Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1736/13.1TBBCL-B.G1
Relator: LINA CASTRO BAPTISTA
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO PROVISÓRIO
PARTILHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I –Na lei vigente, está na disponibilidade das partes a estipulação de um regime provisório de utilização da casa de morada de família para o período de pendência da ação de divórcio e/ou separação judicial de pessoas e bens e até à respetiva partilha. Paralelamente, está igualmente na disponibilidade das partes a definição, logo no início do mesmo processo de divórcio e/ou de separação judicial de pessoas e bens, a definição do destino definitivo desta mesma casa de morada de família, em termos amplos e de molde a poder abranger a constituição de um direito real menor sobre a mesma na titularidade de um dos cônjuges, sempre – claro está – sob a chancela do Conservador ou do Juiz.
II - No caso em apreciação, as partes optaram por estabelecer um regime provisório de utilização da casa de morada de família para o período de pendência da ação de divórcio e até à partilha dos bens comuns, o qual foi homologado por sentença. Tal regime provisórioconfigura-se como um acordo obrigacional e temporário, tendo deixado de produzir efeitos com a homologação da partilha dos bens do casal.
III – A obrigação imposta ao cabeça de casal de ter que pagar à Interessada, ex-cônjuge, tornas e o valor de um direito de crédito, não constitui qualquer alteração anormal e imprevisível das circunstâncias e, de qualquer modo, trata-se de uma realidade física e jurídica distinta daquele regime provisório de utilização da casa de morada de família, não consentindo a aplicação do instituto da alteração das circunstâncias.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

Mintentou contra Jo presente Inventário para partilha dos bens pertencentes ao dissolvido casal constituído por si e pelo Requerido.
O processo seguiu os trâmites legais, tendo-se realizado conferência de interessados, no dia 11/12/13, no âmbito da qual as partes acordaram em relacionar adicionalmente três Verbas e declararam não existir acordo quanto à composição dos quinhões, tendo-se passado a licitações dos bens móveis e imóveis.
A Seção de Processos elaborou Mapa Informativo, com indicação de que os bens licitados pelo Cabeça de casal excediam a sua quota em € 51 309,25, tendo ainda de pagar à Interessada M o direito de crédito, no montante de € 44 010,88.
Na sequência de despacho proferido a 11/03/14, cumpriu-se o disposto no art.º 1377.º do Código de Processo Civil (doravante apenas designado por C.P.Civil), na anterior redação.
Com data de 15/01/15, proferiu-se sentença homologatória da partilha.
Entretanto, no âmbito do Processo n.º 2800/10.4TBBCL-A de Incidente de Atribuição da Casa de Morada de Família, e em sede de audiência de julgamento, a aí Requerente M e o aí Requerido J acordaram em pôr termos ao litígio, designadamente nos termos das seguintes cláusulas: “PRIMEIRA: A casa de morada de família é atribuída ao Requerido J até à partilha dos bens comuns do casal, com exceção de um anexo constituído de garagem e um quarto no R/C, que serão atribuídos à Requerente M. SEGUNDA: A título de compensação o Requerido J pagará à Requerente M a quantia de € 100,00 (cem euros). TERCEIRA: A referida quantia mensal será apurada e liquidada por acerto de contas a efetuar na partilha. (…).”
Com data de 16/03/15, proferiu-se despacho a determinar que se procedesse à venda dos bens adjudicados ao Interessado/Cabeça de casal, até onde fosse necessário para o pagamento das tornas por este devidas à Interessada M.
Já em fase executiva, com data de 28/04/15, proferiu-se despacho a determinar a realização da venda por negociação particular.
Através de informação datada de 02/08/16, a sociedade Encarregada da Venda dos bens imóveis constantes da Relação de Bens veio apresentar cópia da escritura de compra e venda e respetivo registo.
Através de informação datada de 01/09/16, a sociedade Encarregada da Venda veio dar conta aos autos de que havia notificado o Sr. J, por carta registada com aviso de receção, e contactado telefonicamente o mesmo no sentido de que este procedesse à entrega dos imóveis e respetivas chaves, mas que o mesmo respondeu que não entregava os imóveis e que não saía dos mesmos.
Com data de 07/09/16, foi proferido despacho a ordenar a notificação pessoal do Executado/Cabeça de casal para informar se procedia à entrega voluntária do imóvel, sob pena de eventual recurso à força pública.
Notificado pessoalmente, o Executado/Cabeça de casal veio apresentar requerimentos aos autos, invocando assistir-lhe motivo legítimo para recusar a entrega do imóvel ao adquirente e pedindo que seja notificado o adquirente, dando-lhe conhecimento do direito que lhe assiste e da legitimidade da sua recusa.
Com data de 18/11/2016, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Apesar dos diversos requerimentos apresentados pelo cabeça-de-casal afigura-se-nos que in casu não tem aplicabilidade o disposto no art.º 1311.º do CC uma vez que o imóvel já foi vendido não sendo este proprietário do mesmo. Acresce que o direito que o mesmo se arroga só teria lugar até à partilha que já ocorreu. Assim, atenta a sua oposição e resistência à entrega do imóvel vendido, e ao teor de fls. 288 e ss., ao abrigo do disposto no art.º 757.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi art.º 861.º, n.º 1, e art.º 828.º do Código de Processo Civil (CPC) defere-se à solicitação do auxílio das forças policiais para entrega do imóvel aos adquirentes. Porém, deverá ser atentado ao que dispõe o n.º 6 do art.º 861.º que remete para os n.º 3 a 5 do art.º 863.º DN. Notifique.”
