Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
874/20.9GAVNF.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DA ACUSAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- A convolação efetuada na sentença de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, n.º 1, do Código Penal imputado na acusação ao arguido pelo M.P. para a prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, n.º 1, 155º, n.º 1, al. c), por referência ao art. 132º, n.º 2, al. l) pese embora constitua um minus, a mesma não se refere à mesma realidade.
II- Há que ter em consideração a distinção (porque é a própria lei que distingue), entre alteração de factos da incriminação e alteração da qualificação jurídica perante os mesmos factos.
III- No caso a acusação é completamente omissa quanto à consciência (representação e conformação) por parte do arguido da idoneidade (adequação) da ameaça a provocar receio, intranquilidade, independentemente de ter ou não o propósito de a concretizar.
IV- Não temos como não concluir estar-se perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.
V- E constatada esta – modificação dos factos com imputação de um crime diverso – impunha-se o cumprimento do disposto no citado art.359º.
VI- Não tendo tal ocorrido, importa extrair dessa omissão as respetivas consequências, declarando-se nula a sentença recorrida com fundamento no disposto no artigo 379º,nº1, alínea b), do Código de Processo Penal
Decisão Texto Integral:
I. Relatório

1.
Nos presentes autos, com o número 874/20...., que corre termos no Tribunal Judicial ..., Juízo Local Criminal ..., foi proferida sentença em 12/7/2022 que decidiu, para além do mais, absolver o arguido AA da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, n.º 1, do Código Penal e condená-lo pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, n.º 1, 155º, n.º 1, al. c), por referência ao art. 132º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o montante de 600,00 (seiscentos) euros.

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1.Por douta sentença proferida pelo Juízo Local Criminal ..., no Processo n.º 874/20...., o BB decidiu:

1.1. absolver o arguido AA da acusação da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347°, n.º 1, do Código Penal;

1.2. condenar o arguido, AA, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153°, n.º 1, 155°, n.º 1, al. c), por referência ao art. 132°, n.º 2,al.l),do Código Penal, na pena de120(cento e vinte)dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o montante de 600,00 (seiscentos) euros;

1.3. condenar, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo, que fixo em 3 U'sC, e nos demais acréscimos legais que fixo no mínimo legal.
2. Ora, desta decisão recorre o arguido, ora Recorrente, por dela não concordar, tendo o presente Recurso como objeto o teor da douta sentença acima identificada.

3. São duas as questões colocadas pelo Recorrente: da nulidade da sentença1 e da extinção do procedimento criminal2.

4. Da nulidade da sentença 1:

4.1. Ao Recorrente era imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) todos do Código Penal (doravante CP); e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do CP.
4.2. Em sede de audiência de discussão e julgamento foi homologada a desistência de queixa efetuada pelo ofendido, CC, e que foi aceite pelo ora Recorrente e, consequentemente, foi declarado extinto o procedimento criminal instaurado nos autos relativamente ao crime de injúria agravada. Continuou, assim, a lhe ser imputada a prática do crime de resistência e coação sobre funcionário.

4.3. Acontece que, o Recorrente foi absolvido do crime de resistência e coação sobre funcionário, mas  condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. c), por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) do CP, crime este que não lhe era imputado na acusação.
4.4. Salvo devido respeito, não podemos concordar com a douta decisão.

4.5. Como diz a Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) no n.º 5 do artigo 32.º o processo penal tem estrutura acusatória.

4.6. A estrutura acusatória do processo implica, por um lado, a distinção entre instrução, acusação e julgamento, e por outro lado, a vinculação do julgador ao tema do processo que lhe é trazido pelo acusador. O juiz do julgamento só pode pronunciar-se sobre os factos que lhe são trazidos pelo Ministério Público. É nesse sentido que se diz que a estrutura acusatória do processo implica também o princípio da acusação ou o princípio da vinculação temática.

4.7. Assim no iter processuale a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objeto do processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se entende consubstanciarem um crime, estabelecendo assim os limites à investigação do tribunal. É nisto que se traduz o princípio da vinculação temática (cfr. Frederico Isasca in Alteração Substancial de Factos e sua relevância no processo penal português, pág. 54).

4.8. Assim se garante que o arguido não seja surpreendido com novos factos ou novas qualificações jurídicas, com os quais não contava, nem podia contar.

4.9. O objeto do processo tem de manter-se o mesmo durante o iter processuale. Sendo que, é na impossibilidade de ultrapassar o objeto do processo que radica o princípio da vinculação temática.

4.10. Salvo melhor entendimento, entende o Recorrente que a decisão proferida para além de comprometer os princípios supracitados, viola o princípio fundamental do contraditório, bem como as garantias de defesa do arguido, constituindo, por isso, decisão-surpresa.

4.11. O direito ao contraditório tem consagração constitucional no artigo 32.º da CRP e consagração legal no artigo 3.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), sendo a pedra basilar para um processo equitativo e justo.

4.12. Conforme refere Gil Moreira dos Santos in O Direito Processual Penal, 2002, págs. 58 e 59, o princípio do contraditório “tem a ver com o jogo de ataque e resposta em que consiste acção e defesa ao longo do processo, de modo a que […] as partes tenham possibilidade de influir em tudo o que esteja em efectiva ligação com o objecto da causa”.

4.13. O princípio do contraditório no processo penal, pois não se trata de um ónus de contradizer, mas do direito de contradizer. O arguido tem direito a se defender da acusação.

4.14. Em suma, o processo de tipo acusatório “carateriza-se essencialmente por ser uma disputa entre duas partes, a acusação e a defesa, disciplinada e decidida por um terceiro, o juiz ou tribunal, que, ocupando uma situação de independência relativamente ao acusador e ao acusado” não pode nem promover o processo, nem condenar para além da acusação. (Cfr. Germano Marques da Silva in Direito Processual Penal Português, 2013, pág. 367)
4.15. Não obstante, o nosso processo penal aceita desvios ao princípio da estabilidade do objeto do processo desde a acusação ao julgamento nos casos e termos previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP, sem violação dos princípios do acusatório e do contraditório.

4.16. A alteração substancial dos factos (artigo 359.º do CPP) pressupõe uma diferença de identidade, de tempo ou espaço, que transforma o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, e a alteração não substancial (artigo 358.º do CPP) constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforma o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual e sem descaracterizar o quadro factual da acusação e sempre sem relevância para alterar a qualificação penal. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 07..., de 21.03.2007)

4.17. No caso sub judice estamos perante uma alteração da qualificação jurídica no âmbito da alteração não substancial dos factos, pelo que, se aplica o disposto no n.º 3 do artigo 358.º do CPP conjugado com o n.º 1 do mesmo preceito, uma vez que o tribunal a quo alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.

4.18. Sucede que, se se verificar uma alteração da qualificação jurídica, isto é, se no decurso da audiência o tribunal não concordar com a qualificação jurídica vertida na acusação do Ministério Público, a alteração é comunicada ao arguido e é-lhe concedido o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º do CPP). Esta alteração da qualificação deve ser sempre comunicada ao arguido, ainda que ela se demonstre menos penosa para o arguido.

4.19. Na mesma linha defende Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2011, pág. 930) que a comunicação ao arguido da possibilidade da alteração da qualificação jurídica tem lugar durante a audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, antes da decisão da alteração propriamente dita, que se verifica com a sentença. Assim considera porque entende que a comunicação visa permitir ao arguido uma modificação na sua estratégia de defesa, sendo que o contraditório fica cumprido depois e não antes da possibilidade de alteração.
4.20. No seu entender, a comunicação deve ser “precisa, com a indicação exacta da nova qualificação jurídica ou do novo facto. A comunicação deve ser feita ao defensor do arguido, mesmo que se trate de uma qualificação para uma incriminação menos grave.

4.21. Assim, a alteração da qualificação jurídica deve ser admitida desde que observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o CPP regula no artigo 358.º n.º 1 e 3.

4.22. Veja-se a este propósito o entendimento sufragado pelo Acórdão nº 669/05-1, de 10/05/2005 proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (supra transcrito).

4.23. Ora, no caso sub judice, o Recorrente só tomou conhecimento da alteração da qualificação jurídica quando foi notificado da sentença, sendo que sustentou toda a sua defesa num crime de resistência e coação sobre funcionário.

4.24. Mas na verdade, esta alteração da qualificação jurídica, realizada após a audiência de discussão e julgamento, isto é, no momento da decisão, viola as garantias de defesa, na medida em que todas as declarações prestadas pelo arguido sobre o objeto do processo, partiram do pressuposto de uma certa consequência jurídica, que, in casu, acabou por ser outra.

4.25. Ao arguido, de modo a não comprometer os seus direitos de defesa, deve lhe ser concedido um prazo para preparar a sua defesa e, querendo, exercer o contraditório, para não ser surpreendido pela nova qualificação. O que não aconteceu.

