Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
214/12.0TBPRG-H.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: CIRE
LIQUIDAÇÃO
VENDA
SEPARAÇÃO DE BENS
DIREITO DE MEAÇÃO DO CÔNJUGE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Decretada a adjudicação do bem ao comprador, não tendo sido esta anulada, a mesma tem de produzir efeitos, nomeadamente de transmissão do bem nos termos e condições do respectivo título de transmissão.

II – Por via de tal adjudicação, nem o insolvente é já titular de qualquer direito de propriedade sobre o bem imóvel em causa, mormente da metade indivisa do mesmo, nem a massa insolvente pode beneficiar da alienação total ou parcial desse bem apreendido, uma vez que a dita transmissão da metade indivisa do mesmo não foi posta em causa, quer pelo administrador de insolvência, quer pelos credores, quer pelo insolvente, quer pelo seu ex-cônjuge, também insolvente.

III - Isto, sem se descurar que o processo já se encontrará encerrado, com a venda efectuada, o valor pago, as contas apresentadas e o rateio concretizado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório;

Nos autos de processo de Apreensão com o nº 214/12.0TBPRG-A, apensos ao processo de insolvência nº 214/12.0TBPRG, em que é insolvente A. G., com o fundamento de que “ a venda do bem comum do casal deverá ser levada a efeito no processo onde a insolvência foi decretada em primeiro lugar, ou seja, nos presentes autos, o que implicará a convolação do direito sobre o bem que a apelante detém, num direito sobre o preço pelo qual o bem venha a ser vendido, na parte que lhe corresponda, com as decorrentes consequências para o processo de insolvência onde é devedora”, foi proferido despacho judicial, em 06.02.2018, na sua parte dispositiva, com o seguinte teor:

«Pelo exposto, determina-se que o Senhor Administrador da Insolvência proceda à venda neste processo nos termos supra descritos».

Inconformado com tal decisão, o credor Banco X (Portugal) SA interpôs o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:

1. O insolvente ex-marido foi declarado Insolvente em 15/03/2012 (Processo n.º 214/12.0TBPRG a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Competência Genérica de Peso da Régua - Juiz 2);
2. Posteriormente, a insolvente ex-esposa foi declarada Insolvente em 18/07/2012 (Processo n.º 523/12.9TBPRG a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Competência Genérica de Peso da Régua - Juiz 1).
3. Anteriormente à declaração das suas insolvências, foram casados no regime de comunhão de adquiridos, sendo o casamento anterior à aquisição do bem em questão nos autos do qual o ora Apelante é credor hipotecário, a saber: Fracções "I" e "O" do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, da freguesia e concelho de Peso da Régua e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art.º 1;
4. Por motivos que não se compreendem e que o Apelante é completamente alheio, as preditas fracções foram apreendidas na totalidade nos dois processos simultaneamente.
5. Quanto à primeira Insolvência (do ex-marido): a sentença de Insolvência foi decretada em 15/03/2012, sendo que para efeitos de apreensão, por carta registada em 31/10/2012 o AI procedeu à resolução em favor da Massa Insolvente da aquisição por partilha a favor da Ex-esposa do Insolvente.
6. Resolução pela qual veio o tribunal a determinar o registo em definitivo a favor desta Massa Insolvente.
7. Desse modo, o aqui Insolvente voltou a ser proprietário da sua metade indivisa do imóvel, correspondendo a outra à sua ex-esposa.
8. Quanto à segunda Insolvência (da ex-mulher): a sentença de insolvência foi decretada em 18-07-2012, tendo o AI apurado que a devedora havia adquirido as fracções em 30-11-2010, numa partilha subsequente a divórcio.
9. Dado que ambos os imóveis constavam como pertença da insolvente mulher, o AI procedeu à respectiva apreensão, que veio a registar-se com carácter definitivo, pois nada obstava a tal.
10. O ora Apelante, credor hipotecário do referido imóvel, foi notificado nos presentes autos (Insolvência do ex-marido) no sentido de apresentar uma proposta para adjudicar a metade indivisa das fracções de que o Insolvente homem se mostrava titular em função da resolução do ato de partilha;
11. Em conformidade efectuou o Apelante uma a proposta, a mesma foi aceite, procedeu ao cumprimento das obrigações fiscais a ele inerentes, pagou a esta massa Insolvente 20% do valor pelo qual adjudicou (€ 45.000,00);
12. Não tendo, contudo, conseguido promover o registo definitivo da aquisição da metade indivisa do imóvel em face das irregularidades registais existentes em função da resolução operada.
13. Pois que destas consta que, pela AP. 10085 de 2010/11/30 e AVERB. – AP. 240 de 2012/01/12, foi inscrita definitivamente a favor de I. A., divorciada, em virtude de partilha subsequente a divórcio, a aquisição das referidas fracções.
14. Consta ainda que, pela AP. 81 de 2012/08/02 e AVERB. – AP. 2106 de 2012/09/17, foi inscrita definitivamente a declaração de insolvência I. A. (ex-mulher do ora Insolvente), incidindo esta inscrição sob a totalidade das mesmas fracções (I e O), com a consequente apreensão das mesmas a favor da respectiva massa insolvente, decretada que foi no âmbito do processo n.º 523/12.9TBPRG, do 1º Juízo deste mesmo Tribunal de Peso da Régua;
15. No dia seguinte à apresentação antes referida, pela AP. 3064 de 2012/08/03 e AVERB. – AP. 2551 de 2013/07/18, foi igualmente inscrita definitivamente, a declaração de insolvência de A. G., decretada nestes autos, incidindo esta inscrição também sobre a totalidade das fracções I e O e, obviamente, a apreensão destas a favor da respectiva massa insolvente;
16. Atenta a real situação registral, afigura-se ao ora Apelante que, a inscrição da declaração de insolvência destes autos só deveria (poderia) ter sido lavrada pela respectiva Conservatória, na medida em que a inscrição anterior da insolvência de I. A., o permitisse, sob pena de o mesmo património se encontrar apreendido em dois processos de insolvência distintos (como de facto está) e poder dar origem a eventual venda duplicada do mesmo.
17. Sendo assim, nunca a inscrição a que se refere a AP. 3064 de 2012/03/03 deveria ter sido convertida com os pressupostos que o foi, pese embora o teor do douto despacho proferido nestes autos em 03-07-2013, com a referência 1569792.
18. Por outro lado, é sabido – e por isso se tem de ter em conta – que foi resolvido o ato de transmissão das fracções a favor de I. A., em virtude de partilha subsequente a divórcio e, nessa medida, esta resolução tem, necessariamente de repristinar o direito apreendido no processo de insolvência desta, à situação anterior à partilha – direito à meação.
19. Ora, vindo agora o despacho ora proferido determinar a venda do bem comum do casal neste processo, entendendo-se que se está a vender “de novo” a totalidade do imóvel,
20. E tal ofende gravemente de direito de propriedade que recai sobre o credor, que já adjudicou a metade indivisa do aqui Insolvente,
21. Facto ao qual o despacho recorrido é completamente omisso.
22. Tanto mais que faria o credor duplicar os custos que já teve com a metade indivisa adjudicada neste processo.
23. Sendo coerente neste sentido tão-só a rectificação dos registos de apreensão na medida apurada à ordem de cada um dos processos de insolvência.
24. Pois que, se a rectificação for no sentido de que, em cada um dos processos de insolvência, a apreensão incide apenas sobre o direito a ½ dessas fracções, tal afigura-se ser bastante para que seja promovida pelos respectivos Administradores de Insolvência a rectificação dos registos nesse sentido e,
25. Com a prática desse ato, o registo de aquisição de metade de cada uma das fracções, por parte do ora Apelante, verificado esse pressuposto, converte-se automaticamente em definitivo.
26. A não ser assim, o ora Apelante veria claramente prejudicado o seu direito de propriedade que incide sobre a metade indivisa que era propriedade do aqui Insolvente, uma vez que todos os trâmites legais foram cumpridos, não se podendo agora olvidar de tudo o quanto se passou no processo e fazer “tábua rasa” da aquisição concretizada pelo Apelante.
27. Com efeito, fazer uma nova venda, agora da totalidade do bem, sempre seria de ser considerada uma venda de bens alheios na proporção de ½, atendendo a que a mesma já não faz parte da massa insolvente do ex-marido, e consequentemente ser a mesma nula nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil, nulidade essa que aqui expressamente se argui.
28. Salvo melhor opinião, não fará qualquer sentido promover-se a venda da totalidade do imóvel nos presentes autos, porquanto o Insolvente já não é titular de qualquer metade indivisa sobre o imóvel e, bem assim, tal facto sempre implicaria inutilizar todo o processado antecedente (incluindo a venda ao Apelante), sendo que o presente processo já se encontra inclusivamente encerrado, com a venda efectuada, o valor pago, as contas apresentadas e o rateio concretizado.
29. Tal é uma manifesta violação dos princípios da economia e de gestão processual, para além de colocar em causa a certeza e segurança jurídicas.
30. A não se entender assim, ou seja, que a venda deverá ocorrer novamente, agora pela totalidade do bem no âmbito dos presentes autos – o que não se concede e apenas por mera hipótese académica se aventa – sempre terá de ser o ora Apelante ressarcido integralmente do valor liquidado a título de caução, o que subsidiariamente se requer.

Pede que se revogue a decisão recorrida e, em consequência, seja a mesma substituída por outra que ordene a rectificação dos registos de apreensão na medida apurada à ordem de cada um dos processos de insolvência;
Ou caso se entenda que deverá a venda ocorrer pela totalidade do bem, requer-se subsidiariamente o ressarcimento integral do valor liquidado a título de caução.

Não houve contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso; questão a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A única questão que importa aqui apreciar e decidir, nomeadamente à luz das razões apresentadas pelo recorrente, é se deve proceder-se à rectificação dos registos de apreensão na medida apurada à ordem de cada um dos processos de insolvência (ou, caso se entenda que deverá a venda ocorrer pela totalidade do bem, ressarcir-se integralmente o comprador do valor liquidado a título de caução), em vez da ordenada venda do bem comum do casal nos autos de insolvência do devedor A. G..

Colhidos os vistos, cumpre decidir:

III – Fundamentos;

Os factos a ter em conta são os referidos no relatório I) supra, complementados pelo teor constante da certidão judicial de fls. 2 a 46 deste Apenso H).
*****
A questão recursiva cinge-se à pretendida rectificação dos registos de apreensão na medida apurada à ordem de cada um dos processos de insolvência (ou, caso se entenda que deverá a venda ocorrer pela totalidade do bem, ressarcir-se integralmente o comprador do valor liquidado a título de caução), em vez da ordenada venda do bem comum do casal nos autos de insolvência do devedor A. G..

Entende-se que assiste razão ao recorrente.

Com efeito, o despacho recorrido determinou a venda do bem comum do casal com base em razões de desvantagem de natureza financeira na sua venda separada em cada um dos processos de insolvência do casal.

É, porém, inquestionável que, em 12.12.2013, tal bem foi vendido ao recorrente/credor pelo Sr. Administrador de Insolvência, sendo-lhe adjudicado definitivamente “o direito indiviso de que o insolvente é contitular no prédio, na proporção de ½, o qual lhe advém pelo tipo de regime de sociedade conjugal dissolvida por divórcio (comunhão de adquiridos) integrante no património comum do casal, com I. A., na qual se encontra inserido o imóvel apreendido e registado a favor da massa insolvente e que o que se mostra apreendido para a massa insolvente” – vide acta de adjudicação definitiva (título de transmissão), cuja cópia consta de fls. 33vº a 34vº deste Apenso H).

Como é certo que o despacho recorrido não questiona tal adjudicação nem suscita qualquer vício da mesma que a inquinasse.

Assim, confrontados com tal adjudicação já realizada, não tendo sido esta anulada, a mesma tem de produzir efeitos, nomeadamente de transmissão do bem nos termos e condições do respectivo título de transmissão.

Até porque, como se disse, o despacho recorrido cinge-se essencialmente a meros interesses de cunho financeiro na venda da totalidade do bem, descurando os demais efeitos jurídicos (v.g. também de cariz financeiro) advindos da decretada adjudicação ao comprador/recorrente.

Acresce que nem o insolvente é já titular de qualquer direito de propriedade sobre o bem imóvel em causa, mormente da metade indivisa do mesmo, por via da referida adjudicação, como sublinha o apelante, nem a massa insolvente pode beneficiar da alienação total ou parcial desse bem apreendido, uma vez que a dita transmissão da metade indivisa do mesmo não foi posta em causa, quer pelo administrador de insolvência, quer pelos credores, quer pelo insolvente, quer pelo seu ex-cônjuge, também insolvente.

Isto, sem se descurar que o processo já se encontrará encerrado, com a venda efectuada, o valor pago, as contas apresentadas e o rateio concretizado, como afirma o recorrente.

Assim, a existência de eventuais dificuldades a nível registral poderá passar pela rectificação da apreensão na medida apurada à ordem de cada um dos processos de insolvência, como acima alegado pelo recorrente, em sede de 1ª instância.

IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juízes desta 1ª secção cível em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Guimarães, 28.6.2018

ANTÓNIO SOBRINHO
JORGE TEIXEIRA
JOSÉ AMARAL