Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
304/17.3T8BRG.G2
Relator: CRISTINA CERDEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ESPECÍFICOS DEVERES DE DILIGÊNCIA E CUIDADO
LEGES ARTIS
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- No âmbito da responsabilidade civil médica a nossa lei não consagra/prevê casos de responsabilidade civil objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, mas tão só admite que a resolução de questão relacionada com um erro médico seja apreciada no âmbito da responsabilidade contratual e da extracontratual ou aquiliana, podendo a responsabilidade civil médica ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física.
II- Ao médico, seja qual for a sua obrigação, esteja ou não vinculado por contrato, exige-se que cumpra as “leges artis” com a diligência normal que um médico medianamente competente, prudente, sensato, cuidadoso, com os mesmos conhecimentos, graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura.
III- Em sede de responsabilidade civil médica, porque por regra a obrigação (contratual) do médico é de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbe ao paciente lesado o ónus de alegar e provar a existência do vínculo contratual e da verificação dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das “leges artis” e da devida diligência por parte do médico, dos danos e sua extensão e do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos. Ou seja, o paciente/lesado tem de demonstrar a inobservância de um dever específico de diligência e de cuidado por parte do médico, nomeadamente o requerido pelas “leges artis”.
IV - Feita tal prova pelo paciente lesado, tem lugar a presunção de culpa do médico contida no artº. 799º, n.º 1 do Código Civil, podendo esta ser ilidida caso o médico demonstre que agiu correcta e diligentemente, por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

M. L. instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Clínica Médico Cirúrgica de X, S.A. e Y Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., actualmente designada W Seguros - Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., pedindo a condenação das RR. a pagar-lhe, na medida das suas responsabilidades:

a) quantia não inferior a € 51.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais (pelas dores que ficou a padecer no membro inferior, por claudicar ao andar e pelo dano estético), relegando-se para incidente de liquidação de sentença o cálculo dos montantes indemnizatórios a que a A. tem direito pelas perdas aquisitivas laborais advindas das IPP e IPG provocadas pelos factos alegados, dado os mesmos não serem quantificáveis de momento, uma vez que não se encontra curada;
b) todas as despesas médicas, medicamentosas e hospitalares que venham a ser reclamadas;
montantes estes acrescidos de juros de mora à taxa legal a partir da citação até integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese, que em 12 de Setembro de 2001 foi submetida a uma intervenção cirúrgica nas instalações da 1ª Ré, a qual foi efectuada sob as ordens, orientações e pessoal técnico daquela.
Porém, fruto dessa intervenção a A. ficou com um parafuso, material de perfuração, instalado na tíbia direita.
A colocação de tal parafuso deveria ter sido temporária, mas o mesmo não foi retirado, apesar da insistência da A. perante as RR., permanecendo no referido osso do corpo da A. por esquecimento e posterior recusa em retirar aquele objecto por parte dos técnicos da 1ª Ré, afirmando que o mesmo já se encontra envolvido pelo osso da tíbia.
Fruto disso a A. ficou a padecer de escoliose lombar, discopatia L5-S1 e sinovite peri-tendões peroneal e tibial direitos, hepatotapia esteatosica e dispidemia mista, meniscopatia degenerativa do menisco interno joelho esquerdo, tendinite supra-espinhoso e entesite olecraneana direitas.
A A. tem sofrido tratamento médico e ambulatório, sofreu dores e continua a sofrer, com um quantum doloris superior a 3 em 7, ficou a padecer de uma IPP não inferior a 10%, que a limita para o trabalho em tal grau, pois tem dificuldade em subir e descer escadas, em ajoelhar-se, sofreu diminuição da força muscular, tem marcha claudicante, o que reduz a sua capacidade produtiva.
Refere, ainda, que antes do sucedido a A. trabalhava, auferindo a quantia líquida de € 527,00, 14 vezes por ano, numa remuneração anual total de € 7.378,00.
A 1ª Ré é parte legítima uma vez que exerceu a sua actividade no âmbito de uma relação contratual com a A. e a 2ª Ré, sendo esta também parte legítima uma vez que assumiu os riscos da cirurgia.
Contudo, alega desconhecer se a 1ª Ré tinha seguro válido e eficaz à data do acidente que cobrisse os riscos da sua actividade.

A Ré W Seguros - Companhia de Seguro de Ramos Reais, S.A. (2ª Ré) contestou, alegando, em síntese, que a cirurgia em causa foi consequência de um acidente de trabalho, com sequelas, já devidamente fixadas e indemnizadas em sede de Tribunal do Trabalho, incluindo três pedidos de exame de revisão ao longo dos anos.
Na verdade, a A., enquanto ajudante de saúde da Associação Cultural Recreativa e Musical de ..., tomadora de seguro de acidente de trabalho, sofreu um acidente de trabalho em 24/12/2000 (escorregou e caiu) com fractura trimaleolar da tibiotársica direita. Aquela entidade empregadora tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a 2ª Ré pela apólice n.º ......1.
Participado o sinistro, a A. foi tratada clinicamente, tendo obtido alta em 21/03/2003, com IPP de 13,6%, fruto das lesões que apresentava: edema residual e rigidez do tornozelo direito.
Acrescenta que participado o sinistro pela Seguradora ao Tribunal do Trabalho de Braga, a Junta Médica fixou à A. uma IPP de 16,7%, tendo a respectiva pensão sido remida e indemnizada em 13/10/2003, no valor de € 7.828,97.
Na sequência de pedidos de revisão feitos em 2003 e 2007, a Junta Médica atribuiu à A. a IPP de 19,25% e de 24% respectivamente, tendo a indemnização sido novamente remida em 17/05/2005, no montante de € 1.181,10 e em 31/10/2007, no valor de € 2.113,82.
Em 2010, a A. requereu novo exame de revisão; no entanto, a Junta Médica manteve os 24% de IPP.
Em 2011, a sinistrada, através do seu mandatário, pediu uma consulta, marcada no Hospital ... no Porto, mas da avaliação médica efectuada não resultou qualquer alteração ou tratamento.
Em Junho de 2016, a A. voltou a pedir reavaliação, que não foi aceite, porque não havia factos novos a considerar, nem existiam registos clínicos no sentido do agravamento.
Do ponto de vista da responsabilidade civil, nenhuma transferência de responsabilidade foi celebrada entre as aqui RR., pelo que a petição inicial, pelo menos no que à 2ª Ré diz respeito, é inepta, além de que a mesma é parte ilegítima, o que conduz à nulidade do processo e à absolvição desta Ré da instância.
O contrato de seguro celebrado entre as RR. não garante a responsabilidade civil extra-contratual decorrente de qualquer facto alegadamente negligente praticado pela 1ª Ré – conforme resulta da causa de pedir – estando apenas coberto os danos decorrentes das lesões advindas do acidente de trabalho.
Entende, ainda, a 2ª Ré que, em face do contrato de seguro alegado, só pode ser demandada no Tribunal do Trabalho, pois só este pode dirimir litígios relativos a questões emergentes de um acidente de trabalho, arguindo assim a incompetência em razão da matéria do Juízo Central Cível de Braga para decidir a presente causa.
Mais alega que o direito da A. se encontra prescrito, já que entre a data da cirurgia e a data de propositura da presente acção decorreram mais de 3 e 5 anos.
Defende-se, também, por impugnação, alegando, em suma, que como não interveio no processo cirúrgico, desconhece os factos alegados nos artºs 3º a 5º da petição inicial, e afirma que em todos os processos de revisão nunca foi detectada qualquer patologia ou sequela advinda da não retirada de um qualquer “parafuso”, para além de que a A. não sofreu nem sofre de qualquer dano ou sequela advindo do esquecimento por ela alegado.
Conclui, pugnando pela procedência das excepções aduzidas, devendo a presente acção ser julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido.

A Ré Clínica Médico Cirúrgica de X, S.A. (1ª Ré) também contestou, defendendo-se por excepção, alegando:

a) estar prescrito o direito de indemnização da A. por eventual negligência médica imputável à 1ª Ré, pois que situando-se os factos invocados contra si no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, de cariz extracontratual, dado que interveio a pedido da Ré Seguradora, sem que tivesse sido contratado directamente com a A. a prestação de serviços médicos (a A. foi intervencionada cirurgicamente nas instalações da 1ª Ré, por efeito de uma relação existente entre si e a Ré Seguradora, nunca tendo a Ré Clínica se obrigado contratualmente perante a Autora), o prazo de prescrição a considerar é o de três anos, previsto no artº. 498º do Código Civil, a contar desde pelo menos 12/09/2001 (data em que alegadamente o parafuso lhe foi colocado);
b) existir dedução ilegal de pedidos genéricos e relativos a danos futuros incertos e indeterminados, vertidos no pedido de pagamento de uma indemnização, cujo montante relega para liquidação de sentença a título de perdas aquisitivas laborais por IPP e IPG, referindo que estas não são quantificáveis de momento, e no pedido de pagamento de despesas médicas, medicamentosas e hospitalares que venha a reclamar, uma vez que os danos futuros têm de ser já certos, não podendo ser hipotéticos, nem podem exigir aclaração ou concretização de pormenores.
Defende-se, também, por impugnação, alegando que a A. invoca danos que (i) estão relacionados com as lesões decorrentes do sinistro que sofreu, e para os quais não contribuiu a 1ª Ré, mas unicamente o acidente, já deles tendo sido ressarcida, (ii) ou que – a verificarem-se – se relacionam com uma condição degenerativa da própria A., que nada tem que ver com a situação que determinou a intervenção médica dos profissionais ao serviço da 1ª Ré, na assistência que lhe foi prestada a propósito do acidente de trabalho verificado.
Refere, ainda, que a A. sofreu um acidente de trabalho em 24/12/2000, por ter caído e partido o pé e o tornozelo direito. Nessa sequência, foi submetida a uma primeira cirurgia em 12/09/2001, para fixação de pseudartrose do maléolo, por raquianestesia.
A cirurgia foi bem-sucedida, por meio da técnica adequada, não tendo sido registadas quaisquer intercorrências, alcançando-se o fim visado, com colocação de material de osteossíntese. O pós-operatório também decorreu com normalidade, sem quaisquer intercorrências.
A segunda cirurgia para remoção do material de osteossíntese ortopédico do tornozelo direito veio a ter lugar em 16/01/2002. Esta cirurgia correu também satisfatoriamente, sem intercorrências a assinalar, tendo sido retirado o dito “parafuso” que foi colocado na cirurgia de 12/09/2001.
A Ré Clínica tudo fez para a boa execução dos actos cirúrgicos que tiveram lugar no seu estabelecimento, tendo sido aplicada a melhor técnica e capacidade por parte do médico assistente da A., o cirurgião Dr. A. V., para executar os correctos actos cirúrgicos, não tendo feito nada contrário às regras da medicina, ou deixado algo por fazer que se impusesse ou recomendasse no caso concreto da Autora.
A 1ª Ré não só empregou todos os meios adequados à realização dos actos médicos a que se propôs, como também foram empregues todos os actos recomendados de acordo com a “leges artis” no cumprimento dos actos médicos em apreço, pelo que não estão preenchidos os pressupostos de responsabilidade civil médica da Ré, de maneira a poder fazer actuar sobre ela qualquer obrigação de indemnização.
Para que numa acção de responsabilidade civil se possa concluir pela responsabilidade civil médica, terá que ser alegado e demonstrado que o médico em causa e os seus auxiliares não praticaram todos os actos que, de acordo com a “leges artis”, seriam adequados a evitar o resultado final.
No caso de se admitir a verificação dos demais requisitos da responsabilidade civil (o que não admite), é inultrapassável a inexistência de culpa da Ré na produção dos danos que alegadamente vieram a suceder.
Os danos que a A. invoca nada têm que ver com qualquer acto médico-cirúrgico ocorrido sob a direcção clínica da 1ª Ré – antes resultando de sequelas do próprio acidente de trabalho, ou de factos sem nexo causal com os actos médico-cirúrgicos ocorridos na Ré Clínica.
Acrescenta a propósito dos juros de mora peticionados, sem prejuízo de os mesmos não serem devidos por não ser devida qualquer indemnização peticionada a título de capital, que não admite que o início da sua contagem ocorra com a citação para a presente acção, pois que tal contraria o vertido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002 de 9/05/2002.
Por fim, alega que a conduta demonstrada pela A. configura uma situação de litigância de má-fé, pois que os pedidos por ela deduzidos carecem de fundamento, tendo como única consequência a sujeição da Ré, de forma leviana e injusta, a Tribunal, ofendendo o seu bom nome e reputação no meio clínico – passados 15 anos desde a suposta omissão de que vem acusada.