Com data de 23/11/16, a Guarda Nacional Republicana veio informar nos autos que, no antecedente dia, o Executado/cabeça de casal abandonou a residência e entregou as chaves ao Encarregado da Venda.
Inconformado com esta decisão, o Interessado/Cabeça de casalJoaquim Sousa interpôs o presente recurso, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
1. Andou mal o tribunal a quo por vários motivos: não só violou a lei, proferindo um despacho nulo, não fundamentado, com obscuridades e contradições, interpretando incorretamente o art.º 1311º, n.º 2 CC, como julgou erradamente não verificado o direito invocado pelo recorrente, sem se pronunciar devidamente sobre tanto, e deferindo, também sem qualquer fundamento factual ou legal, o auxílio das forças policiais para entrega do imóvel;
2. Em 22 de Setembro último, no decurso destes autos, foi o requerente notificado, mediante contacto pessoal da GNR, para informar se procedia à entrega voluntária do imóvel, seu domicílio, sob pena de eventual recurso à força pública;
3. Desde logo, o requerente informou o tribunal, em 26 de setembro, que entregaria o imóvel voluntariamente, sempre com integral reconhecimento do direito de propriedade do comprador; contudo, entendia – e entende - ter determinados direitos que o legitimam a habitar e a permanecer no local, direitos esses oponíveis ao comprador do imóvel e que obstavam a que este possa requerer a sua entrega, nos termos, entre mais, dos art.º 1311º, n.º 2, 1484º e 1485º, todos do Código Civil;
4. Já em 10 de outubro, sem resposta do tribunal à sua pretensão, invocou novamente o direito de habitação sobre o imóvel, explanando e desenvolvendo o porquê da sua existência e manutenção, requerendo outra vez que o comprador fosse disso notificado, não tendo existido essa notificação;
5. Em 07 de novembro, ainda sem resposta à sua pretensão, e em novo requerimento, o recorrente voltou a invocar o seu direito, sem prejuízo dos do comprador, solicitando que este fosse notificado de tanto, o que, idem, não aconteceu;
6. Em 21 de novembro, foi o recorrente notificado do despacho do tribunal a quo, decidindo que não tem aplicabilidade ao caso o direito que este se arroga ter, deferindo, para entrega do imóvel, o auxílio das forças policiais, atentando-se ao disposto nos arts. 861º, n.º 6 e 863º, n.ºs 3 a 5 do Código de Processo Civil, para o que foram notificadas as entidades devidas;
7. A decisão em crise não foi devidamente fundamentada, nem de facto nem de direito, carecendo de uma devida sustentação;
8. O tribunal a quo fez uma errónea interpretação do alegado pelo recorrente e das disposições legais invocadas, proferindo a decisão recorrida sem fundamentação;
9. De tal forma que o processo lógico que permitiria ao tribunal chegar àquela decisão se mostra vazio e inquinado por uma errada interpretação da lei;
10. Este preceito invocado – art.º. 1311., n.º 2 CC -, em articulação com outros, existe para defesa dos direitos de quem não é proprietário contra quem o é, e não no sentido apontado na decisão recorrida;
11. Para além de assentar num pressuposto legal errado, o despacho carece de fundamentação e os seus fundamentos estão em oposição com o que foi prolatado;
12. Por outro lado, não nos parece suficientemente fundamentada a parte do despacho que dispõe que “Acresce que o direito que o mesmo se arroga só teria lugar até à partilha que já ocorreu.”;
13. Também por ausência de fundamentação de facto e de direito, só por si, mesmo não se considerando a invocação factual e legal levada aos autos pelo recorrente e que não foi, sequer, apreciada;
14. O recorrente invocou factos, alguns novos, outros já constantes dos autos, que permitem a manutenção do direito de habitação que alega, mas que não foram levados em conta pelo tribunal a quo, não tendo havido pronúncia sobre eles;
15. A segunda parte do despacho, autorizando o auxílio das forças policiais para entrega do imóvel aos adquirentes, é de absoluta vacuidade quanto à fundamentação de facto e assenta em pressupostos inexistentes ou, pelo menos, sobre os quais não existe prova;
16. Tendo havido, como ainda há, oposição à entrega do imóvel vendido por parte do recorrente – no sentido de invocar e fazer valer os seus direitos -, o que nunca existiu da sua parte foi qualquer resistência;
17. O despacho proferido falha rotundamente na fundamentação, desconsiderando tudo o que o recorrente alegou, defendendo que entregaria voluntariamente o imóvel no caso de não ver reconhecido o direito que invoca, uma vez esgotados os meios jurisdicionais de que dispõe para esse efeito;
18. São factos assentes nos autos a idade do recorrente (76 anos), os problemas de saúde de que padece (Parkinsonismo e do foro cardíaco) e as carências económicas que lhe são conhecidas, bem como que não tem outro imóvel para onde possa mudar o seu domicílio, o que não foi apreciado neste particular;
19. O tribunal apenas valorizou o que foi sendo alegado pelo encarregado de venda e pelos compradores, sem prova, não dando cumprimento efetivo ao contraditório e decidindo sem fundamentar, de facto, o sentido da decisão tomada;
20. A parte final do despacho (“Porém, deverá ser atentado ao que dispõe o n.º 6 do art.º 861.º que remete para os n.ºs 3 a 5 do art.º 863.º”), referente à necessidade de notificação de determinadas entidades previamente à concretização efetiva de entrega de imóvel que seja casa de habitação do executado (devidamente adaptado ao caso), volta a padecer de nulidade;
21. O tribunal a quo percebeu que o aqui recorrente ficaria despojado da sua única habitação e domicílio e que o seu realojamento revestiria sérias dificuldades.