4.26. O acórdão do processo nº19/16...., de 22/02/2017, do Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que a falta de comunicação prévia do tribunal a quo da alteração da qualificação jurídica ao arguido para este se pronunciar sobre o novo enquadramento penal dos factos, tem como consequência a nulidade da sentença.

4.27. Por conseguinte, entendemos que, com o não cumprimento da obrigação de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, violou o tribunal a quo o artigo 358.º n.º 1 e 3 do CPP, pelo que, necessariamente nos deparamos com uma nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 379.º n.º 1 b) do CPP.

5. Da extinção do procedimento criminal2:

5.1. Questão diferente é a de se saber se o crime de ameaça agravada, de que foi o Recorrente condenado, é um crime semi-público ou público.

5.2. Conforme referido, ao Recorrente era imputada a prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do CP e foi condenado por um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. c), por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) do CP.

5.3.    No que diz respeito ao crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) todos do CP, os ofendidos DD e EE na fase de inquérito declararam que não desejavam procedimento criminal contra o arguido e o ofendido CC em sede de audiência de discussão e julgamento desistiu da queixa, pelo que, o Tribunal homologou a desistência de queixa, que foi aceite pelo ora Recorrente e, consequentemente, foi declarado extinto o procedimento criminal instaurado nos autos relativamente a este crime, face à natureza particular do crime e reunidos que estão os pressupostos legais.

5.4. Quanto ao crime de ameaça agravada, tem sido entendimento que tal ilícito penal reveste de natureza semi-pública, o que significa que o Recorrente não deveria ser condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, pois que, a desistência da queixa ora apresentada levaria à extinção do procedimento criminal.

5.5. Contudo, não se ignora que alguma jurisprudência dos Tribunais Superiores tem seguido no sentido de considerar que o referido ilícito reveste de natureza pública.
5.6. No entanto, salvo devido respeito por opinião diversa, o Recorrente mantém o entendimento da natureza semi-pública do crime.

5.7. Efetivamente, alinhamos com os argumentos expressos no douto Acórdão nº 335/11...., de 13/11/2013 proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.

5.8. Na mesma linha se pronunciou Pedro Daniel dos Anjos Frias (in Revista Julgar, n.º 10, 2010, pág. 39 a 57) defendendo que “não se vislumbram quaisquer razões de política criminal para não atribuir qualquer relevância à vontade da vítima quando esteja em causa o crime de ameaça punível pela conjugação dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, do Código Penal” porque “as circunstâncias agravantes contidas no artigo
155.º, n.º 1, do Código Penal, não alteram a natureza do crime de ameaça”. (ob. e loc. cit., págs. 56 e 57)

5.9. Mais diz que o artigo 155.º do CP vigente “contém uma arrumação sistemática de várias circunstâncias (novas e velha) que agravam a pena prevista no tipo do artigo 153.º para onde reenvia expressamente”.

5.10. Com efeito, o crime de ameaça possui natureza semi-pública desde a redação originária do CP de 1982, sendo que nenhuma das revisões intercalares do Código Penal alterou essa natureza.
5.11. Na versão atual do CP, o crime de ameaça previsto no artigo 153.º continua a ter a mesma natureza semi-pública.

5.12. Assim, o artigo 155.º do CP constitui um conjunto de circunstâncias que agravam a pena a aplicar ao arguido.
Nãoédefensávelqueoartigo155.ºdoCPconstituaumtipo autónomo relativamente à previsão típica do crime de ameaça do artigo 153.º do CP.

5.13. Destarte, atendendo a tudo o acima exposto, forçoso será considerar que o Recorrente não podia ser condenado pelo crime de ameaça agravada e deveria ter sido declarado extinto o procedimento criminal, após homologação da desistência de queixa (e única) do ofendido CC.
Termos          em       que     deve    ser      concedido provimento ao presente recurso e ser revogada a douta sentença, com as legais consequências, fazendo-se assim JUSTIÇA!

3.
A Exma Procuradora da República na primeira instância veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência.
Quanto à nulidade da sentença, defendeu que a mesma inexiste, porquanto, sendo o crime pelo qual o arguido veio a ser condenado um “minus” em relação aquele que lhe vinha imputado na acusação e encontrando-se descritos na acusação todos os elementos constitutivos do crime de ameaça, não foram postas em causa as garantias de defesa do arguido.
Já quanto à relevância da desistência de queixa e da sua eficácia extintiva do procedimento criminal pelo crime de ameaça agravada, pugna no sentido de que não existindo disposição legal que preveja a necessidade de queixa para o crime em apreço – a remissão feita pelo artigo 155º,nº1, do CPenal para o artigo 153º do mesmo diploma não abrange o seu número 2, antes se cinge, tão só, à previsão do nº1 – quando se verifique a agravação prevista no artigo 155º, o crime de ameaça na forma agravada tem natureza pública.

4.
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso.
Quanto à arguida nulidade da sentença, pugnou no sentido de que a mesma não verifica, na medida em que tendo o recorrente sido notificado de que “ os autos prosseguirão os seus termos relativamente ao crime de ameaça agravada”, optou por não requerer qualquer prazo para a preparação da defesa, nos termos da parte final do nº1, do artigo 358 º do CPP, passando às alegações orais.
No que tange à pretendida extinção do procedimento criminal, considerou ser legalmente irrelevante a desistência de queixa, atenta a natureza pública do crime de ameaça agravada.
  
5.
Cumprido o artigo 417º, nº2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
           
6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al.c), do diploma citado.

II. Fundamentação

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.
Atenta a conformação das conclusões formuladas, são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença por violação do artigo 379º, nº1,al.b), do CPP;
- extincão do procedimento criminal quanto ao crime de ameaça agravada.
 
Começa o recorrente por defender que tendo os autos prosseguido, após a extinção do procedimento criminal no que tange ao crime de injúria agravada, para apuramento da sua responsabilidade criminal quanto ao crime de resistência e coação sobre funcionário e tendo acabado por ser condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, sem que o tribunal tenha dado cumprimento ao estatuído no artigo 358º, nº3 do CPP, face à alteração da qualificação jurídica dos factos na acusação, a sentença recorrida padece da nulidade a que se reporta o artigo 379º,nº1,al.b), do CPP.
Vejamos.
O Código de Processo Penal estabelece, no seu art. 379º, um regime específico das nulidades da sentença.
Assim, nos termos das três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º, quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia.
Acrescenta o número 2, deste mesmo preceito legal, que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º4 do artigo 414.º
A nulidade trazida à liça pelo recorrente é a prevista na alínea b), a qual ocorrerá quando o tribunal “condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º ”.
Atento o disposto no artigo 32º, nº5, da CRP, o princípio da acusação constitui um princípio fundamental do processo penal e beneficia da tutela constitucional, significando, no essencial, que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite de julgamento (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, revista, Coimbra Editora, 1993, pág.205, em anotação ao art.32)».
E já de acordo com os arts.283º, nº3 e 285, nº3, ambos do CPP, a acusação deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis aos mesmos factos.
Como ensina Figueiredo Dias Direito Processual Penal – Coimbra Editora, 1974, pág. 145., "objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). E a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal (…).
Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, facilmente se aprendem quando se pense que ela constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido (…) que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência; e quando se pense também que só assim o Estado pode ter a esperança de realizar os seus interesses de punir só os verdadeiros culpados".
Assim, o conhecimento do juiz fica limitado pelo objeto da acusação e o arguido sabe que é destes factos e apenas deles que se tem que defender.
Mas o nosso processo penal, porque integrado também por um princípio da investigação, admite a possibilidade de perante a sintética narração em que se traduz a descrição dos factos objetivados na acusação, possam ocorrer, ao longo da discussão da causa, mais concretamente da produção dos meios probatórios, alguns factos novos que se traduzem numa alteração dos anteriormente descritos na acusação ou na pronúncia, alteração essa que pode ser uma “alteração não substancial” ou “alteração substancial” desses factos, matéria que está tratada, respetivamente, nos artigos 358º e 359º.
Como ensina o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III, 2ªEd., pág.273, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo”.
Ora, nos termos do art.358.º, n.º 1 « Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.».
Acrescenta-se no n.º 2 que « Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa».
E já no nº3 que «o nº1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».
De acordo com o art.1.º, alínea f), considera-se alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
E constatada esta – modificação dos factos com imputação de um crime diverso ou agravação os limites máximos das sanções aplicáveis - haverá que dar cumprimento ao disposto no art.359º.
A alteração não substancial dos factos, por exclusão, é aquela que, traduzindo-se também numa modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Mas, ainda que se esteja perante uma alteração não substancial dos factos, tal comunicação a que alude o citado art.358º, nº1, apenas se impõe na hipótese de tal alteração revestir “relevo” para a decisão da causa.
Subjacente aos mencionados preceitos (arts.358º e 359º) encontra-se o princípio do contraditório, o qual, na perspetiva do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa, no sentido de que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efetiva possibilidade de ser contestada ou valorada contra o sujeito processual contra o qual aquelas são dirigidas.
E, nessa medida, o arguido tem de ter a oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre essa alteração tomada contra ele.
Trata-se, claro está, do “direito de ser ouvido”, enquanto direito de se dispor de uma efetiva oportunidade processual para se tomar uma posição sobre aquilo que o afeta (Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 330/97, de 17/4/97, e 387/05, de 13/7/05, in www.tribunalconstitucional.pt/tc).
Ora, compulsados os autos, resulta dos mesmos que o arguido vinha acusado da prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º e 184º, por referência ao artigo 132, nº2,al.l), todos do Código Penal e, bem assim, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º,nº1, do mesmo diploma legal.
Mais resulta dos autos que na sessão de audiência de julgamento que teve lugar no dia 28/6/2022, a Mma Juiz declarou extinto o procedimento criminal por efeito da desistência de queixa, no que tange ao mencionado crime de injúria agravada, tendo o respetivo despacho homologatório da desistência ficado a constar da respetiva ata.
Ficou ainda a constar dessa mesma ata, após a Mma Juiz ter ordenado a notificação do despacho acabado de proferir, que “os autos prosseguirão os seus termos relativamente ao crime de ameaça agravada”, tendo de imediato sido concedida a palavra ao Exmo Procurador e ao Exmo Defensor do arguido, para as respetivas alegações orais.
 Antes de mais, importa salientar que tendo este tribunal de recurso procedido à audição da gravação relativa aos atos praticados na mencionada sessão de 28/6, não corresponde à verdade que a Mma Juiz tenha declarado, como ficou a constar da ata, que “os autos prosseguirão os seus termos relativamente ao crime de ameaça agravada”, mas antes que “os autos prosseguirão quanto ao demais crime”.
Deste modo, com exceção do momento das alegações orais do Exmo Procurador da República, altura em que pelo mesmo é defendida a absolvição do arguido do crime de resistência e coação sobre funcionário e a sua condenação no crime de ameaça agravada, em momento algum foi feita referencia à possível condenação do arguido pela prática do crime em que acabou por ser condenado.
Ou seja, o arguido acabou por ser condenado pela prática de um crime pelo qual não vinha acusado, sem que, na verdade, como alega o recorrente, o tribunal tenha lançado mão do mecanismo a que alude o citado artigo 358º, nº3, do Código de Processo Penal, sendo certo que nunca poderia valer como tal, mesmo a ter ocorrido – mas, como referimos, numa ocorreu - a menção ao prosseguimento dos autos relativamente ao crime de ameaça agravada, como parece defender o Exmo Procurador Geral Adjunto.
Mas será que no caso em apreço se impunha lançar mão de tal mecanismo?
Será que estamos perante uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos – existindo identidade entre os factos vertidos na acusação e na sentença - ou antes perante uma alteração dos factos descritos na acusação da qual resulta uma consequente alteração da sua qualificação jurídica?
Entende o Ministério Público que estamos perante uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos que não carece de qualquer comunicação, porquanto, o crime subsumido pela acusação é punível com pena mais grave, quer no seu limite mínimo, quer no seu limite máximo, do que o crime de ameaça agravada, a que acresce que todos os elementos constitutivos deste crime para além de abrangidos pela tipicidade daquele já estavam descritos na acusação. 
Vejamos então.
Vem-se entendendo na doutrina e na jurisprudência, a respeito do instituto da alteração da qualificação jurídica dos factos, que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República) o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-se prazo para preparação da defesa.
E dai considerar-se que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender -se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou «menos agravado», ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado (neste sentido, acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, proferido no proc. n.º 07... , Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 2007, a páginas 891 e 892 e o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 2009, pág. 815).
De igual modo se passam as coisas quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave que o da acusação ou da pronúncia em consequência da redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, claro está, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação.
Em suma, temos para nós, que o critério para se aferir se se impõe, ou não, a comunicação da alteração não pode deixar de ser a salvaguarda das garantias de defesa do arguido: se, de modo significativo, o direito de defesa sai afetado com a alteração da qualificação jurídica, há que comunicar a alteração nos termos do artigo 358º,nº3, do CPP.
No caso vertente, ainda que a nova imputação constitua um minus relativamente ao crime pelo qual o arguido se encontrava acusado, a mesma não se refere à mesma realidade.
Como salienta o Conselheiro Simas Santos, no acórdão do STJ, de 6/4/206, in www.dgsi.pt, há que ter em consideração  a distinção (porque é a própria lei que distingue), entre alteração de factos da incriminação e alteração da qualificação jurídica perante os mesmos factos.
Volvendo-nos novamente no caso vertente, se atentarmos nos factos vertidos na acusação e naqueles que vieram a ser dados como provados na sentença recorrida, não podemos concluir, como defende o Ministério Público, que todos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravada já se encontravam descritos na acusação, ou seja, abrangidos pela tipicidade do crime de resistência e coação sobre funcionário.
De facto, a Mma Juiz não se limitou a não incluir no elenco dos factos provados que “o arguido tivesse atuado com o intuito de impedir os militares da GNR, em causa nos autos, de concretizarem as suas funções” - facto vertido na acusação que veio a dar como não provado, e dai tê-lo absolvido do crime de resistência e coação sobre funcionário -  tendo, para além disso, introduzido na factualidade provada outros factos que não constavam da acusação.
E dai que não se esteja perante uma mera alteração da qualificação jurídica.

Consta da acusação, na parte que interessa para apreciação da questão em apreço, que:

-“Já no posto policial e quando se estava a elaborar o expediente, o arguido dirigindo-se ao agente de autoridade DD, proferiu as seguintes expressões “filho da puta” e “se queres bater bate e deixa marca”, ameaçando o mesmo que “o iria apanhar à civil e ajustar contas com este”.
 - O arguido, ainda, ao actuar do modo descrito, anunciando um mal futuro, bem sabia que os ofendidos eram militares da GNR, que se encontram no exercício das suas funções, devidamente uniformizado, e pretendiam levar a cabo atos nestas compreendido, atuando com o propósito de o impedir de concretizar.
-Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.

Já da sentença recorrida ficou a constar do elenco dos factos provados o seguinte:
8. “Já no posto policial e quando se estava a elaborar o expediente, o arguido dirigindo-se ao agente de autoridade DD, proferiu as seguintes expressões “filho da puta” e “se queres bater bate e deixa marca”, mais lhe dizendo que “o iria apanhar à civil e ajustar contas com este”.
9. O arguido ao atuar do modo descrito no número 8, anunciando um mal futuro, bem sabia que o ofendido DD era militar da GNR, que se encontrava no exercício das suas funções, devidamente uniformizado, actuando o arguido com o propósito, conseguido, de perturbar o sentimento de segurança do ofendido, causando-lhe receio que viesse a concretizar ofensa contra a sua integridade física.
10. Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Aqui chegados, facilmente se constata que foram acrescentados factos que a acusação não continha (os supra sublinhados) e que respeitam ao elemento subjetivo do crime de ameaça, mais concretamente ao propósito com que o arguido atuou, sem o qual nunca poderia vir a ser condenado pela prática deste último.
Ainda que da acusação se retire a ameaça dependente da vontade do agente, a subsunção do mal ameaçado a um ilícito típico (no caso contra a integridade física); o conhecimento da ameaça pelo sujeito passivo e a qualidade em que este interveio (militar da GNR no exercício das suas funções), a verdade é que a mesma é completamente omissa quanto à consciência (representação e conformação) por parte do arguido da idoneidade (adequação)da ameaça a provocar receio, intranquilidade, independentemente de ter ou não o propósito de a concretizar.
Não temos como não concluir estar-se perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.
E constatada esta – modificação dos factos com imputação de um crime diverso – impunha-se o cumprimento do disposto no citado art.359º.
Não tendo tal ocorrido, importa extrair dessa omissão as respetivas consequências, declarando-se nula a sentença recorrida com fundamento no disposto no artigo 379º,nº1,alineab), do Código de Processo Penal, a qual deve ser reformulada pelo tribunal a quo através da prolação de nova decisão expurgada já da apontada nulidade, ficando prejudicada a apreciação da segunda questão supra enunciada.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em anular a sentença recorrida, com a consequente reabertura da audiência com vista ao cumprimento do disposto no artigo 359 do C.P.P. e prolação posterior de nova sentença, em conformidade com o que resultar da comunicação dos novos factos.
 
Sem custas, por não devidas.
                                                                                  
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º, nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 17 de abril de 2023

Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
Desembargador Adjunto
António Teixeira
Desembargadora Adjunta
Florbela Sebastião e Silva