Termina, pugnando pela:
a) procedência da excepção peremptória da prescrição do direito de indemnização da A. contra a 1ª Ré, com a sua absolvição do pedido;
b) procedência da excepção dilatória atípica da ilegalidade de dedução de pedidos genéricos e relativos a danos futuros incertos e indeterminados, de conhecimento oficioso, implicando a absolvição das RR. da instância;
c) em qualquer caso, pela improcedência da presente acção, com a absolvição da 1ª Ré dos pedidos contra si formulados;
d) condenação da A. como litigante de má fé, a pagar uma multa a fixar equitativamente pelo Tribunal e em indemnização à 1ª Ré não inferior a € 5.000,00, por deduzir pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, deturpando a realidade e entorpecendo a acção da justiça.

Foi realizada a audiência prévia, no decurso da qual foi concedido prazo à A. para se pronunciar sobre as excepções deduzidas pelas Rés.

A A. apresentou resposta, na qual defende que as RR. são partes legítimas, pois que a Ré Clínica exerceu a sua actividade no âmbito de uma relação contratual com a Ré Seguradora, e esta por sua vez “assumiu os riscos da cirurgia”, sendo a A. a beneficiária do objecto do contrato estabelecido entre as Rés.
Acrescenta que não prescreveu o seu direito à indemnização já que, sendo a beneficiária do objecto da relação contratual estabelecida entre as RR., o prazo de prescrição aplicável é o de 20 anos, nos termos do artº. 309º do Código Civil.
Por outro lado, o Juízo Central Cível de Braga é o competente, pois o que está em causa não é qualquer facto relacionado com a actividade laboral da A., mas sim o apuramento dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, advindos de uma intervenção cirúrgica e cura negligentes, não se verificando, também, a ilegitimidade passiva das RR. nem a excepção atinente à inadmissibilidade do pedido génerico.
Conclui, pugnando pela improcedência das excepções invocadas pelas RR. e do pedido de condenação por litigância de má fé, reiterando o alegado na petição inicial.

Em 13/07/2017 foi proferida decisão que julgou verificada a prescrição do direito de indemnização da A. e absolveu as RR. dos pedidos contra si formulados, por se entender que a situação dos presentes autos se enquadra no domínio da responsabilidade civil extracontratual, à qual é aplicável o prazo de prescrição de 5 anos, previsto no artº. 498º do Código Civil conjugado com os artºs 118º, nº. 1, al. c) e 143º ambos do Código Penal, por estar em causa, em abstracto, um facto ilícito imputável à 1ª Ré que constituiria um crime de ofensa à integridade física simples.

Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, defendendo que o prazo de prescrição para o exercício do direito por si peticionado é de 20 anos, por o caso dos autos estar no campo da responsabilidade contratual, uma vez que entre a A. e a Ré Clínica verificou-se um contrato de prestação de serviços, pois ao assumir o tratamento médico da A., aquela Ré obrigou-se contratualmente para com a A., prestando-lhe os seus serviços.
Termina, pugnando pela procedência do recurso e substituição da sentença recorrida por outra que considere que o direito da A. não prescreveu, determinando assim o prosseguimento dos autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 133 e remetido a este Tribunal da Relação.

Em 20/03/2018 foi proferido acórdão nesta instância superior que decidiu julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, por considerar estar em causa um contrato de prestação de serviços, e a situação dos autos caber no âmbito da responsabilidade contratual, sendo o prazo para a A. exercer o seu pretenso direito indemnizatório de 20 anos, nos termos do artº. 309º do Código Civil.

Inconformada com tal decisão, a Ré Clínica dela interpôs recurso de revista para o STJ, por entender que este Tribunal da Relação fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao julgar improcedente a excepção da prescrição do direito arrogado pela Autora, impondo-se a revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que confirme a sentença da 1ª instância, por se estar perante um caso de responsabilidade civil extracontratual entre a Ré Clínica e a A./recorrente devido à não existência de qualquer contrato entre as mesmas, julgando-se, assim, verificado o prazo prescricional de 3 anos, já há muito ultrapassado.

A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso de revista e consequente confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 208 e remetido ao STJ.

Em 25/10/2018 foi proferido acórdão por aquele tribunal superior que decidiu julgar improcedente o recurso interposto e, consequentemente, negou a revista, mantendo-se o dispositivo do acórdão recorrido que apreciou a arguida excepção peremptória de prescrição, embora por razões diversas do Tribunal da Relação de Guimarães, considerando que o prazo prescricional aplicável é de 20 anos, por estar em causa um contrato de prestação de serviços “combinado” com um contrato a favor de terceiro.

Em face do decidido por este Tribunal da Relação por acórdão de 20/03/2018, confirmado pelo acórdão do STJ acima referido, foi realizada nova audiência prévia em 29/01/2019, na qual foi proferido despacho saneador onde se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, e se decidiu pela:

a) competência material do Juízo Central Cível da Comarca de Braga para conhecer da presente causa;
b) inexistência de qualquer nulidade decorrente de ineptidão da petição inicial;
c) legitimidade da Ré Seguradora;
d) inexistência de qualquer ilegalidade na dedução de pedidos genéricos.

Foi, ainda, definido o objecto do litígio e enunciados os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Foi realizada perícia médico-legal para avaliação do dano corporal da A., cujo relatório final se encontra junto a fls. 367 a 372.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Após, foi proferida sentença que decidiu julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu as Rés dos pedidos contra si formulados pela Autora.
Não há lugar há condenação da Autora como litigante de má-fé.

Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

I. O presente recurso vem interposto da douta sentença que julgou improcedente o pedido formulado pela A..
II. Em face dos meios de prova, designadamente o depoimento testemunhal da A. e ao silêncio das testemunhas dos RR. que nem foram ouvidas, deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.
III. Os depoimentos das testemunhas da A. foram prestados de forma isenta, credível com conhecimento dos factos e bastante circunstanciados, como refere a sentença.
IV. Dando assim por impugnada a decisão de direito e da matéria de facto que deverá ser revista à luz da reapreciação da prova gravada, que, desde já se requer.
V. Pretende – se que, após a reapreciação da prova seja alterada a matéria de facto julgando-se não provados os factos considerados provados na 1ª instância sob o nº 18, e outros que melhor se entender, da sentença recorrida.
VI. A sentença porque não aplicou correctamente o Direito aos factos, violou o disposto no artº 607- 3 do CPC, bem como,
VII. Ao não ter em conta o ónus da prova a cargo dos RR. e ao decidir-se como se decidiu na douta sentença recorrida foram violados os artºs 70, 342- nº 1, 487, 562, 799, 800 todos do C. Civil.
VIII. Com efeito, era à R. que cabia provar que actuou com brio e profissionalismo e que não deixou num parafuso ou broca na perna da A.
IX. Com todo o devido respeito apetece contar este caso surpreendente e verdadeiro, que poderá adequar-se à presente situação:
X. Um dia um oficial alemão perguntou ao Sr. P. como conseguiu pintar tanto horror no quadro Guernica.
XI. Este, semi-mudo, perante tão descabida pergunta, respondeu-lhe: Não fui eu, foram vocês.
XII. Assim, cabe aos tribunais, que neste período conturbado, são os únicos garantes da democracia e da dignidade dos cidadãos mais fracos e desprotegidos, salvaguardar os direitos liberdades e garantias do povo humilde deste país, face aos poderosos.

Termina entendendo que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida e substituí-la por outra que julgue a presente acção procedente e provada.

A Ré Clínica Médico Cirúrgica de X, S.A. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso por, em seu entender, não estar provada qualquer violação das “leges artis”, nem que os danos a existirem tenham qualquer nexo de causalidade com os actos imputados à recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de 11/11/2020 (refª 170438179).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Autora, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
II) - Saber se deverá ser alterada a solução jurídica da causa.


Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:

Da petição inicial:
1. A 12 de Setembro de 2001 a autora foi submetida a operação cirúrgica nas instalações da 1.ª ré Clínica;
2. A qual foi executada sob as ordens, orientações e pessoal técnico daquela ré;
3. Antes do sucedido a autora trabalhava, auferindo a quantia líquida de 527,00 Eur. (quinhentos e vinte e sete euros), catorze vezes por ano, numa remuneração anual total de 7.378,00 Eur. (sete mil trezentos e setenta e oito euros);
4. A autora nasceu a - de Março de 1960;

Da contestação da ré seguradora:
5. A autora, enquanto ajudante de saúde da Associação Cultural Recreativa e Musical de ..., sofreu um acidente em 24/12/2000 (escorregou e caiu) que determinou uma fratura trimaleolar da tibiotársica direita;
6. Como aquela entidade empregadora tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a Y Seguros pela apólice n.º ......1 (depois n.º 000188605), participado o sinistro, a autora foi tratada nos serviços da 1.ª ré Clínica, tendo obtido alta em 21.03.2003, com IPP de 13,6%, fruto de edema residual e rigidez do tornozelo direito;
7. Participado o sinistro ao Tribunal do Trabalho Braga, a Junta Médica fixou à autora uma IPP 16,7%, tendo a respectiva pensão sido remida e indemnizada em 13 de Outubro de 2003, no valor de 7.828,97 Eur. (sete mil oitocentos e vinte e oito euros e noventa e sete cêntimos);
8. Na sequência de pedidos de revisão feitos em 2003 e 2007, a Junta Médica atribuiu à autora a IPP de 19,25% e de 24%, tendo a indemnização sido novamente remida em 17/05/2005, no montante de 1.181,10 Eur. (mil cento e oitenta e um euros e dez cêntimos), e em 31.10.2007, no valor de 2.113,82 Eur. (dois mil cento e treze euros e oitenta e dois cêntimos);
9. Em 2010, a autora requereu nova revisão mas a Junta Médica manteve os 24% de IPP;
10. O contrato de seguro celebrado entre as rés cobria os danos decorrentes das lesões advindas de eventual acidente de trabalho de funcionários do tomador, a Associação Cultural Recreativa e Musical de ..., com data de início a 6.01.2000 e até ao limite de 3.572.800$00 (três milhões, quinhentos e setenta e dois mil e oitocentos escudos), renovável por iguais períodos de um ano;

Da contestação da ré clínica:
11. A autora sofreu um acidente de trabalho a 24.12.2000, por ter caído e partido o pé e o tornozelo direito;
12. Nessa sequência, foi submetida a uma primeira cirurgia na Clínica, em 12.09.2001, para fixação de pseudartrose do maléolo, por raquianestesia;
13. A cirurgia foi bem-sucedida, não tendo sido registadas quaisquer intercorrências, alcançando-se o fim visado, com colocação de material de osteossíntese;
14. O pós-operatório decorreu com normalidade, sem intercorrências;
15. A segunda cirurgia para remoção do material de osteossíntese ortopédico do tornozelo direito – parafuso, veio a ter lugar no dia 16.01.2002;
16. Esta cirurgia correu também bem, sem intercorrências a assinalar, tendo sido retirado o dito parafuso;
17. Os actos cirúrgicos tiveram lugar no estabelecimento da ré clínica, sob a direcção do médico assistente da autora, o cirurgião Dr. A. V.;
18. A ré empregou todos os meios adequados à realização dos actos médicos a que se propôs, e foram empregues todos os actos recomendados de acordo com a “leges artis” no cumprimento dos actos médicos em apreço.

