177º), é a intimidade pessoal do visado e não a mera titularidade formal do local.
A mero título de exemplo, sendo necessário realizar uma busca num quarto de hotel, o consentimento terá de ser prestado pelo seu utilizador e não pelo proprietário ou gestor do estabelecimento.
Sendo o quarto onde foi efectuada a busca exclusivamente utilizado pelo arguido (que detinha a chave para aceder ao mesmo), era a ele e só a ele que competia autorizar a realização (ainda que para aceder ao quarto fosse necessário percorrer outras divisões da casa, como é habitual).
O entendimento expresso pelos recorrentes, lançando mão do Acórdão nº 126/2013 do Tribunal Constitucional, não tem qualquer sentido por não corresponder ao ali vertido.
É que, como se afirma no Acórdão do STJ de 20/01/2021 – citado na resposta ao recurso – “Resulta, pois, à evidência que tendo sido a busca autorizada pelo arguido, a mesma mostra-se perfeitamente válida e eficaz, conforme decorre do disposto nos artigos 174°, n°. 5, al. b) e 177°, n°. 2, al. b), e n° 3, do C.P.P.”
E, mais adiante, reportando-se ao Acórdão do TC nº 126/2013 “… a questão ali em apreço era diversa daquela presente nestes autos, porquanto ali se discutia a validade de consentimento de um co domiciliado para efeito de legitimação das buscas, e que não era suspeito/visado pela medida processual penal, circunstância distinta no caso aqui em apreço em que o co domiciliado que prestou o consentimento para a realização da busca foi o próprio arguido, visado da busca.
O que está em causa nos acórdãos citados é o consentimento na busca dado por pessoas que partilham a casa com o arguido/visado e não por este, bem como a situação em que são vários os visados com a busca e apenas um deles a autoriza.
Não é manifestamente o caso subjudice. O arguido era o visado e foi o próprio que deu o consentimento, como supra se referiu.
Acresce que a busca foi efectuada na cozinha que constitui um espaço comum da habitação do recorrente, sendo que a sua companheira não foi visada na busca, não era suspeita, não tinha que dar qualquer consentimento, nos termos a que aludem os arts. 174°, n°5, al. b) e 177°, n°2, al. b) e n°3, do CPP.
Como afirma a Exm” PGA no seu douto Parecer «A autorização da sua companheira só seria necessária se também ela fosse visada na busca e a prova na mesma recolhida fosse usada também contra ela. Não era esse o caso. A companheira não era sequer suspeita»”.
É precisamente a situação que ocorreu nos presentes autos: ao tempo da busca, a (ora) arguida, não era suspeita ou visada, pelo que não tinha que consentir na sua realização, sendo que a prova obtida se limitou a incriminar o arguido A. G..
Acresce que não faz qualquer sentido, a alegação de que os blocos de apontamentos apreendidos ao A. G. serviram para acusar a S. M.. Tal não corresponde à verdade. O que sucedeu foi que os contactos registados no telemóvel do arguido, conjugados com os apontamentos escritos nesses blocos, permitiram identificar os compradores de estupefacientes, que, inquiridos, vieram a incriminar a arguida S. M..
Também a nulidade da busca domiciliária não merece deferimento.
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Nos termos do disposto no artº 428º, nº 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP), “as relações conhecem de facto e de direito.”
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: num âmbito mais restrito, dos vícios descritos no artº 410º, nº 2, do CPP, a chamada “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o artº 412º, nº 3, 4 e 6 do mesmo código.

A “revista alargada” reporta-se aos vícios decisórios, preceituando o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, que: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.”

Imprescindível é que os apontados vícios resultem da decisão recorrida (melhor, do texto da decisão), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Não é, pois, admissível o recurso a elementos estranhos à sentença, como, por exemplo, quaisquer outros dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do julgamento, tratando-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que, quanto a eles, terá que ser suficiente.
No recurso em apreciação nenhum vício da decisão foi suscitado, nem se consegue vislumbrar da decisão recorrida (assim como qualquer nulidade de conhecimento oficioso), pelo que nada há a conhecer neste capítulo.
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No caso da impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se cinge ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova, toda ela documentada, produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP.
A verdade, porém, é que os recorrentes não impugnaram a matéria de facto, pelo que a factualidade provada e não provada se tem por assente definitivamente.
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Inexistência de factos susceptíveis de preencher o ilícito por que a arguida S. M. foi condenada (conclusões 16 a 22).

