Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
226/19.3T8VFL.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ACÇÃO CONSTITUTIVA
INTERESSE EM AGIR
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A circunstância de o cidadão, nos termos do disposto no artigo 116.º do Código do Registo Predial, ter a possibilidade de se socorrer da escritura de justificação notarial ou do processo de justificação, não é sinónimo de que ele está, sem mais, impedido de em primeira linha recorrer a juízo.
É constitutiva a ação declarativa em que os autores sustentam que cada um deles adquiriu por usucapião o direito de propriedade de uma concreta "parcela" de um imóvel que se encontra registado na sua totalidade como pertencendo em ¼ a autores e réus, dado que a procedência dos seus pedidos origina uma alteração do estado jurídico da coisa e da respetiva descrição predial; onde hoje há apenas um imóvel passará a haver três, por força da desanexação de duas partes do primitivo bem.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
A. C., sua mulher C. M. e X, Comércio de Produtos Cosméticos L.da instauraram a presente ação declarativa, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Flor, contra L. G., seu marido A. J., herança aberta por óbito de A. L., A. M., P. S. e seu marido M. S., pedindo que se declare:

"1 Que todo o prédio a que corresponde o artigo atual matricial ....º e que teve origem no artigo ....º da anterior freguesia de Vila Flor e descrito no supra artigo 1.º, não tem a área de 12.250 m², mas sim de 15.840 m².
2 Que os Autores A. C. e esposa C. M. não são compossuidores, nem comproprietários de um quarto indiviso do referido prédio rústico, que tem a seguinte discrição matricial; conforme artigo 1.º: "Terra para trigo com cinco oliveiras, 9 figueiras e 3 amendoeiras, com a área ainda segundo a matriz de 12.250 m², sito na ..., a confrontar de norte com A. B., sul Estrada, nascente F. F., Herdeiros e poente L. C., e está inscrito na respetiva matriz, pela União de Freguesias de ... e ...., Município de Vila Flor, sob o atual artigo ....º e que teve origem no artigo ....º, da anterior freguesia de Vila Flor, e está descrito na Conservatória do registo Predial de Vila Flor, sob a ficha n.º …/140994", mas sim os únicos donos, possuidores e proprietários, de um prédio rústico constituído por terra de cultivo, com oliveiras, árvores de fruto e horta, com a área de 4.603 m², sito no lugar de ..., da União de Freguesias de ... e ...., Município de Vila Flor, a confrontar pelo norte com A. J., sul com estrada nacional, nascente com X Comércio de Produtos Cosméticos, Lda. e poente com L. C., de acordo com a facticidade que no texto se alegara.
3 Do mesmo jeito, declarar-se que a Autora X Comércio de Produtos Cosméticos, Lda., não é compossuidora, nem comproprietária da quarta parte indivisa do mesmo prédio rústico descrito no artigo 1.º da petição, mas sim, a única dona e possuidora de um prédio, rústico constituído por terra de cultivo, com oliveiras e árvores de fruto, com a área de 4.230 m², sito no Lugar da ..., União de Freguesias de ... e .... e Município de Vila Flor, a confrontar pelo norte com herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A. L., sul com Estrada nacional, nascente com F. F. Herd. e poente com A. C., de acordo com a facticidade que no texto se alegara.
4 E em consequência, dar-se sem efeito o artigo matricial ....º que teve origem no artigo ....º, no que a estes dois prédios autónomos respeita.
5 Cancelando-se o registo predial de ¼ constante da ficha …/19940914, a fim de se fazer novo registo respeitante aos ora dois prédios autónomos, ou retificar-se aquele, em conformidade.
6 Sendo todos os demandados condenados a tudo isto reconhecer."

Alegaram, em síntese, que o prédio rústico inscrito na matriz sob o atual artigo ....º, que teve origem no artigo ....º da anterior freguesia de Vila Flor e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Flor, sob a ficha n.º …/19940914, e que está inscrito na matriz em quatro partes iguais, sendo ¼ em nome do primeiro autor, ¼ em nome de A. J., ¼ em nome da segunda autora e ¼ em nome de A. L..
Os herdeiros de E. N., anterior do dono do imóvel, "fizeram, verbalmente, a divisão do dito prédio" em quatro partes e "todos eles, após dividirem e demarcarem as partes que lhes ficaram a pertencer (…), entraram na posse, cada um, da sua parte, guardando-a, lavrando-a, cultivando-a, limpando-a, plantando na mesma árvores de fruto e vinha, na mesma semeando outros produtos agrícolas, que recolhiam e consumiam em proveito próprio, vendendo os excedentes, cujos preços das vendas, revertiam a seu favor, que gastavam em tudo o que necessitavam, pagando, inclusivamente, o imposto predial ao Estado".
E, "por força do fenómeno sucessório, acessão ou união de posses, por aquela via e usucapião, as frações correspondentes às quartas partes, indivisas daquele prédio, deram origem a propriedades perfeitas, seja, a quatro prédios autónomos", pelo que presentemente "cada um dos Autores (aliás, também os demandados) não é dono, nem compossuidor, nem comproprietário na proporção de um quarto indiviso do prédio descrito (…), mas sim possuidor, dono e legítimo proprietário de um prédio autónomo, a que aquela fração conduziu pelo decurso de tempo, seja, os Autores A. C. e mulher C. M., são donos de um prédio rústico autónomo constituído por terra de cultivo, com oliveiras, árvores de fruto e horta, com a área de 4.603 m², sito no lugar da ..., União de Freguesias de ... e ...., Município de Vila Flor, a confrontar pelo norte com A. J., sul com Estrada Nacional, nascente com X Comércio de Produtos Cosméticos, Lda. e poente com L. C., assim como a Autora X Comércio de Produtos Cosméticos, Lda. não é dona, nem compossuidora, nem comproprietária de um quarto indiviso do mesmo artigo descrito no artigo 1.º da petição, mas sim dona, possuidora e proprietária de um prédio rústico, autónomo, constituído por terra de cultivo, com oliveiras, árvores de fruto, com a área de 4.230 m², sito no Lugar da ..., União de Freguesia de ... e ...., Município de Vila Flor, a confrontar pelo norte com herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A. L., sul com Estrada Nacional, nascente com F. F. Herdos. e poente com A. C.."
A ré A. M. contestou afirmando que há um "manifesto o erro na forma do processo", impugnado grande parte dos factos que figuram na petição inicial e dizendo que "há já mais de 30 anos, ininterruptamente, que o prédio em questão é retido e fruído pela R. e antepossuidores à vista de toda a gente e com o conhecimento da generalidade dos vizinhos, sem oposição de ninguém, convencida, desde sempre, que exerce direito próprio e ignorando, igualmente desde sempre, que lesa qualquer direito alheio" e que "jamais existiram quaisquer dúvidas, relativamente às demarcações das parcelas, pois todos os proprietários conhecem inteiramente qual a sua proporção e respetivas estremas".
Os restantes réus não contestaram.

Foi proferido despacho saneador a sentença em que se decidiu:
"Declarar a exceção dilatória de falta de interesse em agir dos autores e, em consequência, absolver os réus da instância."

Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:

1 – O prédio rústico inscrito pela União de Freguesias de ... e ...., concelho de Vila Flor sob o atual artigo ....º e que teve origem no artigo ....º do antiga freguesia de Vila Flor constituindo por Terra de trigo com cinco oliveiras, 9 figueiras e 3 amendoeiras, com a área, segundo a matriz de 12.250 m2, sito na Pereira da Anta, a confrontar do norte com A. B., sul Estrada, nascente F. F. Herdeiro e poente L. C. fora pertença dum tal E. N. que também usava e era conhecido por E. S. e mulher M. G., que também usava M. G., antigos donos do mesmo prédio, que faleceram, aquele em 09/05/1959 e esta em 08/01/1965.
2 – Logo após os seus decessos, o dito prédio fora dividido em quatro partes, pelos seguintes seus filhos e herdeiros:
a) F. S., casado na separação de bens com M. O..
b) A. P. ou A. P., casada com J. R. que também usava e era conhecido por J. R. e J. R.
c) A. G. que também usava A. G. e mulher M. N. (mãe da referida demandada L. G.).
d) I. S., casada com B. M., e fizeram a demarcação do seguinte modo:
Conforme supra artigo 5.º, os aí referidos filhos herdeiros do dono do prédio único, dito Senhor E. N. ou E. S. e mulher M. G., fizeram, verbalmente, a divisão e demarcação do dito prédio, do seguinte modo:
a) a parte correspondente à letra A, conforme doc. n.º 4, e fls. 3 (prédio por dividir) e fls. 4 (prédio dividido) ficou a pertencer ao herdeiro F. S., casado no regime de separação de bens com M. O. e tem a área de 4.603 m².
b) a parte correspondente à letra B, ficou a pertencer à herdeira A. P. casada com o referido no artigo 5.º, alínea a) J. R. ou J. R. ou J. R. e tem a área de 4.423 m².
c) A parte correspondente à letra C ficou a pertencer ao herdeiro A. G. e mulher M. N. e tem a área de 3.082 m².
d) a parte correspondente à letra D, ficou a pertencer à herdeira I. S. e marido B. M. e tem a área de 3.402 m².
3 – Ficando a pertencer as ditas parcelas, consoante alegado, documentado e no local se pode ver, ficaram assim a confrontar:
(…)
4 – Por morte do F. S. a sua fração que é a letra A do n.º 4, de que foi herdeira a viúva M. C., estava casada com o J. L., registou a sua fração na Conservatória.
5 – Que vendeu ao Autor A. C. conforme escritura feita no dia 25 de novembro de 2002 no Cartório de Vila Flor, conforme doc. 10 que se juntou à petição.
6 – O A. C., registou essa fração na Conservatória do Registo predial, como se vê do doc. 2 junto à petição.
7 – A fração que ficou a pertencer à A. P. e que é a letra B fora vendida por estes a F. D. conforme escritura de 27 de setembro de 1993 no cartório Notarial de Vila Flor, como doc. 11 junto à petição.
8 – O F. D. fizera venda da sua quarta parte a A. N. e mulher L. A., que registaram a aquisição da sua quarta parte conforme doc. n.º 2 junto à petição.
9 – Ficando este, os seus herdeiros, dito marido e filhos V. O. e A. T., registaram a aquisição da sua quota-parte conforme doc. n.º 2 junto à petição, que venderam à Autora X que a Registou na Conservatória, conforme aquele documento.
10 – O Prédio quando era único ao tempo do E. S. e mulher e depois as frações, devidamente delimitadas, cada uma pelos seus herdeiros, e posteriormente pelos seus compradores, foram possuídos, granjeados autonomamente, à vista de toda a gente, pacificamente, sem jamais haver mínima oposição fosse pela banda de quem fosse, retirando-lhes os frutos que consumiam em proveito próprio e do excedente faziam vendam registando inclusive a sua fração na Conservatória do Registo Predial o que resulta de que os Autores recorrentes, adquiriram já pelo titulo de aquisição, já pelo usucapião, o direito de propriedade plena sobre a parcela correspondente à fração.
11 – A demandada A. M., contestou alegando que a forma de processo não era adequada mas sim ação especial de divisão de coisa comum.
12 – Seja, para ela o prédio estava por dividir.
13 – E só em ação de divisão de coisa comum, se podia dividir. Que seria em substância, se a área o permitisse, o que não era possível já que a não tem e a lei não permite o seu fracionamento em parcelas inferiores à unidade de cultura (artigo 27.º do Dec. Lei 73/2009 de 31 de março).
14 – Ou adjudicação ou venda.
15 – Processo especial esse que seria contestado, alegando, precisamente as transmissões alegadas.
16 – Além de terem de se reivindicar as benfeitorias nas frações operadas. Havendo, pois, nessa parte, um conflito de interesses, que só a ação que se propusera pode solucionar. Donde o haver interesse em agir.
17 – Por outro lado, conforme artigo 11.º da contestação, impugnou-se o artigo 3.º da petição (descrição e inscrição matriciais, as confrontações e as áreas) bem como o alegado nos artigos 17.º a 63.º (divisão e partilha, boa fé, violência, posse pública, granjeio, as escrituras de compra e venda que foram feitas, os registos prediais) seja perante a impugnação da matéria compreendida entre os artigos 17.º a 63.º os Autores não são donos, nem da parcela, nem da fração. Havendo também e por esta via, ainda com maior acinte, o interesse em agir. E tanto assim que pediu a absolvição de todos os pedidos, seja, das áreas, que os autores não são comproprietários de todo o prédio, nem proprietário das parcelas e que não se cancele o Registo Predial.
18 – E não é possível recorrer aos meios extrajudiciais, porquanto:
a) Diz-nos o artigo 89.º do Código do Notariado na rubrica: (…).
b) Por sua vez diz-nos o artigo 116.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, para justificação relativa ao trato sucessivo: (…).
c) Ora estando as frações do prédio registadas na Conservatória do registo Predial, seja, uma quarta parte a favor de cada um dos Autores, já existe a primeira inscrição.
d) O n.º 2 do citado artigo 89.º do Código do Notariado diz-nos: (…).
Concluindo-se, pois que pela escritura de justificação notarial, não se consegue que a compropriedade dê origem a propriedade autónoma e perfeita.
19 - No que concerne ao reatamento do trato sucessivo diz-nos o artigo 90.º do Código do Notariado (…).
20 – E diz-nos o n.º 2 referido do artigo 116.º do Código do Registo Predial, sobre o mesmo reatamento do trato sucessivo: (…).
21 – No caso em apreço, o título de aquisição dos autores, ora recorrentes existe, deste o 1.º transmitente e herdeiro do E. S. e mulher até aos recorrentes, como se vê do documento n.º 2 e escrituras juntos à petição.
22 – E diz-nos o n.º 2 do artigo 34.º do Código do Registo Predial: (…).
23 – E o n.º 4 (…).
24 – No caso em apreço o título de aquisição dos Autores existe, assim como já existia nos seus transmitentes desde os herdeiros de E. S. e mulher, e jamais houvera qualquer hiato ou interrupção dos registos.
25 – Pelo que, a nosso ver, o procedimento do reatamento do trato sucessivo, não é, nem resolve o caso em análise aplicável, seja, transformar a compropriedade em propriedade perfeita.
26 – Havendo, pois, interesse em agir.
27 – O qual segundo o acórdão da Relação de Évora 9 de novembro de 2017 (…) consiste na necessidade de usar o processo, exprimindo a necessidade ou situação objetiva de carência de tutela judiciária pela parte do Autor.
28 – Pelo que se verifica uma necessidade justificada, razoável e fundada da propositura da presente ação (…).
29 – Além do mais, perante a contestação apresentada, há uma incerteza relativamente aos direitos alegados pelo Autor.
30 – E esta situação objetiva de incerteza brota de factos exteriores, consistentes, na negação dos factos que os autores alegaram, que a demandada A. M. contestou, conforme artigo 3.º e 17.º a 63.º da sua contestação.
31 – Não se aplicando ao caso sub judice o acórdão citado pela Meritíssima Juiz.
32 – Com efeito, naquele aresto, o prédio que teria dado origem aos lotes, estava, como um todo, descrito na Conservatória do Registo Predial, e não os lotes e não havendo título de transmissão.
33 – No caso dos autos, as frações estão inscritas na matriz e descritas e inscritas na Conservatória do Registo Predial a favor dos respetivos comproprietários, na proporção da quarta parte para cada um.
34 – Além de que, nesse acórdão, não fora oferecida contestação, seja, não foram alegados factos a contestar os daqueles autores, no caso dos autos fora contestada a forma processual, bem como todos os factos que alegados foram na petição, pelos artigos 3.º e 17.º a 63.º da contestação, e no pedido que, de, todos eles, fora pedida a sua absolvição.

Não foram apresentadas contra-alegações.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil (1), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se se verifica a exceção dilatória de falta de interesse em agir dos autores (2).

II
1.º
Na fundamentação da sua decisão a Meritíssima Juiz deixou dito, nomeadamente, que:
«Analisando os pedidos e a causa de pedir alegados pelos autores em momento algum alegam que o direito que pretendem ver declarado está a ser violado ou está na iminência de ser violado pelos réus, concluindo-se assim pela inexistência de uma causa de pedir que integre o pedido de condenação dos réus.
Na verdade, o que os autores pretendem é que o Tribunal declare que os mesmos são titulares de um direito de propriedade único e exclusivo sobre uma determinada parcela de terreno que identificam e delimitam, parcela que alegadamente adquiriram por usucapião.
Assim, dúvidas inexistem que em causa está uma ação de simples apreciação.
É precisamente nas ações de simples apreciação que o interesse processual assume maior relevância. Assim, considerando que, as ações de simples apreciação destinam-se a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto [cfr. artigo 10.º n.º 3 a) do Código de Processo Civil], tem-se sido entendimento pacífico e constante que não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação e, portanto, tem-se defendido que, "nas ações de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave."
(…)
In casu, não estão alegados factos que integrem o interesse em agir dos autores tal como definido supra. Em parte alguma da petição inicial, os autores alegaram factos consubstanciadores desta incerteza objetiva e grave da existência do direito de que se arrogam titulares.
Ademais, sempre se diga que dos factos alegados pelos autores não se assaca a existência de um verdadeiro litígio nem a verificação de um qualquer impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial, razão pela qual, devem os autores, recorrer aos meio extrajudiciais para obterem o título de aquisição do direito de que se arrogam únicos e exclusivos proprietários.
Face ao exposto, é manifesta a falta do interesse em agir por parte dos autores.»

2.º
Como se vê, o tribunal a quo considerou que estamos na presença de uma ação de simples apreciação. Estas são ações em que os autores "visam obter unicamente a declaração da existência (…) de um direito". É certo que "em todas as ações declarativas se procura obter a referida decla­ração do direito. Porém, nas ações de simples apreciação, o autor con­tenta-se com ela. Não pretende que o tribunal vá além dessa declaração. Por isso se emprega o advérbio unicamente. Como facilmente se compreende, a decisão não é exequível. Na verdade, nada há que seja passível de execução" (3).
Contudo, com o devido respeito, considerando os pedidos formulados, afigura-se que estamos, sim, perante uma ação constitutiva, pois nestas "o autor pretende obter, através do tribunal, um efeito jurídico novo que vai alterar a esfera jurídica do réu, independentemente da sua vontade. Este efeito depende da decisão do tribunal, desde que estejam verificados os pressupostos que a condicionam - art.º 10.º, n.º 2, alínea c). Perante o pedido formulado pelo autor, o tribunal, ao proferir a sentença, produz alterações na ordem jurídica, que consistem na constituição, modificação ou extinção de uma relação ou situação jurídica. O novo efeito jurídico pretendido pelo autor não depende da vontade do réu e, por isso, não é requerida a condenação deste. O efeito apenas depende da decisão do tribunal, que a proferirá desde que estejam verificados os pressupostos, como se disse. O efeito jurídico nasce diretamente por via da decisão judicial. Por outras palavras, a sentença cria um novo estado jurídico, pela modificação ou extinção do anterior." (4) Com efeito, nestas ações "pretende produzir-se um novo efeito jurídico, seja criando uma relação jurídica nova, seja modificando ou extinguindo uma relação jurídica já existente." (5)
Por outro lado, "usa-se, por vezes, desta linguagem: seja o réu condenado a ver declarar que o autor é seu filho, a ver declarar que não existe a servidão a que se arroga, a ver decretar o divórcio ou a separação, a ver autorizar a constituição da servidão de aqueduto, etc. É claro que esta forma de enunciação do pedido é incorreta. Condenar alguém a ver produzir-se determinado efeito jurídico não tem pés nem cabeça. A condenação só tem razão de ser quando o réu estava obrigado a prestar um facto ou uma coisa e deixou de satisfazer a prestação." (6) Note-se que, se o tribunal declarar "um efeito jurídico novo", o réu fica, evidentemente, por força do caso julgado, obrigado a, em termos de facto, reconhecê-lo, visto que, nesse caso, estará impedido de adotar qualquer conduta que viole o "novo estado jurídico".
Voltando à situação dos autos, regista-se que com esta ação os autores pretendem, essencialmente, o reconhecimento da constituição do direito de propriedade, por usucapião, sobre duas concretas partes de um imóvel que se encontra atualmente registado como uma unidade e pertencendo em compropriedade a autores e réus. Pretendem uma alteração do estado jurídico da coisa e da respetiva descrição predial; onde hoje há apenas um imóvel passará a haver três, por força da desanexação de duas partes do primitivo bem.

3.º
À luz da causa de pedir apresentada pelos autores, temos um imóvel que se encontra registado como pertencendo em compropriedade a autores e réus, cabendo a cada um deles uma quota de ¼.
Mas, os autores dizem-nos que isso, quanto a eles, não corresponde à realidade, dado que, aquando das partilhas realizadas por óbito de E. N. e de sua mulher M. G., a quem o imóvel pertencia no seu todo, este foi dividido de facto, pelos seus herdeiros, em quatro partes. Estes herdeiros, "após dividirem e demarcarem as partes que lhes ficaram a pertencer, (…) de acordo com a quota-parte de cada um, o que aconteceu logo após o falecimento de (…) E. N. (…) e M. G., cujos decessos ocorreram, como se disse e respetivamente, em 09/05/1959 e 08/01/1965, entraram na posse, cada um, da sua parte, guardando-a, lavrando-a, cultivando-a, limpando-a, plantando na mesma árvores de fruto e vinha, na mesma semeando outros produtos agrícolas, que recolhiam e consumiam em proveito próprio, vendendo os excedentes, cujos preços das vendas, revertiam a seu favor, que gastavam em tudo o que necessitavam, pagando, inclusivamente, o imposto predial ao Estado, após o inscreverem cada um na matriz em seu nome na proporção de ¼" (7). "Posses essas que sempre foram de boa-fé, louvadas na divisão e partilha entre irmãos, pacifica, seja, sem o mínimo de violência, pública, seja, à vista uns dos outros e sem jamais qualquer um deles se ter oposto, quer expressa, quer tacitamente àquelas divisões, fabricos e granjeios, à vista de todos os vizinhos, designadamente dos confinantes, não deduzindo estes também a menor oposição, pois que nenhum prejuízo sofreram, nem poderiam sofrer com tais divisões, factos possessórios ditos, que praticados e exercidos foram, desde os decessos de seus pais, em continuação dos mesmos, seja, há mais de 50 e 60 anos, o que tudo fora feito ininterruptamente, quer, por si, quer por seus herdeiros ou transmissários que lhes vieram a suceder e sempre todos eles, de boa-fé e conscientes de que usavam e possuíam, coisa própria, sem prejudicarem fosse quem fosse." (8)
Em novembro de 2002 o autor adquiriu uma dessas "parcelas" e "logo após a compra, deram continuidade aos mesmos factos, de seus antecessores, lavrando a parcela, agricultando-a, fabricando as videiras e recolhendo as uvas que transformavam em vinho, plantando árvores de fruto, colhendo-lhe os frutos que consumiam em seu proveito, plantando legumes e hortaliças e tudo o mais que essa parcela produz, tudo consumindo em seu único proveito, inscrevendo-a na matriz em seu nome como 1/4, pagando o respetivo imposto, seja, praticando na mesma todos os atos e factos de posse, como fazem os verdadeiros proprietários, como já o faziam os seus antecessores, e dentro do mesmo circunstancialismo em que eles o faziam" (9).
E em junho de 2002 a autora comprou uma outra "parcela" e "logo após a compra entrou na posse daquela parcela, nela praticando os atos de posse que já vinham sendo praticados pelos anteriores proprietários e transmitentes e dentro do mesmo circunstancialismo, seja pelo E. S. e mulher M. G., de todo o prédio, pelos seus sucessores, cada um, na sua parcela e pelos subsequentes proprietários, conforme supra artigos 4º, 16º, 17º, 29º, 31º, 32º e 34º, plantando no mesmo, além doutras árvores, oliveiras." (10)
Assim, os autores sustentam que cada um deles é proprietário de uma concreta "parcela" do imóvel e que não são comproprietários, em ¼, da totalidade do prédio, tendo aqueles seus direitos de propriedade sido adquiridos por usucapião.
Neste cenário, consideram os autores que "se verifica uma necessidade justificada, razoável e fundada da propositura da presente ação" (11).
Ora, "o interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte ativa em obter a tutela jurisdicional" (12). E «a utilidade da tutela pode respeitar à utilidade do resultado a obter ("utilitá sostanziale"); nesta situação, o interesse processual só falta se o resultado a obter for, em abstrato, inútil.» (13) "É o interesse em utilizar a arma judiciária - em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio" (14). "Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação - mas não mais do que isso." (15)
É evidente a utilidade e razoabilidade do recurso a juízo por parte dos autores, atendendo ao que alegam e pedem. E sendo assim, à partida, têm interesse em agir.
Contudo, poderá dizer-se, como disse a Meritíssima Juiz, que não há "qualquer impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial, razão pela qual, devem os autores, recorrer aos meio extrajudiciais para obterem o título de aquisição do direito de que se arrogam únicos e exclusivos proprietários", deixando implícita a ideia de que existindo esta alternativa não é possível optar-se, desde logo, pela via judicial.
Neste ponto, atenta a particularidade de nesta lide os dois novos prédios, alegadamente adquiridos por usucapião, serem como que retirados ou destacados de um outro que está registado como sendo um só e pertencendo em compropriedade a todas as partes, não se tem como inquestionável a inexistência de "impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial". Na verdade, do artigo 116.º e seguintes do Código do Registo Predial parece resultar que, quando já "exista inscrição de aquisição", é em relação a todo o imóvel inscrito, e não uma ou mais partes dele, que se reporta o "novo trato sucessivo" fundado na usucapião de que aí se fala.
De qualquer modo, dentro da linha do decidido no Ac. Rel. Lisboa de 5-1-2021 no Proc. 10486/18.1T8LRS.L1-7 (16) e tendo em mente que "a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (…)" (17), julgamos que a circunstância de o cidadão ter a possibilidade de se socorrer da escritura de justificação notarial ou do processo de justificação, a que se refere o artigo 116.º do Código do Registo Predial, não é sinónimo de que ele está, sem mais, impedido de em primeira linha recorrer a juízo. Importa ter presente que, por um lado, pela via judicial se obtém maior proteção e segurança jurídica e que, com o trânsito em julgado da decisão, a questão fica definitivamente resolvida. E, por outro, deve ter-se em consideração que a escolha em primeiro lugar da via extrajudicial não significa que fica garantido que não haverá a necessidade de uma intervenção dos tribunais; que se assegura que os tribunais não terão de se ocupar com esta matéria. Veja-se o que acontecerá no caso de surgir uma impugnação da escritura de justificação notarial ou um recurso de uma decisão do notário desfavorável à pretensão do cidadão, designadamente por entender que estes mecanismos não são adequados ao caso concreto que lhe é apresentado (18).
Aqui chegados, conclui-se que os autores têm interesse em agir.

III
Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso, pelo que:
a) revoga-se a decisão recorrida;
b) determina-se o prosseguimento da marcha do processo.

Custas pelos réus.
28 de abril de 2022

António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes



1. São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
2. Cfr. conclusão 16.º, 17.º e 26.º.
3. Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 13.ª Edição, pág. 33.
4. Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 13.ª Edição, pág. 34.
5. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3.ª Edição, pág. 46.
6. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, pág. 365.
7. Cfr. artigo 16.º da petição inicial.
8. Cfr. artigo 17.º da petição inicial.
9. Cfr. artigo 27.º da petição inicial.
10. Cfr. artigo 39.º da petição inicial.
11. Cfr. conclusão 28.ª.
12. Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 366.
13. Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 367.
14. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 79 e 80.
15. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 181.
16. www.gde.mj.pt.
17. Ac. Tribunal Constitucional 141/2019. Neste sentido veja-se também Ac. Tribunal Constitucional 674/2016, Ac. Tribunal Constitucional 251/2017 e Ac. Tribunal Constitucional 401/2017, todos em www.tribunalconstitucional.pt.
18. Cfr. artigos 101.º e 175.º do Código do Notariado.