Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
653/14.2TBGMR-B.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CESSÃO DE CRÉDITO
LIVRANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A livrança pode ser validamente transmitida a terceiros, quer através do endosso quer mediante cessão ordinária de créditos sendo esta a única forma de transmissão caso tenha inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente (artigos 77º e 11º da LULL);

2 – Tendo sido cedido o crédito resultante do negócio subjacente à subscrição da livrança (mútuo oneroso), igualmente esta se transmite como acessório de garantia do pagamento do mesmo crédito, acompanhando a transmissão do contrato de mútuo;

3 – O carácter intuitu personae das relações jurídicas, assente essencialmente na confiança, não se mostra arredado das relações mercantis e pode efetivamente ter um papel de relevo nas empresas, e nas relações pelas mesmas estabelecidas, designadamente no sector financeiro, sendo, por isso, de reconhecer a natureza pessoal que se estabelece nas relações bancárias onde a questão da confiança assume relevo, em particular nas relações que contendem com créditos e financiamentos;

4 – Tendo sido celebrado o contrato de mútuo no pressuposto de que a livrança entregue (em branco e acompanhada da respetiva autorização de preenchimento) garantia o pagamento da quantia mutuada, a transmissão do estabelecimento comercial, implicando a transmissão do contrato de mútuo, determinará também a transmissão da livrança e da autorização do seu preenchimento, não fazendo sentido falar aqui do carácter personalíssimo da emissão da livrança e da autorização do seu preenchimento para impedir a sua transmissão quando a sua subscrição e entrega tiveram subjacente o referido contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

F. C. deduziu os presentes embargos de executado por apenso à execução n.º 653/14.2TBGMR em que é Exequente Banco X, pedindo a extinção da execução.

Alega, em síntese, que:

- a Exequente não figura no título dado à execução e que a cessão de créditos é alheia à Embargante;
- não consta da livrança qualquer endosso à exequente pelo que esta não pode acionar a Embargante;
- não sabe que cálculos fez a Exequente para atingir os valores que refere, nem sabe se esses valores, e todos eles têm algum suporte legal, ou se o mútuo subjacente à livrança está vencido, e quando, ou desde quando.

Mais alega que se é verdade que a embargante terá entregue a livrança em questão ao Banco A, e se é verdade que lhe terá concedido o direito de preencher essa livrança, nos espaços em branco, já não é verdade que lhe tenha concedido o direito de a preencher sem informar previamente a embargante dos valores que apurar, nem é verdade que tenha, ao Banco A, consentido o direito - rigorosamente “intuitu personae” - de caber a outrem o direito de a preencher, não sendo admissível conceder esse direito anonimamente a um funcionário qualquer da Exequente, e menos ainda a esta, genericamente.

A Embargada veio contestar alegando ser justificado o preenchimento da livrança, atento o pacto de preenchimento que faz parte integrante do contrato, mais concretamente a Convenção de Preenchimento da Livrança em Branco com o N.º ...9 e que o embargante foi devida e efetivamente interpelado, para o domicílio convencionado, relativamente ao incumprimento do contrato, agindo com má fé.

Foi realizada tentativa de conciliação, foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido saneador-sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Pelo exposto, decido:

9.1- julgar os presentes embargos de executado improcedentes e, em consequência, determino o prosseguimento da execução apensa contra a ora embargante.
9.2.- Custas pela executada/embargante.
9.3.- Registe e notifique, sendo a embargante para se pronunciar sobre o pedido de litigância de má-fé deduzido pela embargada.
9.4.- Informe a AE do teor da presente sentença.”

Inconformado, apelou o Embargante da sentença, pugnando pela integral procedência do recurso, devendo conhecer-se das apontadas nulidades, e julgar-se, desde já, a ação executiva improcedente e não provada, ou ordenar os posteriores termos do processo, com julgamento, para aí se demonstrar qual é a quantia exequenda e se era legítima a transmissão para a exequente do direito de preencher a livrança. Conclui as suas alegações da seguinte forma:

CONCLUSÕES

1- A sentença recorrida sustenta erradamente que nos embargos, o embargante “alega, em síntese, que a exequente é parte ilegítima porquanto nunca teve conhecimento da cessão de créditos que a mesma alega no requerimento executivo”, quando a verdade é que o embargante invocou a ilegitimidade da exequente, mas com base no facto de a mesma não constar do título executivo, nem de qualquer dos documentos posteriormente juntos aos autos.
2- Assim, ao fazer aquela referência e ao omitir decisão sobre as demais questões postas, cometeu a sentença a nulidade prevista pelo n.º1, al. b) do artigo 615º do Código de Processo Civil, de que importa conhecer, com as necessárias consequências, designadamente a de se julgar a sentença nula, a fim de serem conhecidas as demais questões que devia ter abordado.
3- Com efeito, alegou o embargante que a exequente não é portadora legítima do título dado à execução, uma livrança, pois desta não consta qualquer endosso a favor da mesma exequente, e no texto da petição refere-se expressamente que os factos que constituem a causa de pedir da execução “constam exclusivamente do título executivo”, e deste não consta qualquer alusão ou referência à exequente, sendo certo que a exequente teria de justificar o seu alegado direito de acionar com base na livrança, por uma série ininterrupta de endossos (artigo 16º da LULL e Vaz Serra BMJ, 61,181), questão que o tribunal devia ter abordado e conduz necessariamente à improcedência da execução.
4- Alegou ainda o embargante que, para além da insuficiência do título dado à execução, nem do contrato de trespasse nem do contrato de cessão de créditos consta qualquer referência à transmissão do crédito do Banco A para a exequente, como claramente resulta dos textos respetivos que acima se resumem, e pediu a notificação da exequente para comprovar documentalmente a invocada cessão do crédito, o que a exequente, apesar de notificada por duas vezes, não fez, pelo que a sentença não podia dar por assente, como deu, que ocorreu a indicada transmissão do crédito, e antes devia julga-la não provada.
5- O embargante, posto ante o preenchimento da livrança com os valores que dela constam, impugnou esse valor por não ter elementos para saber que cálculos foram feitos pelo exequente, pelo que também por isso o tribunal não podia considerar assente como devido o valor que foi dado à execução e pelo qual foi preenchida a livrança, pois o mesmo não pode ter-se por assente.
6- Para além disso, partindo do princípio de que a executada F. C. & Cª. Lda. entregou a livrança em branco ao Banco A, para que este a preenchesse de acordo com um pacto de preenchimento entre ambos celebrado, alegou o embargante que esse direito concedido ao Banco A devia ter-se por um direito estritamente pessoal, que só se confere em razão de grande confiança pessoal, e que, por isso, não podia ter-se transmitido para a exequente, o que ou permitia ao tribunal desde já julgar a execução improcedente, ou, no mínimo, devia levá-lo a considerar a matéria contravertida e proceder a julgamento.
A Embargada contra alegou pugnando pela improcedência do recurso. Formulou as seguintes CONCLUSÕES
1. Na acção executiva, a legitimidade das partes retira-se pela simples observação do título executivo, atendendo ao disposto no artigo 53.º do CPC. Contudo, a instauração de uma execução por pessoa que não figure no título executivo como credor não implica, necessariamente a ilegitimidade da exequente.
2. Ao abrigo do disposto no artigo 11.º da LULL, verificamos que as letras e livranças podem ser transmitidas por endosso. Porém, o endosso é apenas um dos meios de transmissão de letras e livranças.
3. As letras e livranças podem ainda ser transmitidas “por outro meio diferente do endosso, como é o caso da transmissão por acto entre vivos, com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, por sucessão mortis causa, transmitindo-se aos herdeiros a posse legítima da letra [e livrança] e do crédito que ela encerra, e por trespasse do estabelecimento, quando este abrange todo o acto do transmitente da organização comercial ou quando, no activo, se compreende a sua carteira de títulos, e também pode ser transmitia por meio de uma cessão ordinária de créditos (art.ºs 577.º e segs. Do Cód. Civil). Quando a letra é transmitida por meio de uma cessão ordinária de créditos, o cessionário adquirente da letra nunca é um endossado (um portador autónomo).” (1).
4. Por escritura pública celebrada em 4 de Abril de 2011, foi celebrado um contrato de trespasse entre a ora Recorrida e o credor originário “Banco A, S.A.”. Conforme de depreende da redação da escritura, o “Banco A, S.A.” quis transmitir à Recorrida a totalidade do seu estabelecimento comercial; quiseram ainda as partes englobar os créditos do primeiro sobre terceiros na transmissão do estabelecimento.
5. Conforme entendeu o douto Tribunal da Relação de Guimarães (2), que teve oportunidade de se pronunciar sobre o negócio em apreço, “o que está aqui em causa é uma cessão de créditos por efeito de um trespasse do estabelecimento comercial, que inclui esses créditos e que no caso destes operou através de um contrato de compra e venda aplicando-se a esta transmissão o regime próprio deste contrato e ainda o previsto nos arts. 577.º a 587.º do C. Civil. A transmissão verifica-se com todas as garantias do contrato, nos termos do disposto no art. 582.º, n.º 1 do C. P. Civil, desde que as mesmas não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.”
6. A livrança em crise nos presentes autos foi transmitida para a ora Recorrida por via do contrato de trespasse celebrado com o “Banco A, S.A.”.
7. A Recorrida, no próprio requerimento executivo, deduz sumariamente os factos constitutivos da sucessão, juntando, para prova do alegado, a documentação de suporte, em cumprimento do disposto no artigo 54.º, n.º 1 do CPC, sendo, assim, parte legítima na presente execução.
8. Sem prejuízo do trespasse do estabelecimento comercial do “Banco A, S.A.” à Recorrida ter sido amplamente noticiado pela comunicação social – sendo, portanto, de conhecimento público e geral – e ainda, de ter o Recorrente sido interpelado para pagamento das quantias em dívida pela própria Recorrida em 2013, deverá considerar que a notificação ao Recorrente foi efectivamente realizada, pelo menos com a citação para a presente acção executiva (3).
9. A douta sentença em crise não padece de nulidade nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC pois o Tribunal a quo pronunciou-se sobre todas as questões levantadas pelo Recorrente, nomeadamente no que respeita à questão da legitimidade da exequente.
10. O Recorrente não deduziu uma verdadeira impugnação dos valores reclamados, bastandose com uma alegação vaga e genérica de desconhecimento dos cálculos elaborados pela Recorrida.
11. Aquando da celebração do contrato de mútuo e hipoteca em causa, a Executada F. C. & Ca subscreveu uma livrança em branco, avalizada pelo ora Recorrente para garantia das responsabilidades assumidas.
12. A livrança em branco pode definir-se como sendo aquela a que falta algum dos requisitos indicados no artigo 75.º da LULL, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária (4).
13. O preenchimento de uma livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos resultantes das livranças, faz-se de harmonia com o respectivo contrato ou pacto de preenchimento. Este pacto de preenchimento consubstancia o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária.
14. Sem prejuízo da livrança em causa nos presentes autos ter sido preenchida em total conformidade com o pacto de preenchimento (doc. 2 junto com o Requerimento Executivo), ““é oponível ao portador da livrança a inobservância daquele acordo, cabendo o respectivo ónus da prova ao obrigado cambiário (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil)” (5)
15. O Recorrente foi demandado na presente execução na qualidade de avalista. Ainda que formalmente dependente da obrigação do avalizado, a obrigação dos avalistas é uma obrigação materialmente autónoma, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, excepto se se tratar de um vício de forma (artigo 32.º da LULL).
16. Ao dar aval à subscritora em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco desse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título – artigos 10.º, 32.º, n.º 2 e 77.º da LULL.
17. Os avalistas não têm, em princípio, legitimidade para discutir questões relacionadas com o pacto de preenchimento. No entanto, se a livrança não tiver entrado em circulação, pode o avalista opor ao portador a excepção do preenchimento abusivo se tiver intervindo na sua celebração.
18. Querendo o Recorrente prevalecer-se da relação jurídica subjacente, deverá invocar a mesma, estando obrigado, em sede de oposição, a expor as razões de facto e de direito em que fundamenta a sua discordância relativamente ao pedido exequendo, o que não se verificou.
*
Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1 - Se a sentença é nula por omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615° do Código de Processo Civil;
2 - Se a livrança pode ser validamente transmitida a terceiro por outra forma que não seja o endosso, designadamente através de escritura pública de cessão de créditos;
3 - A quem incumbe o ónus de alegação e prova da violação do pacto de preenchimento;
4 – Se livrança em branco e a autorização do seu preenchimento assumem carácter intuitu personae impeditivo da sua transmissão com a cessão de créditos.
*
II. A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Considerou o Tribunal de Primeira Instância provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