Por outro lado, na sentença recorrida, foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

1. Por força da cirurgia feita pela 1.ª ré a autora mantém um parafuso instalado na tíbia direita;
2. O qual nunca foi retirado, permanecendo no osso do corpo da autora por esquecimento dos técnicos da 1.ª ré e posterior recusa em retirar o mesmo por parte deles;
3. Fruto disso a autora ficou a padecer de escoliose lombar, discopatia L5-S1 e sinovite peri-tendões peroneal e tibial direitos, hepatotapia esteatosica e dispidemia mista, meniscopatia degenerativa menisco interno joelho esquerdo, tendinite supra- espinhoso e entesite olecraneana direitas;
4. Apesar de insistências da autora para que a 1.ª ré retire o parafuso, esta recusa afirmando que o mesmo já está envolvido pelo osso da tíbia;
5. O que implica que a autora mantenha tratamento médico e ambulatório, e que continue a sofrer dores;
6. Por força da cirurgia realizada pela 1.ª ré, e posterior recusa em retirar o parafuso, a autora ficou a padecer de uma IPP não inferior a 10 pontos;
7. Bem como perdeu força muscular, tem marcha claudicante e tem dificuldade em subir e descer escadas ou em se ajoelhar;
8. O cirurgião da ré Clínica e os seus auxiliares não praticaram todos os actos que, de acordo com a “leges artis”, eram adequados a evitar que a autora ficasse com sequelas do acidente sofrido.
*
Apreciando e decidindo.

I) – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Vem a A., ora recorrente, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que o ponto 18 dos factos provados e outros que melhor se entender, da sentença recorrida, sejam dados como não provados, por entender que o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento, não tendo feito uma correcta apreciação da prova produzida nos autos, designadamente dos depoimentos das testemunhas A. S. e V. D., arroladas pela A., que “foram prestados de forma isenta, credível, com conhecimento dos factos e bastante circunstanciados, como refere a sentença recorrida”.
Mais alega que sendo às RR. que incumbia o ónus da prova (havendo, neste caso, inversão do mesmo), como aquelas prescindiram das suas testemunhas na audiência de julgamento, nada provaram em contrário, “nem se não foram eles que deixaram ficar a broca, nem se actuaram com diligência”, pelo que o Tribunal “a quo” deveria ter decidido de forma diferente nos termos supra referidos.

Ora, na “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, escreveu-se o seguinte [transcrição]:

«O Tribunal fundamentou a sua convicção com base na análise crítica da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, designadamente valorando os depoimentos colhidos às testemunhas ouvidas, no confronto com a prova documental e pericial junta ao processo, tudo analisado de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.
Cumpre, pois, concretizar, embora de forma sucinta, em que precisos termos se formou a convicção do Tribunal relativamente aos factos dados como provados.
Assim, e no que respeita à matéria dos pontos 1, 2, 5, 11 a 18 dos factos provados atendeu-se, além de parte se tratar de matéria já assente, por acordo das partes (pontos 1, 2, 5, 11 e 12), ao teor dos documentos 1 e 2 da petição (fls. 11 e 12), ao documento de fls. 49 junto pela ré seguradora, e ainda à documentação que integra o processo clínico da autora de fls. 270 a 295, mormente às fichas de protocolo operatório de fls. 279 e 289 e notas de enfermagem de fls. 275, 276, 277, 287, 288, e registos do médico assistente de fls. 291 verso a 295, os quais foram dactilografados de fls. 358 a 361. Relevante ainda a informação remetida pela ARS Norte – UCSP ... – do ... II – ... de fls. 330 a 339.
Quanto ao ponto 3 dos factos provados, atendeu-se ao relatado pelas testemunhas A. S. e V. D., respectivamente marido e filha da autora, neste ponto convincentes e cujo depoimento surge ainda secundado pelos elementos juntos pela própria ré seguradora, extraídos dos autos de acidente de trabalho.
Quanto aos pontos 3 e 6 a 10 dos factos provados além de se ter considerado o teor da apólice de seguro de acidentes de trabalho e respectivas condições particulares de fls. 46 verso e 47 (doc. 2 da contestação da ré seguradora), atendeu ainda o Tribunal ao teor da documentação extraída dos autos do processo de acidente de trabalho n.º 15/2002 do então 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Braga de fls. 47 verso a 69 verso (doc. 3 da contestação da seguradora) e de fls. 73 a 86 (doc. 4 da contestação da seguradora).
Nesta sede, relevam entre outros, a participação de sinistro de fls. 47 e 48 ambos verso, o auto de exame médico de fls. 53 (14.05.2003), o auto de não conciliação de fls. 54 (de 14.05.2003), os autos de exame por junta médica de fls. 55 verso, 56 e 56 verso, as decisões judiciais de 30.06.2003, de 31.03.2005 e de 12.07.2007 (fls. 57 verso e 58, fls. 67 verso e 68 e fls. 77 verso e 78) e os cálculos de capital de remição de fls. 59, 69, 73 verso e 79, e ainda os autos de exame de revisão de fls. 59 verso e 60 (de 26.11.2003), de fls. 65 e 65 verso (de 26.01.2005) e de fls. 75 e 75 verso (de 8.05.2007), bem como o teor do exame de avaliação em direito do trabalho de fls. 81 a 83 de 12.07.2010, o auto de exame por junta médica de fls. 84 e a decisão judicial de 11.11.2010 de fls. 85 e 86 dos autos.
Por fim, quanto ao ponto 4 dos factos provados atendeu-se ao teor do doc. 5 da petição, que corresponde ao assento de nascimento da autora junto a fls. 15.
Além do já mencionado, e quanto aos factos provados e pontos 1 a 8 dos factos não provados, especificamente quanto a exames, tratamentos, cirurgias e consultas a que a autora foi sujeita, tratamentos fisiátricos, etc., na sequência do acidente de trabalho, e tudo o mais que relevava ao apuramento da sua situação de saúde antes e após o acidente de trabalho e subsequentes cirurgias, alegadas lesões e sequelas dali decorrentes (incluindo défice funcional permanente, quantum doloris, repercussão na actividade profissional), considerou-se o teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito civil, elaborado na sequência do exame médico efectuado à autora no Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado de fls. 366 a 372.
De facto, deste relatório pericial conclui-se que todas as lesões e/ou sequelas que a autora mantém à data no membro inferior direito – cicatrizes, edema do tornozelo, hipotrofia dos músculos e anquilose do tornozelo, foram consequentes à consolidação viciosa da fractura trimaleolar à direita sofrida pela autora, o que determinou a imobilização do membro inferior e medicina de reabilitação, seguida de uma 1.ª cirurgia a 12.09.2001, para fixação de pseudartrose do maléolo tibial, e de uma 2.ª cirurgia a 16.01.2002 para retirar o material de osteossíntese – parafuso maleolar, ambas feitas na clínica ré sob direcção do cirurgião, Dr. A. V..
Mais da documentação clínica junta pela seguradora resulta ainda que a autora, por manter queixas, passou a ser seguida no Hospital ..., onde foi novamente operada a 20.05.2002, por manter consolidação viciosa da fractura e ainda a 11.11.2002, agora para retirar material de osteossíntese (cfr. fls. 320 a 324).
A consolidação das lesões ocorreu a 3.03.2003, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixado em 10 pontos e implica esforços suplementares no desenvolvimento da profissão da autora, um dano estético de 3 pontos (claudicação e cicatrizes), bem ainda um quantum doloris de grau 3.
Ou seja, não obstante se reconheça que a autora mantém sequelas, as mesmas não decorrem de qualquer acto médico realizado pelos técnicos da ré Clínica.

De facto, não se confirmou a existência de um parafuso no corpo da autora, nomeadamente no membro inferior direito, por incúria dos técnicos da ré, já que:
- o relatório da TAC que consta de fls. 323 verso e 324, a que as testemunhas da autora aludiram para imputar à ré Clínica a má prática médica, corresponde a um exame que foi feito a 27.12.2002, isto é, após as quatro descritas cirurgias (a 12.09.2001, 16.01.2002, 20.05.2002, 11.11.2002), não podendo obviamente o Tribunal, com qualquer segurança ou rigor, dizer que o “fragmento de parafuso metálico intra-medular” que ali é mencionado foi deixado pelos técnicos da ré Clínica (em qualquer uma das suas cirurgias por si realizadas), já que também os técnicos do Hospital ... (nas outras duas cirurgias) realizaram cirurgia idêntica e aplicaram material de osteossíntese;
- os relatórios do RX de fls. 14 (doc. 4 da petição – de 16.11.2016, este da perna e tíbia direita) e ainda de fls. 345 a 347 (de 4.07.2016, do pé e tornozelo direitos) e de fls. 348 a 351 (de 12.04.2019 do tornozelo e perna direitos) apenas referem, respectivamente, “Há uma imagem intra-medular na tíbia que se admite relacionada com sequelas da anterior cirurgia”, “No tornozelo, observamos esboço de artrose … Na perna … sequelas de traumatismo da tíbia com material osteossíntese …” e, por fim, “… quadro de artrodese em relação provável com sequela de patologia traumática. Na porção distal da tíbia identificamos imagem que estará relacionada com cirurgia ortopédica muito provavelmente relacionada com traumatismo da tibiotársica”, sem mencionar se trata de um parafuso;
- por fim, a Sr.ª Perita Médico-legal no seu relatório afirma que nenhum dos RX refere qual o material visualizado, referindo-se a mera “imagem”, que poderá corresponder a um “fragmento de broca” usada nos actos operatórios, sem o poder afirmar, mais referindo que, ainda que o seja, que o mesmo não apresenta qualquer reacção osteofitária e/ou sinais de inflamatórios circundantes, pelo que não provoca sintomatologia.
Resumindo, e ainda que a imagem aludida se trate: a) de um parafuso/ou fragmento de parafuso de osteossíntese, o que é referido na TAC de 27.12.2002, nunca poderia concluir-se ter o mesmo sido deixado pela ré Clínica no corpo da autora, face à realização de quatro intervenções cirúrgicas prévias ao exame, duas executadas por técnicos da ré, e duas por técnicos de entidade que não é parte nos autos; b) de parte de uma broca deixada no corpo da autora, o que, como vimos, não está sequer alegado pela autora e/ou demonstrado, considerando-se apenas a existência da “imagem” dos RX feitos em 2016 e 2019, também não se podia concluir ter a mesma sido ali negligentemente deixada pelos técnicos da ré Clínica ou do Hospital ..., sendo certo que, segundo as testemunhas da própria autora, esta ainda foi submetida a mais duas cirurgias ortopédicas no Hospital ..., no Porto, o que também resulta do boletim deste Hospital de fls. 326 – a mencionar pelo menos a realização de nova artrodese do tornozelo direito a 20.01.2004, e subsequente retirada do material de osteossíntese.
Ainda que assim não fosse, também não resultou comprovado, por qualquer meio de prova, que as sequelas apuradas na perícia, sejam o resultado de qualquer intervenção cirúrgica mal-executada pela ré Clínica, com violação das “leges artis”, mas sim que aquelas são mera consequência das lesões sofridas com a queda da autora – fractura que consolidou viciosamente e que obrigou à realização de seis cirurgias.
E também não se provou que o material que ficou na diáfise da tíbia, seja ele um parafuso ou um fragmento de broca, provocou as aludidas sequelas ou outras.
A matéria dos pontos 1 a 8 dos factos não provados não foi assim objecto de qualquer meio de prova, não podendo o Tribunal responder-lhe de forma positiva.
Sem menosprezar os depoimentos colhidos a A. S. e V. D., estes limitaram-se a afirmar que a médica de família da autora e outros médicos (que não identificaram) viram um corpo estranho na zona da canela da autora no RX, que pensam ser um fragmento de broca, o que a autora nem sequer alega na petição, e que depois da 1.ª cirurgia na Clínica da ré aquela se submeteu ainda a diversas cirurgias no Hospital ... e no Hospital ... (num total de seis cirurgias), cujas datas tiveram alguma dificuldade em concretizar, mas sem confirmarem a data em que tal fragmento terá sido pela primeira vez detectado.
Mais confirmaram que a autora se queixa de ter dores, que se vê diminuída na sua imagem e chegou a desenvolver depressão, sendo que quando retomou o trabalho o fez com grande dificuldade, sentindo-se mal por andar de canadianas.
Ora, analisado o processo remetido pelo Centro de Saúde de fls. 331 a 339 resulta que, após o acidente ocorrido a 24.12.2000, a 1.ª consulta com a médica de família ocorreu a 19.09.2002, após a autora já ter sido submetida a três cirurgias (na ré Clínica: a 12.09.2001 e a 16.01.2002; e no Hospital ... a 20.05.2002), e que os exames radiológicos ali pedidos foram feitos a 17.12.2004, a 14.09.2005, a 11.11.2006 e a 16.11.2016.
Tal sequência cronológica também impede que se corrobore a tese da autora, no sentido de o material visualizado ter sido deixado no seu corpo na 1.ª cirurgia, realizada pelos técnicos da ré Clínica, pois que aquela foi sujeita a seis cirurgias antes da realização de todos os aludidos exames.»

Decorre do disposto no artº. 662º, n.º 1 do NCPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no entender do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação (cfr. acórdão do STJ de 1/10/2015, relatora Cons. Maria dos Prazeres Beleza, proc. n.º 6626/09.0TVLS, disponível em www.dgsi.pt).
Neste sentido, o artº. 640º do NCPC estabelece os ónus que impendem sobre o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto, sendo a cominação para a inobservância do que aí se impõe a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Por força deste dispositivo legal, deverá o recorrente enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do nº. 1), requisito essencial já que delimita o poder de cognição do Tribunal “ad quem”, se a decisão incluir factos de que se não possa conhecer oficiosamente e se estiverem em causa direitos livremente disponíveis. Deve ainda o recorrente indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do nº. 1), assim como apresentar o seu projecto de decisão, ou seja, expor de forma clara a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do nº. 1).
Por seu turno, ainda, em conformidade com a alínea a) do n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “(…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”

Assim, como resulta da análise do aludido preceito, e seguindo a lição de António Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., 2017, Almedina, pág. 155 e 156), quando o recurso envolva a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:
«a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.»

Como se refere no acórdão desta Relação de 28/06/2018 (proc. nº. 123/11.0TBCBT, disponível em www.dgsi.pt), que aqui seguimos de perto, “a impugnação da matéria de facto não gera a realização dum novo julgamento integral em segunda instância, constituindo antes um meio de sindicar a decisão da primeira instância quanto à decisão da matéria de facto – não envolve a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida, incidindo sobre pontos determinados da matéria, que ao recorrente compete identificar, aduzindo em complemento os concretos meios probatórios que, em seu entender, justificam uma diversa decisão.
A primeira exigência consiste na identificação precisa dos pontos da matéria de facto impugnados e na indicação do sentido ou sentidos das respostas a dar, em substituição das respostas dadas pela decisão recorrida.
(…)
Assim, em ordem ao cumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640º do C.P.C., deve o recorrente indicar, circunstanciadamente, os concretos pontos de prova relevantes em relação a cada um dos factos impugnados – tal indicação tem de ser feita individualmente para cada um dos pontos da matéria de facto impugnada.
Nos casos em que a impugnação se baseia em depoimentos prestados em audiência, exige-se que o recorrente mencione as concretas passagens do depoimento (…) em questão que considera relevantes para a análise, indicando o início e termo da gravação que contém essas concretas passagens dos depoimentos.”
Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos de facto que pretende impugnar, motivar o seu recurso concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da recorrida e deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, sendo que, como refere António Abrantes Geraldes (in ob. cit., pág. 155), esta última exigência (plasmada na al. c) do nº. 1 do artº. 640º do NCPC) vem reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente (…) por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.
É entendimento doutrinal e jurisprudencial assente que, nas conclusões das alegações, que têm como finalidade delimitar o objecto do recurso (artº. 635º, nº. 4 do NCPC) e fixar as questões a conhecer pelo Tribunal “ad quem”, o recorrente tem de delimitar o objecto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e pretende ver modificados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, sob pena de rejeição do recurso, no segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, abrangendo apenas os pontos relativamente aos quais não tenham sido cumpridas as referidas regras, como a lei adjectiva comina no nº. 1 do citado artº. 640º (cfr. António Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 155 e 156; cfr. acórdãos do STJ de 22/10/2015, relator Cons. Tomé Gomes, proc. nº. 212/06.3TBSBG e de 1/10/2015, relatora Cons. Ana Luísa Geraldes, proc. nº. 824/11.3TTLRS; acórdãos da RP de 18/12/2013, proc. nº. 7571/11.4TBMAI e da RG de 28/06/2018 acima referido, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Este entendimento, aliás, vem merecendo da parte do STJ alguma uniformidade de julgamento, como se comprova, de entre outros, nos sumários dos seguintes acórdãos daquele Tribunal Superior (todos disponíveis em www.dgsi.pt):

- Acórdãos de 31/05/2016 (proc. nº. 1184/10.5TTMTS) e de 1/10/2015 (proc. nº. 824/11.3TTLRS), ambos relatados pela Cons. Ana Luísa Geraldes:
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.

- Acórdão de 7/07/2016 (proc. nº. 220/13.8TTBCL), relatado pelo Cons. Gonçalves Rocha:
I - Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640º, nº 1, alíneas a) e c) do CPC.
II- Não tendo o recorrente cumprido o ónus de indicar a decisão a proferir sobre os concretos pontos de facto impugnados, bem andou a Relação em não conhecer da impugnação da matéria de facto, não sendo de mandar completar as conclusões face à cominação estabelecida naquele nº 1 para quem não os cumpre.

Decorre do que atrás se deixou dito que, no caso em apreço, a recorrente, em relação ao ponto 18 dos factos provados, cumpriu minimamente os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do nº. 1, quer o da alínea a) do nº. 2, tendo inclusive procedido à transcrição de um pequeníssimo excerto dos depoimentos das testemunhas A. S. e V. D. (únicos prestados em audiência de julgamento) e por ela mencionadas para fundamentar a sua pretensão, e estando gravados, no caso concreto, tais depoimentos, bem como constando do processo toda a prova documental e pericial tida em atenção pelo Tribunal “a quo” na formação da sua convicção, nada obsta à reapreciação da decisão da matéria de facto relativamente ao facto provado colocado em crise no presente recurso.
Contudo, em relação à sua pretensão de ver incluídos nos factos não provados outros que melhor se entender, da sentença recorrida, consideramos que a recorrente não cumpriu os ónus estabelecidos no artº. 640º, nºs 1 e 2 do NCPC, porquanto nem no corpo das alegações de recurso, nem nas respectivas conclusões faz qualquer referência aos “outros” concretos pontos da matéria de facto que pretende ver alterados, para além de não ter especificado concretamente quais os concretos meios de prova (testemunhal, documental e pericial) constantes do processo ou da gravação nele realizada que, em seu entender, levariam a uma decisão diversa da recorrida quanto a cada um desses “outros” factos alegadamente impugnados, e a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre cada um daqueles factos, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos.

Na verdade, a A./recorrente omitiu completamente, quer no corpo das alegações, quer nas respectivas conclusões, a especificação dos “outros” concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados e que pretende ver modificados (ónus que verdadeiramente permite circunscrever o objecto do recurso no que concerne à matéria de facto). E nessa sequência, não especifica para cada um dos “outros” factos (já que não os indica) os meios de prova que, em seu entender, determinariam uma decisão diversa quanto a cada um dos pretendidos factos impugnados (que não se sabe quais são…). Finalmente, a recorrente não indica nesta parte genérica do recurso que apresenta, qual a decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida sobre as questões de facto impugnadas (desde logo, porque as não especifica).
Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar a um despacho de convite ao aperfeiçoamento no sentido da concretização do recurso por parte do recorrente, uma vez que o artº. 652º, n.º 1, al. a) do NCPC apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das respectivas alegações, nos termos do n.º 3 do artº. 639º”, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto (cfr. acórdãos do STJ de 27/09/2018, relator Cons. Sousa Lameira, proc. nº. 2611/12.2TBSTS e da RG de 28/06/2018 acima referido, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Em face do supra exposto, não será apreciada a impugnação genérica da matéria de facto atinente aos mencionados outros factos que melhor se entender que a recorrente pretende ver alterados, sendo apenas apreciada a sua pretensão quanto ao supra mencionado ponto 18 dos factos provados.
Com efeito, após ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento – os depoimentos das únicas testemunhas ouvidas em julgamento, A. S. (marido da Autora) e V. D. (filha da Autora), ambos mencionados nas alegações de recurso, relativamente ao facto provado acima referido e colocado em crise pela recorrente - e sopesando-a com a restante prova existente no processo, designadamente com o documento de fls. 12 (doc. 2 da petição inicial), a documentação que integra o processo clínico da A. na Ré Clínica de fls. 270 a 295 (nomeadamente as fichas de protocolo operatório de fls. 279 e 289, as notas de enfermagem de fls. 275, 276, 277, 287, 288 e os registos do médico assistente de fls. 291vº a 295, os quais foram dactilografados e juntos a fls. 358 a 361), os documentos de fls. 307vº, 315vº, 316 e 319vº a 323 e 324 e o relatório da TAC efectuada no Hospital ... que consta de fls. 323vº e 324 (documentos estes que integram o processo clínico da A. na Ré Seguradora), os relatórios do RX de fls. 14 (doc. 4 da petição), 345 e 348, o boletim clínico do Hospital ... no Porto de fls. 326, a informação clínica remetida pela ARS Norte – UCSP ... – do ... II – ... de fls. 330 a 339 e o relatório da perícia médico-legal realizada à A. pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado junto a fls. 367 a 372, e ainda com as regras da experiência comum, constatamos que o Tribunal “a quo” fez uma correcta apreciação e análise crítica e minuciosa de todos os elementos de prova constantes do processo, tal como consta clara e detalhadamente explanado na “motivação de facto” da sentença recorrida que acima transcrevemos e que merece a nossa concordância.

O ponto 18 dos factos provados que a recorrente pretende seja dado como não provado tem a seguinte redacção:
18. A Ré empregou todos os meios adequados à realização dos actos médicos a que se propôs, e foram empregues todos os actos recomendados de acordo com a “leges artis” no cumprimento dos actos médicos em apreço.
A ora recorrente justifica esta sua pretensão de acordo com uma perspectiva subjectiva, mediante uma apreciação unilateral e parcial da prova, pretendendo substituir a convicção que o Tribunal recorrido formou sobre a prova produzida pela sua própria convicção pessoal que, relativamente àquele facto colocado em crise, não coincide com a do julgador.
Na realidade, a recorrente fundamenta a sua discordância, quanto ao facto supra referido, num pequeníssimo excerto dos depoimentos das testemunhas A. S. e V. D. acima mencionadas, que transcreve no corpo das alegações, afirmando que o Tribunal “a quo” julgou credível o depoimento destas testemunhas arroladas pela A., que confirmaram que a mesma sofre de dores horríveis e limitações no sítio da perna onde lhe deixaram ficar uma broca.
Alega, ainda, que era às RR. que incumbia o ónus da prova, pois neste caso há inversão do mesmo, e como estas prescindiram de todas as testemunhas na audiência de julgamento, nada provaram em contrário, “nem se não foram eles que deixaram ficar a broca nem se actuaram com diligência”, não entendendo que “se tenha dado como provado que a A. tem uma broca na perna que não lhe causa dores nem limitações e que até lhe fica bem”.
Porém, como tivemos oportunidade de constatar pela audição da prova gravada, a recorrente procedeu apenas à transcrição de um pequeníssimo segmento dos depoimentos das testemunhas por ela assinaladas, incompleto e “cirurgicamente” escolhido para sustentar a sua versão dos factos, ignorando completamente a demais prova existente no processo, mormente a documentação clínica relativa à A. junta aos autos e o relatório da perícia médico-legal realizada à A. para avaliação do dano corporal constante de fls. 367 a 372, bem como a apreciação e análise crítica da prova constante da “motivação de facto” inserta na decisão recorrida, tendo a recorrente extraído, ainda, determinadas conclusões sem qualquer base de sustentação nos elementos de prova por ela invocados e separados da restante prova produzida.
Como é sabido, a análise crítica da prova impõe uma ponderação objectiva e global de toda a prova produzida e não apenas de alguns depoimentos analisados separadamente e valorados apenas na parte que interessa ao recorrente, tendo sido do conjunto de todos os elementos de prova conjugados com as regras da experiência comum que resultou a convicção do Tribunal “a quo”, quanto a este facto provado, no sentido plasmado na sentença sob censura.
O julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova deve ser ponderado por si, mas também em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha, tem de ser ponderado em conjugação com os das outras testemunhas e todos conjugados com os demais elementos de prova (cfr. acórdãos da RG de 4/02/2016, proc. nº. 283/08.8TBCHV-A e de 18/12/2017, proc. nº. 4601/13.9TBBRG, acessíveis em www.dgsi.pt).
Ora, revisitados os depoimentos das testemunhas mencionadas pela A./recorrente, conjugados com os restantes meios de prova produzidos e em consonância com o que se mostra explanado na “motivação de facto”, não se vislumbra que tais depoimentos (designadamente no excerto referido) e os elementos documentais constantes dos autos (nomeadamente a documentação clínica e o relatório da perícia médico-legal realizada à A. acima referidos) sejam de molde a permitir considerar como não provada a matéria vertida no ponto 18 dos factos provados, não tendo este tribunal de recurso adquirido, assim, convicção diferente da que foi obtida pelo Tribunal da 1ª instância.
Com efeito, os factos dados como provados e não provados são o resultado da análise cuidadosa de toda a prova produzida e respectiva valoração feita pelo Tribunal “a quo”, tal como consta da motivação de facto supra transcrita, na qual explicitou detalhadamente, não apenas os vários meios de prova (depoimentos das testemunhas, documentos, relatórios de exames médicos e relatório da perícia médico-legal de avaliação do dano corporal em direito civil) que concorreram para a formação da sua convicção, como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca do facto controvertido se tivesse formado em determinado sentido e não noutro, sendo certo que nada de relevante foi aduzido pela recorrente no sentido de infirmar a apreciação feita pelo Tribunal.
Em primeiro lugar, salvo o devido respeito, importa desvalorizar uma afirmação que é feita pela A./recorrente, nas suas alegações de recurso, que está em contradição com o que efectivamente consta na sentença recorrida, repondo, assim, a integridade do que foi decidido pelo Tribunal de 1ª instância.
Com efeito, afirma a recorrente que “não se entende que se tenha dado como provado que a A. tem uma broca na perna que não lhe causa dores nem limitações e que até lhe fica bem”.
Ora, contrariamente a tal afirmação da recorrente, não consta em parte alguma da factualidade dada como provada na sentença recorrida que a A. tem uma broca na perna (e, muito menos, que a mesma não lhe causa dores nem limitações e que até lhe fica bem); nem esta matéria consta do capítulo dos factos não provados, tanto mais que nem sequer foi alegada pela Autora.
No que concerne ao ponto 18 dos factos provados colocado em crise pela recorrente, e no seguimento da análise da prova produzida nos autos feita pelo Tribunal “a quo” na “motivação de facto” da sentença recorrida, podemos constatar, pela audição da gravação dos depoimentos das testemunhas acima referidas, que A. S. (marido da Autora) limitou-se a afirmar que a sua esposa, desde a primeira intervenção cirúrgica, que tem dores e que “lhe deixaram uma broca na perna”, chegando a essa conclusão por lhe ter sido dito pela médica de família da A. e por outros médicos (que não identificou), porque ela fez radiografias e apareceu-lhe aquele corpo estranho na canela da perna.
Seguidamente, ao ser questionado pelo mandatário da A. sobre se os médicos lhe disseram o que era aquilo que aparecia, esta testemunha referiu que o cirurgião disse que “era um parafuso que tinha lá ficado”. Afirmou, também, que ninguém lhe disse que era uma “broca”, sendo que na “própria radiografia tem o formato de uma broca”, tendo sido confirmado pelo próprio médico (que não identificou) que aquilo teria que sair.
Confirmou, ainda, que a A. fez várias cirurgias – as duas primeiras cirurgias na Ré Clínica de X, duas no Hospital ... em Vila Nova de Gaia e duas no Hospital ... no Porto (num total de seis cirurgias) – recordando-se de que a primeira cirurgia foi realizada em 12/09/2001, não conseguindo concretizar as datas das restantes cirurgias, referindo que em nenhuma delas lhe foi retirada a “broca”. No entanto, esta testemunha não confirmou a data em que tal corpo estranho terá sido pela primeira vez detectado.
Entendemos, pois, que a testemunha A. S., nesta parte, prestou um depoimento inconsistente e confuso, porquanto fez referência a conversas que teve com vários médicos (que nem sequer identificou pelo nome, nem referiu as circunstâncias em que as mesmas ocorreram) e produziu afirmações sem qualquer base de sustentação ou suporte, quando referiu a existência de exames médicos (não identificando quais) de onde supostamente se retira a existência de uma “broca” na canela da perna.
Para além de ser evidente, no depoimento desta testemunha, as confusões que fez entre “broca” e “parafuso”, como se fossem a mesma coisa, tal depoimento está em contradição com o que é alegado pela própria A. na petição inicial (a mesma alega ter ficado com um “parafuso” na tíbia direita) e com o que consta da documentação clínica da A. e do relatório de exame médico-legal juntos aos autos, nos termos que adiante se mencionarão, não sendo com este depoimento que a recorrente consegue demonstrar qualquer violação das “leges artis” por parte da Ré Clínica de X.
Por sua vez, o depoimento da testemunha V. D. (filha da Autora) foi realizado no mesmo registo, tendo a mesma apenas afirmado que a sua mãe está sempre a queixar-se com dores desde que foi operada, e que lhe deixaram uma “broca” na perna, sendo visível no RX que a A. fez uma “broca” partida na canela da perna, para além de lhe ter sido referido pelo médico de família e pelo Dr. P. C. (que constatámos ser o médico radiologista que assinou os relatórios de RX juntos aos autos) de que se trata de uma “broca”.
Quando questionada pelo mandatário da Ré Clínica sobre se tinha algum relatório médico ou outro documento que atestasse a existência da uma “broca” na perna da mãe, que esta está a causar danos e que tem de ser retirada, a testemunha referiu que os médicos dizem que a A. tem uma “broca” na perna, mas não fazem qualquer relatório a identificar o objecto que se encontra na perna da mãe e se o mesmo está a provocar algum dano, apresentando a testemunha como justificação para os médicos não elaborarem um relatório nesse sentido, o facto deles dizerem que não podiam prejudicar outros colegas (apesar de ter admitido que a mãe chegou a ir a médicos privados) e de que não vão contra a palavra de outro médico.
Esta testemunha também confirmou o facto da sua mãe ter sido submetida a seis intervenções cirúrgicas, nas mesmas instituições hospitalares referidas pela testemunha A. S., que se encontram documentadas nos autos, referindo que não lhe retiraram a “broca”, pois nunca lhe disseram que iam retirar algo do pé ou da perna; no entanto, não conseguiu concretizar as datas em que as referidas cirurgias ocorreram, sendo o seu depoimento contraditório quanto à data em que passou a ter conhecimento de que a sua mãe tem a dita “broca” na perna.
E quando confrontada pelo mandatário da Ré Clínica com as contradições existentes no seu depoimento em relação à data ou primeiro momento em que passou a saber que a sua mãe tinha uma “broca” na perna, a testemunha V. D. não conseguiu localizar no tempo esse momento.
Também o depoimento desta testemunha não logrou convencer o Tribunal por forma a atender à pretensão da recorrente, pois para além de ter incorrido em várias contradições e ser inconsistente em determinados momentos, tal como o depoimento do seu pai A. S., está em contradição com o que é alegado pela própria A. na petição inicial (onde refere a existência de um “parafuso”, e não de uma “broca”, na tíbia direita) e com o que consta da documentação clínica da A. e do relatório de exame médico-legal juntos aos autos, como passamos a explanar.
Relativamente ao mencionado “parafuso” (que, segundo a recorrente, é a causa de lesões e/ou sequelas que mantém no membro inferior direito), resultou provado nos autos que a A. foi submetida a uma primeira cirurgia na Ré Clínica, em 12/09/2001, para fixação de pseudartrose do maléolo, por raquianestesia, a qual foi bem sucedida, alcançado-se o fim visado, com colocação de material de osteossíntese (pontos 12 e 13 dos factos provados) e em 16/01/2002 foi realizada a segunda cirurgia para remoção do material de osteossíntese ortopédico do tornozelo direito – parafuso, que também correu bem, tendo sido retirado o dito parafuso (pontos 15 e 16 dos factos provados), conforme resulta descrito nos Protocolos Operatórios de fls. 279 e 289 e das notas de enfermagem de fls. 291vº a 295 (as quais foram dactilografadas e juntas a fls. 358 a 361), que constam no processo clínico da recorrente na Ré Clínica junto aos autos, não tendo tal factualidade sido impugnada no presente recurso.
Por outro lado, foi levado em consideração o teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito civil, elaborado na sequência do exame médico-legal efectuado à A. no Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado, constante de fls. 367 a 372, no qual se refere que a A. foi submetida a uma 1ª cirurgia em 12/09/2001, para correcção de pseudartrose do maléolo tibial, com colocação de material de osteossíntese (cfr. fls. 12, 307vº, 315vº e 316), e a uma 2ª cirurgia em 16/01/2002 para extracção do material de osteossíntese – parafuso maleolar (cfr. fls. 319vº), ambas as cirurgias feitas na Ré Clínica.
Consta, ainda, do relatório da perícia médico-legal realizada à A., conjugado com a documentação clínica junta pelas RR. aos autos, que por apresentar consolidação viciosa da fractura do tornozelo, a A. foi operada novamente em 20/05/2002, no Hospital ..., e em 11/11/2002 retirou o material de osteossíntese naquele mesmo Hospital (cfr. fls. 324vº).
Na verdade, embora no relatório de perícia médico-legal se mencione que a A. ficou com sequelas no tornozelo direito (descritas nas pág. 5 e 6 do relatório), a Srª. Perita Médico-legal conclui que as mesmas resultaram do acidente de trabalho, pelo que já se encontram desvalorizadas, não tendo a A. logrado provar que as referidas sequelas decorrem de qualquer acto médico realizado pelos técnicos da Ré Clínica.

No seguimento do que é referido na “motivação de facto” inserta na sentença recorrida, da documentação clínica existente no processo e do relatório pericial, não resulta de forma clara e inequívoca a existência de um parafuso no membro inferior direito da A. devido a incúria dos técnicos da Ré Clínica, já que:

a) - o relatório da TAC do tornozelo direito que consta de fls. 323vº e 324 (mencionado no relatório da perícia médico-legal) corresponde a um exame que foi feito no Hospital ... em 27/12/2002, isto é, após a A. ter realizado as 4 cirurgias supra descritas (em 12/09/2001, 16/01/2002, 20/05/2002 e 11/11/2002), que revelou a presença de “fragmento de parafuso metálico intra medular na face posterior do terço distal da tíbia direita, sinais de fractura consolidada da extremidade distal do perónio direito supra maleolar, com boa consolidação óssea, registando-se pequenas soluções de continuidade do córtex da vertente posterior da diáfise peroneal decorrentes de material de fixação cirúrgica entretanto retirado. (…) Registam-se ainda sinais de fractura consolidada do maléolo tibial com boa consolidação óssea e sem fragmentos ósseos nas partes moles adjacentes ou de localização intra-articular. (…) O espaço articular tíbio társico está conservado, assinalando-se pequeno derrame articular e aspecto osteopénico dos ossos társicos esquerdos atribuíveis a osteoporose. (…) Não há sinais de rupturas das estruturas ligamentares colaterais peroneais …”, não podendo o Tribunal, com base neste relatório, concluir com segurança e rigor, que o fragmento de parafuso metálico ali mencionado foi deixado pelos técnicos da Ré Clínica (em qualquer uma das duas cirurgias por si realizadas), já que também os médicos do Hospital ... (nas outras duas intervenções cirúrgicas a que a A. foi submetida) realizaram cirurgia idêntica e aplicaram material de osteossíntese, ou ainda imputar à Ré Clínica a má prática médica que é alegada pela A./recorrente;
b) - os relatórios do RX do tornozelo e pé direitos, efectuado em 4/07/2016 (fls. 345), da perna e tíbia direita, feito em 16/11/2016 (fls. 14) e do tornozelo e perna direitos, efectuado em 12/04/2019 (fls. 348) apenas referem, respectivamente que:
- “No pé direito, não identificamos sinais de patologia óssea traumática. No tornozelo, observamos esboço de artrose da articulação sub-astragalina. Na perna … sequelas de traumatismo da tíbia com material de osteossíntese, artrose tíbio-társica e reacção exofitica peronial”;
- “Há uma imagem intra-medular na tíbia que admitimos relacionada com sequelas de anterior cirurgia …”;
- “Articulação tíbio-társica … alterada com sinais que sugerem quadro de artrodese em relação provável com sequela de patologia traumática. Na porção distal da tíbia identificamos imagem que estará relacionada com cirurgia ortopédica muito provavelmente relacionada com traumatismo da tibiotársica. Não há sinais evidentes de patologia traumática do perónio da perna radiografada”;
sem mencionar se se trata de um parafuso;
c) - por fim, a Sr.ª Perita Médico-legal, no seu relatório, não confirma a existência de qualquer parafuso, e conclui que no RX que lhe foi presente, datado de 4/07/2016, nada refere acerca do material visualizado que, neste caso, “pode corresponder a fragmento de broca utilizada durante o acto operatório”, mais referindo que não apresenta “qualquer reação osteofitaria e/ou sinais de inflamatórios circundante à mesma, pelo que não estará a provocar sintomatologia associada”, e como não há sintomatologia, “nestes casos opta-se por deixar ficar”, concluindo no final do seu relatório que “o material que ficou na diáfise da tíbia não provoca sequelas”.

Como bem refere o Tribunal “a quo” na motivação de facto inserta na sentença recorrida:
«Resumindo, e ainda que a imagem aludida se trate: a) de um parafuso/ou fragmento de parafuso de osteossíntese, o que é referido na TAC de 27.12.2002, nunca poderia concluir-se ter o mesmo sido deixado pela ré Clínica no corpo da autora, face à realização de quatro intervenções cirúrgicas prévias ao exame, duas executadas por técnicos da ré, e duas por técnicos de entidade que não é parte nos autos; b) de parte de uma broca deixada no corpo da autora, o que, como vimos, não está sequer alegado pela autora e/ou demonstrado, considerando-se apenas a existência da “imagem” dos RX feitos em 2016 e 2019, também não se podia concluir ter a mesma sido ali negligentemente deixada pelos técnicos da ré Clínica ou do Hospital ..., sendo certo que, segundo as testemunhas da própria autora, esta ainda foi submetida a mais duas cirurgias ortopédicas no Hospital ..., no Porto, o que também resulta do boletim deste Hospital de fls. 326 – a mencionar pelo menos a realização de nova artrodese do tornozelo direito a 20.01.2004, e subsequente retirada do material de osteossíntese.
Ainda que assim não fosse, também não resultou comprovado, por qualquer meio de prova, que as sequelas apuradas na perícia, sejam o resultado de qualquer intervenção cirúrgica mal executada pela ré Clínica, com violação das “leges artis”, mas sim que aquelas são mera consequência das lesões sofridas com a queda da autora – fractura que consolidou viciosamente e que obrigou à realização de seis cirurgias.
E também não se provou que o material que ficou na diáfise da tíbia, seja ele um parafuso ou um fragmento de broca, provocou as aludidas sequelas ou outras.»
Perfilhamos a posição defendida na sentença recorrida de que a recorrente foi intervencionada por seis vezes, em três hospitais diferentes, sem que tivesse resultado claro se ficou alguma vez algum parafuso na perna da recorrente e, a ser assim, a quem deve ser imputada alguma responsabilidade.
Em suma, da prova documental, testemunhal e pericial produzida nos autos, não resulta evidência de qualquer erro ou negligência médica por parte da Ré Clínica. Não existe um relatório pericial que suporte tal evidência (e é reconhecido que neste tipo de processos a prova pericial é um elemento determinante), nem existe um único documento do qual se possa extrair essa conclusão, para além de que não foi ouvida uma única testemunha qualificada que tenha confirmado a tese da Autora.
Nas suas alegações de recurso, a recorrente parece não levar em linha de conta que o ónus da prova de factos demonstrativos de que foi vítima de erro médico e do incumprimento ou cumprimento defeituoso do vínculo contratual por parte do(s) médico(s) da Ré Clínica, era exclusivamente seu, como vem sendo defendido pacificamente pela jurisprudência, citando-se, somente a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 15/10/2009 (proc. nº. 08B1800, relator Cons. Rodrigues dos Santos) e da RL de 26/04/2017 (proc. nº. 1447/12.5TYLSB), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
A A./recorrente, nas suas alegações, tenta justificar-se argumentando que não conseguiu arrolar nenhum médico como testemunha porque não o encontrou e que as RR., ora recorridas, prescindiram das suas testemunhas na audiência de julgamento.
No entanto, tais argumentos não colhem porque se a recorrente assim o pretendesse, poderia ter indicado como suas testemunhas as que foram arroladas pelas RR., mais precisamente, se quisesse arrolar algum médico para depor sobre esta matéria de carácter técnico e científico, podia ter indicado como testemunhas os médicos que foram arrolados pelas RR., o que ela não fez.
É no mínimo estranho que a A., ora recorrente, só passados 16 anos após a ocorrência do acidente de que foi vítima, em consequência do qual fracturou o pé e o tornozelo direitos, e de ter decorrido no Tribunal do Trabalho de Braga um processo especial emergente de acidente de trabalho, no qual foi indemnizada pela Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 16,7% que lhe foi atribuída pela Junta Médica a que foi submetida - tendo obtido a revisão da sua IPP na sequência dos pedidos que formulou nesse sentido em 2003 e 2007, vindo a receber as respectivas indemnizações remidas pelo agravamento da IPP para 19,25% e 24% respectivamente, a qual lhe foi mantida pela Junta Médica em 24%, após ter requerido nova revisão em 2010 - venha intentar a presente acção (em 19/01/2017) na qual vem alegar (passados todos estes anos e após ter feito várias diligências no âmbito do processo de acidente de trabalho para ver aumentado o valor da sua indemnização em função da IPP que lhe foi fixada), que sofreu e continua a sofrer danos decorrentes de uma pretensa omissão por parte Ré Clínica, traduzida no facto de não lhe ter sido retirado um parafuso que lhe fora colocado temporariamente, o que não logrou provar, conforme consta da sentença recorrida e do que atrás deixámos exposto.
Como tivemos oportunidade de constatar, a prova produzida nos autos, e designadamente os elementos probatórios mencionados pela recorrente, não têm a virtualidade de sustentar qualquer alteração à matéria de facto dada como provada e não provada, nos termos por ela pretendidos.
Na fixação da matéria de facto provada e não provada, o Tribunal de 1ª instância rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº. 607º, nº. 5 do NCPC, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, só podendo ocorrer alteração da mesma por parte do Tribunal da Relação, que se deve reger também pelo aludido princípio, nos termos do artº. 662º do mesmo diploma legal.
De acordo, pois, com o citado artº. 607º, nº. 5 do NCPC, o Tribunal “a quo”, neste caso, apreciou livremente os depoimentos das únicas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, em conjugação com as demais provas produzidas, designadamente a prova documental e pericial, sopesando-as com as regras da experiência comum, tendo decidido segundo a sua prudente convicção acerca da factualidade ora colocada em crise.
Ora, a convicção formada por este tribunal de recurso, depois de ouvida a gravação da prova produzida em audiência de julgamento e de efectuada a apreciação dos depoimentos prestados em conjugação com a documentação clínica mencionada, o relatório de perícia médico-legal efectuada à A. e as regras da experiência comum, é aquela que vem plasmada na decisão do Tribunal recorrido, resultando do atrás exposto que, relativamente à matéria de facto que a recorrente pretende ver alterada, inexistem quaisquer elementos de prova seguros e consistentes que permitam formar uma convicção diferente.
Aquilo que na essência deste processo parece estar em causa é um desagrado da recorrente em relação à IPP que lhe foi fixada no processo especial emergente de acidente de trabalho e, consequentemente, à indemnização que recebeu por parte da entidade responsável pelo sinistro que sofreu.
É certo que a recorrente não concorda com o decidido, mas não carreou para os autos prova consistente que imponha decisão diversa, como bem refere o Tribunal “a quo” na sentença recorrida.
Deste modo, porque a decisão sobre a matéria de facto não merece reparo, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso interposto pela Autora.
*
II) - Saber se deverá ser alterada a solução jurídica da causa:

Entende a recorrente que o Tribunal “a quo” não teve em conta que incumbia à Ré Clínica provar que actuou com brio e profissionalismo e que não deixou ficar nenhum parafuso ou broca na perna da A., nem que a mesma lhe causa as dores e incapacidades alegadas pela A., impondo-se neste caso a inversão do ónus da prova.
Argumenta, ainda, que tendo as RR. prescindido das suas testemunhas na audiência de julgamento, que não foram ouvidas, ficando apenas o que disseram as testemunhas da A., que confirmaram a versão desta, deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Ora, mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal “a quo”, ter-se-á de manter, igualmente, a decisão jurídica da causa, tendo aquele Tribunal feito uma correcta integração da aludida factualidade apurada nas normas jurídicas aplicáveis ao caso em apreço, tal como consta clara e detalhadamente explanado na “fundamentação de direito”.
Tendo em conta que a alteração da decisão jurídica da causa pretendida pela recorrente se baseava na alteração de decisão da matéria de facto, que não ocorreu, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal “a quo”, quanto aos pedidos formulados pela Autora, senão a que consta do dispositivo da sentença recorrida.
Na sentença recorrida, o Tribunal “a quo” fez uma correcta definição e caracterização do contrato de seguro, e em particular do contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, tendo interpretado o acordo celebrado entre a Seguradora e a entidade patronal da A., bem como entre a Seguradora e a Clínica de X consignado nos autos, para depois qualificar tal negócio jurídico e determinar o regime aplicável, vindo a concluir, em conformidade com a posição plasmada no acórdão do STJ proferido nestes autos em 25/10/2018, cuja doutrina acolheu, que “da factualidade apurada resulta a existência de uma combinação de contratos … pelo que além do contrato de seguro obrigatório, do ramo dos acidentes de trabalho, enquanto contrato de adesão, celebrado entre a seguradora e a entidade patronal da autora, coexiste um contrato a favor de terceiro, neste caso, a favor da autora, beneficiária do contrato de seguro obrigatório. Ou seja, a seguradora acordou com a clínica a prestação de cuidados de saúde a favor de terceiro, sendo a autora a beneficiária do prometido contrato.”
Assim, transpondo para a sentença recorrida o que se encontra plasmado no aludido acórdão do STJ proferido nestes autos, bem andou o Tribunal “a quo” ao concluir que, atendendo aos factos apurados e à disciplina prevista nos artºs 1154º e 443º ambos do Código Civil, foi celebrado um contrato misto de prestação de serviços e contrato a favor de terceiro.
De facto, “a ré clínica (promitente) obrigou-se a proporcionar perante a ré seguradora (promissária), certo resultado do seu trabalho, de natureza médica, cirúrgica, hospitalar, ou outras necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da sinistrada, ora autora (3ª beneficiária), e à sua recuperação para a vida activa, sendo esta, pois, a beneficiária prometida. (…)
Neste contexto e para cumprimento do contrato de seguro obrigatório do ramo acidentes de trabalho, a ré seguradora outorgou com a ré clínica o contrato de prestação de serviço “combinado” com o contrato a favor de terceiro.
Ora, continuando a seguir o afirmado pelo STJ, como o terceiro, a favor de quem foi convencionada a promessa adquire o seu direito à prestação, independentemente de aceitação, nos termos do art. 444.º do Código Civil, a autora tem o direito de exigir o cumprimento da prestação prometida no negócio jurídico ajustado entre as rés.
Já que o direito de exigir a prestação, constitui um direito próprio do terceiro, a aqui autora, decorrente do contrato celebrado entre a clínica e a seguradora, está em causa determinar da alegada responsabilidade civil contratual da ré clínica, importando saber do incumprimento da obrigação ou do seu cumprimento defeituoso.”
Segundo a tese da A. defendida na petição inicial, os serviços médicos prestados pela Ré Clínica foram defeituosos, o que determinou consequências danosas para a sua integridade física, já que do acto cirúrgico a que foi submetida a 12/09/2001 resultaram sequelas irreversíveis, nomeadamente por lhe ter sido deixado um parafuso na tíbia, inicialmente por esquecimento e depois por recusa dos técnicos da Ré em extraí-lo, o que fez com que o seu estado de saúde se degradasse.
Porém, em face da factualidade dada como provada nos autos, o Tribunal de 1ª instância considerou que não se apurou qualquer ilicitude do comportamento da Ré Clínica ou dos seus técnicos/auxiliares, não tendo ficado demonstrado qualquer falta de cumprimento ou mesmo qualquer cumprimento defeituoso da prestação, no âmbito da cirurgia ortopédica realizada em 12/09/2001, resultando, ainda, ilidida a presunção de culpa a que alude o artº. 799º, n.º 1 do Código Civil.
Tendo concluído que, perante a factualidade dada como provada e não provada, não se pode sequer afirmar que a Ré Clínica, através dos seus técnicos/auxiliares, com a sua actuação, no âmbito da execução da intervenção cirúrgica, afectou o corpo da A., violando as “leges artis”. E considerando os pontos 1 a 7 dos factos não provados, entendeu que também não se pode dizer que existe nexo causal entre as lesões/sequelas que a A. apresenta e o acto cirúrgico indicado, ou que aquelas sejam uma consequência directa deste.
Por fim, concluiu não se ter provado que foram desrespeitados quaisquer procedimentos no decurso da cirurgia, nem que tenha ocorrido qualquer facto que, apesar de o cirurgião da Ré ter actuado em conformidade com as boas práticas e com toda a diligência e cuidado, possa justificar as lesões/sequelas da Autora.
Adiantamos, desde já, que tendo presente a matéria de facto provada e não provada definitivamente fixada por este Tribunal, não se vislumbra outro desfecho final para a presente acção.
Desde logo, não é a sentença recorrida merecedora de qualquer reparo ao colocar o thema decidendum sob a alçada do instituto da responsabilidade civil contratual (da Ré Clínica), e no pressuposto - que é incontroverso - de que no âmbito da responsabilidade civil médica a nossa lei não consagra/prevê casos de responsabilidade civil objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, mas tão só admite que a resolução de questão relacionada com um erro médico seja apreciada no âmbito da responsabilidade contratual e da extracontratual ou aquiliana, podendo a responsabilidade civil médica, como vem entendendo de forma praticamente unânime o STJ, “ter simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física” (cfr. acórdãos do STJ de 7/03/2017, relator Cons. Gabriel Catarino, proc. nº. 6669/11.3TBVNG, e de 26/04/2016, relator Cons. Silva Salazar, proc. nº. 6844/03.4TBCSC, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.), sendo que “em regra, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada” (cfr. acórdão do STJ de 7/10/2010, relator Cons. Ferreira de Almeida, proc. nº. 220/13.8TTBCL, disponível em www.dgsi.pt).
O Código Civil sistematiza estas duas formas de responsabilidade em lugares distintos. A responsabilidade contratual nos artºs 798º e segs., no capítulo atinente ao cumprimento e não cumprimento das obrigações, e a responsabilidade extracontratual nos artºs 483º e segs., no capítulo das fontes das obrigações. Porque versando um problema que lhes é comum, interessam ainda os artºs 562º e segs. que fixam o regime próprio da obrigação de indemnizar.
Os elementos constitutivos da responsabilidade civil são os mesmos, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: (i) a existência de um facto objectivo (acção ou omissão) controlável pela vontade do homem; (ii) a sua ilicitude; (iii) a culpa; (iv) o dano/prejuízo e (v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Porém, a responsabilidade contratual distingue-se da responsabilidade extracontratual, sobretudo, pela natureza do facto ilícito que, naquela constitui a violação de uma obrigação, e pelas regras de distribuição do ónus da prova já que na responsabilidade contratual funciona o princípio da inversão do ónus da prova (em face da presunção de culpa a que alude o artº. 799º do Código Civil), segundo o qual incumbe ao devedor a prova de que agiu sem culpa no incumprimento ou no cumprimento defeituoso da obrigação (artº. 799º, nº. 1 do Código Civil), enquanto que na responsabilidade aquiliana cabe ao lesado/credor a alegação e prova da culpa do lesante (artº. 487º, n.º 1 do Código Civil), sendo a culpa, em qualquer dos casos, apreciada com base num critério abstracto, ou seja, pela “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”, conforme preceitua o n.º 2 do artº. 487º, aplicável à responsabilidade contratual “ex vi” do nº. 2 do artº. 799º ambos do Código Civil.
Refere-se na sentença sob censura que a intervenção da Ré Clínica surge no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, previsto no artº. 1154º do Código Civil, que mantinha com a Seguradora da entidade patronal da A., sendo que a partir do momento em que a Clínica decide intervencionar a A. e esta aceita tal intervenção, estabeleceu-se, pelo menos tacitamente, uma relação contratual entre ambos, caracterizada como contrato de prestação de serviços, tipificado no citado artº. 1154º do Código Civil, que o define como “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.
O resultado a que alude a norma não é a cura em si, mas os cuidados de saúde. Em regra, o médico não se obriga a curar o doente; apenas se compromete a proporcionar­lhe os melhores cuidados conforme as “leges artis” e os seus conhecimentos pessoais, com vista a restituir-lhe a saúde e a diminuir o seu sofrimento. A obrigação contratual do médico constitui um exemplo clássico de uma obrigação de meios, na medida em que este não está vinculado à obtenção de determinado resultado (cfr. Moutinho de Almeida, A Responsabilidade do Médico e o seu Seguro, in "Scientia Jurídica", Tomo XXI, 16/117, pág. 337 e J. A. Esperança Pina, A Responsabilidade dos Médicos, 3ª ed., Lidel, pág. 114 e 115; acórdãos do STJ de 15/12/2011, relator Cons. Gregório Silva Jesus, proc. nº. 209/06.3TVPRT e da RL de 29/06/2017, proc. nº. 4386/07.8TVLSB, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser em regra qualificada, corresponde ao esforço na acção diligente do diagnóstico e do tratamento, e não à cura. A obrigação de meios (ou de pura diligência, como também é conhecida) existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza” (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, Vol. I, com a colaboração de Rui de Alarcão, 1958, pág. 353 e Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, BMJ n.º 84, págs. 46 e 47).
Na sequência do expendido na fundamentação da sentença recorrida, importa referir que, em sede de relacionamento obrigacional entre paciente e médico, não está o primeiro, na qualidade de lesado, dispensado de alegar e provar a factualidade integrante e caracterizadora da acção ou omissão médica, beneficiando tão só da presunção de culpa do lesante, pois como é sabido, neste domínio existe o princípio da inversão do ónus da prova consagrado no art. 799º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual incumbe ao médico provar que agiu com diligência ou de acordo com a “leges artis”, que o mesmo é dizer, que o incumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.
No âmbito da responsabilidade contratual médica, considerando-se que a obrigação do médico é uma obrigação de meios, recai sobre aquele o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e portanto sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade (artº. 799º, nº. 1 do Código Civil), caso o lesado alegue e faça prova da existência do vínculo contratual e da verificação dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das “leges artis” e da devida diligência por parte do médico, dos danos e sua extensão e do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos. Ou seja, o paciente/lesado tem de demonstrar a inobservância de um dever específico de diligência e de cuidado por parte do médico, nomeadamente o requerido pelas “leges artis”.
O ponto de partida essencial para qualquer acção de responsabilidade médica é a desconformidade da concreta actuação do médico, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente, diligente, sensato, cuidadoso, com os mesmos conhecimentos, graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura. «Não basta (…) ao lesado provar que não ficou em melhor estado de saúde ou que, porventura, esse estado se agravou (…); terá de provar que o médico não cumpriu os seus deveres de actuação técnica, não respeitou as “leges artis”» (cfr. André Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 2015, pág. 712, citado por Luís Pires de Sousa, in “O ónus de prova na responsabilidade civil médica”, Data Venia, Ano 6, nº. 8, Junho de 2018, pág. 8 e 9).
O entendimento supra exposto tem sido defendido pela generalidade da doutrina especializada e perfilhado pela jurisprudência do STJ, citando-se, entre outros, Álvaro Rodrigues, “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, in Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Volume XIV, 2000, Tomo 3, pág. 182 e Moutinho de Almeida, ob. cit., pág. 337; acórdãos do STJ de 15/10/2009, relator Cons. Rodrigues dos Santos, proc. nº. 08B1800, de 15/12/2011 e de 26/04/2016 acima referidos, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Retornando ao caso em apreço, e relativamente à questão suscitada pela A./recorrente quanto à inversão do ónus da prova em relação à Ré Clínica, importa referir que perfilhamos a posição que vem sendo defendida pela doutrina e pela jurisprudência supra citadas e que se mostra resumida no sumário do acórdão do STJ de 15/10/2009 acima referido nos seguintes termos:
«(…)
III - Aplica-se à responsabilidade contratual médica a presunção de culpa contida no art. 799º, n.º 1 do CC, presunção esta que fica ilidida com a demonstração pelo médico do cumprimento diligente das leges artis.
IV - Recai sobre o paciente o ónus da prova do vínculo contratual, da existência de factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico, dos danos (e sua extensão), do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos e da preterição do dever de informação, por parte do médico, ao paciente com vista à obtenção do seu consentimento esclarecido.