22. Isto, contudo, contradiz o raciocínio lógico anteriormente seguido, pois que, quanto à questão da entrega do imóvel, o tribunal entendeu que o recorrente não tinha o direito invocado e que ofereceu resistência, não se pronunciando sobre o que este alegou, nem sobre factos que já faziam parte do processo, ao passo que nesta parte, para decidir como fez, teve que considerar matéria que permitiu concluir pela séria dificuldade no realojamento;
23. Não foi delimitado no despacho o seu tempo de aplicação, isto é, quando deveria cumprir-se o decidido;
24. Isto levou a que, apesar de o despacho ter data de elaboração de 18 de novembro, com notificação ao recorrente em 21 de Novembro, tenha sido imediata e diligentemente cumprido logo no dia 22 de Novembro, de manhã cedo, pela Guarda Nacional Republicana, na companhia do encarregado de venda, sem respeito pelo trânsito em julgado, pelas regras processuais estabelecidas para o efeito, em absoluta desconsideração pelos direitos do recorrente, inclusive direitos constitucionalmente protegidos;
25. Mais ainda, não foi possibilitado às aludidas entidades assistenciais conseguirem, atempadamente, prover por um teto ao recorrente e cumprir-se o seu realojamento, tamanha foi a pressa em retirá-lo do imóvel;
26. O recorrente não se conforma com a decisão proferida, quer pela sua fundamentação, quer pelo sentido que teve;
27. Invoca um direito real de habitação, constituído e advindo de transação judicial, e que, sendo-lhe reconhecido, permite que, nos termos do art. 1311º, n.º 2 CC, legitimamente recuse a restituição do imóvel ao seu proprietário;
28. Alegou esse direito, juntando documento comprovativo da sua aquisição, reforçando, mais tarde, a manutenção desse direito, para lá da data da partilha, por modificação, em resultado de alteração superveniente das circunstâncias em que tinha sido fundada a decisão de contratar, nomeadamente pela decisão judicial que o condenou a pagar à sua ex-cônjuge a quantia de € 41.073,97;
29. À data da transação o recorrente estava plenamente convencido que, em partilha futura, anunciada naquele acordo, receberia um montante semelhante, pelo menos, ao que a interessada M também receberia, o que veio a ser totalmente alterado com aquela condenação;
30. Se o recorrente tivesse alguma ideia de que tal se pudesse verificar, não teria acordado na transação, ou, pelo menos, não o teria feito naqueles termos, não acordando na questão de a atribuição da casa apenas vigorar até à partilha dos bens comuns do casal;
31. Trata-se de uma alteração anormal, que afeta gravemente os princípios da boa fé, não estando a coberto dos riscos próprios do contrato, e que, nos termos do Art. 437º CC, confere direito ao recorrente à sua modificação;
32. O tribunal a quo não se pronunciou sobre tais questões, mas antes proferiu uma decisão infundamentada, confundindo o sentido da norma do art. 1311º, n.º 2 CC;
33. Os argumentos de facto e de direito mereciam decisão do tribunal de reconhecimento do direito de habitação do recorrente e da legitimidade da sua recusa (não resistência, note-se) em proceder à sua entrega;
34. A decisão proferida violou os Arts. 437º, 1248º, 1311º, n.º 2, 1476º, n.º 1, 1484º, 1485º e 1490º, todos do CC, os Arts. 607º, n.ºs 3 e 4, 608º, n.º 2, 611º, n.º 1, (e, a contrario, por verificação do Art. 615º, n.º 1, al. b), c) e d)), 861º, n.º 6 e 863º, n.ºs 3 a 5, todos do Código de Processo Civil e ainda os Arts. 1º, 2º, 3º, n.ºs 2 e 3, 9º, al. b), 12º, n.º 1, 13º, 16º, 17º, 18º, 20º, n.ºs 1, 3 e 5, 21º, 34º, n.ºs 1 e 2, 65º, n.º1 e 72º, n.º1, todos da Constituição da República Portuguesa.
A Interessada Mcontra-alegou, alegando em síntese que:
a) É manifesto o propósito do recorrente em protelar, ad iternum, os presentes autos – e máxime, legitimo seria se razão lhe assistisse, não sendo, manifestamente o caso.
b) Quanto à invocada nulidade do despacho proferido, a mesma deverá improceder, porquanto o mesmo encontra-se devidamente fundamentado – a (devida) fundamentação das decisões não se mede pelo numero de páginas, linhas ou palavras, mas sim pelos fundamentos de facto e de direito aí constantes (ainda que de forma concisa).
c) O recorrente não é titular de um direito real de habitação sobre o imóvel já adjudicado nos presentes.
d) Do acordo de transação junto pelo recorrente aos autos, consta que “A casa de morada de família é atribuída ao Requerido J (…) até à partilha dos bens do casal (…)”
e) Ainda que admitamos, com algumas reservas, que atribuição da casa de morada de família (até à realização da partilha) possa ser juridicamente enquadrável como um direito real de gozo, o certo é que só o seria até realização da daquela.