1 - O embargante subscreveu, na qualidade de avalista, a livrança junta a fls. 7 dos autos de execução, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2 - O embargante entregou à exequente a livrança em branco apresentada à execução.
3 - O embargante subscreveu o pacto de preenchimento da livrança apresentada à execução junto a fls. 66 e 66 v, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4 - A exequente, por carta datada de 30-12-2003, comunicou à subscritora da livrança identificada em 2., a remessa da mesma à cobrança bancária pelo valor total de 329.510,22 euros, conforme carta junta a fls. 68, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
5 - Até à presente data, a livrança não está paga por nenhum dos obrigados.

Consta da decisão proferida em Primeira Instância que “Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes”.
*
II. B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

As questões colocadas nas conclusões da apelação e a apreciar no âmbito do presente recurso são precisamente as que foram suscitadas e já decididas no apenso A, por Douto Acórdão de 8 de março de 2018, da 2ª Secção Cível deste Tribunal, Proc. nº 653/14.2TBGMR-A.G1, relatado pela Senhora Juíza Desembargadora Raquel Baptista Tavares, em que foi embargante/recorrente a subscritora da livrança que fundamenta a execução, também subscrita pelo aqui embargante/recorrente, na qualidade de avalista, que, por tratar as questões aqui também em causa e se estar inteiramente de acordo com a posição assumida, se acompanha inteiramente e se passa a citar, procedendo-se às necessárias, e pontuais, adaptações ao caso.

1. Da nulidade da sentença

O Recorrente vem arguir a nulidade da decisão recorrida com fundamento na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (embora seguramente por manifesto lapso de escrita refira nas conclusões a alínea b), consta da página 3 do corpo das alegações a referência expressa à alínea d) por entender que a decisão recorrida não de pronunciou sobre todas as questões por si suscitadas.
O artigo 615º do Código de Processo Civil prevê, de forma taxativa, as causas de nulidade da sentença.

Assim, dispõe o n.º 1 deste preceito que:

1- É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

A nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º prende-se efetivamente com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).

No caso concreto o Recorrente invoca a omissão de pronúncia por entender que na sentença apenas é feita referência a ter alegado que a Exequente é parte ilegítima por não ter tido conhecimento da cessão de créditos, quando na verdade invocou a ilegitimidade da exequente mas com base no facto da mesma não constar do título executivo, nem de qualquer dos documentos posteriormente juntos aos autos, tendo a sentença omitido decisão sobre as demais questões por si colocadas.

As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada”.

A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de assim resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas.

A questão a decidir está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.

Se eventualmente não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão por si tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos mesmos, designadamente por opostos à solução adotada.

Delimitemos, então, as questões suscitadas pelo Recorrente nos presentes embargos.

Em primeiro lugar questiona o Recorrente que a Recorrida não é legítima portadora da livrança por não constar desta qualquer endosso, mas também por não constar a Exequente de nenhum dos demais documentos (seja da escritura de trespasse, seja da escritura de cessão de créditos), e nada lhe ter sido comunicado; questiona ainda o preenchimento da livrança e invoca o carácter intuitu personae da livrança em branco e da autorização do seu preenchimento como facto impeditivo da sua transmissão.