E ainda no sumário do acórdão da RL de 29/06/2017 acima referido, no qual se conclui designadamente que:
«(…)
- Em sede de responsabilidade civil médica, porque por regra a obrigação (contratual) do médico é de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbe ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico.
- Ou seja, ao paciente incumbirá a prova de que foi vitima de erro médico, provando v.g. um cumprimento defeituoso do médico, porque vítima de imperícia (v.g. utilizando a técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais), de imprudência, de desatenção, de negligência (cumprindo defeituosamente a sua obrigação) e/ou de inobservância dos regulamentos.
- Feita a prova indicada, então sim, tem lugar a presunção de culpa do médico, podendo esta última ser ilidida caso demonstre o médico que agiu correctamente, maxime provando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas.»

Porém, no caso “sub judice”, o Tribunal “a quo” entendeu (e a nosso ver, bem) que a A. não logrou fazer a prova de qualquer incumprimento ou cumprimento defeituoso dos técnicos e auxiliares da Ré Clínica, nem a prática por parte destes de qualquer facto ilícito (por acção ou omissão), nem a existência de danos sobrevindos à intervenção cirúrgica realizada nas instalações da Ré em 12/09/2001, tal como alegado na petição inicial.

Explicitando mais detalhadamente esta matéria, o Tribunal recorrido escreve na sentença sob escrutínio que:
«A prestação do médico, tanto na responsabilidade contratual, como na extracontratual, projecta-se, sempre no cumprimento diligente das leges artis e com a prova desse cumprimento se exonerará.
Considerando-se a obrigação do médico uma obrigação de meios, sobre ele recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e, portanto, sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade decorrente de incumprimento, o que pressupõe que se demonstre que, previamente ao funcionamento da presunção, tenha havido e ficado provado o incumprimento.
E, tratando-se, como é o caso, de prestação de serviços médicos, a responsabilidade médica, por negligência, por violação das leges artis, tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir.
A responsabilidade civil da ré Clínica pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros) regula-se pelo art. 800º, n.º 1 do Cód. Civil, que dispõe: “O devedor é responsável perante o credor pelos actos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”.
Deve salientar-se que, diversamente do que se passa no regime do art. 500º, que se aplica à responsabilidade extracontratual, no art. 800º abrange-se tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes, sendo indiferente o vínculo existente entre a Clínica e os médicos/enfermeiros envolvidos na operação.
No caso, resulta da factualidade provada que a obrigação assumida pela ré clínica é de meios.
Porém, não se apurou qualquer ilicitude do comportamento da clínica ou dos seus técnicos/auxiliares, não tendo ficado demonstrado qualquer falta de cumprimento ou mesmo qualquer cumprimento defeituoso da prestação – no âmbito da cirurgia ortopédica realizada a 12.09.2001, resultando, ainda, ilidida a presunção de culpa a que alude o art. 799º, n.º 1 do Código Civil.
É que, em face da factualidade dada como provada (pontos 19 a 24 e ainda ponto 16 dos não provados), não se pode sequer afirmar que a 2.ª ré clínica, através dos seus técnicos/auxiliares, com a sua actuação, no âmbito da execução da operação cirúrgica, afectou o corpo da autora, violando as leges artis.
Por tais regras de arte médica se entende um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional.
A observância das leges artis exclui, em princípio, o chamado erro médico.
Ademais, o nexo de causalidade é um pressuposto da responsabilidade civil que consiste na interacção causa/efeito, de ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquele, a ponto de poder afirmar-se que o lesado não teria sofrido tal dano se não fosse a lesão.
De acordo com o art. 563º do Código Civil a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, com o que se consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa.
À luz desta teoria, não serão ressarcíveis todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto causador do resultado danoso, mas tão só os que ele tenha realmente ocasionado, ou seja, aqueles cuja ocorrência com ele esteja numa relação de adequação causal.
(…)
No caso, considerando os pontos 1 a 7 dos factos não provados também não se pode dizer que existe nexo causal entre as lesões/sequelas que a autora apresenta e o acto cirúrgico indicado, ou que aquelas sejam uma consequência directa deste.
Nem se provou que foram desrespeitados quaisquer procedimentos no decurso da cirurgia, nem que tenha ocorrido qualquer facto que, apesar de o cirurgião da ré ter actuado em conformidade com as boas práticas e com toda a diligência e cuidado, possa justificar a lesão/sequelas da autora.
Em suma, não tendo sido provada a ilicitude pelo desrespeito do dever de protecção da integridade física da autora, durante a execução do contrato, não pode condenar-se a ré clínica como pretendia a autora.»
Reportando-nos ao caso “sub judice”, como se trata de responsabilidade contratual médica, à A. caberia apenas, em tese, fazer prova da desconformidade objectiva entre os actos praticados e/ou omitidos e as “leges artis” (o incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato), bem como o nexo causal entre tais actos e o dano, uma vez que a prova da diligência da sua actuação caberia aos médicos, por força da presunção da culpa a que se refere o art°. 799°, nº. 1 do Código Civil. Ou seja, a A. teria de demonstrar que os médicos, os enfermeiros e outros técnicos da Ré Clínica não cumpriram os seus deveres profissionais de actuação técnica, não respeitaram a “leges artis”.
Ora, acontece que a A. não logrou fazer prova da violação das regras da arte por parte dos técnicos e auxiliares da Ré Clínica, nem da existência de danos provenientes da intervenção cirúrgica que realizou nas instalações daquela Ré em 12/09/2001. Dito de outro modo, a A. não provou que tenha sido vítima de um erro médico, ou seja, de um acto ilícito e negligente da responsabilidade da Ré Clínica que tenha provocado os danos que a mesma alega ter sofrido (e que continua a sofrer), pelo que teremos de concluir que a decisão absolutória do Tribunal de 1ª instância não merece censura.
Nestes termos, terá de improceder o recurso interposto pela Autora
*
SUMÁRIO:

I) - No âmbito da responsabilidade civil médica a nossa lei não consagra/prevê casos de responsabilidade civil objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, mas tão só admite que a resolução de questão relacionada com um erro médico seja apreciada no âmbito da responsabilidade contratual e da extracontratual ou aquiliana, podendo a responsabilidade civil médica ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física.
II) - Ao médico, seja qual for a sua obrigação, esteja ou não vinculado por contrato, exige-se que cumpra as “leges artis” com a diligência normal que um médico medianamente competente, prudente, sensato, cuidadoso, com os mesmos conhecimentos, graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura.
III) - Em sede de responsabilidade civil médica, porque por regra a obrigação (contratual) do médico é de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbe ao paciente lesado o ónus de alegar e provar a existência do vínculo contratual e da verificação dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das “leges artis” e da devida diligência por parte do médico, dos danos e sua extensão e do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos. Ou seja, o paciente/lesado tem de demonstrar a inobservância de um dever específico de diligência e de cuidado por parte do médico, nomeadamente o requerido pelas “leges artis”.
IV) - Feita tal prova pelo paciente lesado, tem lugar a presunção de culpa do médico contida no artº. 799º, n.º 1 do Código Civil, podendo esta ser ilidida caso o médico demonstre que agiu correcta e diligentemente, por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela Autora M. L. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
Guimarães, 14 de Janeiro de 2021
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)