Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
952/15.6T8CHV.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Para que o objeto do litígio — responsabilidade civil por factos ilícitos imputados a uma empresa privada, que executa uma empreitada no âmbito da construção de uma autoestrada, que lhe foi adjudicada por uma subconcessionária — fosse submetido à jurisdição administrativa por força do art. 4º nº 1 do ETAF e do art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007, tornava-se necessário demonstrar que os atos ou omissões praticados pela Ré, o foram: (i) no exercício de prerrogativas de poder público; (ii) ou que se trate de atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. B. instaurou ação contra C. , pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 40.172,36, a título de indemnização por danos causados quando a Ré procedia à construção da “autoestrada Transmontana”.
Alegou que, sendo a Ré a sociedade que procede à conservação, manutenção e exploração da referida autoestrada, procedeu a explosões e rebentamentos que vieram a causar danos no prédio que explora por contrato de arrendamento rural.
A Ré contestou e suscitou a intervenção principal de D. e de E., o que foi admitido.
A E. invocou, para além do mais, a incompetência material do Tribunal pois os danos foram causados aquando da construção de uma obra pública.
Entendendo assistir-lhe razão, a M.mª Juíza considerou competentes os Tribunais Administrativos e absolveu os Réus da instância.

2. Inconformado, vem o Autor apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1 - Interpõe-se o presente Recurso, de decisão judicial proferida nos Autos, em que a Instância Local Cível do Tribunal da Comarca de Vila Real, se considerou incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção, absolvendo as Rés da instância.
Assim,
2 – Atendendo a interpretação e aplicação da Lei ao caso em apreço, considera o Recorrente que o raciocínio que está na base da Douta Sentença não tem fundamento.
3 – A relação jurídica controvertida plasmada na Petição Inicial do autor/Recorrente não é uma relação de natureza administrativa.
4 – A competência material do tribunal deve aferir-se pela relação jurídica controvertida, tal como o Autor a apresenta na Petição Inicial, logo deve ser aferida pelo pedido do autor e pelos fundamentos que invoca, o que significa que deve atender-se aos termos em que foi proposta a acção.
5 – No caso em apreço o Autor/Recorrente pretende ser ressarcido dos danos que ilicitamente foram causados pela Ré, na execução de obras de construção de uma autoestrada.
6 – As Rés são entes de direito privado e se houve danos causados durante a execução do referido contrato, sempre decorreram a coberto de um contrato de empreitada e não de um contrato administrativo.
7 – O que se pretende esclarecer na acção concreta não são as relações entre o Estado e as Rés.
8 – Não pode ser aplicado à Ré o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público – art. 4.º, n.º 1 i), do ETAF, dado que é o direito privado que deve reger a actividade deste ente privado, também não resulta o contrário do contrato junto aos autos, pelo que a situação dos Autos não se enquadra na previsão do artigo enunciado.
9 – O objecto de tal contrato só indirectamente se reporta ao interesse público e as acções e omissões imputadas à Ré pelo Autor não decorrem do seu exercício de prerrogativas de poder público, nem são reguladas por disposições de direito administrativo, pelo que o caso vertente não se enquadra no âmbito de aplicação do art. 1.º, n.º 5 Anexo à Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.
10 – Para os entes privados exteriores aos contratos firmados nas suas relações com terceiros, seja por actos ou omissões culposas, seja pelo risco, sempre vigorará o regime geral da responsabilidade civil extracontratual constante do 486.º Código Civil.
11 – A responsabilidade referida não tem qualquer regulamentação no direito administrativo e circunscreve-se apenas às regras civilísticas.
12 – Aos tribunais administrativos cumpre apenas dirimir os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas, sendo que nos termos dos artigos 64.ºdo CPC e 211.º n.º CRP são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
13 – Ora, no caso em apreço o Autor quer que a Ré seja condenada no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos decorrentes dos danos causados no tanque, terraços e telhado, bem como, pelos danos em mercadorias, aparelhos eléctricos e exemplares fílmicos magnéticos.
14 – Ao contrário do vertido na Douta Sentença o Autor não fundamenta, na sua Petição Inicial, que a C. estivesse no cumprimento de execução de obras públicas que a Auto-Estrada XXI lhe teria feito, facto que desconhecia.
15 – A Ré, pela sua natureza, nomeadamente pela lei comercial, desde logo pela denominação, C.– Construções A.C.E. um ente privado.
16 – E também não é uma pessoa de direito privado em relação à qual existam normas legais que a submetam ao regime substantivo da responsabilidade civil extracontratual aplicável ao Estado ou a outras pessoas colectivas de direito público.
17 – Logo, no caso vertente não se verifica a incompetência material da Instância Local Cível do Tribunal da Comarca de Vila Real para conhecer dos Autos.
18 – Pelo exposto, resulta que a secção cível, da instância local do Tribunal da Comarca de Vila Real é materialmente competente para conhecer a presente acção nos termos dos artigos 64.º do CPC, 211.º, n.º 1 da C.R.P. e 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, pelo que violou o tribunal a quo o disposto nos artigos referidos.
19 – Pelo que, se conclui que não sendo a competência, em razão da matéria, dos Tribunais Administrativos, deverá ser revogada a decisão de que se recorre.
Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V.ªs Ex.ªs, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogar-se a douta decisão recorrida e substituí-la por uma outra que determine a competência material da Secção Local Cível do Tribunal da Comarca de Vila Real para dirimir o presente litígio. Assim se fará JUSTIÇA!».

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
QUESTÃO A DECIDIR: qual o tribunal materialmente competente para decidir o litígio dos autos, se os tribunais comuns, se os tribunais administrativos.

4.1. (IN)COMPETÊNCIA MATERIAL
A incompetência em razão da matéria constitui exceção dilatória, insuprível, de conhecimento oficioso e importando a absolvição dos Réus da instância: art. 96º, 97º nº 1, 99º, 278º nº 1 al. a) e 577º al. a) do CPC.
Como é sabido, a competência em razão da matéria contende com as diversas espécies de tribunais, comuns ou especiais, estatuindo-se as normas delimitadoras da jurisdição desses tribunais de acordo com a matéria ou o objeto do litígio.
De acordo com o art. 65º do CPC são as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.
Aos tribunais administrativos compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas: art. 212º nº 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O critério geral e primacial para distinção entre a jurisdição comum e a administrativa é o da natureza administrativa da relação jurídica em litígio.
Por relação jurídica administrativa entende-se «(...) aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração». (1)
No mesmo sentido, vai o entendimento jurisprudencial: «A relação jurídica administrativa há-de, pois, estar ligada ao exercício de funções correspondentes a este conceito. (...)».(2)
Por outro lado, entende-se por ato de gestão pública todo aquele praticado por um órgão da administração no cumprimento das atribuições ou competências que legalmente lhe foram atribuídas (atos funcionais), atuando em situação de superioridade (ius imperii) e agindo na satisfação do interesse público.
Assim, o que importa apurar é a natureza da relação jurídica subjacente ao litígio e não a natureza pública ou privada da entidade acionada.
Citando Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, «É preciso, porém, não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou com relações jurídicas onde existiam factores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições.».(3)
Em coerência, e para o que ao caso importa, prescreve o art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02 (entretanto objeto de sucessivas alterações, a última das quais pela Lei nº 20/2012, de 14.05): “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa (…) a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;”(4)
O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEEEP) é-nos dado pela Lei nº 67/2007, de 31.12 (com as alterações decorrentes da Lei nº 31/2008, de 17.07), estabelecendo o seu art. 1º: “1 - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.
(…)
5 - As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, (…), são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Visto isto, e olhando a questão tal como vem configurada no articulado inicial — já que é pelo pedido e respetiva causa de pedir que se define o objeto do litígio —, com a presente ação pretende o Autor obter a condenação da Ré no pagamento dos prejuízos causados pelas explosões e rebentamentos a que a Ré procedeu aquando da construção da denominada “construção da autoestrada Transmontana”. (5)
Portanto, constitui causa de pedir a efetivação de responsabilidade civil extracontratual.
Ninguém questiona que, quer a Ré, quer as Intervenientes são pessoas coletivas de direito privado e não são concessionárias de obras públicas ou de serviço público.
Assim, para que o objeto do litígio fosse submetido à jurisdição administrativa por força do art. 4º nº 1 do ETAF e do art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007, tornava-se necessário demonstrar que os atos ou omissões praticadas pela Ré, o foram: (i) no exercício de prerrogativas de poder público; (ii) ou que se trate de atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Para este âmbito, importa considerar os seguintes factos, colhidos do contrato de fls. 84 ss:
a) O Estado Português concessionou à EP – Estadas de Portugal, SA, a construção, exploração e conservação da rede rodoviária nacional (para além de outras).
b) A EP – Estadas de Portugal, SA subconcessionou à Auto-Estradas XXI – Subconcessionária Transmontana, SA a conceção, o projeto, construção, exploração e conservação (para além de outras), de um conjunto de lanços viários da autoestrada Transmontana.
c) A Auto-Estradas XXI – Subconcessionária Transmontana, SA celebrou com a Ré C. um “contrato de projeto e construção” relativo aos trabalhos de conceção, construção e aumentos do número de vias de vários lanços dessa autoestrada, nos quais se inclui o troço junto ao prédio do Autor.
d) A Ré C. efetuou com a D. um “contrato de subempreitada” compreendendo os trabalhos de movimentos de terras do Lote 1, desde o PK 0+000 até ao PK 5+800.
e) Por seu turno, a D. efetuou com a E. um “contrato de prestação de serviços” relativo à execução dos trabalhos de desmonte de rocha com recurso a explosivos.
Ora, diferentemente do que sucede na figura da concessão (em que está sempre presente um serviço público), a Ré atuou no âmbito de um contrato de empreitada (“contrato de projeto e construção”).
E dos autos não consta o mínimo indício de que a concessionária lhe tenha delegado quaisquer prerrogativas de poder público.
Também não consta que o contrato de empreitada em que a Ré outorgou tivesse sido sujeito, por vontade das partes, ao regime dos contratos públicos.
A atividade da Ré é de índole estritamente privada, numa lógica empresarial de prossecução do lucro.
Ora, «(…) tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às ações ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os atos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas coletivas privadas.»(6)

Em ponto algum da petição inicial se alega que a Ré tivesse agido da forma aí descrita com as prerrogativas de autoridade (ius imperii), ou na prossecução do interesse público.
Ora, já vimos que para a apreciação da competência material importa apenas o litígio tal como configurado na petição inicial, sendo irrelevante o vertido na contestação.
Já Manuel de Andrade advertia que a competência do tribunal «É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão».(7)
Na petição inicial os Autores não invocam ou alegam qualquer fator de administratividade na atuação da Ré.
Por outro lado, também não é tido em conta para efeitos de competência material o facto de na resolução do litígio se ter que operar com normas ou diplomas de direito público, ou vice-versa.
Uma qualquer entidade pública pode ser acionada em responsabilidade civil extracontratual perante os tribunais comuns, em termos de igualdade com qualquer outro cidadão.
Em ponto algum da petição inicial se refere que a Ré tenha danificado os bens do Autor no exercício de poderes administrativos ou por causa deles.
Impõe-se, portanto, revogar a decisão recorrida.

5. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
Para que o objeto do litígio — responsabilidade civil por factos ilícitos imputados a uma empresa privada, que executa uma empreitada no âmbito da construção de uma autoestrada, que lhe foi adjudicada por uma subconcessionária — fosse submetido à jurisdição administrativa por força do art. 4º nº 1 do ETAF e do art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007, tornava-se necessário demonstrar que os atos ou omissões praticados pela Ré, o foram: (i) no exercício de prerrogativas de poder público; (ii) ou que se trate de atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se o tribunal da comarca de Vila Real o competente em razão da matéria.
Custas pela parte vencida a final.
Guimarães, 22.09.2016

___________________________________________
(Relatora, Isabel Silva)

___________________________________________
(1º Adjunto, Pedro Alexandre Damião e Cunha)

___________________________________________
(2º Adjunto, Maria João Matos)
(1) Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, Lições, vol. III, Lisboa 1985, pág. 423.
(2) Acórdão do STA, Pleno, de 27.06.995 (proc. nº 31.372).
(3) In “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Anotado, vol. I, Almedina, pág. 26/27.
(4) Na versão anterior do preceito, esta alínea integrava a alínea i).
(5) «O pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da ação, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor.» - acórdão do STJ, de 22.10.2015 (processo 678/11.0TBABT.E1.S1, Relator: Tomé Gomes), disponível em www.gde.mj.pt.
(6) Carlos Alberto Cadilha, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, pág. 49.
(7) In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 91.