f) No âmbito do presente inventário, não tendo sido possível a obtenção de acordo na conferência de interessados, prosseguiu-se para licitações, sendo o referido imóvel licitado, também pelo recorrente, que ofereceu o último lance – tendo, aí sim, adquirido a propriedade plena do imóvel.
g) Alega o recorrente que o alegado direito (real) saiu reforçado “ mais tarde, (…)para lá da partilha, por modificação, em resultado de alteração superveniente das circunstâncias em que tinha sido fundada a decisão de contratar, nomeadamente pela decisão judicial que condenou o arguido a pagar à sua ex-cônjuge a quantia de € 41.073,97.”
h) É destituído de qualquer fundamento o alegado pelo recorrente, que alega alteração/modificação das circunstâncias – a condenação do mesmo a indemnizar a ex- cônjuge (por danos morais sofridos, numa quantia de € 41.073,97. No entender do recorrente, esta condenação legitima o estender do referido direito para além da partilha.
O Tribunal Recorrido pronunciou-se sobre a nulidade suscitada, indeferindo-a.
Admitiu-se o presente recurso como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
o Nulidade da decisão recorrida por falta de falta de fundamentação e contradições.
o Recusa de entrega do imóvel por virtude de o Recorrente beneficiar de um direito real de habitação.
o Aplicação do instituto da alteração das circunstâncias.

*
III – FUNDAMENTAÇÃO
Atento o disposto no artigo 607.º (declaração dos factos provados e não provados), aplicável por força do art. 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil(1), importa enunciar todos os factos relevantes para a decisão que se encontram assentes nos autos, o que se passa a fazer:

1) M intentou contra J o presente Inventário para partilha dos bens pertencentes ao dissolvido casal constituído por si e pelo Requerido.
2) O processo seguiu os trâmites legais, tendo-se realizado conferência de interessados, no dia 11/12/13, no âmbito da qual as partes acordaram em relacionar adicionalmente três Verbas, correspondentes a quantias devidas pelo cabeça de casal à Interessada Maria Alice da Costa e Silva resultantes de indemnizações e juros fixados por sentença condenatória em três diversos processos judiciais, nos valores de, respetivamente, € 2 245,48, € 691,43 e € 41 073,97.
3) Ainda no âmbito desta Conferência de Interessados as partes declararam não existir acordo quanto à composição dos quinhões, tendo-se passado a licitações dos bens móveis e imóveis que constituíam a relação de bens, tendo o cabeça de casal licitado as verbas que constituíam os bens imóveis pertencentes ao casal.
4) A Seção de Processos elaborou Mapa Informativo, com indicação de que os bens licitados pelo Cabeça de casal excediam a sua quota em € 51 309,25, tendo ainda de pagar à Interessada M o direito de crédito, no montante de € 44 010,88.
5) Na sequência de despacho proferido a 11/03/14, cumpriu-se o disposto no art.º 1377.º do Código de Processo Civil (na anterior redacção).
6) Com data de 15/01/15, proferiu-se sentença homologatória da partilha.
7) No âmbito do Processo n.º 2800/10.4TBBCL-A de Incidente de Atribuição da Casa de Morada de Família, e em sede de audiência de julgamento levada a cabo em 05/07/12, a aí Requerente M e o aí Requerido J acordaram em pôr termos ao litígio, designadamente nos termos das seguintes cláusulas: “PRIMEIRA: A casa de morada de família é atribuída ao Requerido J até à partilha dos bens comuns do casal, com exceção de um anexo constituído de garagem e um quarto no R/C, que serão atribuídos à Requerente M. SEGUNDA: A título de compensação o Requerido J pagará à Requerente M a quantia de € 100,00 (cem euros). TERCEIRA: A referida quantia mensal será apurada e liquidada por acerto de contas a efetuar na partilha. (…).”, tendo tal acordo sido homologado por sentença.
8) Com data de 16/03/15, proferiu-se despacho com o seguinte teor: “Transitada em julgado que se mostra a sentença homologatória de partilha e atento o requerido a fls. 109 e ss., determino se proceda, nos presentes autos, à venda dos bens adjudicados ao interessado/cabeça de casal J, até onde seja necessário para o pagamento das tornas por este devidas à interessada M – art.º 1378.º, n.º 3 do CPC. Notifique os interessados para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciarem quanto às verbas a vender e à modalidade da venda. DN.”
9) Já em fase executiva, com data de 28/04/15, proferiu-se despacho a determinar a realização da venda por negociação particular dos bens imóveis adjudicados.
10) Através de informação datada de 02/08/16, a sociedade Encarregada da Venda dos bens imóveis constantes da Relação de Bens veio apresentar cópia da escritura de compra e venda e respetivo registo.
11) Do teor da escritura de compra e venda junta resulta que, no dia 14 de julho de 2016, o sócio e gerente da sociedade “B”, na qualidade de encarregado da venda, declarou vender a MA o prédio urbano composto por casa de habitação de um pavimento e logradouro e casa de rés-do-chão e andar e logradouro, situado no lugar de Vila Nova, freguesia de Perelhal, concelho de Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º 1264/Perelhal e nela inscrito e inscrito na matriz urbana sob o art.º...e…, pelos preços de, respetivamente, € 91 494,00 e € 19 006,00.
12) Através de informação datada de 01/09/16, a sociedade Encarregada da Venda veio dar conta aos autos de que havia notificado o Sr. J, por carta registada com aviso de receção, e contactado telefonicamente o mesmo, no sentido de que este procedesse à entrega dos imóveis e respetivas chaves, mas que o mesmo respondeu que não entregava os imóveis e que não saía dos mesmos.
13) Com data de 07/09/16, foi proferido despacho a ordenar a notificação pessoal do Executado/Cabeça de casal para informar se procedia à entrega voluntária do imóvel, sob pena de eventual recurso à força pública.
14) Notificado pessoalmente, o Executado/Cabeça de casal veio apresentar vários requerimentos aos autos, invocando assistir-lhe motivo legítimo para recusar a entrega do imóvel ao adquirente e pedindo que seja notificado o adquirente, dando-lhe conhecimento do direito que lhe assiste e da legitimidade da sua recusa.
15) Com data de 19/10/16, os adquirentes dos acima referidos imóveis vieram apresentar um requerimento nos autos, alegando que o Sr. J se recusa a deixar a casa e anexo e pedindo que o tribunal mande de lá sair o Sr. J com muita urgência.
16) Com data de 07/11/16, o Executado/Cabeça de casal veioapresentar novo requerimento aos autos, de conteúdo idêntico aos acima referidos e pedindo, uma vez mais, que os adquirentes sejam notificados, dando-lhes conhecimento do direito que lhe assiste e da legitimidade da sua recusa.
17) Com data de 18/11/2016, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Apesar dos diversos requerimentos apresentados pelo cabeça-de-casal afigura-se-nos que in casu não tem aplicabilidade o disposto no art.º 1311.º do CC uma vez que o imóvel já foi vendido não sendo este proprietário do mesmo. Acresce que o direito que o mesmo se arroga só teria lugar até à partilha que já ocorreu. Assim, atenta a sua oposição e resistência à entrega do imóvel vendido, e ao teor de fls. 288 e ss., ao abrigo do disposto no art.º 757.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi art.º 861.º, n.º 1, e art.º 828.º do Código de Processo Civil (CPC) defere-se à solicitação do auxílio das forças policiais para entrega do imóvel aos adquirentes. Porém, deverá ser atentado ao que dispõe o n.º 6 do art.º 861.º que remete para os n.º 3 a 5 do art.º 863.º DN. Notifique.”
18) Com data de 23/11/16, a Guarda Nacional Republicana veio informar nos autos que, no antecedente dia, o Executado/cabeça de casal abandonou a residência e entregou as chaves ao Encarregado da Venda.
*
IV— DA NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA
Aprimeira questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com a suscitada nulidade, por falta de fundamentação e contradiçõesda decisão recorrida.
Sustenta o Recorrente que a decisão em crise não foi devidamente fundamentada, nem de facto nem de direito. Especifica que a invocação factual e legal por si levada aos autos não foi apreciada. Também que não foi delimitado no despacho o seu tempo de aplicação. Bem como que foi deferido o auxílio das forças policiais para entrega do imóvel sem qualquer fundamento factual ou legal.
Sustenta, por outro lado, que os fundamentos do despacho estão em oposição com o que foi prolatado. Concretiza que a parte final do despacho (“Porém, deverá ser atentado ao que dispõe o n.º 6 do art.º 861.º que remete para os n.ºs 3 a 5 do art.º 863.º”) contradiz o raciocínio lógico anteriormente seguido, pois que, quanto à questão da entrega do imóvel, o tribunal entendeu que o recorrente não tinha o direito invocado e que ofereceu resistência, ao passo que nesta parte, para decidir como fez, teve que considerar matéria que permitiu concluir pela séria dificuldade no realojamento.
Pronunciando-se, a Recorrida contrapôs que o despacho em causa se encontra devidamente fundamentado, acrescentando que a (devida) fundamentação das decisões não se mede pelo numero de páginas, linhas ou palavras, mas sim pelos fundamentos de facto e de direito aí constantes (ainda que de forma concisa).
Vejamos:
Decorre do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do C.P.Civil que a sentença é nula – entre o mais – quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Tratam-se de vícios de natureza formal e não substancial.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm decidido de forma reiterada e unânime que a falta de fundamentação só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respectivo enquadramento legal.
Por contraponto, a sentença que contenha uma fundamentação deficiente ou incompleta(2) poderá padecer de vários vícios, mas não será, por esta via, nula.
Em concreto, o art. 154.º do C.P.Civil dispõe que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” (n.º 1), acrescentando-se que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (…).” (n.º 2).
O juiz tem, portanto, de indicar e explicar os fundamentos de facto e de direito das decisões que profere.
Este dever de fundamentação não se verifica apenas na sentença, mas ao longo de todo o processo, designadamente na prolação de despachos que não revistam a natureza de despachos de mero expediente.
No entanto, é manifesto que as necessidades de fundamentação dos despachos judiciais são bastante menos exigentes das que se impõem na respetiva sentença final.
Quanto a eventuais contradições, as mesmas somente constituem fundamento de nulidade se e na medida em que tornem a decisão ininteligível – tal como decorre linearmente da própria leitura do preceito.
No caso em apreciação, o despacho recorrido, ainda que sucintamente, indeferiu a pretensão do aqui Recorrente, fundamentando tal decisão na circunstância de, em seu entendimento, não ser aplicável à situação vertente a disposição legal do art.º 1311.º do Código Civil (por o mesmo já ter sido vendido a terceiros) e por o direito de que o mesmo se arroga só ter validade até à partilha (que já ocorreu). Cumulativamente, deferiu a solicitação do auxílio das forças policiais com fundamento na oposição e resistência manifestada por este à entrega do imóvel vendido. Por outro lado, não delimitou no despacho qualquer tempo especial de aplicação por, como resulta evidente do mesmo, ser de aplicação imediata. Trata-se, a nosso ver, de fundamentação lógica, compreensível e completa e, como tal, bastante.
Por outro lado, não se verifica qualquer contradição no teor do mesmo, já que - ao contrário do defendido pelo Recorrente - a circunstância de se ter entendido que não lhe assistia o direito de habitação de que se arrogava não impedia que, eventualmente, se tivesse que lançar mão dos expedientes previstos na lei, caso se verificassem dificuldades concretas no realojamento do Executado.
Sem necessidade de mais considerações, concluímos pela não verificação das suscitadas nulidadesda decisão recorrida.
*
V – RECUSA DE ENTREGA DO IMÓVEL POR VIRTUDE DE O RECORRENTE BENEFICIAR DE UM DIREITO REAL DE HABITAÇÃO

O Recorrente defende beneficiar de um direito real de habitação, constituído e advindo de transação judicial que, sendo-lhe reconhecido, lhe permite que, nos termos do art. 1311.º, n.º 2 do C.Civil, legitimamente recuse a restituição do imóvel ao seu proprietário.
A decisão que invoca como fundamento do seu direito é a constante do Processo n.º 2800/10.4TBBCL-A de Incidente de Atribuição da Casa de Morada de Família, quando, em sede de audiência de julgamento, levada a cabo em 05/07/12, ele, como Requerido, e a aí Requerente, M, acordaram em pôr termos ao litígio, designadamente nos termos das seguintes cláusulas: “PRIMEIRA: A casa de morada de família é atribuída ao Requerido J até à partilha dos bens comuns do casal, com exceção de um anexo constituído de garagem e um quarto no R/C, que serão atribuídos à Requerente M. SEGUNDA: A título de compensação o Requerido J pagará à Requerente M a quantia de € 100,00 (cem euros). TERCEIRA: A referida quantia mensal será apurada e liquidada por acerto de contas a efetuar na partilha. (…).”, tendo tal decisão sido homologada por sentença.
A noção de casa de morada de família está sedimentada na doutrina e jurisprudência.
Assim, Nuno de Salter Cid (in “A atribuição da casa de morada de família” in E foram felizes para sempre…? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio, coordenação de Maria Clara Sottomayor e Maria Teresa Féria de Almedina, 2010, Coimbra Editora, pág. 237) adianta que “(…) é o lugar, escolhido ou fixado nos termos do art.º 1673.º do C.C., que funciona como lugar do cumprimento do dever de coabitação que reciprocamente vincula os cônjuges e como lar dos filhos menores.” No mesmo sentido, Tomé d’Almeida Ramião (in O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Atual, 2011, 3.ª Edição, QuidJuris, pág. 133) afirma que “A casa de morada de família é aquela que constitui a residência permanente dos cônjuges e dos filhos, a sua residência habitual ou principal.” Na jurisprudência, cita-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 03/12/09, tendo por Relatora Isabel Rocha (proferido no Processo n.º 4738/03.2TBVCT.G1 e disponível em www.dgsi.ptna data do presente Acórdão) onde se refere que “A casa de morada de família é o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos filhos, constituindo o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar.”
Claro está que, cessando o vínculo conjugal por divórcio, a casa de morada de família deixa de o ser, em face precisamente da dissolução da união conjugal.Há, nestes casos, que decidir-se o destino a dar a esta, seja por acordo dos cônjuges, seja por decisão do Tribunal.
No regime vigente antes da entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31/10, e nos termos do então art.º 1775.º, n.º 3, do C.Civil, os cônjuges deviam acordar sobre o regime que vigorasse no período da pendência do processo quanto à utilização da casa de morada de família.
Com o novo regime legal, a lei deixa de impor aos cônjuges o dever de apresentarem um acordo sobre a utilização da casa no período da pendência do processo. Resulta do art. 1775.º, n.º 2 do C.Civil e do art, 272.º, n.º 4 do Código do Registo Civil que, se outra coisa não resultar do acordo sobre o destino da casa, deve entender-se que o mesmo tem em vista “tanto o período da vigência do processo como ao período posterior.”
Por referência ao anterior regime legal, explicava Nuno de Salter Cid (in A proteção da casa de morada da família no direito português, 1996, Almedina, pág. 298) “A lei fala em regime de “utilização da casa de morada da família” no período da pendência do processo (cf. art. 1755.º, n.º 3, do CC.) e em “destino da casa de morada da família (art.º 1775.º, n.º 2, do CC e art. 1419.º, n.º 1, alínea f) do C.P.C.), pretendendo, naturalmente, significar com estas diferentes fórmulas coisas diversas: no primeiro caso, trata-se apenas de saber em que termos se vai processar, provisoriamente, a utilização do bem a que tal finalidade está afeto – embora seja certo que o dever de coabitação que reciprocamente vincula os cônjuges só fica suspenso a partir da primeira conferência (art. 1776.º, n.º 3, do C.C.) - ; no segundo, pelo contrário, pretende saber-se a qual dos cônjuges ficará a pertencer, em termos tendencialmente definitivos, o direito que facultava a utilização do bem para a mesma finalidade, ou a qual deles ficará a pertencer um outro direito que lhe permita (e, eventualmente, aos filhos, por inerência) residir naquela que foi a casa de morada da família, tal como esta era constituída antes de dissolvida a relação jurídica matrimonial. (…)”.
Este mesmo autor actualizou a sua doutrina no artigo inicialmente citado (ob. cit. pág. 245), referindo: “E uma vez que a lei atual até permite a possibilidade de os cônjuges procederem à partilha dos bens comuns no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento, sendo a casa um bem comum do casal, e verificados os pressupostos legais da partilha, eles podem estipular no acordo sobre o destino da casa que esta fica “atribuída” àquele a quem é adjudicada na partilha, como podem estabelecer que fica arrendada ou emprestada ao outro, ou que se constitui a favor deste outro direito de habitação ou um usufruto. (…) o direito em causa extinguir-se-á depois se, na partilha subsequente ao divórcio, o bem ficar a pertencer àquele a favor do qual foi constituído.”
É precisamente esteo entendimento que decorre atualmente da lei vigente: está na disponibilidade das partes a estipulação de um regime provisório de utilização da casa de morada de família para o período de pendência da ação de divórcio e/ou separação judicial de pessoas e bens e até à respetiva partilha. Paralelamente, está igualmente na disponibilidade das partes a definição, logo no início do mesmo processo de divórcio e/ou de separação judicial de pessoas e bens, a definição do destino definitivo desta mesma casa de morada de família, em termos amplos e de molde a poder abranger a constituição de um direito real menor sobre a mesma na titularidade de um dos cônjuges. Claro está que, em qualquer uma destas situações, o acordo alcançado entre os cônjuges necessita de ser homologado pelo Conservador ou pelo Juiz.
No caso dos autos, as partes optaram por estabelecer um regime provisório de utilização da casa de morada de família para o período de pendência da ação de divórcio e até à partilha dos bens comuns, o qual foi homologado por sentença.
Como é pacífico, as cláusulas acordadas entre as partes devem ser interpretadas de harmonia com as disposições legais dos art.º 236.º, n.º 1, e 238.º do C.Civil. Isto é, as declarações negociais devem equivaler à vontade real dos declarantes, desde que esta tenha um mínimo de correspondência com o respetivo texto onde estão exaradas.
Ora, a leitura da Ata de Julgamento acima referida é clara e inequívoca, não permitindo qualquer outra interpretação. Um declaratário normal colocado na posição do real declaratário assim concluiria, nos termos e para os fins do citado preceito do art. 236.º, n,º 1, do C.Civil.
Com efeito, as partes fizeram aí consignar que a casa de morada de família é atribuída ao aqui Recorrente “até à partilha dos bens comuns do casal”, repetindo-se, mais à frente, que a quantia devida à Cônjuge mulher a título de compensação seria apurada e liquidada “por acerto de contas a efetuar na partilha.”
Assim sendo, a conclusão necessária é a de que o acordo alcançado entre as partes consistiu tão-só num acordo obrigacional. Este acordo, nos termos igualmente acordados, era temporário e deixou de vigorar com a homologação da partilha dos bens do casal.
Não se pode entender – como pretende o Recorrente – que, por via da celebração do dito acordo em sede de incidente de atribuição da casa de morada de família, se constituiu um direito real de habitação. Nada impedia as partes de acordaram na constituição de um direito real com estas características, mas – como se viu - resulta manifesto que não foi essa a sua vontade.
No entanto, ainda que se entendesse que tal direito real se constituiu neste momento e por esta forma, sempre o mesmo se teria que se ter por extinto. Com efeito, e como refere Nuno de Salter Cid na obra e passagem acima citada, quaisquer eventuais direitos reais menores constituídos sobre a casa de morada de família extinguem-se “depois, se na partilha o bem ficar a pertencer ao cônjuge a favor do qual foram constituídos os direitos.”
Ora, foi precisamente isso que se verificou na situação em análise: no âmbito da Conferência de Interessados as partes declararam não existir acordo quanto à composição dos quinhões e, tendo-se passado a licitações dos bens móveis e imóveis que constituíam a relação de bens, o cabeça de casal (e aqui Recorrente) licitou as verbas que constituíam os bens imóveis pertencentes ao casal.
Dando aqui por reproduzidas as palavras de Luís Manuel Menezes Leitão (in Direitos Reais, 2011, 2ª Edição, Almedina, pág. 251)“(…) no âmbito dos direitos reais, verifica-se a confusão sempre que na mesma pessoa se reúnem as qualidades de titular de um direito real maior e de um direito real menor, o que determina a extinção do direito real menor por já não se justificar a compressão do direito real maior nessa situação.”
*
V – APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

Sustenta ainda o Recorrente que a manutenção do direito que lhe assiste, para lá da data da partilha, tem o seu fundamento em resultado de alteração superveniente das circunstâncias em que tinha sido fundada a decisão de contratar, nomeadamente pela decisão judicial que o condenou a pagar à sua ex-cônjuge a quantia de € 41.073,97.