Analisada a decisão proferida pelo tribunal a quo verificamos que a mesma aborda a questão da legitimidade ativa onde analisa a cedência do crédito concluindo que a cedência se operou pela transmissão do estabelecimento, considerando a mesma uma forma válida de transmissão e que a Exequente deduziu no requerimento executivo os factos constitutivos da sucessão nos termos do artigo 54º do Código de Processo Civil, julgando improcedente a exceção de ilegitimidade passiva; assim, ao considerar validamente efetuada a transmissão (através da transmissão do estabelecimento e não de uma cessão deste crédito em particular) pronunciou-se a 1ª Instância sobre a questão suscitada, ainda que não se tenha referido expressamente à necessidade do endosso, argumento aduzido pela Embargante, mas cujo conhecimento se mostrava inútil em face da posição perfilhada. É que, ao contrário da Embargante, o tribunal a quo considerou que a livrança pode ser transmitida por outra forma, que não exclusivamente através do endosso, designadamente através de cessão de créditos, que no caso concreto entendeu ser válida.

Mais apreciou o tribunal a quo a questão do preenchimento da livrança e da violação do pacto de preenchimento concluindo que a Embargante não concretizou qual a incorreção no preenchimento conforme lhe competia e que a Exequente lhe comunicou o preenchimento da livrança por incumprimento contratual para a morada indicada no pacto de preenchimento.

Já no que toca à questão do carácter intuitu personae da livrança em branco e da autorização do seu preenchimento como facto impeditivo da sua transmissão temos de concordar com o Recorrente pois que a decisão recorrida é de facto omissa quanto à apreciação da mesma.

Tal omissão determina a nulidade da sentença nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Processo Civil, o que não impede que se conheça do objeto da apelação conforme decorre do n.º 1 do artigo 665º, que consagra a regra da substituição ao tribunal recorrido, procedendo-se ao conhecimento da referida questão, a qual é também questão suscitada na presente apelação, o que se fará adiante.
***
2. Da validade da transmissão da livrança a terceiro por outra forma que não o endosso, designadamente através de escritura pública de cessão de créditos

Uma das questões que o Recorrente suscita nos presentes embargos, no requerimento inicial e também na apelação, é a da possibilidade da transmissão (validamente) da livrança a terceiro por outra forma que não o endosso ou se esta configura a única via possível de transmissão da livrança.

E a resposta a esta questão tem de ser a que consta da decisão recorrida, isto é, a livrança não é transmissível apenas através do endosso, mas pode ser transmitida por outra via, designadamente através de cessão de créditos.

Tal decorre em nosso entender de forma clara do preceituado nos artigos 77º e 11º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LULL); neste preceito prevê-se que a letra que não envolva expressamente a cláusula à ordem é transmissível por via de endosso, e que quando o sacador tiver inserido na letra as palavras “não à ordem” ou uma expressão equivalente, a letra só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, sendo que às livranças se aplicam as disposições relativas ao endosso (artigos 11º a 20º), conforme decorre do referido artigo 77º.

Assim, as letras e livranças que não tenham a menção “não à ordem” ou expressão equivalente não podem ser endossadas, isto é, não podem ser transmitidas pela via do endosso; mas podem ser transmitidas por outros modos pois que independentemente “de uma declaração de endosso, a letra pode ser transmitida por cessão, por sucessão mortis causa e por trespasse do estabelecimento (…) quando este abrange todo o activo do transmitente da organização comercial ou quando no activo se compreende a sua carteira de letras” tendo esta transmissão a eficácia da cessão (Abel Delgado, Lei uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 6ª Edição, páginas 83 e 85; também neste sentido Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Volume III, páginas 170 e seguintes, citado por França Pitão, Letras e Livranças, 3ª Edição, página 89).

De qualquer forma, são distintos os efeitos decorrentes da transmissão operada por endosso, da que resulta da cessão de créditos pois que nesta o cedente pode não ficar responsabilizado perante o cessionário pela satisfação do crédito pelo devedor, e o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, o que não acontece na transmissão por endosso (artigo 585º do Código Civil), importando ainda a cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido; enquanto o endosso transmite todos os direitos emergentes da letra (artigo 14º da LULL), os direitos emergentes do título, a cessão transfere um direito a que se prendem todas as exceções pessoais e o cessionário tem exatamente o direito que o cedente tiver (Ferrer Correia, Ob. Cit. página 172 e seguintes).

No caso concreto a livrança foi subscrita pela Recorrente como garantia do pagamento da importância em dívida por força do contrato de mútuo celebrado entre a recorrente e o Banco A SA; no âmbito deste contrato de mútuo a Recorrente subscreveu a livrança junta aos autos de execução que entregou àquele em branco, bem como subscreveu a “convenção de preenchimento da livrança em branco”.

A livrança veio a ser transmitida pelo Banco A SA, conjuntamente com o contrato de mútuo, por força do “Trespasse” celebrado por escritura pública outorgada em 04 de Abril de 2011 na qual o representante do Banco A SA declarou trespassar à Banco X o estabelecimento comercial que constitui a universalidade de ativos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente contratos de depósitos, contratos de mútuo e de uma forma geral a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua atividade bancária; por via do contrato de trespasse foi efetuada a transmissão sem que para tal fosse exigido que no contrato de trespasse fosse mencionado de forma individualizada o contrato de mútuo outorgado pela Embargante.

Tendo sido transmitido o crédito resultante do negócio subjacente à subscrição da livrança (mútuo oneroso), também esta se transmite enquanto acessório de garantia do pagamento do mesmo.

Assim, tendo sido validamente transmitida a livrança, não é exigível à Exequente para ser considerada legitima portadora da livrança que “justifique o seu direito por uma série ininterrupta de endossos” ou sequer que a letra se mostre endossada à Exequente; tal só seria assim se estivesse em causa a transmissão da livrança por via do endosso, o que não ocorreu no caso concreto.
De todo o modo, sempre se dirá configurar-se mais vantajosa à Embargante esta forma de transmissão (transmissão da livrança como acessório de garantia do pagamento do mútuo) do que seria o endosso da livrança, pois que o endosso permitiria o seu reendosso, podendo a Embargante (e os avalistas) ser “demandados por um qualquer portador legítimo da mesma, sem lhe poder opor o eventual pagamento da sua dívida à Exequente ou qualquer outro meio de defesa invocável perante esta” (Acórdão do STJ de 22/11/2016, disponível em www.dgsi.pt).

A Exequente é, por isso, portadora legítima da livrança, podendo, com base nela, executar a sua subscritora e o ora embargante, avalista, pela falta do pagamento, improcedendo nesta parte a apelação.
***
3. Do ónus de alegação e prova da violação do pacto de preenchimento

Mais refere o Embargante que perante o preenchimento da livrança com os valores que dela constam impugnou tais valores por não ter elementos para saber que cálculos foram feitos não podendo o tribunal a quo considerar assente o valor que foi dado à execução e pelo qual foi preenchida a livrança.

Na decisão proferida pelo tribunal a quo, após citação de diversa jurisprudência nesse sentido, considerou-se que “a embargante limitou-se a invocar genericamente o abuso no preenchimento da livrança, sem, contudo, concretizar onde está a incorrecção no preenchimento da livrança nos termos desse pacto de preenchimento, é manifesto que a sua argumentação para se eximir às suas responsabilidades não tem acolhimento.

Sublinhe-se que um dos princípios nucleares do processo civil é o princípio do dispositivo, o qual na sua veste de disponibilidade do objecto do processo, impõe às partes o ónus de alegar os factos e as questões fundamentais que consubstanciam o thema decidendum, ou seja, a alegação constitui o terminus a quo que predetermina o terminus ad quem da decisão da matéria de facto e da consequente pronúncia jurisdicional (vd. João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, p. 132 e seguintes).

Assim, perante a impossibilidade de avaliação desse alegado abuso, os presentes embargos deverão improceder.

Por fim, também não podemos deixar de referir, à revelia da tese da embargante, que o ora exequente comunicou-lhe atempada e devidamente o preenchimento da livrança por incumprimento contratual para a morada indicada por no pacto de preenchimento”
Conforme consta da decisão recorrida é pacífico na doutrina e jurisprudência nacionais que recai sobre o embargante o ónus de demonstrar o preenchimento abusivo alegando os factos de onde este resulte.

Decorre dos factos provados que a livrança em causa foi entregue em branco; trata-se de uma livrança que quando foi emitida não se encontrava completa e que a lei permite seja posteriormente completada (validamente) em conformidade com o acordado, nos termos do denominado pacto de preenchimento (a Lei Uniforme denomina precisamente a letra em branco de letra incompleta; Pinto Furtado, “Títulos de Crédito”, Reimpressão da Edição de Outubro de 2000, página 145, distingue numa acepção mais restrita a letra em branco, que considera uma letra de formação sucessiva que tem atrás de si um acordo para preenchimento, da letra incompleta onde não existe tal acordo e que por isso não passará de um titulo nulo por falta de elementos essenciais).

O acordo ou pacto de preenchimento é uma “convenção extracartular, informal e não sujeita a forma em que as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, etc” (Acórdão do STJ de 12/10/2017, disponível em www.dgsi.pt; neste sentido também Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2011, Almedina, página 329 e Abel Delgado, Ob. Cit., páginas 73), devendo o preenchimento do título ocorrer sempre antes da sua apresentação a pagamento e ser feito em conformidade com o convencionado, sob pena de violação do pacto de preenchimento.

Decorre do preceituado no artigo 10º da LULL (aplicável às livranças por força do disposto no artigo 77.º) que se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.
Uma vez completado o preenchimento do título e colocado este em circulação, será ainda de distinguir o domínio das relações mediatas do domínio das relações imediatas; no âmbito daquele só é lícito aos signatários cartulares opor ao portador da livrança exceções emergentes da violação do pacto de preenchimento se este tiver adquirido o título de má-fé ou cometendo falta grave. No âmbito das relações imediatas, já é lícito invocar a violação do pacto de preenchimento, mas neste caso recai sobre o obrigado cambiário o ónus de prova (cfr. artigos 342º n.º 2 e 378º do Código Civil e artigos 10º e 17º da LULL, a contrario sensu).

No caso vertente, a co-executada/embargante no processo apenso foi demandada como subscritora da livrança em causa (e o aqui embargante como avalista da mesma), a qual foi emitida no âmbito do contrato de mútuo celebrado entre si e o Banco A SA, hoje integrado na Exequente; estamos assim no âmbito da relação fundamental subjacente à emissão da livrança e por isso no domínio das relações imediatas (como ensina Ferrer Correia, Ob. cit., “as relações imediatas…nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeito às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem”).

Ao Embargante ser-lhe-ia licito, por isso, alegar e provar nos presentes autos a eventual violação do pacto de preenchimento; competia-lhe assim alegar os factos de onde resultasse o preenchimento abusivo do título, e enquanto exceção, cabia-lhe, o ónus da prova dos factos constitutivos da exceção.

Ora, a Exequente no requerimento executivo discriminou a quantia em divida como correspondendo a €276.576,18 de capital, €19.492,13 de juros de mora (calculados desde 16/02/2010 até 11/02/2014), €32.267,21 a título de sobretaxa de juros de mora de 2%, desde 16/03/2010, €918,00 a título de conta de despesas de mutuário, €53,41 a título de juros moratórios sobre conta de despesas, €38,85 a título de Imposto Sobre despesas e €2.070,36 a título de Imposto de Selo.

Analisado o requerimento inicial constata-se que o Embargante limitou-se a invocar de forma genérica o preenchimento abusivo alegando (artigo 41º) não saber que cálculos foram feitos pela Exequente, não saber se têm algum suporte legal e não saber se o mútuo subjacente à livrança está vencido e quando ou desde quando.

Não alegou pois o Recorrente factos concretos tendentes a demonstrar que o preenchimento da livrança violou o pacto de preenchimento, designadamente quanto ao montante nela inscrito. Diga-se, aliás, que nem se percebe a alegação do aqui Recorrente (avalista) e da Recorrente no processo apenso quando refere não saber sequer se o mútuo subjacente à livrança está vencido, quando ou desde quando, pois então não é a Recorrente a mutuária, não foi ela que beneficiou do empréstimo de trezentos e oitenta mil euros, quantia de que se confessou devedora (cfr. escritura de mútuo e hipoteca que outorgou em 16/05/2006) e quem se obrigou a liquidar o empréstimo em 125 prestações mensais?

E, como se refere na sentença recorrida, o ora embargante/executado, ao ter colocado no verso da livrança, a sua assinatura sob a expressão "Dou o meu aval ao subscritor ", assumiu a posição de avalista (cfr. art. 31º, §3º LULL).

Ora, o aval é o ato pelo qual um terceiro garante o pagamento da letra/livrança por parte de um dos seus subscritores (arts. 30º, 31º e 32º, LULL, que estipulam que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada) : o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial-Letra de Câmbio, III, Universidade de Coimbra, 1956, pag. 196 ; STJ 25/07/1972, BMJ 279-214) .

"O aval é um ato jurídico cambiário, unilateral e completo, que se comporta como negócio abstrato e mediante o qual se garante objetivamente o pagamento da letra", constituindo "para o avalista uma obrigação substancialmente autónoma, mas formalmente acessória da obrigação avalizada, que opera como garantia adicional" (cfr. neste sentido Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial-Letra de Câmbio, III, Universidade de Coimbra, 1956, pag. 196 ; STJ 25/07/1972, BMJ 279-214) .

O "avalista pela sua declaração de confiança constitui um valor patrimonial correspondente ao da operação que avaliza a favor do destinatário desta, portador legitimado do título" (Paulo Melero Sendim, Letra de Câmbio, II, Universidade Católica-Almedina, 1982, pag. 127) .

"Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal", uma vez que "a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula - e abre uma única exceção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de 'um vício de forma'" (Ferrer Correia, ob. cit., pag. 207), porque, neste caso, "não funciona já a aparência emergente da letra" (Oliveira Ascensão, Direito Comercial-Títulos de Crédito, III, Lisboa, 1992, pag. 170) .

Repare-se que o art. 32º, §1º, a LULL, é claro no sentido de referir que o "dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada", mas mais ainda, uma vez que, como se disse, responde mesmo que a obrigação que garantiu seja nula por razão que não seja um vício de forma (art. 32º, §2º, LULL) .

No aval e nas disposições que o regulam, e para além do princípio da equiparação consagrado no art. 32º, §1º, LULL, tem ainda de ser assinalado e sublinhado, o princípio da acessoriedade (visível, na parte final do art. 32º, §2º, LULL), do qual ressalta "o carácter restrito, por meramente formal, (...da) «limitada dependência» da obrigação do avalista relativamente à do avalizado" (Assento de 28/03/1995, relatado por Oliveira Branquinho, DR I-A, de 20 de Maio de 1995) .

Para além disso, o embargante também confessa que subscreveu o respetivo pacto de preenchimento.
Sobre o preenchimento dessa livrança nos termos do pacto de preenchimento, apenas nos limitamos a subscrever na íntegra a seguinte jurisprudência que retrata a manifesta improcedência da exceção invocada pelo executado/embargante: Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/12/ 06 (in www.dgsi.pt), "A exceção de preenchimento abusivo, como exceção do direito material, que é, deve ser alegada e provada pelo executado, por força do nº 2 do artigo 342º da lei civil” (cf., "inter alia" o Acórdão do STJ de 28 de Julho de 1992 - BMJ 219-235, P° 3980/01-7; o de 6 de Abril de 2000 - P° 4800 - 2 e de 10 de Janeiro de 2002 e Prof. Ferrer Correia in "Lições de Direito Comercial", 1994, 484). Acórdão Uniformizador de Jurisprudência deste Supremo Tribunal, de 14 de Maio de 1996: "Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando que recai o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua observância" (D.R. de 11 de Julho de 1996), nada obstando, antes aconselhando, a que se aceite como válido para as letras e livranças (Ac. da Rel. de Guimarães de Fevereiro de 2010, proferido nos autos de Apelação nº 4541/07.OYYLSB-B.G1). "Quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com as cláusulas convencionadas entre ambos, em jeito de delegação de confiança, incumbindo ao emitente a alegação e a prova do facto impeditivo do seu preenchimento abusivo" (Ac. do STJ de 27-05-2003, Revista nº 4728/03 - 7ª Secção, Salvador da Costa, Relator, Secção Cível do STJ, Maio de 2003, in http://www.stj.pt). "tendo a livrança sido entregue em branco, só com as assinaturas da subscritora e dos avalistas... presume-se que essa entrega envolve autorização para o seu preenchimento por aquele que a recebe" - Ac. Da Rel. do Porto de 01/10/98, in http://www.come.to/trp.pt/). “É indiferente que o avalista tenha dado ou não o seu consentimento ao preenchimento da livrança. Com efeito, esse acordo apenas diz respeito ao portador da livrança e ao seu subscritor, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre estes, mas apenas sujeito da relação subjacente à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos” (Ac.s do STJ de 02.12.2008, nº 08A3600; de 11.2.03, proc. 02A4555 e de 11.12.03, proc. 03A3529, todos alojados in www.dgsi.pt).
Por sua vez, pode ler-se no douto Ac. TRC datado de 18-12-2013, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/250b02eca8be402e80257c61003e5d25?OpenDocument. que “para se demonstrar o preenchimento abusivo, tem que se demonstrar, (1.º) a existência de um acordo e (2.º) que o tomador da livrança, ao preenche-la, desrespeitou tal acordo”.
Neste cotexto jurisprudencial, considerando que o embargante limitou-se a invocar genericamente o abuso no preenchimento da livrança, sem, contudo, concretizar onde está a incorreção no preenchimento da livrança nos termos desse pacto de preenchimento, é manifesto que a sua argumentação para se eximir às suas responsabilidades não tem acolhimento.
Sublinhe-se que um dos princípios nucleares do processo civil é o princípio do dispositivo, o qual na sua veste de disponibilidade do objeto do processo, impõe às partes o ónus de alegar os factos e as questões fundamentais que consubstanciam o thema decidendum, ou seja, a alegação constitui o terminus a quo que predetermina o terminus ad quem da decisão da matéria de facto e da consequente pronúncia jurisdicional (vd. João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, p. 132 e seguintes).

Assim, não tendo alegado factos tendentes a demonstrar o preenchimento abusivo da livrança não poderia o Recorrente pretender provar a violação do pacto de preenchimento, conforme bem se considerou na decisão recorrida.
Improcede também aqui a apelação do Embargante.
***
4. Do carácter intuitu personae da livrança em branco e a autorização do seu preenchimento impeditivo da sua transmissão

Entende ainda o Recorrente que a livrança em branco e a autorização do seu preenchimento assumem carácter intuitu personae, que o direito concedido ao Banco A de preencher a livrança segundo a convenção estabelecida devia ter-se por um direito estritamente pessoal, que só se confere em razão de grande confiança pessoal, e que, por isso, não podia ter-se transmitido para a Exequente.

Questiona o Recorrente que a transmissão do estabelecimento para a Exequente tivesse determinado a transmissão da livrança em branco e da respetiva autorização de preenchimento (pacto de preenchimento), considerando que o referido carácter intuitu personae das mesmas deveria ser impeditivo ou limitativo dessa transmissão.

Quid iuris?

O carácter intuitu personae numa relação jurídica caracteriza-se no essencial pela “circunstância de uma relação jurídica ser estabelecida em função da pessoa, ou mais exatamente das qualidades que um dos sujeitos reconhece ao outro sujeito da relação: seriedade, lealdade, crédito, competência, etc., qualidades que se podem reconduzir genericamente à confiança – a qual se reporta em última instância a pessoas humanas, às suas qualidades e comportamentos” (Filipe Cassiano dos Santos, Fusão por incorporação, transmissão de posições jurídicas e relações mercantis intuitu personae, Direito das Sociedades em Revista, Ano 6, Volume 11 (2014) página 43).

Este carácter intuitu personae, assente essencialmente na confiança não se mostra arredado das relações mercantis e pode efetivamente ter um papel de relevo nas empresas, e nas relações pelas mesmas estabelecidas, sendo que em sectores como o financeiro a confiança será fundamental.

No entanto, este carácter já não aparece hoje, e em regra, ligado à pessoa humana (ao sócio, ao gerente, ao administrador…) mas à própria empresa, radicando agora “na imagem e nas qualidades da estrutura e organização e não na do sujeito-pessoa humana (…) e a própria atuação das pessoas humanas na empresa e na sociedade tem como resultado a sua imputação às estruturas de que são parte” (Filipe Cassiano dos Santos, Ob. Cit. página 46).

Assim, a regra será a de que nas relações mercantis atuais em geral não releva o carácter intuitu personae ligado à pessoa mas sim ligado à própria empresa, e em que são as qualidades desta enquanto sujeito no tráfico mercantil que estão na base do estabelecimento das relações e da celebração dos contratos.
No caso concreto temos, por um lado, um contrato de mútuo subjacente à entrega em branco da livrança celebrado entre a Embargante, sociedade por quotas, e o Banco A SA, entidade bancária e, por outro lado, a transmissão dessa livrança e da autorização para o seu preenchimento conjuntamente com a transmissão do mútuo por força do trespasse do estabelecimento comercial. Trata-se sem dúvida de uma situação normal dentro do negócio bancário que a instituição bancária tenha em seu poder livranças em branco e as respetivas autorizações para o seu preenchimento, entregues na altura da realização de operações de financiamento.

A questão que se coloca é se a transmissão do estabelecimento comercial (através do trespasse) determina de per si a transmissão dessas livranças e autorizações de preenchimento, designadamente quando na data da transmissão a livrança ainda não foi completada, o que sucederá no caso concreto (note-se que a Exequente comunicou por carta datada de 30/12/2013 à subscritora da livrança, a remessa da mesma à cobrança bancária pelo valor total de 329.510,22 euros).