Para o efeito, invoca-se que:
- o facto da arguida S. M. “acompanhar” o arguido A. G., indo com ele no carro, não permite concluir que conhecesse a actividade por ele desenvolvida, o que não resultou provado;
- não há qualquer prova de que recebesse contrapartidas pela venda de produtos estupefacientes;
- do próprio texto da decisão recorrida resulta que foi violado o princípio in dubio pro reo;
- a factualidade provada sob o nº 30 é imprópria, conclusiva e indeterminada, ao não identificar o local, o tempo e o número de vezes em que ocorreu a conduta;
- os pontos 62º e 68º da factualidade provada consistem numa mera generalidade e num juízo conclusivo.
A recorrente S. M. acentua a tónica do “acompanhamento” que fazia do arguido A. G., deslocando-se no mesmo veículo automóvel, quando este procedeu a algumas entregas/vendas de estupefacientes.
Daí extrai que esse mero “acompanhamento” não permite concluir que tinha conhecimento da actividade desenvolvida pelo A. G..
Já supra manifestámos que, sendo admissível tal entendimento, ele foi desmentido, no caso em apreço, pelo recurso às regras da experiência e do normal acontecer. É que o referido acompanhamento não foi um ato isolado, mas uma conduta repetidamente assumida (várias vezes ao longo da estrada nacional nº 101, Valença/Monção, no Café ... ou junto das bombas da …, em Valença e em território espanhol), o que, no mínimo, devia deixar intrigada a arguida sobre os motivos de tais encontros. Se se acrescentar que os estupefacientes (e artefactos de preparação/embalagem) eram guardados na residência comum e, pelo menos os estupefacientes, transportados no veículo, mais torna inverosímil a versão da recorrente.
Mas o dito “acompanhamento” não é o factor determinante. O que assume preponderância decisiva é o facto de se ter provado que a arguida S. M. vendeu/entregou produtos estupefacientes (pontos nºs 18, 27 e 34).
O tipo legal prevê múltiplas formas de cometimento, não só a venda, mas também a detenção, cedência, cultivo, preparação, transporte, etc., consumando-se com qualquer uma dessas condutas, isolada ou reiterada, e não exigindo o recebimento de vantagens.
Em resumo, a arguida não só conhecia a actividade desenvolvida pelo seu marido, como também a levou a cabo.
Quanto à alegada violação do princípio in dubio pro reo, importa salientar que não se vê que o tribunal haja sido confrontado com qualquer dúvida insanável e inultrapassável, quanto a tal matéria e, por menor que ela fosse, a tenha decidido em desfavor da arguida.
A decisão do tribunal a quo - beneficiando da imediação e da oralidade e fundada no princípio da livre apreciação da prova - não é arbitrária, mas suportada na prova produzida em audiência e na demais constante do processo, que, exaustivamente, descreveu na motivação da decisão.
A prova não pode ser analisada de forma segmentada, atomizada. “O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.”
O princípio “in dubio pro reo” traduz-se numa imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos essenciais e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
É insofismável que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objectivável, o tribunal deve decidir “pro reo”.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias “à luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (…) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.”
Não ocorreu qualquer violação do invocado princípio. O que se verifica é que a recorrente pretende impor a sua própria convicção, em substituição da formada pelo Tribunal, que é a entidade competente para o efeito. Mas, como já supra se referiu, a convicção do Tribunal traduzida na factualidade dada como provada não merece qualquer reparo, por ser absolutamente lógica, racional e congruente com as regras da experiência comum!
Quanto à matéria constante dos pontos 30, 62 e 68 dos factos provados.

Comecemos por recordar os respectivos teores, bem como dos pontos a eles atinentes:

“27. C. A., com o contacto telefónico n.º ......... e residente em Monção, comprou cocaína aos arguidos entre meados de 2018 e Dezembro de 2019, sendo que, normalmente, comprava 0,5 g por € 30,00, duas ou três vezes por mês.
28. Quando começou a comprar cocaína aos arguidos, estes ainda residiam em Espanha, mas as entregas eram feitas em Portugal.
29. Para tais entregas, C. A. telefonava ao arguido e este determinava o local da entrega, geralmente em ... ou ..., freguesias de Monção, realizando-se a transacção na berma da E.N. 101.
30. As mesmas entregas eram efectuadas pelo arguido, sendo que por vezes a arguida o acompanhava, além de ter havido outras vezes, não concretamente apuradas, em que foi a arguida, sozinha, a entregar a cocaína a C. A..
(…)
62. A venda e entrega de estupefaciente era realizada por ambos os arguidos, em comunhão de intentos, coadjuvando a arguida o marido, quer através de entregas sozinha quer atendendo chamadas de compradores.
68. Os arguidos agiram em comunhão de esforços e de forma livre, voluntária e consciente.”

No que concerne ao primeiro segmento (ser a factualidade provada sob o nº 30 imprópria, conclusiva e indeterminada, ao não identificar o local, o tempo e o número de vezes em que ocorreu a conduta), já se teceram algumas considerações; a propósito da alegada nulidade da acusação.
Como decorre dos pontos 27 a 30 da matéria de facto provada, C. A. comprou cocaína aos arguidos entre meados de 2018 e Dezembro de 2019, duas ou três vezes por mês, pagando €30,00 por 0,5 gramas. As entregas decorriam na berma da EN 101, nas freguesias de … ou de ..., em Monção, sendo efectuadas pelo arguido A. G. (por vezes acompanhado da S. M.) ou pela última, que se deslocava àqueles locais, sozinha.
Está, portanto, suficientemente definido o período em que ocorreram as transacções (cerca de um ano e meio), a sua frequência (duas ou três vezes por mês), os locais onde ocorriam as transacções, o preço praticado (€30,00 por 0,5 grama) e o modo como o adquirente “encomendava” a substância.
Efetivamente, havendo entregas feitas só pelo A. G. e só pela S. M., além de outras feitas pelo primeiro acompanhado da segunda, não foi possível concretizar as datas em que ocorreram umas e outras.
Nem tal era exigível ao preenchimento dos elementos típicos do ilícito, que se perfetabiliza com um só ato.
Nem mais era exigível ao consumidor, designadamente que fixasse ou anotasse as datas em que ocorriam as entregas e quem as consumava, face a um tão elevado número de aquisições. Recorde-se que, durante cerca de um ano e meio, terão ocorrido entre 36 e 54 entregas. Seria exigir de mais de quem apenas pretende satisfazer o seu “vício”!
A matéria vertida no ponto 30 não é imprópria, nem conclusiva e está suficientemente determinada.
No que respeita aos pontos 62 e 68, que os recorrentes dizem ser uma mera generalidade e um juízo conclusivo, é óbvio que - tratando-se de matéria relativa ao elemento subjectivo e, portanto, do foro íntimo dos sujeitos – a mesma não pode ser apurada directamente, salvo em caso de confissão, mas depreendida dos demais elementos (objectivos) apurados.
E foi precisamente o que se verificou, não podendo ficar qualquer dúvida acerca da conduta empreendida pelos arguidos e da “intenção” com que a levaram a cabo, não se tratando de conceitos gerais e conclusivos, antes de factos decorrentes da demais factualidade apurada.
Também, nesta parte, o recurso improcede.
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Suspensão da execução da pena aplicada ao arguido A. G..

Neste segmento recursivo (conclusões 23 a 32), os recorrentes pugnam pela suspensão da execução da pena aplicada ao arguido A. G. (de 4 anos e 10 meses de prisão), com sujeição a regime de prova.
Para o efeito, depois de citar a previsão do art. 50º, nº 1, do Cód. Penal, alegam que o Tribunal não valorizou adequadamente a inserção familiar do arguido, a idade avançada, a primariedade, o arrependimento demonstrado, a boa imagem social, a posse de meios de subsistência para retomar a vida em comunidade e o comportamento exemplar em meio prisional, o que permite formular um juízo de prognose favorável sobre a sua vida futura.

No juízo de apreciação do ilícito e de determinação da medida das penas concretas, o acórdão recorrido ponderou que:

“- (…) o período abrangido é longo (entre 2017 e 2020, mas já ocorrendo entre 2013 e 2014 e, mesmo mais de 10 anos antes, entre 2004 e 2006;
- estão em causa dois tipos de substâncias, tendo uma delas, a cocaína, elevado poder aditivo;
- os consumidores provêm de vários concelhos do distrito de Viana do Castelo (Arcos de Valdevez, Monção, Ponte de Lima, Ponte da Barca e Vila Nova de Cerveira, todos fora do de residência dos arguidos, Valença), figurando os arguidos como fornecedores de referência numa área alargada;
- não há qualquer demonstração de que os arguidos sejam consumidores de estupefacientes, o que significa ser apenas o lucro que os move e torna a sua actuação mais censurável;
- a forma de embalar a cocaína, com invólucros de diferentes cores conforme o peso, dá por si só nota de uma organização e sofisticação da actividade, o que também é confirmado pela posse de artefactos relacionados com a respectiva venda, (…);
- as quantias em dinheiro referidas em 70., aliadas aos lucros referidos em 69., traduzem um grau de envolvimento acentuado no tráfico;
- e, finalmente, a elevada quantidade de cocaína apreendida (196 g, com alto grau de pureza, a maior parte dela nem sequer dividida em doses individuais), apta a produzir, sem qualquer “corte”, 870 doses individuais!
- Todo este quadro não é de pequenos traficantes, mas de pessoas que já funcionam como importantes intermediários entre uma venda por grosso e os consumidores finais.
- a intensidade do dolo, na modalidade de dolo direto;
- o elevado grau de ilicitude do facto, dado o volume e tempo do tráfico, as suas consequências para a saúde da comunidade e os fins lucrativos que determinaram a sua prática;
- a favor do arguido, a ausência de antecedentes criminais (…) e a sua parcial admissão dos factos, bem como do montante dos lucros obtidos. A favor de ambos, a integração social e familiar (…).

Na parte relativa à suspensão da execução da pena, o Acórdão ponderou:

““As penas aplicadas, por se conterem nos limites previstos no art 50.°, n.° 1, são susceptíveis de suspensão na sua execução, “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias desfe, [se] concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Do cotejo desta norma com o caso concreto, salta á vista que a pena do arguido não pode ser suspensa na sua execução: apesar de ser o seu primeiro contacto com o sistema penal, é indubitável que a sua conduta é de extrema gravidade, tem já uma considerável escala e prolongou-se durante 8 anos, com interrupções é certo, mas tendo começado 16 anos antes da sua detenção nestes autos! Por outro lado, e apesar da co-autoria dos factos com a arguida, são do arguido a maioria dos actos materiais de tráfico, desde o contacto dos consumidores até à entrega da cocaína ou da cannabis. Chegou a altura de o arguido perceber a gravidade do que fez e do mal que foi causando ao longo dos anos, para tal sendo escassa a ameaça de prisão e a censura do facto traduzida na condenação. Deverá, por isso, a pena aplicada ao arguido ser efectiva, como agente que ainda não percebeu o alcance do carácter ilícito do tráfico de estupefacientes.””
Não é despiciendo trazer à colação factos provados (extraídos do relatório social), que revelam que “O arguido demonstra frágil capacidade de análise crítica relativamente ao seu percurso de vida e parca capacidade reflexiva, com dificuldades em identificar adequadamente a ilicitude e censurabilidade do comportamento que lhe é imputado, em identificar o estatuto de vítima, o dano associado ao crime em causa e o impacto deste em terceiros.”
Para concluir pela possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena, o recorrente A. G. invoca uma não adequada valorização da sua inserção familiar, a idade avançada, a primariedade, o arrependimento demonstrado, a boa imagem social, a posse de meios de subsistência para retomar a vida em comunidade e o comportamento exemplar em meio prisional.
O Tribunal recorrido - como se alcança da transcrição supra realizada - ponderou todos os elementos indicados, com a ressalva do comportamento em meio prisional (cuja menção inexiste nos autos) e do arrependimento (limitou-se a considerar uma admissão parcial dos factos e dos lucros obtidos).
O que também entendeu é que todos esses factores (a boa imagem social, a inserção familiar, a idade e, até, a posse de meios de subsistência), sendo pré-existentes ou concomitantes com a actividade de tráfico, não tiveram a virtualidade de a impedir ou limitar, podendo perguntar-se por que motivo o passariam a ser para o futuro.
Como decorre do teor do nº 1 do art. 50º do CP, o juízo de prognose favorável à suspensão depende da personalidade do agente, das condições da sua vida, da conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias deste, desde que as finalidades da punição fiquem adequada e suficientemente realizadas.
Foi precisamente nas circunstâncias do crime (a sua natureza, a elevada ilicitude, o longo período por que perdurou, o acentuado grau de organização revelado) que o Tribunal a quo se estribou para considerar não ser possível formular tal juízo de prognose favorável, apesar de o arguido ser primário.
E bem andou o Tribunal recorrido, sobretudo se se acrescentar as caraterísticas da personalidade decorrentes do relatório social, ou seja, a “frágil capacidade de análise crítica relativamente ao seu percurso de vida e parca capacidade reflexiva, com dificuldades em identificar adequadamente a ilicitude e censurabilidade do comportamento”,
Também neste segmento, o recurso improcede.
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IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos arguidos A. G. e S. M., confirmando o acórdão recorrido.
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Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 4 UC (quatro unidades de conta) – artigo 513º, nº 1, do CPP, artigo 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa a este diploma legal.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 13 de Setembro de 2021

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)