Concretiza que, à data da transacção, estava plenamente convencido que, em partilha futura, anunciada naquele acordo, receberia um montante semelhante, pelo menos, ao que a interessada M também receberia, o que veio a ser totalmente alterado com aquela condenação. Acrescenta que, se tivesse alguma ideia de que tal se pudesse verificar, não teria acordado na transação, ou, pelo menos, não o teria feito naqueles termos, não acordando na questão da atribuição da casa apenas vigorar até à partilha dos bens comuns do casal.
Defende que se trata de uma alteração anormal, que afeta gravemente os princípios da boa fé, não estando a coberto dos riscos próprios do contrato, e que, nos termos do Art. 437.º doC.Civil, lhe confere direito à sua modificação.
Respondeu a Recorrida, que é destituído de qualquer fundamento o alegado pelo recorrente, que alega alteração/modificação das circunstâncias – a condenação do mesmo a indemnizar a ex- cônjuge (por danos morais sofridos, numa quantia de € 41.073,97.
Em termos gerais, a lei permite, no art. 437.º do C.Civil, que o devedor deixe de cumprir as obrigações contratadas no momento da conclusão do contrato, perante a ocorrência e circunstâncias fácticas supervenientes e imprevisíveis, que não lhe sejam imputáveis.
Os requisitos gerais são a ocorrência de uma alteração anormal e imprevisível de uma circunstância relevante; a existência de danos consideráveis e, como requisito negativo, que os efeitos da alteração não estejam incluídos nos riscos próprios do contrato.
O ponto de equilíbrio haverá que encontrar-se entre - por um lado - a certeza do cumprimento pontual e - por outro - a justiça do caso concreto, sempre à luz do princípio geral da boa fé.
Luís Carvalho Fernandes (in A Teoria da Imprevisão no Direito Civil português", QuidJuris, 2001, pág. 83 e ss.) fala numa ideia de cooperação como princípio ínsito no próprio conceito de obrigação. Explica, em conformidade, que "(...) cada contrato, cada negócio jurídico, visa realizar certo modo de cooperação entre determinados indivíduos, que ele vincula, que justifica que o negócio deixe de produzir os seus efeitos típicos, se factos supervenientes vierem tornar impossível a realização desse mínimo de cooperação que nele se devia definir."
Concluindo-se pela verificação, em concreto, de uma situação de alteração das circunstâncias, a parte lesada poderá, nos termos resultantes do art. 437.º, n.º 1, do C.Civil, dissolvero contrato ou modificá-lo segundo juízos de equidade, consoante os efeitos da alteração das circunstâncias na economia do contrato. O objectivo final será sempre o da reposição dos equilíbrios iniciais do contrato.
Explica, a este propósito, Carvalho Fernandes (in A teoria da Imprevisão no direito civil português, cit., pág. 142) que estamos em face de uma "dissolução" (e não de uma resolução), já que os efeitos da imprevisão só são relevantes e eficazes após o contraente interessado ter declarado que pretendia valer-se dela. Isto é, só produz efeitos para o futuro.
No caso dos autos, tal como ficou já decidido, o acordo homologado judicialmente no incidente de atribuição da casa de morada de família foi um negócio jurídico que produziu efeitos meramente obrigacionais, através do qual estas optaram por estabelecer um regime provisório de utilização da casa de morada de família para o período de pendência da ação de divórcio e até à partilha dos bens comuns.
O aqui Recorrente tinha obrigação de saber que o acordo celebrado quanto à morada de família teria uma vigência transitória.
Além disso, foram os próprios Interessados (Recorrente e Recorrida) quem, no âmbito da conferência de interessados, acordaram em relacionar adicionalmente três Verbas, correspondentes a quantias devidas pelo cabeça de casal à Interessada M resultantes de indemnizações e juros fixados por sentença condenatória em três diversos processos judiciais, nos valores de, respetivamente, € 2 245,48, € 691,43 e € 41 073,97.
Por outro lado, foi opção do próprio Recorrente proceder à licitação das verbas que constituíam os bens imóveis pertencentes ao casal.
Assim, a obrigação imposta ao Recorrente, como cabeça de casal, de ter que pagar à Interessada M tornas no valor de € 51 309,25, bem como o direito de crédito, no montante de € 44 010,88, apenas a este se podem considerar imputáveis.
É, portanto, manifesto não ter ocorrido qualquer alteração anormal e imprevisível das circunstâncias.
Ainda que assim não fosse, esta obrigação imposta ao Recorrente de pagar tornas e o valor dos direitos de crédito nenhuma relação tem com o acordo provisório de utilização da casa de morada de família. São realidades fáticas e jurídicas distintas, o que sempre impediria que o surgimento destas pudesse ter influência no cumprimento ou extinção daquele acordo.
A conclusão final é, sem margem para quaisquer dúvidas, a da total improcedência do presente recurso.

*
VII - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, mantendo a decisão recorrida na sua totalidade.
*
Custas a cargo do Recorrente (art. 527.º do C.P.Civil).
*
Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Guimarães, 25 de maio de 2017

_______________________________
(Lina Castro Baptista)



_______________________________
(Maria de Fátima Almeida Andrade)



_______________________________
(Alexandra Maria Rolim Mendes)

1 - Doravante designado por C.P.Civil.
2 - cf. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 140, Antunes Varela e outros in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 687.