Parece-nos ser de reconhecer a natureza pessoal que se estabelece nas relações bancárias onde a questão da confiança, tal como já referimos, assume relevo, em particular nas relações que contendem com créditos e financiamentos.

Conforme se escreve no Acórdão do STJ de 18/11/2008 (disponível em www.dgsi.pt) “entre as partes – banqueiro e cliente – haverá deveres de conduta, decorrentes da boa fé, em articulação com os usos ou os acordos parcelares que venham a celebrar, designadamente deveres de lealdade, com especial incidência sobre a parte profissional, o banqueiro. Como decorre do que já ficou referido, este fica vinculado a deveres de atuação conformes com aquilo que é expectável da parte de um profissional tecnicamente competente, que conhece e domina as regras da ars bancaria, e que deve ter na mira a defesa e o respeito dos interesses do seu cliente. A tutela da confiança é um dos valores fundamentais a ter em conta no desenvolvimento da relação bancária (…) esta especial relação obrigacional complexa, de confiança mútua e dominada pelo intuitus personae, imporá à instituição financeira, mesmo no silêncio do contrato, «padrões profissionais e éticos elevados numa política de “conhece o teu cliente”, traduzidos em deveres de protecção dos legítimos interesses do cliente, em consonância com os ditames da boa fé (art. 762º, n.º 2 do Cód. Civil; arts. 73º e segs. da Lei-Quadro bancária): deveres de diligência e cuidado, deveres de alerta, aviso, advertência e prevenção para certos riscos e sua repartição, deveres de informação, deveres de discrição, sigilo ou segredo profissional, cuja inobservância ou violação poderá pôr em causa a uberrima fides do cliente e o intuitus personae da relação e assim originar a responsabilidade de instituição financeira imprudente ou não diligente”.

Mas esta relação de confiança, estabelecida nas relações bancárias, é impeditiva da transmissão da livrança incompleta acompanhada da autorização do preenchimento para o banco adquirente do estabelecimento, concretamente para a Exequente?

Entendemos que não; nos casos em que a entrega da livrança em branco ocorre por força do contrato de mútuo, e este teve como pressuposto, como garantia do seu pagamento, não só a constituição de hipoteca (cfr. escritura de mútuo e hipoteca outorgada em 16/05/2006 e cláusula décima segunda do documento complementar) mas a entrega da livrança em branco e da autorização do seu preenchimento (cfr. cláusula décima quarta do referido documento complementar e convenção de preenchimento da livrança em causa datada também de 16/05/2016), funcionando a livrança em branco como “caução”, esta (e a respetiva autorização de preenchimento) tornam-se acessórios do contrato subjacente à sua emissão (contrato de mútuo) sendo transmitidos a esse título.

Nestes casos, tendo sido celebrado o contrato de mútuo no pressuposto de que a livrança entregue (em branco e acompanhada da respetiva autorização de preenchimento) garantia o pagamento da quantia mutuada, entendemos que em regra a transmissão do estabelecimento comercial, implicando a transmissão do contrato de mútuo, determinará também a transmissão da livrança e da autorização do seu preenchimento, que acompanham aquele, não fazendo sentido falar aqui do carácter personalíssimo da emissão da livrança e da autorização do seu preenchimento para impedir a sua transmissão quando a sua subscrição e entrega tiveram subjacente o referido contrato.

Podemos ponderar que assim não seja se do próprio contrato ou da autorização de preenchimento ou das circunstâncias concretas subjacentes à subscrição dos mesmos algo resultar em contrário, que permita concluir pelo carácter personalíssimo da emissão da livrança e da autorização do seu preenchimento, e por isso limitativo da sua transmissão, e determinante da extinção daquela aquando do trespasse do estabelecimento.

Mas nada decorre do contrato de mútuo celebrado ou da autorização de preenchimento da livrança em causa que permita retirar tal conclusão, e a Embargante nada alegou nesse sentido, limitando-se de forma genérica e conclusiva a dizer que “não é verdade que tenha ao Banco A consentido o direito - rigorosamente intuitu personae - de caber a outrem o direito de a preencher” e que não era “admissível conceder” o direito de preencher “anonimamente a um funcionário qualquer do Exequente e menos ainda a este, genericamente”, não existindo por isso factos concretos controvertidos a submeter a julgamento.

Improcede, também, nesta parte a apelação, sendo por isso de confirmar, em face de tudo o exposto, a decisão recorrida.

Não obstante a questão da nulidade decorrente da omissão de pronúncia quanto ao carácter intuitu personae da livrança em branco e da autorização do seu preenchimento impeditivo da sua transmissão, questão esta suscitada também na presente apelação, entendemos que o Recorrente decaiu totalmente na sua pretensão pelo que deverá suportar integralmente as custas por a elas ter dado causa (artigo 527º n.º 1 do Código de Processo Civil).
***
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
*
III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
*
Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Guimarães, 5 de abril de 2018

(Eugénia Cunha)
(José Flores)
(Sandra Melo)


1. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 03/06/2007, processo: 7916/2006-7, disponível em www.dgsi.pt
2. Em Acórdão proferido a 02/09/2017, no âmbito do processo n.º 1136/14.6T8VCT-A.G1, disponível em www.dgsi.pt
3. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 02/09/2017, no âmbito do processo 1136/14.6T8VCT-A.G1, disponível em www.dgsi.pt
4. Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7ª ed., págs. 78 e 79
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2010, Processo: 1213-A/2001.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt