Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1984/18.8T8BCL.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
DOCUMENTOS PARTICULARES
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria de facto controvertida em face dos elementos a que teve acesso, de forma a verificar ou não um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas, aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.

II – Não é admissível aditar aos factos provados quaisquer outros factos que não tenham sido alegados pelas partes, caso não tenha sido observado o procedimento previsto no artigo 72.º do CPT.

III - O valor probatório a atribuir aos documentos não impugnados circunscreve-se à sua materialidade ou seja à existência dessas declarações e não à sua exactidão, não se podendo considerar relevantes para efeitos de confissão da Ré de factos respeitantes à autora, as declarações feitas por aquela noutros processos judiciais em que a autora não teve qualquer intervenção, nem a ela respeitavam.

IV – No que diz respeito à apreciação da natureza do vínculo contratual, o regime legal a aplicável já não será o contido no Código do Trabalho revisto, mas o constante da LCT, que se encontrava em vigor aquando da celebração do contrato, pois para a qualificação do contrato importa atentar nos factos que deram origem a tal relação devendo por isso ser utilizada na sua caracterização a lei que estava em vigor quando foram definidos os contornos essenciais da relação contratual. Só não seria assim relativamente aos factos ocorridos posteriormente à entrada em vigor do Código do Trabalho revisto, se deles resultasse que o relacionamento entre as partes tinha passado a ser substancialmente diferente do que tinha sido anteriormente, caso em que seria necessário indagar se essa alteração correspondia a uma modificação da natureza do vínculo que até aí tinha existido.

V - Globalmente os índices que resultam da relação contratual estabelecida entre as partes não são suficientes para caracterizar a relação contratual estabelecida como contrato de trabalho, sendo que o ónus da prova relativo aos factos de que se pudesse concluir no sentido da existência daquele contrato impendia sobre a Autora (art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

APELANTE: T. C.
APELADO: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., HOSPITAL E LAR ...
Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Barcelos – Juiz 2

I – RELATÓRIO

T. C., residente na Rua …, freguesia de …, instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., HOSPITAL E LAR ..., com sede na Avenida …, na freguesia de … Esposende, pedindo:

a) a declaração da existência de um contrato de trabalho (e não a existência de uma prestação de serviços), entre a ré e a autora, desde 09 de outubro de 2000;
b) a condenação da ré na reintegração da autora, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade e desta optar, em sua substituição, por uma indemnização, cujo montante será determinado entre 15 a 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade;
c) a condenação da ré no pagamento à autora das retribuições que deixou de auferir desde 06/08/2017 até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, deduzindo-se, no entanto, as retribuições relativas ao período decorrido desde o despedimento até 30 dias antes da propositura da ação;
d) a condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 889,42€ (oitocentos e oitenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos) a título de férias relativas ao ano de 2016;
e) a condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 2.446,72€ (dois mil quatrocentos e quarenta e seis euros e setenta e dois cêntimos) a título de férias, subsídios de férias e de natal, não gozadas e não pagas, desde a data da sua admissão até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal;
f) a condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) a título de indeminização por danos não patrimoniais;
g) a condenação da ré no pagamento à autora das quantias que vierem a ser liquidadas, a título de complemento das retribuições auferidas, subsídios de alimentação ou outras quantias que lhe sejam devidas legalmente e/ou por via da aplicação da ACT e da Portaria referidas no art.º 51.º da petição inicial, calculadas desde a data da sua admissão até à data do trânsito em julgado da decisão que vier a declarar a ilicitude do despedimento; e
h) a condenação da ré no pagamento à autora dos juros de mora.

Realizada a audiência de partes não foi possível obter a conciliação das partes tendo a Ré, dentro do prazo legal, apresentado contestação, na qual alega que a Autora é enfermeira noutra instituição hospitalar, onde tem um horário de 40 horas semanais, estando autorizada por tal instituição a prestar 15 horas semanais noutro local, tendo sido perante este condicionalismo que manifestou disponibilidade para prestar à Ré serviços de enfermagem. Nega a existência de qualquer contrato de trabalho, dizendo que era a autora quem indicava os períodos de disponibilidade para prestar a sua actividade à ré. Alega a prescrição dos direitos reclamados pela autora e nega que a autora tenha sofrido qualquer dano não patrimonial na sequência da cessação do contrato.
Conclui pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição dos pedidos.
A autora respondeu a fls. 84, defendo a improcedência da excepção da prescrição, tendo o restante articulado sido considerado não escrito por despacho proferido a fls. 495.

Prosseguiram os autos os seus regulares termos e por fim foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

“Assim e nos termos expostos, julgo a ação totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, absolvo a ré SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., Hospital e LAR ... dos pedidos contra si deduzidos pela autora T. C..
Custas da ação integralmente pela autora – art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”

Inconformada com esta sentença, dela veio a Autora T. C. interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que depois de aperfeiçoadas terminam mediante a formulação das seguintes:
CONCLUSÕES

I Os presentes autos fundam-se numa ação declarativa de apreciação e condenação sob a forma de processo comum laboral, perante a qual a Autora peticiona: (…)
II - O Tribunal “a quo” entendeu que na relação trazida a juízo pela Autora não ficou demonstrado a existência de uma subordinação jurídica em relação à Ré, e como tal, julgou a ação totalmente improcedente.
III - A Autora considera que a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” advém de uma errada interpretação da Lei e do Direito aplicáveis, de uma errada apreciação e valoração da prova produzida, com o consequente erro de julgamento e, do mesmo modo, de uma desadequada subsunção jurídica aos factos.

IV. O presente recurso tem por objeto as seguintes questões:

a) Reapreciação e alteração da matéria de facto provada e não provada por erro de julgamento na valoração da prova produzida; e
b) Erro na interpretação e aplicação da Lei e do Direito quanto à qualificação do vínculo contratual existente entre a Autora e devido, nomeadamente, à confissão por parte da no sentido da existência do contrato de trabalho entre a Autora e bem como, quanto à interpretação do art.º da dita Lei n.º 7/2009, com vista à aplicação da presunção consagrada no art.º 12º doCTde2009
V. No que concerne à questão da matéria de facto, a divergência da aqui Apelante funda-se na convicção de que o Douto Tribunal “a quo” efetuou uma incorreta interpretação do direito aplicável e uma errada apreciação da prova, mais concretamente, na instrução da matéria factual plasmada nos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6) e 7) da factualidade considerada não provada, os quais, pelos motivos que infra se demonstrará, deveriam ter sido considerados como provados.
VI. Para além disso, ficou provado (por documentos, declaração da Autora e pelos depoimentos de testemunhas), que a Autora durante o período em que prestou atividade para a Ré, exerceu na mesma funções de Chefia, razão pela qual tal factualidade deveria (e deverá) passar a estar incluída na factualidade dada como provada.
VII. No entendimento do Tribunal “a quo” a factualidade constante nos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6) e 7) dos factos dados como não provados resulta essencialmente da prova por declarações de parte e documental, porém, a aqui Apelante entende que a prova por declarações de parte e a documental teriam que levar a resulta do exatamente oposto ao que o Tribunal “aquo” entendeu, isto é, deveria ter julgado tal factualidade como provada.
VIII. Assim, no que se reporta ao ponto 1) dos factos não provados, a prova testemunhal (rectius, A. P., M. L. e M. F.), as declarações de parte da Autora e os documentos (como Doc. 29, 32, 34, 36, 37, 42, 43, 44, 45, 46 e47, os quais não foram impugnados pela Ré), o douto Tribunal “a quo”, pelos motivos supra expostos, deveria ter dado como provado “Que os horários da Autora eram efetivamente fixados e determinados pela Ré .
IX. Com base na prova documental (Doc. 2 da p.i., Doc. 29 e 30 da resposta), testemunhal e declaração de parte, dúvidas inexistem que o ponto2) dos factos considerados como não provados deveria ter sido dada como provada, ou seja, “Que a ré obrigava a autora a informar, por escrito, com antecedência de 15 (quinze) dias, qualquer ausência programada;”, pelo que deve tal factualidade considerar-se como provada.”
X. No que concerne ao ponto 3) dos factos não provados, entende a Apelante que o contido neste ponto não consubstancia um facto, mas uma conclusão, ou seja, matéria conclusiva, pelo que impõe-se expurgar tal ponto da factualidade não provada, devendo ao invés, considerar-se como provada a seguinte factualidade, por assente devido à falta de impugnação da Ré na contestação: “A autora recebia instruções e orientações concretas dos enfermeiros responsáveis dos vários serviços, consoante estivesse adstrita no momento da execução das suas funções, nomeadamente:
a. pela urgência, o enfermeiro M. L.;
b. pelo internamento, o enfermeiro J. C.;
c. pelo serviço de bloco operatório, o enfermeiro M. F.; e
d. pelo serviço de lar, a enfermeira M. C.;“
XI. No que concerne ao ponto 4) dos factos não provados deverá tal factualidade ser considerada como provada, tendo em conta a prova documental (Doc. 7, 13 e 14 da p.i., Doc. 42 e 43 da resposta, e Doc. 1 a 19 da contestação), bem como as declarações de parte da Autora e os depoimentos da testemunha A. P.): “Que não raras vezes, a autora tenha sido confrontada com alterações determinadas à última hora quanto aos horários, turnos ou serviços em que deveria exercer funções, tendo sido obrigada a cumprir tais alterações;”
XII. No que concerne ao ponto 5) dos factos não provados deverá tal factualidade ser considerada como provada, tendo em conta a prova documental (Doc. 3 da p.i.), e por assente devido à falta de impugnação da Ré na contestação: 5) Que a autora tenha chegado, inclusive, a ser obrigada a cumprir acumulação de turnos para fazer face a faltas dos colegas nos serviços, tendo sido por isso que cumpriu 14 horas ininterruptamente nos dias 19 e 26 de Setembro de 2008;
XIII. No que concerne aos pontos 6 e 7) dos factos não provados deverá factualidade ai constante ser dada considerada como provada, tendo em conta a prova testemunhal (Dra. C. K. e N. C.): “6) Que com o fim do contrato a autora tenha visto a sua situação profissional abalada e posta em causa; e 7) Que a autora tenha passado a ser uma pessoa diferente, já que de uma pessoa alegre e social, passou a ser uma pessoa triste, pouco comunicativa, deixando de conviver socialmente;”
XIV. Para além disso, no que concerne à questão da qualificação da relação entre a Ré e a Autora, entende a aqui Apelante que existe uma omissão de pronúncia, pelo que, tendo ficado demonstrado que a Autora exerceu na Ré funções de Chefia, com base em prova documental (Doc. 24 e 38 da resposta) e testemunhal (A. P.), tem esta factualidade necessariamente que passar a constar nos factos provados, devendo, por conseguinte, ser considerada como provada a seguinte factualidade: “Que nos dias 2, 9, 13, 20, 21, 24 e 26 de fevereiro de 2011, a Autora desempenhou funções de chefia na estrutura orgânica da Ré.”
XV. Independentemente da decisão que o Tribunal “ad quem” irá proferir quanto à supra reapreciação da matéria de facto, a Autora entende que a prova carreada nos autos – e que levou, desde já, a considerar-se como provados os factos constante nas alíneas A) a L) dos Factos Provados – implicará inevitavelmente ao reconhecimento e, por conseguinte, se declare, a existência de uma relação laboral entre a Autora e a Ré.
XVI. Com vista à qualificação do vínculo contratual existente entre a Autora e Ré como sendo de natureza laboral, ter-se-á que atender ao seguinte:
a) Confissão por parte da Ré de que o contrato em causa consubstancia-se num contrato de trabalho; e
b) Aplicação da presunção quanto à existência de contrato de trabalho, ao abrigo do art.º 12º do CT de 2009, por força do art.º 7º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro
XVII. No entendimento da aqui Apelante, o Tribunal “a quo” não valorou devidamente as várias declarações ou reconhecimentos efetuados pela Ré, no sentido das quais se extrai a conclusão de que o tipo de contrato celebrado entre a Autora e Ré no dia 3 de janeiro de 2012, consubstancia, efetivamente, umcontratodetrabalho.
XVIII. Na resposta apresentada e juntaaosautos, aAutoraprocedeuàjunçãode47 (quarentae sete) documentos, os quais não foram objeto de qualquer impugnação por parte da Ré, e dosquaissedestacamosseguintes:

- Requerimento apresentado pela Ré no dia 18 de maio de 2015, no âmbito da ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, com o processo n.º 547/15.4T8BCL, que correu termos na 2ª Secção do Trabalho (Juiz 2) da Instância Central do Tribunal Judicial de Barcelos, em que é Autor o Ministério Público em representação da ACT e Ré a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., Hospital de …, junta aos presentesautosnarespostacomoDoc. 21;

- Ata de Audiência de partes e julgamento datada de 8 de abril de 2015, relativa à ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, com o processo n.º 1924/15.6T8VNF, que correu termos na 4ª Secção do Trabalho (Juiz 1) da Instância Central do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, em que é Autor o Ministério Público emrepresentação da ACT e Ré a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., Hospital de ..., juntaaospresentesautosnarespostacomoDoc. 22;

- Certidão judicial do processo de contraordenação, por utilização indevida de contrato deprestaçãode serviços(art.º 15º-A, n.º 3, da Lei n.º 107/2009), comoprocesso n.º 177/17.6T8BCL, que correu termos no Juízo do Trabalho de Barcelos (Juiz 1), emque é Recorrente oMinistérioPúblicoe Recorrida a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ...e Lar ..., juntaaospresentesautosnarespostacomoDoc. 25; e
Menção nos mapas das escalas das quais consta a Autora a aplicabilidade o IRCT: ACT – Santa Casa de Misericórdia ... e outras”, conforme consta do Doc. 13 e 14 junto na petição inicial, bem como dos Doc.1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e19 juntos à contestação.
XIX. Assim, perante a força probatória plena daquelas confissões, o Tribunal sempre teria que dar como provado que o contrato de trabalho celebrado com a Autora e no dia 3 de janeiro de 2012 é um contrato de trabalho e não um mero contrato de prestação de serviços
XX. Para além da questão da confissão, a Autora entende que, in casu, será aplicável a presunção consagrada no art.º 12º do CT de 2009, por força do disposto no art.º 7º, da Lei n.º 7/2009, de12defevereiro.
XXI. Nesse sentido, encontramos sustentação na jurisprudência mais recente nos Tribunais superiores, mormente, neste Douto Tribunal, que tem acolhido o entendimento de que “É de aplicar o artigo 12.º do CT aos contratos subsistentes aquando da sua entrada em vigor” – neste sentido, ver Ac. do TRG, de 14.05.2015, proc. n.º 995/12.1TTVCT.G1, tendo como Relator Meritíssimo Juiz Dr. Antero Veiga, e Dra. Milena Silva Rouxinol, in notas sobre a eficácia temporal do art.º 12º do CT, a propósito do Ac. do TRP, datadode7.10.2013.
XXII. É certo que o Tribunal “a quo” teve um entendimento diferente, na medida em que sustenta a tese de que a presunção consagrada no art.º 12º do CT de 2009 só seria aplicável caso se viesse a demonstrar “que o contrato celebrado em 2012 tivesse vindo alterar na prática a forma como a relação entre as parte sempre se tinha processado.
XXIII. Ora, mas mesmo que assim o fosse – o que não se aceita-, o certo é que, contrariamente ao que o Tribunal conclui, essa condição de que faz depender a aplicação da referida presunção consagrada no art.º 12 do CT de 2009, VERIFICA-SE INCAS, conforme, aliás, resulta, por um lado, das declarações da própria (o que equivale a confissão3) nos art.º 6º, 7º, 10º, 14º, 39º, 40º, 41º e 42º da douta contestação bem como, da factualidade dada como provada e que se encontra elencada na alínea I) havendo, aliás, nesta parte, uma evidente e manifesta contradição entre a fundamentação do Tribunal “a quo no sentido da não aplicação da dita presunção, quando, na verdade, está provado exatamente o contrário, isto é, que o contrato celebrado em 2012 alterou na prática – diga-se, até, substancialmente-, a forma como a relação entre as partes se processava.

XXIV.Para o efeito, releva o Doc. 37, do qual se conclui que a Autora viu alterada na forma prática como a relação entre as partes se processava, na medida em que, pelo menos a partir de 23 de setembro de 2016 a Autora passou a estar obrigada a “cumprir o mínimo de 60 horas/mês e que o nº de turnos diurnos deverão ser superiores aos noturnos”, demonstrado, mesmo assim, que houve efectivamente mudanças na forma como a relação se processava ao longo dos anos, tanto pelo que a Ré alega nos itens 6º, 7º, 10º, 14º, 39º, 40º, 41º e 42º da contestação, e que, como tal, terá necessariamente de se consagrar como confessado e, consequentemente, está revestido de força probatória plena em tudo o que contra esta resultar, conforme resulta da conjugação dos art.º 352.º, 356.º nº 1 e 358.º, nº 1, todos do Código Civil;

XXV. Face ao disposto nos art.º 344.º, nº 1 e 350.º do Código Civil opera o instituto da inversão do ónus da prova, competindo assimà Autora cumprir o ónus da prova das condições da presunção constante do artigo 12.º do CT – e não já o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado – impendendo sobre a Ré o ónus de provar os factos demonstrativos da inexistência do contrato de trabalho, com vista a ilidir a presunção.
XXVI. Posto isto, é sabido que para assegurar o ónus da prova da existência das condições da presunção basta que se considerem como provados pelo menos dois factos constantes do preceituado no artigo 12º do Código do Trabalho.
XXVII. Sem prejuízo da decisão que vier a ser proferida quanto ao pedido da alteração da matéria de facto, encontra-se já dada como provado o seguinte:
a. A autora exerce funções em local pertença e designado pela ré, a saber, no Hospital de …, sito na Avenida …, em Fão” - cfr. alínea D) dos factos provados;
b. A autora usa equipamentos e instrumentos pertença à ré, nomeadamente fardamento, mobiliário, material inerente à atividade de enfermeira, em concreto, material de higiene e de desinfeção, equipamentos hospitalares, material de emergência, descartáveis, consumíveis e material de proteção;” - cfr. alínea E) dos factos provados;
c. A autora exercia funções com observância de horas de termo e de início, com cumprimento de horários certos ou escalas mensais, coma distribuição de turnos que variam entre as 7(sete) e as 10(dez) horas diárias-cfr. alínea F) dos factos provados;
d. No seguimento de instruções da ré, a autora procedia ao registo de início e termo do exercício das suas funções através de um sistema específico para o efeito (vulgo sistema mecanográfico), facultado pela ré e colocado no local -cfr. alínea G) dos factos provados;
e. Desde o dia 09 de outubro de 2000 até ao dia 06 de agosto de 2017, como contrapartida das funções exercidas, a ré pagou à autora uma quantia certa por hora, que por último se cifrava no montante ilíquido de 8,00€(oito euros) - cfr. alínea H) dos factos provados.
f. Para além disso, ficou demonstrado pela prova produzida que “A Autora exerceu funções de Chefia na estrutura orgânica nas instalações da Ré.“
XXXVIII - Da leitura do artigo 12º do CT de 2009 e atendendo aos factos dados como provados pelo douto Tribunal “a qu ” não restam quaisquer dúvidas que se encontram preenchidas as condições de aplicabilidade da presunção consagrada no art.º 12º do CT de 2009, nomeadamente as suas alíneas a), b), c), d) e e), pelo que é mister declarar-se a existência de um contrato de trabalho entre a Autora e Ré, com início em9 de outubro de 2000.
XXIX – Destarte, s.d.r, deverá a presente acção proceder totalmente, uma vez que ficou demonstrada a existência de um contrato de trabalho entre esta e a Autora e por conseguinte, deverá declarar-se a ilicitude do despedimento, com todas as demais consequências reclamadas pela autora na petição inicial.
XXX – Por tal motivo, deverá a douta sentença proferida ser revogada, julgando a ação .º da Lei n.º Autora e a Ré, bem como a ilicitude do despedimento da Autora, om as demais consequências explanadas na petição inicial, o que se deixa expressamente alegado, para todos os devidos efeitos legais.
XXXI Desta feita s.d.r, que é enorme, diga-se, o Tribunal “a quo” violou o disposto nos art.º 7 n.º 7/2009, de 12/02, art.º 12.º do CT, art.º 344.º, n.º 1, 350.º, 352.º, 356.º, n.º 1, 358.º, n.º 1 do Cód. Civil.”

Termina peticionando a revogação da sentença.
A Recorrida apresentou contra alegação pugnando pela improcedência do recurso com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87º n.º 3 do C.P.T., tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer no sentido da total improcedência da apelação.
Não foi apresentada qualquer resposta ao douto parecer.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, nº 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), as questões trazidas à apreciação deste Tribunal da Relação são as seguintes:

- Impugnação da matéria de facto;
- Da natureza do contrato celebrado entre as partes
- Confissão da Ré;
- Interpretação do art.º 7.º da lei n.º 7/2009 com vista à aplicação da presunção de consagrada no art.º 12.º do CT2009

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância deram-se como provados os seguintes factos:

Factos assentes por acordo das partes nos articulados

A) A autora é enfermeira, exercendo a sua atividade profissional desde 25 de Outubro de 1999;
B) Por sua vez, a ré é uma unidade hospitalar que presta serviços de internamento para medicina e cirurgia, exames, clínica geral e enfermagem 24 horas, laboratório de análises clínicas e medicina física e de reabilitação;
C) A autora começou a prestar a sua atividade de enfermeira para a ré no dia 9 de Outubro de 2000, sem que então tenha sido elaborado qualquer contrato escrito;
D) A autora exerce funções em local pertença e designado pela ré, a saber, no Hospital de …, sito na Avenida …, em …;
E) A autora usa equipamentos e instrumentos pertença da ré, nomeadamente fardamento, mobiliário, material inerente à atividade de enfermeira, em concreto, material de higiene e de desinfeção, equipamentos hospitalares, material de emergência, descartáveis, consumíveis e material de proteção;
F) A autora exercia funções com observância de horas de termo e de início, com cumprimento de horários certos ou escalas mensais, com a distribuição de turnos que variam entre as 7 (sete) e as 10 (dez) horas diárias;
G) No seguimento de instruções da ré, a autora procedia ao registo de início e termo do exercício das suas funções através de um sistema específico para o efeito (vulgo sistema mecanográfico), facultado pela ré e colocado no local;
H) Desde o dia 09 de Outubro de 2000 até ao dia 06 de agosto de 2017, como contrapartida das funções exercidas, a ré pagou à autora uma quantia certa por hora, que por último se cifrava no montante ilíquido de 8,00€ (oito euros);
I) No dia 3 de Janeiro de 2012, autora e ré assinaram o documento junto a fls. 13v. a 15v. (que aqui se dá por integralmente reproduzido), intitulado “contrato de prestação de serviços de enfermagem”, nos termos do qual a primeira se obrigou a prestar à segunda serviços de enfermagem, na sede da segunda, “pelo período mínimo de 24 horas mensais, sem prejuízo das partes poderem acordar a prestação dos serviços mencionados por um período superior ou diferente”, mediante o pagamento de 8,00€ por cada hora de serviço efetivamente prestado, podendo a autora “deixar de prestar os serviços ora contratados, por motivos devidamente justificados”, devendo comunicar a ausência “por escrito (…) com a antecedência mínima de 15 dias, excetuando as situações de doença que são imprevisíveis”;
J) Em resultado de uma ação inspetiva desenvolvida pela Unidade Local de Braga da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) às instalações da ré, realizada no dia 10/10/2014, verificou-se a existência de pessoas (entre as quais não figurava a autora), em exercício de funções em condições análogas às de contrato de trabalho, o que levou à instauração pelo Ministério Público contra a ré da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que correu termos neste Juízo do Trabalho sob o n.º 547/15.4T8BCL, na qual a ré veio a reconhecer a existência de contratos de trabalho relativamente aos seguintes trabalhadores: A. M. (enfermeira); A. P. (enfermeiro); J. P. (enfermeiro); L. F. (fisioterapeuta); e M. T. (fisioterapeuta);
K) A ré enviou à autora, que a recebeu, a carta junta a fls. 22 (que aqui se dá por integralmente reproduzida), datada de 03 de julho de 2017, com o assunto “denúncia do contrato de prestação de serviços”, na qual lhe comunicou “a denúncia do mesmo contrato” e que “no próximo dia 6 de agosto de 2017, deixará Vª Exª de prestar serviço de enfermagem nesta instituição”;
L) A partir de 06 de agosto de 2017, a autora deixou de desempenhar as suas funções para a ré;
*
Factos controvertidos

M) A autora recebia instruções e orientações concretas dos enfermeiros responsáveis dos vários serviços, consoante estivesse adstrita no momento da execução das suas funções, nomeadamente:
a. pela urgência, o enfermeiro M. L.;
b. pelo internamento, o enfermeiro J. C.;
c. pelo serviço de bloco operatório, o enfermeiro M. F.; e
d. pelo serviço de lar, a enfermeira M. C.;
N) A autora sempre cumpriu o horário definido pela ré nas respetivas escalas de serviço elaboradas pela ré;
O) Em 2017 a ré não concedeu férias à autora nem lhe pagou qualquer quantia relativa a proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal;
P) O fim do contrato levado a cabo pela ré causou à autora um grande desgosto, perturbação, humilhação e ansiedade;
Q) A autora não estava a prever que a ré pudesse pretender desvincular-se da forma como levou a cabo, tendo sido surpreendida pela decisão tomada pela ré;
R) A autora foi e é enfermeira contratada a termo incerto no Hospital de …, E.P.E, em Barcelos, onde tem regime de trabalho a tempo completo, como enfermeira;
S) A tal entidade solicitou autorização para prestar serviços de enfermagem a terceiros;
T) A autora informava a ré, com pelo menos 15 dias de antecedência, os dias disponíveis, comunicando posteriormente a ré aceitar esses dias ou informando os dias de que não precisava;
U) A partir de maio de 2014, alterou-se o sistema de procedimento, passando a ser o seguinte: a autora indicava os dias disponíveis, a ré enviava-lhe o mapa ou escala e de harmonia com as necessidades eram assinalados os tempos e dias disponíveis, ficando assim autora e ré a saber os tempos que se obrigavam a respeitar;
V) Assim:
a. Em maio de 2016, a autora indicou 16 dias de manhã e tardes, em dias diferenciados e intercalados ou forneceu à ré seis manhãs;
b. Em julho de 2016 a autora indicou ou forneceu à ré seis manhãs;
c. Em agosto de 2016, a autora forneceu à ré onze manhãs, que a ré aceitou;
d. Em setembro de 2016, a autora forneceu onze manhãs, que a ré aceitou;
e. Em outubro de 2016, a autora forneceu à ré dez manhãs, que a ré aceitou;
f. Em novembro de 2016, a autora forneceu à ré 12 manhãs, mas a ré apenas aceitou 10;
g. Em dezembro de 2016, a autora indicou disponibilidade de 14 manhãs, mas a ré só necessitou de 13;
h. Em janeiro de 2017 a autora indicou 11 dias disponíveis de manhã, mas a ré só necessitou de 8;
i. Em fevereiro de 2017, a autora indicou 10 manhãs disponíveis, mas a ré só aceitou 8;
j. Em março de 2017, a autora indicou 12 manhãs disponíveis, mas a ré só aceitou 10;
k. Em abril de 2017, a autora indicou 12 manhãs disponíveis, mas a ré só precisou de 8;
l. Em maio de 2017, a autora indicou 13 manhãs disponíveis, mas a ré só precisou de 9;
m. Em junho de 2017, a autora indicou 13 manhãs disponíveis, mas a ré só precisou de 10;
W) A ré pagou o tempo prestado pela autora ao preço à hora acordado;
X) A autora pretendia prestar a sua atividade para a ré apenas de manhã, recusando as tardes e as noites.
*
b) Factos Não Provados

Resultaram não provados os seguintes factos:

1) Que os horários que a autora cumpria fossem determinados pela ré;
2) Que apesar de tal constar no documento assinado por autora e ré, esta obrigasse a autora a informar, por escrito, com antecedência de 15 (quinze) dias, qualquer ausência programada;
3) Que no desempenho das suas funções, a autora não detivesse autonomia;
4) Que não raras vezes, a autora tenha sido confrontada com alterações determinadas à última hora quanto aos horários, turnos ou serviços em que deveria exercer funções, tendo sido obrigada a cumprir tais alterações;
5) Que a autora tenha chegado, inclusive, a ser obrigada a cumprir acumulação de turnos para fazer face a faltas dos colegas nos serviços, tendo sido por isso que cumpriu 14 horas ininterruptamente nos dias 19 e 26 de setembro de 2008;
6) Que com o fim do contrato a autora tenha visto a sua situação profissional abalada e posta em causa;
7) Que a autora tenha passado a ser uma pessoa diferente, já que de uma pessoa alegre e social, passou a ser uma pessoa triste, pouco comunicativa, deixando de conviver socialmente;
8) Que a autora tenha declarado perante o Hospital ... que se comprometia a fazer cessar imediatamente a atividade no caso de ocorrência superveniente de interesse que não havia conflito na atividade a exercer;
9) Que a autora tenha trabalhado:
1. em setembro de 2008, seis manhãs e três tardes;
2. em agosto de 2011, oito manhãs e duas tardes;
3. em outubro de 2011, oito manhãs;
4. em novembro de 2011, oito manhãs;
5. em janeiro de 2012, oito manhãs;
6. em fevereiro de 2012, onze manhãs;
7. em março de 2012, nove manhãs;
8. em fevereiro de 2013, oito manhãs e uma tarde;
9. em abril de 2013, sete manhãs;
10) Que a autora fosse uma enfermeira medíocre, conflituosa, inconsciente dentro da instituição.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da impugnação da matéria de facto.

Dispõe o artigo 662.º n.º 1 do C.P.C. aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 87º do C.P.T. e no que aqui nos interessa, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

A Recorrente nos pontos V) a XIV) das suas conclusões sustenta que a decisão proferida pela 1ª instância quanto à matéria de facto efectuou uma errada apreciação da prova, mais concretamente, na matéria factual plasmada nos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6) e 7) da factualidade considerada não provado, que deveria ter sido dada como provada, devendo por isso com base nos depoimentos das testemunhas e nos documentos juntos aos autos, proceder-se à sua alteração. Por outro lado, deverá ser dado por assente o facto de a autora ter exercido funções de chefia, que tendo ficado demonstrado com base em prova documental (doc. 24 e 38 da resposta) e testemunhal (A. P.) não consta dos factos provados.

Os factos que a Recorrente pretende que sejam dados como provados são os seguintes:

1) Que os horários que a autora cumpria fossem determinados pela ré;
2) Que apesar de tal constar no documento assinado por autora e ré, esta obrigasse a autora a informar, por escrito, com antecedência de 15 (quinze) dias, qualquer ausência programada;
3) Que no desempenho das suas funções, a autora não detivesse autonomia;
4) Que não raras vezes, a autora tenha sido confrontada com alterações determinadas à última hora quanto aos horários, turnos ou serviços em que deveria exercer funções, tendo sido obrigada a cumprir tais alterações;
5) Que a autora tenha chegado, inclusive, a ser obrigada a cumprir acumulação de turnos para fazer face a faltas dos colegas nos serviços, tendo sido por isso que cumpriu 14 horas ininterruptamente nos dias 19 e 26 de setembro de 2008;
6) Que com o fim do contrato a autora tenha visto a sua situação profissional abalada e posta em causa;
7) Que a autora tenha passado a ser uma pessoa diferente, já que de uma pessoa alegre e social, passou a ser uma pessoa triste, pouco comunicativa, deixando de conviver socialmente;

Vejamos.

Em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria de facto controvertida em face dos elementos a que teve acesso, de forma a verificar ou não um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas, aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.

O tribunal a quo deu tais factos como não provados com a seguinte fundamentação:

O tribunal considerou provados e não provados os factos acima constantes com base na prova por declarações de parte e testemunhal produzida em audiência e na prova documental junta aos autos, do modo que seguidamente se descreve.
(…)
Além disso, quando confrontada com a situação dos demais enfermeiros (o enfermeiro A. P., por exemplo), a própria autora foi muito clara ao distinguir a sua situação da deles, dizendo que “eles tinham de fazer 40 ou 35 horas semanais” e, ao contrário de si, não davam disponibilidades à aqui ré. Note-se que estas declarações foram integralmente coincidentes com os depoimentos do referido enfermeiro A. P. (afirmou de forma aparentemente espontânea que no seu caso “encaixava os outros trabalhos [fora da ré] nas minhas folgas [na ré]”, ao passo que os demais colegas “falavam é que dariam disponibilidades”) e da enfermeira P. J. (afirmou que trabalhava numa clínica em Santo Tirso e que só quando saía o horário na ré “encaixava na clínica”, ao contrário da autora, que esperaria pelo horário de Barcelos e daria depois disponibilidades à ré), assim se evidenciando a apontada diferença.

Ora, estas declarações deixam inequívoco que o que alega a ré na contestação quanto à forma de marcação de turnos e escalas corresponde efetivamente à realidade – a autora previamente comunicava à ré as disponibilidades que tinha e esta atribuía à autora escalas de acordo com tais disponibilidades e muitas vezes não as utilizando todas. Aliás, tal é o que resulta da análise dos documentos juntos a fls. 51 a 73, dos quais constam os emails enviados pela autora com a informação das suas disponibilidades e a posterior resposta da ré com o preenchimento das escalas, assim se comprovando o que era alegado nos arts. 14.º a 18.º da contestação (sendo que quanto ao art.º 11.º se deu tal matéria como não provada por não haver qualquer prova documental que o atestasse, nem nestes autos nem no processo a que se referem os arts. 6.º e 10.º que, como se referiu no despacho proferido a fls. 493 em que se indeferiu a apensação, absolutamente nenhum documento contém para além da carta junta a estes autos a fls. 22). Do que vem de ser dito resulta não apenas a prova de tal matéria alegada na contestação, mas também a não prova do que era alegado na petição quanto a serem os horários determinados pela ré – eram definidas horas de início e fim de funções e as escalas eram definidas pela ré, mas não eram determinadas por esta, antes o eram em função do que a autora previamente comunicava.
Mais fica também claro da análise dos emails juntos a fls. 74 e 75 que a autora efetivamente apenas se disponibilizava para fazer turnos da parte da manhã, conforme alegava a ré, o que também aponta para uma prévia comunicação de disponibilidades e posterior marcação de escalas pela ré dentro de tais disponibilidades.
Diga-se ainda que a conjugação das declarações e depoimentos e dos documentos vindos de referir não permite concluir pela demonstração do que a autora alegava nos arts. 29.º, 39.º e 40.º da petição inicial – ainda que tenham existido os eventuais turnos sucessivos, nada ficou demonstrado quanto a ter a autora sido obrigada pela ré a fazê-los ou tenha sido confrontada à última hora com uma alteração de horários, sendo que a própria afirmou que a troca de turnos era livremente efetuada. Aliás, os depoimentos prestados pelos demais enfermeiros foram também neste sentido, o que não é afetado pelo documento junto a fls. 286 ou pelo teor da cláusula 8.ª do contrato assinado em 2012 (fls. 15), que ficou claro não serem habitualmente seguidos, podendo os enfermeiros trocar entre si os turnos atribuídos sem qualquer interferência ou autorização prévia por parte da ré.
Que a ré tinha uma organização interna com enfermeiros responsáveis por cada departamento ficou claro dos depoimentos prestados pelos enfermeiros em causa – M. L., J. C., M. F. e M. C. – mas não ficou demonstrado que no exercício das suas funções a autora não dispusesse de autonomia (encarando-se aqui o termo na sua aceção não jurídica): não houve qualquer prova no sentido de que a autora no concreto exercício da sua atividade de enfermeira (prática de atos de enfermagem) estivesse sujeita a indicações ou orientações daqueles responsáveis.

No que toca aos danos não patrimoniais alegados, a prova produzida foi no sentido de ter a autora ficado efetivamente abalada com a forma como a sua relação com a ré cessou e de ter sido para si uma situação inesperada. Neste sentido depuseram de forma a todos os títulos convincente N. C. (irmão da autora), R. G. (colega de trabalho da autora em Barcelos) e C. K. (médica em Barcelos desde 2008/2009, ali convivendo com a autora), que descreveram o estado da autora na altura em que a ré a dispensou, o que é consentâneo com as regras da experiência comum, tendo em conta o extenso período ao longo do qual a autora prestou funções para a ré, não tendo ficado dúvidas ao tribunal quanto ao abalo sentido. Não ficou o tribunal convencido, porém, do que era alegado quanto ao abalo ao nível profissional (o que não é lógico, tendo em conta o que se demonstrou quanto ao exercício de funções em Barcelos e o que a autora declarou quanto a ser esse o local principal de exercício da sua atividade) e tendo parecido manifestamente exagerado o que se dizia quanto a ter a autora passado a ser diferente, triste e pouco comunicativa.
(…)”
Depois de termos analisado toda a prova produzida designadamente a testemunhal afigura-se-nos dizer que não vislumbramos qualquer razão para proceder à modificação da matéria de facto no que respeita a estes factos dados como não provados.
Com efeito, no que respeita ao ponto 1 dos factos não provados, tal como consta sobejamente explicado na motivação explanada pelo tribunal a quo e que vai de encontro à prova efectivamente produzida em audiência de julgamento, não se vislumbra que tal facto pudesse ser dado como provado, quando resultou exuberantemente provado, designadamente das próprias declarações da autora que depois de ter o seu horário do Hospital ... é que dava as suas disponibilidades à Ré, para que mediante as mesmas lhe fosse atribuído horário no Hospital ….
Daqui resulta precisamente o contrário do pretendido pela recorrente ou seja não era a Ré quem determinava o horário da Autora, no sentido de o poder fixar apenas de acordo com as suas conveniências, mas sim a autora era quem de forma indirecta ao indicar mensalmente a ré das suas disponibilidades, acabava por ser quem determinava o seu horário, já que o mesmo era estipulado de acordo com os seus interesses (disponibilidade) e as necessidades da Ré.
Acresce dizer que outros colegas de trabalho da autora a quem foi reconhecido a existência de contrato de trabalho tinham relativamente à estipulação de horário uma situação completamente distinta da autora, ou seja para além de prestarem o horário completo (35 ou 40 horas semanais) só depois de lhes ser atribuído o horário mensal segundo a conveniência da Ré é que esses colaboradores munidos do mesmo manifestavam a sua disponibilidade juntos de outras instituições onde prestavam serviço, tal sucedida pelo menos com o A. P. e a P. J..

Acresce dizer, no que respeita à forma como passaram a ser fixados os turnos das épocas festivas e domingos, a prova produzida não nos permite concluir como pretende a recorrente, pois os documentos juntos aos autos não podem se apreciados de forma estanque e isolada, mas sim tem de ser apreciados em conjugação com os depoimentos prestados, deles resultando que foi com o acordo de todos e não por imposição da Ré que passaram a fixar previamente os turnos das épocas festivas e domingos, para que tais turnos não fossem sempre suportados pelos mesmos colaboradores.

Por fim, diremos ainda que se em situações esporádicas (uma vez no ano de 2017 e duas vezes no ano de 2015) foi atribuído um horário à autora em que não foram respeitadas as disponibilidades indicadas pela autora, tal como resulta da prova testemunhal produzida, só poderá se ter tratado de lapso, que se presume que a autora tenha resolvido da melhor forma, pois não consta que a Ré a tivesse coagido a realizar turnos para os quais não estava disponível, nem que a Autora tenha preterido o serviço a prestar no Hospital ... em benefício do serviço a prestar na Ré. Assim do teor dos documentos 29, 32, 34, 36, 37, 42, 43, 44, 45, 46 e 47, juntos com a resposta à contestação porque tem de ser conjugados com a demais prova produzida não nos permitem de forma alguma concluir que a autora cumpria horários para os quais não tinha mostrado disponibilidade, indiciando assim que os horários eram impostos pela Ré.
Relativamente ao ponto 2 dos factos não provados, diremos que se é certo que do documento n.º 2 junto com a petição inicial (contrato escrito celebrado entre autora e Ré em 2012) resulta inequívoco que a autora tinha que informar a ré, por escrito com antecedência de 15 dias, de qualquer ausência programada, também é certo que a prova testemunhal deixa dúvidas quanto ao cumprimento quer da autora, quer dos demais colegas de tal procedimento, pois o que resulta dos diversos depoimentos é que os enfermeiros podiam trocar livremente os turnos sem qualquer interferência ou autorização prévia da Ré, sendo certo que mais tarde pelo facto de terem existido esquecimentos no cumprimento das trocas, passaram a comunicar a troca com preenchimento de documento, o que por vezes sucedida, sem que com segurança se possa afirmar que tal procedimento passou a ser observado.
Em suma, é de manter o ponto 2 nos factos não provados, pois dos depoimentos prestados pela generalidade dos enfermeiros resulta que podiam trocar entre si os turnos atribuídos sem qualquer interferência ou autorização prévia por parte da Ré.
Quanto ao ponto 3 dos factos não provados afigura-se-nos dizer, que concordamos com a Recorrente quanto à natureza conclusiva de tal matéria, mas como a mesma se encontra elencada na factualidade não provada, em nada releva, pelo que não se vislumbra qualquer interesse na sua eliminação.
Quanto à pretensão da Recorrente de se dar como provada a factualidade que consta da alínea M) dos factos controvertidos, a mesma revela-se de incompreensível, pois ao contrário do por si pretendido tal factualidade consta precisamente dos pontos de facto provados sob a alínea M), tal como resulta inequívoco da sentença recorrida, designadamente do ponto II- a) sob a menção de Factos provados.
No que respeita ao ponto 4 dos factos não provados diremos que a prova produzida revela-se de manifestamente insuficiente para dar como provado não só que “[q]ue não raras vezes, a autora tenha sido confrontada com alterações determinadas à última hora quanto aos horários, turnos ou serviços em que deveria exercer funções,” como foi “obrigada a cumprir tais alterações”. O facto dos documentos referentes a escalas mencionarem a possibilidade da escala ser submetida a alterações não nos permite concluir não só que tal sucedeu, como a autora foi a visada nessas eventuais alterações. Por outro lado, o depoimento de A. P. quanto a este facto revelou-se de pouco seguro, pois falou do que não tinha conhecimento, já que foi dizendo que por trabalhar mais no Lar, não tinha certeza de como funcionava no Hospital. Por fim, as declarações da autora também se revelaram de insuficientes para dar estes factos como provados, sendo certo que nem a própria afirmou, ter sido obrigada a cumprir as eventuais alterações de horário.
No que refere ao ponto 5 dos factos dados como não provados diremos desde já que o teor do documento 3 junto com a petição inicial – escala de serviço referente ao mês de Setembro de 2008 – desacompanhado de qualquer outra prova não nos permite concluir que a autora tenha cumprido 14 horas de ininterruptamente nos dias 19 e 26 de Setembro e muito menos resulta que a Autora tenha sido obrigada a cumprir tal horário para fazer face a faltas de colegas. Ainda que tal documento não tenha sido impugnado pela Ré do seu teor, não resulta a prova dos factos nos termos pretendidos pela recorrente, nem sequer na sua versão mais restrita, pois como refere o tribunal a quo na sua motivação ainda que tenham existido eventuais turnos sucessivos, nada ficou demonstrado quanto a ter a autora sido obrigada pela ré a fazê-los. Acresce dizer que o facto de a Autora ter eventualmente praticado algum turno sucessivo, só por si não teria qualquer interesse para a boa decisão da causa, não se vislumbrando assim qualquer interesse no seu aditamento aos factos provados.

Em face do exposto é de manter o ponto 5 dos factos não provados.

Quanto aos pontos 6 e 7 dos factos não provados que respeita às consequências psicológicas e pessoais sofridas pela Autora resultantes do término do contrato afigura-se-nos dizer que o tribunal a quo a este respeito deu como provado sob a alínea P) que “O fim do contrato levado a cabo pela ré causou à autora um grande desgosto, perturbação, humilhação e ansiedade”
Salvo o devido respeito por opinião em contrário, o facto dado como provado traduz precisamente o que resultou a este respeito da prova produzida em audiência de julgamento, não merecendo qualquer reparo a decisão proferida pelo tribunal a quo, muito menos que tivesse cometido qualquer erro que impusesse decisão diferente.
Efectivamente, ao contrário do afirmado pela recorrente, nem das declarações de parte proferidas pela autora, nem dos depoimentos prestados pelas testemunhas designadamente por C. K. (médica que trabalha com a Autora no Hospital ...) e N. C. (irmão da Autora) resulta que com o fim do contrato a autora tenha visto a sua situação profissional abalada e posta em causa e que tenha passado a ser uma pessoa diferente triste, pouco comunicativa, deixando de conviver socialmente.
As referidas testemunhas relataram o estado da autora psicológico em face da cessação do contrato, dai resultando a factualidade dada como provada sob a alínea P). Quanto ao mais concordamos inteiramente com a motivação esplanada pelo tribunal da 1ª instância a este propósito ou seja não ficámos convencidos nem do alegado abalo profissional, nem da alteração de personalidade, pois não é verosímil e parece até um pouco exagerado que o facto de perder o serviço que realiza de forma secundária algumas horas por semana ainda que durante vários anos ter as consequências que a autora pretendia que fossem dadas como provadas.

Por fim, importar frisar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC, segundo tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial toda a apreciação da prova pelo tribunal da 1ª instância. E no que respeita à prova testemunhal está consagrado no artigo 396º do CC, o princípio da livre apreciação da prova testemunhal, segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador ao dispor o citado preceito legal que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal. Relacionado com este princípio estão os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção de prova e a discussão na audiência de julgamento se realizem oralmente, para que as provas, excepto aquelas cuja natureza o não permite, sejam apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo diz respeito à proximidade que o julgador tem com o participante ou intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova através de uma percepção directa ou formal. Esta perceção imediata oferece maiores possibilidades de certeza e da exacta compreensão dos elementos levados ao conhecimento do tribunal.

Assim, tendo presente os mencionados princípios e sem esquecer que não está em causa proceder a um novo julgamento, mas apenas o exame da decisão da 1ª instância e respectivos fundamentos com a análise da prova gravada, teremos de concluir que quanto a estes concretos pontos de facto impugnados, o tribunal a quo não cometeu qualquer erro na sua apreciação, tendo de forma precisa, exaustiva e pormenorizada fundamentado e motivado a decisão relativamente à matéria de facto.
É assim de manter inalterados os números 1 a 7 dos pontos de facto não provados, improcedendo assim as conclusões V) a XIII) da alegação de recurso
Por fim sustenta ainda a recorrente que deve constar dos factos provados a seguinte factualidade: “Que nos dias 2, 9, 13, 20, 21, 24 e 26 de fevereiro de 2011, a Autora desempenhou funções de chefia na estrutura orgânica da Ré.”, já que resulta da prova documental (doc. 24 e 38 da resposta) bem como do depoimento de A. P. que a autora exerceu na Ré funções de chefia.
O facto que a recorrente agora pretende aditar tem de ser considerado de facto novo, uma vez que não consta de qualquer um dos articulados apresentados (tenha-se presente que o tribunal a quo considerou como não escritos os artigos 14.º a 60.º do articulado de resposta apresentado pela autora), nem foi objecto de ampliação em sede de produção de prova.
Analisados os articulados resulta manifesto que o novo facto que se pretende que seja aditado não foi alegado por qualquer uma das partes, nem foi objecto de ampliação em sede de produção de prova.
Dispõe o art.º 72.º do CPT. à data em vigor, sob a epígrafe, “Discussão e julgamento da matéria de facto” o seguinte:

1 - Se no decurso da produção da prova surgirem factos que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve ampliar a base instrutória ou, não a havendo, tomá-los em consideração na decisão da matéria de facto, desde que sobre eles tenha incidido discussão.
2 - Se for ampliada a base instrutória nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respetivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias.
3 - Abertos os debates, é dada a palavra, por uma só vez e por tempo não excedente a uma hora, primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu, para fazerem as suas alegações, tanto sobre a matéria de facto como sobre a matéria de direito.
4 - Findos os debates, pode ainda o tribunal ampliar a matéria de facto, desde que tenha sido articulada, resulte da discussão e seja relevante para a boa decisão da causa.
5 - Os juízes sociais intervêm na decisão da matéria de facto votando em primeiro lugar, segundo a ordem estabelecida pelo presidente do tribunal, seguindo-se os juízes do coletivo por ordem crescente de antiguidade, mas sendo o presidente o último a votar.
6 - O tribunal pode, em qualquer altura, antes dos debates, durante eles ou depois de findos, ouvir o técnico designado nos termos do artigo 649.º do Código de Processo Civil.”.

O mecanismo previsto no transcrito artigo permite ao tribunal uma maior amplitude na aquisição factual, que tem de obedecer a determinado procedimento, que passa pela enunciação dos factos e submissão a prova contraditória. Está, em princípio, previsto para a audiência de discussão e julgamento.
Decorre da citada norma a faculdade que o juiz tem de ordenar a reabertura da audiência a fim produzir nova prova, sempre que o julgue necessário ao cabal esclarecimento dos factos.
Contudo, apesar de tal poder caber ao juiz, nada obsta que as próprias partes requeiram ao Tribunal, quando se apercebam de que da produção de prova resultaram factos provados, que não obstante não terem sido expressamente alegados são relevantes para a boa decisão da causa, desde que se contenham nos limites da causa de pedir da parte.
No caso dos autos, não resulta quer dos articulados/requerimentos apresentados pelas partes, nem das atas da audiência de discussão e julgamento que a Recorrente/Apelante tenha requerido tal exercício por parte do Tribunal de primeira instância.
É de referir que o exercício dos poderes-deveres contidos no art.º 72.º, n.º 1 do CPT, está circunscrito à 1.ª instância, sendo que à Relação apenas é consentida a reapreciação dos meios de prova que conduziram à prova ou não prova dos factos sobre os quais incida o recurso da matéria de facto ou ordenar a ampliação da matéria de facto quando repute serem essenciais factos para a decisão que não mereceram da 1.ª instância qualquer pronúncia, mas que tenham sido alegados.

Os poderes do Tribunal da Relação estão, neste âmbito, concreta e claramente delimitados pelo n.º 1 do art.º 662.º do CPC., tal como acima já referimos, ou seja a decisão sobre a matéria de facto só deve ser alterada se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que significa que a decisão a alterar há-de respeitar a factos adquiridos – no sentido de provados/não provados ou alegados – e não a outros que sejam percepcionados no decurso da audição dos registos da prova.

Em suma, não tendo o tribunal da 1.ª instância feito uso do poder-dever previsto no art.º 72.º do CPT, no que respeita a este novo facto que a recorrente pretendia ver aditado, até ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância, também o Tribunal da Relação, em sede de recurso da sentença final, não pode pronunciar-se sobre o mesmo, como se tal facto tivesse sido alegado pelas partes.
Tenha-se presente que nem a Autora, nem a Ré empregadora alegaram que a Autora enquanto esteve ao serviço da Ré desempenhou funções de chefia na estrutura orgânica da Ré.

Como se escreve no acórdão do STJ de 2 de abril de 2014, proferido no Proc. n.º 612/09.7 TTST.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt, a propósito dos art.ºs 27.º al. b) e art.º 72.º do CPT.

“Lidos estes dispositivos, emerge dos mesmos um complexo de poderes relativos à matéria de facto atribuídos à iniciativa do Tribunal, mas que nada impede que sejam exercidos a requerimento das partes, e que configura uma situação que ultrapassa o regime do processo civil decorrente do n.º 2 do artigo 264.º do CPC, e que é motivada pelas preocupações da natureza pública e de busca da verdade material que estão subjacentes à aplicação do Direito do Trabalho.
Mau grado seja legítimo o conhecimento de factos não articulados pelas partes e que chegam ao conhecimento do Tribunal, nomeadamente, no contexto da audiência, essa oportunidade de conhecimento não legitima, sem mais, a possibilidade de utilização desses factos como base na decisão a proferir, impondo-se a sujeição dos mesmos às exigências de contraditório estabelecidas, única forma de evitar atropelos relativamente à normalidade da gestão do processo, principalmente aos direitos das partes.
O regime previsto aponta para a oficiosidade da intervenção do Tribunal relativamente a esses factos, mas isso não impede, aliás tudo aconselha a que as partes, no contexto da audiência, suscitem o aditamento dos mesmos à Base Instrutória e o estabelecimento do contraditório que permita a respetiva utilização como suporte da decisão a proferir.

No caso dos autos, nada foi requerido no contexto da audiência, vindo os Autores suscitar a questão da ampliação da matéria de facto em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação, o que manifestamente atropela os princípios relativos à gestão do processo.
Com efeito, mau grado o CPT preveja essa intervenção oficiosa não estabelece qualquer disciplina que ultrapasse os quadros que emergem do processo civil e se sobreponha aos mesmos, pelo que aquela disciplina terá de ser articulada com o regime geral que resulta do Código de Processo Civil.
Não é, pois, possível tratar a omissão de intervenção sobre a factualidade relevante na perspectiva das partes, prevista no artigo 72.º do CPT, como se a mesma tivesse sido alegada nos articulados respectivos pelas partes, o que poderia viabilizar o recurso ao disposto no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil.

Na verdade, não se mostram preenchidos os requisitos definidos no artigo 729.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto dada como provada «em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito».
Com efeito, nos termos daquele dispositivo e do n.º 1 do artigo 730.º do Código de Processo Civil, o Supremo pode mandar «julgar novamente a causa», quando «entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito».
Porém, conforme se vem entendendo uniformemente, a faculdade concedida a este Supremo Tribunal de ordenar a ampliação da matéria de facto, só pode ser exercida no respeitante a factos articulados pelas partes ou de conhecimento oficioso, em consonância com o prevenido no artigo 264.º do Código de Processo Civil (negrito nosso).
Acresce que apesar da oficiosidade do exercício dos poderes previstos no artigo 72.º, tais poderes nada têm a ver com os factos de conhecimento oficioso previstos no n.º 2 do referido artigo 264.º do Código de Processo Civil.”
Concluindo, não é admissível aditar aos factos provados quaisquer outros factos que não tenham sido alegados pelas partes, caso não tenha sido observado o procedimento previsto no artigo 72.º do CPT., razão pela qual improcede a conclusões XIV do recurso.

Da natureza do contrato celebrado entre as partes

Mantendo-se inalterada a matéria de facto é com base no quadro factual fixado pelo tribunal a quo que se irão apreciar as questões de direito suscitada ou seja apurar se a relação contratual estabelecida entre a Autora e a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., Hospital e LAR ... é de qualificar como contrato de trabalho.

- Da confissão da Ré

Antes porém importa apreciar se a Ré confessou que o contrato que a vinculou à Autora é de trabalho.
Defende a Recorrente que a Ré confessou que o contrato escrito que celebrou com a Autora em 3 de Janeiro de 2012 consubstancia um contrato de trabalho, resultando tal da força probatória plena a atribuir aos diversos documentos juntos aos autos e que não foram impugnados, tais como: certidão judicial de processo de contra ordenação (por utilização indevida de contratos de prestação de serviços em que a ora aqui Ré era arguida); requerimento e acta de audiência de partes e julgamento relativos a acções de reconhecimento da existência de contrato de trabalho referentes a colegas da autora; e mapas de escalas emanados da Ré, onde faz referência ao instrumento de regulamentação colectiva aplicável.

O tribunal a quo apreciou esta questão de forma incisiva, clara e assertiva, como se transcreve:

No que diz respeito à factualidade controvertida, deve desde logo começar-se por analisar uma questão suscitada pelo Ex.mo Mandatário da autora em sede de alegações orais e que se prende com o que entende ser uma confissão feita pela ré. No entender do Ex.mo Mandatário, a ré ao reconhecer nas demais ações que contra si foram instauradas por outros funcionários que estes estavam a si vinculados por um contrato de trabalho veio a fazer uma confissão no que toca à aqui autora, uma vez que esta tinha assinado um contrato exatamente idêntico ao daqueles. Apesar de estarmos nesta fase da sentença em sede de valoração da prova produzida, a questão deve aqui ser analisada pois terão de ser aplicadas as regras de direito probatório material, regras essas que poderão condicionar a margem de liberdade do tribunal quanto à apreciação dos factos, uma vez que nos termos do disposto no art.º 376.º do Código Civil, a confissão pode ter força probatória plena. Contudo, e salvo sempre o devido respeito, entendo não haver qualquer confissão que deva ser valorada.

Em primeiro lugar, as declarações feitas pela ré noutras ações foram-no relativamente a alegações e factos concretos respeitantes a terceiros e não à aqui autora. Não se pode pretender que declarações feitas pela ré perante terceiros possam valer como confissão relativamente a factos e situações alegadas pela aqui autora, que é estranha àquelas ações. Quando a ré optou por fazer as declarações em causa não sabia o que a autora alegava ou iria alegar, pelo que não podia contar com a atribuição àquelas declarações do sentido ou significado que a autora agora das mesmas pretende extrair, pelo que desde logo por aí seria inadmissível a sua consideração como declarações confessórias relativamente à aqui autora.

Por outro lado, de acordo com o art.º 352.º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. Ora, ainda que se pudesse considerar inteiramente sobreponível a situação da autora e a dos demais funcionários da ré que foram parte nas demais ações, o reconhecimento ali feito pela ré de que estaria vinculada por contratos de trabalho não é o reconhecimento de um facto, mas apenas de uma subsunção jurídica. A conclusão pela existência de um contrato de trabalho ou de prestação de serviços tem de ser feita a partir de factos dos quais se possa extrair a existência ou não de subordinação jurídica. A ré nas demais ações aceitou a existência de contratos de trabalho, não tendo admitido factos concretos. Muito menos aceitou qualquer facto que envolvesse a aqui autora, mas apenas a situação dos demais funcionários. A mera existência de um contrato escrito idêntico ao dos demais funcionários não permite extrapolar daquele reconhecimento feito pela ré quanto à existência de contratos de trabalho que assim seja no que toca à autora deste processo. O contrato escrito é apenas um de muitos elementos que o tribunal terá de analisar para concluir pela procedência ou improcedência da pretensão da autora – podem duas pessoas ter assinado exatamente o mesmo documento mas as condições concretas em que prestam a sua atividade serem de tal modo diversas que se tenha de concluir estarem vinculadas por figuras contratuais distintas.
Mais se diga que (outro ponto levantado pelo Ex.mo Mandatário nas suas alegações orais) o facto de a ré em documentos por si elaborados expressamente mencionar um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (veja-se o cabeçalho das escalas, por exemplo aquela junta a fls. 297) – “IRCT: ACT – Santa Casa de Misericórdia ... e outras” – também não pode ser valorado como confissão da existência de uma relação laboral. Também ali não estamos perante qualquer admissão de factos e os documentos em causa dizem respeito a diversos funcionários, podendo uns estar vinculados por contratos de trabalho e outros por contratos de prestação de serviços, não sendo aquela mera indicação que irá alterar a natureza do vínculo jurídico. Afastada a existência de confissão, vejamos então da prova produzida. “

A propósito da força plena dos documentos não impugnados, refere o ac. do STJ de 23/11/2005, proc. 05B3318, consultável im www.dgsi.pt

“A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito".
Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, que o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.
É que "a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do art. 376º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas".
Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respectivos factos materiais.
E, sobretudo, não se exclui a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova, uma vez que "embora um documento prove as declarações das partes, deve poder provar-se que elas não correspondem à verdade".

Em suma, para além do valor probatório a atribuir aos documentos não impugnados se circunscrever à sua materialidade ou seja à existência dessas declarações e não à sua exactidão, não se podem considerar relevantes para efeitos de confissão da Ré de factos respeitantes à autora, as declarações feitas por aquela noutros processos judiciais em que a autora não teve qualquer intervenção, nem a ela respeitavam. O facto de existir um contrato escrito celebrado idêntico aos demais trabalhadores relativamente aos quais a Ré veio a reconhecer a existência de contrato de trabalho não permite concluir sem mais, que o contrato celebrado com a autora também tenha de ser caracterizado como de trabalho. O mesmo sucedendo relativamente à referência ao instrumento de regulamentação colectiva feita nas escalas de serviço, também não se pode concluir pela sua aplicação à autora com o consequente reconhecimento do contrato como sendo de trabalho, bastando ter presente que naquela instituição nem todos eram portadores de contrato de prestação de serviços.

Por último, importa referir que a Autora pretendia que fosse dado como provado por confissão o seguinte. “que o contrato de trabalho celebrado com a Autora e Ré no dia 3 de janeiro de 2012 é um contrato de trabalho e não um mero contrato de prestação de serviços.”. Não se trata de um facto, mas sim de uma conclusão integradora de conceitos jurídicos e não de factos que só por si daria resposta ao pedido principal formulado pela autora. Assim, também por esta razão não pode proceder a pretensão da recorrente.

Improcedem as conclusões XVII a XIX

- Da Interpretação do art.º 7.º da lei n.º 7/2009 com vista à aplicação da presunção de consagrada no art.º 12.º do CT2009

Insurge-se a Recorrente relativamente ao facto do tribunal a quo não ter reconhecido a existência de uma relação laboral estabelecida entre Autora e Ré, importando por isso indagar da qualificação da relação contratual ao abrigo da qual Autora exerceu as suas funções de enfermeira, no Hospital e LAR ....
Há que ter presente que o contrato de trabalho é um negócio não formal, meramente consensual, sendo fundamental para proceder à operação de qualificação apreciar os factos apurados relativamente ao modo como se desenvolveu a prestação de trabalho do A. durante o período temporal em análise.

Resulta dos factos provados, que:

C) A Autora começou a prestar a sua atividade de enfermeira para a ré no dia 9 de outubro de 2000, sem que então tenha sido elaborado qualquer contrato escrito;
D) A autora exerce funções em local pertença e designado pela ré, a saber, no Hospital …, sito na Avenida …, em …;
E) A autora usa equipamentos e instrumentos pertença da ré, nomeadamente fardamento, mobiliário, material inerente à atividade de enfermeira, em concreto, material de higiene e de desinfeção, equipamentos hospitalares, material de emergência, descartáveis, consumíveis e material de proteção;
F) A autora exercia funções com observância de horas de termo e de início, com cumprimento de horários certos ou escalas mensais, com a distribuição de turnos que variam entre as 7 (sete) e as 10 (dez) horas diárias;
G) No seguimento de instruções da ré, a autora procedia ao registo de início e termo do exercício das suas funções através de um sistema específico para o efeito (vulgo sistema mecanográfico), facultado pela ré e colocado no local;
H) Desde o dia 09 de outubro de 2000 até ao dia 06 de agosto de 2017, como contrapartida das funções exercidas, a ré pagou à autora uma quantia certa por hora, que por último se cifrava no montante ilíquido de 8,00€ (oito euros);
I) No dia 3 de janeiro de 2012, autora e ré assinaram o documento junto a fls. 13v. a 15v. (que aqui se dá por integralmente reproduzido), intitulado “contrato de prestação de serviços de enfermagem”, nos termos do qual a primeira se obrigou a prestar à segunda serviços de enfermagem, na sede da segunda, “pelo período mínimo de 24 horas mensais, sem prejuízo das partes poderem acordar a prestação dos serviços mencionados por um período superior ou diferente”, mediante o pagamento de 8,00€ por cada hora de serviço efetivamente prestado, podendo a autora “deixar de prestar os serviços ora contratados, por motivos devidamente justificados”, devendo comunicar a ausência “por escrito (…) com a antecedência mínima de 15 dias, excetuando as situações de doença que são imprevisíveis”;
M) A autora recebia instruções e orientações concretas dos enfermeiros responsáveis dos vários serviços, consoante estivesse adstrita no momento da execução das suas funções, nomeadamente:
a. pela urgência, o enfermeiro M. L.;
b. pelo internamento, o enfermeiro J. C.;
c. pelo serviço de bloco operatório, o enfermeiro M. F.; e
d. pelo serviço de lar, a enfermeira M. C.;
N) A autora sempre cumpriu o horário definido pela ré nas respetivas escalas de serviço elaboradas pela ré;
O) Em 2017 a ré não concedeu férias à autora nem lhe pagou qualquer quantia relativa a proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal;
R) A autora foi e é enfermeira contratada a termo incerto no Hospital de …, E.P.E, em …, onde tem regime de trabalho a tempo completo, como enfermeira;
S) A tal entidade solicitou autorização para prestar serviços de enfermagem a terceiros;
T) A autora informava a ré, com pelo menos 15 dias de antecedência, os dias disponíveis, comunicando posteriormente a ré aceitar esses dias ou informando os dias de que não precisava;
U) A partir de maio de 2014, alterou-se o sistema de procedimento, passando a ser o seguinte: a autora indicava os dias disponíveis, a ré enviava-lhe o mapa ou escala e de harmonia com as necessidades eram assinalados os tempos e dias disponíveis, ficando assim autora e ré a saber os tempos que se obrigavam a respeitar;
W) A ré pagou o tempo prestado pela autora ao preço à hora acordado;
X) A autora pretendia prestar a sua atividade para a ré apenas de manhã, recusando as tardes e as noites.

Está assim provado que a relação contratual entre as partes iniciou-se em 9 Outubro de 2000 e veio a terminar em 6 de Agosto de 2017 e resulta da factualidade provada que os termos essenciais da relação contratual se mantiveram inalterados ao longo dos anos, apenas se assinalando a vicissitude de no dia 3 de janeiro de 2012, autora e ré terem assinado o documento intitulado de “contrato de prestação de serviços de enfermagem”, que não alterou em nada a forma como a relação contratual estabelecida entre as partes se vinha processando.
Tudo isto para dizer que tendo a relação contratual tido o seu início na vigência do Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969 (doravante LCT), que foi revogada pelo do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, posteriormente alterado pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, alteração que entrou em vigor em 25 de Março de 2006, mas antes da publicação e, consequentemente, da entrada em vigor em 13/02/2009 do Código do Trabalho revisto, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02 e sendo certo que a sua cessação ocorreu já na vigência do Código do Trabalho revisto, coloca-se desde logo a questão de saber se a qualificação do contrato deve ser aferida à luz do Código do Trabalho revisto com vista à aplicação da presunção de consagrada no art.º 12.º do CT2009 ou se, pelo contrário, deve ser apreciada à face do regime jurídico-laboral que vigorava quando se iniciou a relação contratual.
A resposta encontra-se no n.º 1 do art.º 7.º Lei n.º 7/2009, de 12/02, que tal como o artigo 8.º da Lei n.º 99/2003, estabelece que, sem prejuízo do disposto no presente artigo e nos artigos seguintes – que para o caso dos autos são irrelevantes –, o respectivo regime jurídico se aplicava aos contratos de trabalho e aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou adoptados antes da entrada em vigor dos sobreditos diplomas legais, “salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.
Assim sendo e caso se venha a entender que a relação em apreço nos autos é de trabalho subordinado, passou a estar sujeita ao Código do Trabalho revisto, após a data em que este entrou vigor.
Contudo no que diz respeito à apreciação da natureza do vínculo contratual ou seja à sua eventual qualificação como contrato de trabalho, o regime legal a aplicável já não será o contido no Código do Trabalho revisto, mas o constante da LCT, que se encontrava em vigor aquando da celebração do contrato, pois para a qualificação do contrato importa atentar nos factos que deram origem a tal relação devendo por isso ser utilizada na sua caracterização a lei que estava em vigor quando foram definidos os contornos essenciais da relação contratual. Só não seria assim relativamente aos factos ocorridos posteriormente à entrada em vigor do Código do Trabalho revisto, se deles resultasse que o relacionamento entre as partes tinha passado a ser substancialmente diferente do que tinha sido anteriormente, caso em que seria necessário indagar se essa alteração correspondia a uma modificação da natureza do vínculo que até aí tinha existido.

Ora, dos factos provados não resulta que o relacionamento entre as partes tenha sofrido qualquer alteração relevante à qualificação dessa relação, ao longo do tempo em que o vínculo se manteve, designadamente no que respeita ao acatamento pela Ré das disponibilidades da Autora para prestar serviço (a autora escolhia o seu horário mediante as suas disponibilidades, acatando a Ré as escolhas da autora, de acordo com as suas necessidades, ou seja se não precisasse da totalidade das disponibilidades da autora não lhe atribuía horário) razão pela qual, deixamos consignado que sufragamos a posição defendida pelo tribunal a quo a este propósito, defendendo assim não ser aplicável ao caso dos autos a presunção estabelecida no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009, mas sim o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969.

Como se escreveu a este propósito no Acórdão do STJ de 4/02/2015, proferido no Proc. n.º 437/11.0TTOAZ.P1 (relator Pinto Hespanhol), consultável em www.dgsi.pt “…quando o Código do Trabalho de 2009 regula os efeitos de certos factos, como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência (cf., por todos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 13 de Fevereiro de 2008, Processo n.º 356/07, e de 10 de Julho de 2008, Processo n.º 1426/08, ambos da 4.ª Secção, cuja doutrina é transponível para o estatuído no Código do Trabalho de 2009).”

E contrariando o defendido pela recorrente no que respeita à jurisprudência mais recente diremos que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido defendido pelo Tribunal a quo e por nós também perfilhado ou seja como se sumariou no acórdão do STJ de 4/07/2018, proc. n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1
“I. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.
II. A presunção de laboralidade é um meio facilitador da prova a favor de uma das partes, pelo que a solução de aplicar a lei vigente ao tempo em que se realiza a atividade probatória pode conduzir a um desequilíbrio no plano processual provocado pela impossibilidade de se ter previsto no momento em que a relação se estabeleceu quais as precauções ou diligências que deviam ter sido tomadas para assegurar os meios de prova, o que poderia conduzir à violação do direito a um processo equitativo e causar uma instabilidade indesejável em relações desde há muito constituídas.
III. Estando em causa uma relação jurídica estabelecida entre as partes em 2 de novembro de 1995, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado os seus termos essenciais, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, não tendo aplicação as presunções previstas no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003 e de 2009.”

Apreciando agora a questão da qualificação do contrato importa recordar a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços.
Estabelece o artigo 1.º da LCT, que transcreve, o disposto no artigo 1152.º do Código Civil, que o contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas.
Por seu turno prescreve o artigo 1154.º do Código Civil, que contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Destes conceitos resulta que o contrato de trabalho tem por objecto a prestação de uma actividade e o contrato de prestação de serviço a obtenção de um certo resultado proveniente do trabalho prestado por outrem, sendo certo que apenas o primeiro é necessariamente oneroso.
Quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo ao longo dos anos a salientar, que o que verdadeiramente distingue o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviços é a chamada subordinação jurídica de uma das partes em relação à outra, subordinação essa que só no contrato de trabalho existe.
O contrato de trabalho tem assim como objecto a prestação de uma actividade e como elemento que o distingue dos demais a subordinação jurídica, que se traduz no poder que o empregador tem de através de ordens, instruções e directivas, conformar a prestação a que o trabalhador se obrigou.
Por seu turno o contrato de prestação de serviço visa, apenas, a obtenção de um determinado resultado que a parte sujeita a tal obrigação obterá por si, em regime de autonomia, isto é, sem estar sujeita ao poder de direcção da outra parte.
Nem sempre é fácil distinguir estas duas figuras contratuais, por em diversas situações ser difícil de perceber o que ficou estabelecido e o que era pretendido – se a actividade em si ou se o seu resultado -, razão pela qual a subordinação jurídica é, pois, o elemento fundamental e diferenciador do contrato de trabalho e traduz-se numa posição de supremacia do credor da prestação de trabalho (o empregador) e na correspondente sujeição do prestador da actividade (o trabalhador), cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.
Podemos assim concluir que o contrato de trabalho se caracteriza essencialmente pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora e que resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direcção do empregador que lhe dá ordens, enquanto na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da actividade.
Importa salientar, uma vez que entendemos que ao caso em apreço não se aplicam as presunções estabelecidas no código do trabalho, que em termos de repartição do ónus da prova, cabe ao trabalhador fazer a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, isto é, demonstrar que presta uma actividade remunerada para outrem, sob a autoridade e direcção do beneficiário (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
Como vem sendo repetidamente afirmado, a dificuldade e variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado. É o que acontece nos casos em que o trabalho é prestado com grande autonomia técnica e científica do trabalhador, nomeadamente quando se trate de actividades que tradicionalmente são prestadas em regime de profissão liberal. Daí que a jurisprudência e a doutrina preconizem o recurso ao chamado método tipológico que consiste em buscar na situação real em que a relação contratual se desenvolve ou desenvolveu os aspectos factuais que normalmente ocorrem no modelo típico do contrato de trabalho e que, em regra, constituem manifestações da sujeição do trabalhador ao poder directivo do empregador, sendo que cada um desses aspectos funcionará como um indício da existência da subordinação jurídica.
São vários os elementos indiciários uns de carácter interno outros de carácter externo reveladores da existência de subordinação jurídica.
Como elementos indiciários de carácter interno, normalmente indica-se: a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; a execução da prestação em local definido pelo empregador; a existência de controlo sobre o modo como a prestação do trabalho é efectuada; a obediência às ordens e a sujeição à disciplina imposta pelo empregador; a propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador; a remuneração em função do tempo de trabalho e a integração do prestador da actividade na estrutura organizativa do empregador.
E, como indícios de carácter externo à relação, normalmente indica-se: a observância do regime fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem.
Por último salientamos que os indícios atendíveis não podem, nem devem ser isoladamente considerados, uma vez que, de per si, assumem, uma patente relatividade, tendo de ser sopesados na sua globalidade, não esquecendo que cabe ao autor, nos termos previstos no art.º 342.º n.º 1 do Código Civil, alegar e provar os factos que se mostrem suficientes para convencer o julgador de que o contrato por si invocado assume a natureza de contrato de trabalho.
Revertendo agora ao caso dos autos desde já deixamos consignado que em concordância com a decisão recorrida, a autora efectivamente não logrou provar a natureza laboral do vínculo contratual que manteve com a Ré.

A este propósito a decisão recorrida explicitou as considerações que se passam a transcrever:

“Provou-se que o trabalho era prestado em instalações da ré e com equipamentos e instrumentos por ela disponibilizados, uma vez que o fardamento, mobiliário e material inerente à atividade de enfermeira pertencem à ré e estão instalados no hospital onde a autora desempenha a sua atividade. Mais se demonstrou que a autora prestava a sua atividade cumprindo escalas elaboradas pela ré, com horários de início e fim definidos por esta.

Contudo, tratando-se a atividade da autora da enfermagem num hospital, não se pode concluir que o facto de a atividade ser prestada em instalações da ré e com instrumentos desta se deva a existir dependência da autora em relação à ré. A própria natureza da atividade da ré implica que a autora lhe preste a sua atividade em instalações suas. Não se pode extrair por si só de tal facto, por isso, que exista a relação de subordinação jurídica típica de uma relação laboral, antes havendo outros fatores inerentes à atividade hospitalar que impõem aquelas circunstâncias concretas de atuação – não estamos perante uma atividade que pudesse ser exercida pela autora noutro local e que só por imposição unilateral da ré fosse praticada nas suas instalações.

Do mesmo modo, apesar de se ter demonstrado que o horário em que a atividade era prestada pela autora constava de escalas previamente elaboradas pela ré, provou-se que as horas constantes dessas escalas não eram prévia e unilateralmente impostas pela ré, antes resultando de uma primeira comunicação por parte da autora de qual a sua disponibilidade para o período em causa. Ora, esta realidade em nada coincide com o indício que o legislador veio posteriormente a consagrar na alínea c) do n.º 1 do citado art.º 12.º do atual Código do Trabalho. Não estamos perante um caso em que a ré fosse livre de dispor do horário da autora, ficando esta sujeita ao que por ela fosse determinado. Pelo contrário, face ao que ficou provado, era a ré que estava sujeita à disponibilidade previamente manifestada pela autora, apenas podendo organizar o seu serviço de acordo com o que esta lhe transmitisse.

A estes elementos junta-se também o que desde o início as partes concordavam quanto à forma como a retribuição era processada: de acordo com o número de horas prestadas em cada mês, mediante a emissão por parte da autora do vulgarmente denominado “recibo verde” e sem quantia fixa mensal. Estas características são mais típicas de um contrato de prestação de serviços, em que se remunera o resultado, do que do contrato de trabalho, onde a retribuição compensa em primeira linha a mera disponibilidade da força de trabalho.

Por outro lado, a autora destes autos tem contrato de trabalho noutra instituição e nunca reclamou perante a ré até à instauração da presente ação (ou seja, durante 18 anos) a existência de uma relação laboral. Mais se deve ponderar aqui que estamos perante uma pessoa com formação superior, o que necessariamente lhe permite saber as características e consequências de uma e outra relação contratual, pelo que não deixaria de a reclamar, caso entendesse não ser a correta. Daqui também decorre que não existe uma dependência económica da autora em relação à aqui ré, o que também aponta para a existência de uma relação de prestação de serviços.
Todos os elementos até agora analisados levam a concluir pela inexistência da relação laboral invocada na petição inicial. A isto temos de somar o facto de não ter a autora demonstrado que alguma vez lhe tenham sido pagos subsídios de férias ou Natal, que estivesse incluída em algum seguro de acidentes de trabalho celebrado pela ré ou ter esta participado à Segurança Social o seu contrato como sendo de trabalho dependente.
É certo que se demonstrou que a autora registava o início e termo das suas funções num sistema mecanográfico e que exercia funções numa estrutura em que havia responsáveis por diferentes departamentos. Contudo, entendo que estes factos não afastam o que dos demais se retira quanto à inexistência de subordinação jurídica. A existência de uma relação de prestação de serviços não pressupõe a total ausência de diretrizes organizativas e de algum grau de organização por parte de quem é beneficiário do serviço, sendo normal que algumas imposições da ré houvesse, destinadas à organização interna do serviço, não assumindo contornos de uma relação de domínio/subordinação em relação à autora.
Em conclusão, ponderados todos os elementos vindos de mencionar, entendo não estarem presentes na relação trazida a juízo pela autora as características essenciais do contrato de trabalho, não se tendo demonstrado a existência de uma subordinação jurídica em relação à ré.
Veja-se neste mesmo sentido e analisando uma relação com contornos idênticos à que aqui está em apreço o decidido pela Relação do Porto em dois acórdãos de 17/12/2014 e a Relação de Coimbra no acórdão de 13/02/2015 (todos disponíveis em www.dgsi.pt, com os n.os de processo, respetivamente: 186/14.7T4AVR.P1, 278/14.2TTPRT e 182/14.4TTGRD.C1).”.
Subscrevemos no essencial, quer as considerações transcritas, quer o juízo decisório, já que apreciando globalmente os indícios que emergem da relação contratual estabelecida entre as partes teremos de concluir que não se provaram factos suficientes para caracterizar tal relação contratual como de trabalho, sendo que o ónus da prova relativo aos factos de que se pudesse concluir no sentido da existência daquele contrato recaia sobre o autor - cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Acresce dizer que estando perante um negócio consensual assume particular relevância a vontade real das partes, traduzida preponderantemente nos termos em que definiram as condições do exercício da actividade e os termos em que esta foi efectivamente executada.
Assim sempre que a qualificação do negócio resulte duvidosa e ainda que se demonstre o preenchimento de alguns dos índices que em regra se associam à existência de um contrato de trabalho, quando se apure que nas circunstâncias concretas o prestador (parte mais fraca na relação) não foi forçado a realizar o contrato, não traduzindo a vontade uma relação de trabalho subordinado, temos por certo que tais indícios se diluem e não assumem relevância, não esquecendo que muitos deles podem verificar-se quer no âmbito da prestação de serviços, como no contrato de trabalho.
Reportando aos factos provados podemos dizer que a autora logrou provar que a sua actividade era desenvolvida em local pertença do beneficiário, os instrumentos ou equipamentos de trabalho eram pertença do beneficiário e como contrapartida recebia uma determinada quantia paga com certa periodicidade, registava o início e termo das suas funções num sistema mecanográfico e exercia funções numa estrutura em que havia responsáveis por diferentes departamentos de quem recebia orientações, tudo índices que são de molde a concluir pela existência do contrato de trabalho.
No entanto, outros factos que se provaram não nos permitem concluir desta forma, assumindo uma especial relevância o facto de a autora ser enfermeira, não trabalhar em exclusividade para a Ré, pois o seu principal trabalho era prestado a tempo completo no Hospital ..., tendo solicitado a tal instituição autorização para prestar serviços de enfermagem a terceiros, escolhia o horário a que se vinculava mensalmente, segundo as suas conveniências e compatibilidade com o exercício do seu trabalho no Hospital ..., acatando a ré as escolhas da autora (ou seja a autora só prestava serviço mediante as suas disponibilidades que podiam variar mensalmente), era paga em função do número de horas de serviço efectivamente prestado, sendo o montante mensal sempre variável, nunca gozou férias, nem lhe foram pagos subsídios de férias e de Natal nem a autora os reclamou.
Estes factos por si só denunciam que a autora não era uma qualquer trabalhadora indiferenciada que teve de se sujeitar às condições impostas pela ré, tendo de se sujeitar a trabalhar sem vínculo laboral, em prejuízo dos seus direitos. Ao invés os factos provados evidenciam que a autora gozava de autonomia económica-organizativa, esta sim privativa do trabalho autónomo.
Tudo isto evidencia que à Ré apenas interessava o resultado da actividade, prestada pela Autora e é revelador, mormente, em face do comportamento por si assumido ao longo dos anos, que a vontade negocial das partes foi no sentido de que o serviço prestado pela autora ficasse sujeito ao regime do contrato de prestação de serviço, o que vem a culminar com a celebração por escrito do contrato denominado de “prestação de serviços”, sendo certo que da matéria de facto dada como provada, devidamente ponderada na sua globalidade, não resulta que a execução do contrato se tenha efectivamente processado noutro regime que não aquele.

Resumindo, apreciando globalmente os indícios que resultam da relação contratual estabelecida, teremos de concluir que a factualidade apurada não é suficiente para caracterizar a relação contratual estabelecida entre as partes como contrato de trabalho, sendo que o ónus da prova relativo aos factos de que se pudesse concluir no sentido da existência daquele contrato impendia sobre a autora (art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Improcede o recurso e mantém-se a decisão recorrida.

V – DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em negar provimento à apelação, assim confirmando a decisão recorrida
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 05 de Março de 2020

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga