Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2000/07-0
Relator: FILIPE MELO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
ALCOÓLICO
REVOGAÇÃO
SUSPENSÃO
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Tendo um arguido sido julgado por factos integradores da prática de um crime de maus-tratos a cônjuge, com imposição de uma pena acessória de proibição de contacto com a mulher/ofendida, violado essa pena acessória, e assim violando também o dever que lhe foi imposto como condição da suspensão da execução da pena de prisão, deve tal suspensão ser revogada e a pena cumprida.
II – Tal decisão justifica-se mesmo que o condenado, que sofre de problema de alcoolismo, tenha praticado os factos violadores da pena acessória quando se encontrava embriagado, sendo certo que, como resulta do relatório junto, o condenado efectuou um tratamento ao seu problema de alcoolismo, mas sem indicadores de sucesso, não recorre às consultas desde há cerca de dois anos e que existe uma focalização obsessiva relativamente à mulher e filhos.
III – Neste quadro, resulta ser certa a existência de factores que o condenado voluntariamente não contraria (notando-se aqui a circunstância já referida de ter deixado de frequentar as consultas para tratamento do alcoolismo), não havendo que imputar a actuação do mesmo ao comportamento de terceiros, designadamente da sua mulher que diz, no uso do contraditório, não o deixar ver os filhos.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum singular 1126/02.1GBBCL do 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, por sentença de 28.04.2004, foi o arguido José condenado:
a) na pena de 13 meses de prisão pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a) e nº 2, do Código Penal, suspensa na sua execução pelo período de dois anos, sujeita ao dever de cumprimento da pena acessória
b) na pena acessória de proibição de contactar a sua mulher e de se manter afastado da residência desta pelo período de um ano.
Posteriormente, por despacho de 29.06.2007, foi decidido revogar a suspensão da execução da pena de 13 meses em que o arguido fora condenado.
Inconformado, recorre o arguido deste despacho, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1º O Tribunal a quo, decidindo revogar a suspensão da execução da pena sem ouvir o condenado - violou os artigos 55° e 56.° do C.P., bem como os artigos 492.° e 495° do C.P.P., que prevêem a prisão como "última ratio”.
2º O Tribunal a quo não valorou as razões e justificações apresentadas pelo condenado, omitindo a pronúncia quanto às mesmas, como mandam os preceitos legais supra.
3° Ainda assim, não subsistem, no caso, razões que consubstanciem que o crime pelo qual veio a ser condenado, revela que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas e, consequentemente, não se justifica a revogação da suspensão da execução da pena, tanto mais que "é certo que o condenado sofre de problemas de alcoolismo, sabendo-se que os factos julgados nestes autos foram praticados quando se encontrava embriagado"
4º Porém, se alguma censura porventura merece o arguido pelo não cumprimento, na íntegra, das obrigações que lhe foram impostas, tal censura deverá ficar-se pelas alíneas do artigo 55.° do C.P.
5º O Tribunal a quo podia e devia ter optado pela modificação dos deveres, regras de conduta e outras obrigações impostos ao condenado na sentença que decretou a suspensão da execução da prisão, nomeadamente através de Plano individual de readaptação social, combatendo o seu problema associado ao álcool
6° O recorrente demonstra vontade de combater a sua tendência para abusar de bebidas alcoólicas e se reinserir socialmente mas não o consegue sozinho.
7° Estando afastado da sua dependência, a necessidade de prevenção especial encontra-se reduzida.
8° O recorrente é pai de dois filhos menores a cujo convívio não se quer furtar, nem furtá-los; ficando, o mesmo convívio, completamente comprometido pela revogação da suspensão da pena de prisão.
9° O Tribunal apreciou, conjuntamente, o facto dado como provado no Proc. 1138/04.0GBBCL, do 1° Juízo Criminal deste douto Tribunal, referente ao "dia 15 de Agosto de 2004", quando a sentença dos presentes autos transitou em julgado apenas no dia 2 de Dezembro de 2004.
10° O despacho é nulo por aplicação do artigo 379°, nº 1, als b) e c) do Cód. Proc. Penal pois, como exposto, o tribunal deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar e conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.

O Ministério Público respondeu, concluindo que o despacho em crise não merece qualquer reparo.
O Exmo Procurador – Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer, no qual entende também que o recurso não merece provimento.
Foi cumprido o disposto no nº2 do artº417º do C.P.P.
Realizados o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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As únicas questões a decidir são, como se verá:
Saber se o despacho recorrido está ferido de nulidade nos termos do artº 379º, nº 1 do CPP.
Saber se a decisão violou o disposto pelos artºs 55º e 56º do Código Penal.
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E desde já se adianta que a ambas as questões a resposta é vincadamente negativa.
Com efeito, decidiu-se no despacho recorrido que:
“José foi condenado nos presentes autos, por decisão transitada em julgado em 2.12.2004, pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, p.p. pelo art. 152.°, nºs 1, al.a), e 2, do Código Penal na pena de 13 meses de prisão, tendo a pena de prisão sido suspensa na execução pelo período de 2 anos com a condição de integral cumprimento da pena acessória, que consistia na proibição de contacto com a arguida e de afastamento da residência deste pelo período de um ano.
No processo 1138/04.0GBBCL, deste 1° Juízo de Competência Especializada Criminal foi aquele, além do mais, condenado pela prática de um crime de violação de proibições, p.p. pelo art. 353.° do Código Penal, praticado em dia não concretamente apurado, mas situado entre Janeiro e Fevereiro de 2005, sendo do seguinte teor os factos provados: «Em dia não concretamente apurado, situado entre os meses de Janeiro ou Fevereiro de 2005, o arguido conduzia um veículo automóvel em Barcelos, quando viu a referida A - sua mulher - a conduzir, também ela, uma viatura automóvel. De imediato o arguido decidiu abordá-la. Para o efeito, parou a sua viatura e dirigiu-se à viatura por aquela A conduzida. Como esta tivesse as portas e janelas fechadas e não as tenha querido abrir quando viu o arguido, este desferiu murros e pontapés na viatura. O arguido sabia e quis agir da forma descrita. Sabia que a sua conduta era proibida por lei».
A sentença condenatória proferida no processo 1138/04.0GBBCL transitou em julgado em 12.03.2007.
Após a junção da certidão da referida sentença o Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
O condenado pronunciou-se nos termos constantes de fls. 278 e ss., que aqui se dão por reproduzidos, pedindo se considerem as justificações adiantadas ou, a assim não se entender, se ordene a censura nos termos das alíneas do art. 55.°, em articulação com o disposto no art. 51.°, n.° 2, ambos do Código Penal.
Foi junto relatório social, do seguinte teor:
Do que nos foi possível avaliar, na sequência dos vários contactos comunitários estabelecidos e resultado das entrevistas com o arguido, este encontra-se perante um quadro sócio-familiar e habitacional muito disfuncional, o que associado ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o tem colocado num contexto de marginalização/afastamento social e familiar.
Assim, ao nível habitacional, reside num espaço improvisado, na freguesia de Grimancelos, sem as mínimas condições de habitabilidade/salubridade. Ao nível profissional, mantém-se numa situação de desocupação, deambulando pela freguesia e redondezas, utilizando para o efeito um veículo automóvel. Ao nível de saúde, há vários anos que arguido se encontra em acompanhamento no Departamento de Psiquiatria do Hospital de S. Marcos, em Braga, para tratamento ao alcoolismo, sem quaisquer indicadores de sucesso.
Segundo a médica de família que o acompanha José, este não tem recorrido às consultas desde há cerca de dois anos, situação que poderá indicar um quadro negativo, dado que ao manter o consumo em excessivo de álcool agrava a sua situação de saúde, aos vários níveis.
Durante a entrevista efectuada ao arguido este apresentou alguns estados de confusão quer relativamente às situações que vivência (afastamento da ex-mulher e filhos), quer em relação à sua situação de dependência alcoólica (desvalorizando os consumos excessivos e o seu quadro de problemas de saúde aparentemente grave, apresentando dificuldade em se manter atento em relação ao que lhe era solicitado, bem como ao nível da capacidade de raciocínio e de julgamento de algumas atitudes assumidas). No âmbito familiar, parece existir uma focalização obsessiva relativamente à ex-mulher e filhos, assumindo que o facto de não os poder contactar é causa de sofrimento e de desorganização pessoal, constituindo esta ideia um factor negativo no que concerne à capacidade do arguido em dirigir os seus comportamentos para aspectos integradores, como o trabalho ou o relacionamento social.
Apesar de não nos ter sido possível contactar a ex-mulher do arguido é provável que este continue a procurar encontrar-se com esta e os filhos, ­atendendo a que não apresenta indicadores de um processo de mudança fundamental para a sua recuperação e equilíbrio pessoal.
Conclusão: Na sequência do anteriormente exposto, afigura-se que o arguido se confronta com problemas de saúde relacionadas com a dependência alcoólica, pelo que necessita de um acompanhamento continuado ao nível da saúde, consultas médicas e terapêutica farmacológica, sob pena de descompensação e dado que, inerente à própria doença, não tem consciência acurada dessa necessidade necessitará de apoio e vigilância consistente/persistente dos serviços competentes.
Decidindo.
Sob as epígrafes Falta de cumprimento das condições da suspensão e Revogação da suspensão, dispõem respectivamente os arts. 55.0 e 56.0 do Código Penal que:
«Se, durante o período de suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal: a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no art. 50º, nº 5»
«1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social, ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2. A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado»
No caso, a actuação do condenado tem de ver-se por uma dupla perspectiva:
- a perspectiva da violação do dever imposto; e
- a perspectiva da prática de crime no decurso da suspensão.
Também esta dupla perspectiva tem de ser avaliada à luz dos factos cometidos e dos julgados nestes autos.
Aqui o condenado foi julgado por factos integradores da prática de um crime de maus tratos a cônjuge (que, de resto, determinou, a imposição de uma pena acessória de proibição de contacto com a mulher/ofendida); no processo 1138/04.0GBBCL tal condenado por factos integradores da prática de um crime de violação de proibições (precisamente por violação da pena acessória aqui imposta). Apesar da natureza do crime por que foi julgado no âmbito do processo l138/04.0GBBCL, a verdade é que os factos que nele foram julgados provados contendem directamente com os julgados neste processo e, precisamente nessa medida, constituem também uma violação do dever que lhe foi imposto como condição da suspensão da execução da pena de prisão.
É certo que o condenado sofre de problema de alcoolismo, sabendo-se que os factos julgados nestes autos foram praticados quando se encontrava embriagado. Tal facto já não resulta certo no que respeita aos factos julgados no processo 1138/04.0GBBCL, aí se dizendo apenas que o arguido sabia e quis agir da forma descrita. Sabia que a sua conduta era proibida por lei.
Acresce que, do que resulta do relatório junto, o condenado efectuou um tratamento ao seu problema de alcoolismo, mas sem indicadores de sucesso: não recorre às consultas desde há cerca de dois anos, com todas as consequências que daí advêm. Directamente relacionado ou com implicações nesse seu problema estão os de natureza familiar, referindo-se no relatório que existe uma focalização obsessiva relativamente à mulher e filhos. Daqui resulta ser certa a existência de factores que o condenado voluntariamente não contraria (notando-se aqui a circunstância já referida de ter deixado de frequentar as consultas para tratamento do alcoolismo), não havendo que imputar a actuação do mesmo ao comportamento de terceiros, designadamente da sua mulher que diz, no uso do contraditório, não o deixar ver os filhos (essa é outra questão que não justifica comportamentos como os descritos no processo 1138!04.0GBBCL).
O comportamento do condenado violador do dever imposto e integrador da prática de um crime no decurso da suspensão da execução da pena aqui aplicada é, pois, da sua exclusiva responsabilidade e demonstra que a ameaça de prisão não foi suficiente para alcançar as finalidades da punição.
Assim, uma vez que o condenado cometeu factos integradores de um crime que, além de visarem novamente a ofendida, afrontam directamente a decisão imposta por este Tribunal, na medida em que constituem uma violação de um dever imposto, condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, revelando, por isso, que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio, dela ser alcançadas, importa determinar a revogação da suspensão da execução da pena aplicada a José.
Pelo exposto, revoga-se a suspensão da execução da pena de treze meses de prisão e determina-se o cumprimento da mesma pelo condenado José.
Notifique e, transitado, passe os competentes mandados de detenção e condução ao EP para cumprimento da pena e remeta boletins à DSICC.
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Cremos estar tudo dito pois da factualidade descrita resulta à saciedade estar plenamente demonstrada a necessidade de revogação da suspensão da pena, já que o comportamento posterior do arguido demonstra sem margem para dúvidas não se ter confirmado minimamente a prognose favorável subjacente a tal suspensão, e que o cumprimento da pena é plenamente justificado e necessário.
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Quanto à invocada e pretensa nulidade por falta de audição do arguido, fica apenas a constatação de que o próprio arguido refere expressamente nas suas alegações de recurso ”…veio o aqui recorrente explicar aos autos …”.
Ou seja é manifesto que o arguido não só foi notificado para se pronunciar, como se pronunciou mesmo e em concreto quanta á questão da revogação da pena, pelo que também quanto a este aspecto o presente recurso mais parece uma mera tentativa de adiar o inevitável do que propriamente uma discordância minimamente fundada e fundamentada.
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DECISÃO:
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se, in integrum, o douto despacho recorrido.
Custas pelo arguido.
Guimarães, 5 de Maio de 2008