Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6982/13.5TBBRG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
ERRO DE JULGAMENTO
REVOGAÇÃO
DECISÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - A competência para uma ação que tem por causa de pedir um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (funcionário judicial) no exercício da atividade estranha à função de julgar, pertence aos tribunais administrativos.
2 – Sendo a causa de pedir um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar) serão competentes os tribunais judiciais, para o conhecimento de ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
3 – O pedido de indemnização por responsabilidade civil decorrente do erro judiciário, deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente – artigo 13.º, n.º 2 da Lei n.º 67/2007 de 31/12
4 – Tal norma não é inconstitucional.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
J.. intentou ação declarativa contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu a indemnizar o autor, na quantia de 877.800,00€ (oitocentos e setenta e sete mil e oitocentos euros), e na quantia que se vier a apurar decorrente dos valores que lhe venham a ser cobrados, a liquidar em execução de sentença, quantias acrescidas de juros, contados à taxa legal, quanto à quantia já liquidada desde a citação e no caso da quantia que se relega para execução de sentença desde a data da sua reclamação ao autor, ambas até integral e efectivo pagamento. Alega, para tanto e em resumo, que no âmbito do Processo Cautelar de Arrolamento nº .. da .. Secção do Tribunal de Família e Menores, o Mmº Juiz e o senhor funcionário judicial deste Tribunal praticaram erros graves e notórios, os quais lhe causaram danos patrimoniais e não patrimoniais. Conclui o autor que tais erros foram praticados pelo Sr. Juiz e pelo funcionário judicial no exercício de funções que detêm com vínculo estatal dando, assim, lugar ao pagamento, pelo Estado Português, da indemnização correspondente.
Contestou o Ministério Público, em representação do Estado, arguindo a exceção perentória da inexistência de decisão revogatória da decisão danosa, a qual constitui condição sine qua non para a procedência da ação. Mais impugna as consequências que o autor retira dos factos que alega, sustentando a sua imputação à conduta levada a cabo pelo próprio autor.
À exceção deduzida pelo réu, respondeu o autor, alegando existir no caso decisão revogatória da decisão danosa, esclarecendo tratar-se da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães nos autos de embargos de terceiro onde foi proferido despacho rejeitando liminarmente os embargos e que foi revogado tendo sido determinado o prosseguimento do processo. Acrescenta que ainda que assim não fosse não há necessidade de decisão revogatória da decisão danosa pois que o regime geral aplicável à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional é o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa. As duas únicas exceções à aplicação de tal regime dizem respeito à responsabilidade por erro judiciário e à responsabilidade dos magistrados. No primeiro caso o novo regime, estipula que o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas, por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto. Neste caso, deve o pedido de indemnização ser fundado na prévia revogação da decisão danosa, pela jurisdição competente. Quer isto dizer que, só no primeiro dos casos – e apenas e tão só nesse e já não no da responsabilidade dos magistrados – é que eventualmente poderia ser exigida, a “prévia revogação da decisão danosa”. Finalmente, alega o autor que a norma do nº 2 do art. 13º, da Lei 67/2007 de 31/12 é inconstitucional na medida em que da mesma resulta uma violação do princípio constitucional da igualdade (art. 13º), por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que por um ou outro motivo, não podem ser objeto de recurso da mesma forma que viola o direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional.

Em sede de audiência prévia, foi proferida sentença que decidiu que:
- “a apreciação da matéria alegada relativa aos actos praticados pelo senhor funcionário judicial e despachos de mero expediente do Mmº Juiz determinativos do andamento do processo (actos só formalmente jurisdicionais), está vedada a este Tribunal, por ser da competência dos Tribunais Administrativos”;
- na parte restante (causa de pedir que assenta na existência de decisões jurisdicionais manifestamente injustificadas por erro grosseiro do Mmº Juiz de Direito do Tribunal de Família e de Menores de Braga, proferidas no âmbito do Processo Cautelar de Arrolamento n.º..da .. Secção do referido Tribunal) julgou-se verificada a exceção perentória de falta de decisão revogatória da alegada decisão danosa, com a consequência da improcedência da ação e absolvição do réu do pedido.

Discordando da sentença dela interpôs recurso o autor, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
I) O Recorrente intentou uma ação declarativa de condenação contra o Estado Português com base na verificação de um erro judiciário que lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais.
II) O erro judiciário diz respeito à conduta do Juiz .. no âmbito do procedimento cautelar de arrolamento com o n.º .. da .. secção do Tribunal de Família e Menores de Braga, perante o qual o sobredito Magistrado Judicial decretou o arrolamento de um prédio urbano onde se localizava o estabelecimento comercial explorado pela sociedade comercial “O.., Lda.” da qual era sócio gerente o aqui Recorrente.
III) O estabelecimento comercial pertencia à sobredita sociedade, tendo sido ilegalmente englobado no âmbito da providência cautelar de arrolamento decretada pelo Juiz ...
IV) A sociedade “O.., Lda.” deduziu embargos de terceiro perante o procedimento cautelar em causa, requerendo a restituição da posse do imóvel.
V) Ignorando o carácter subsidiário da figura da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico português e violando o disposto no artigo 5.º do CSC, o Juiz .., conhecendo a situação supra descrita, indeferiu liminarmente os embargos de terceiro deduzidos pela sociedade.
VI) O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas decorre da Lei n.º67/2007 de 31.12.
VII) Nos artigos 13.º e 14.º da Lei n.º67/2007, o legislador enuncia os pressupostos materiais do regime de responsabilidade extracontratual do Estado por erro judiciário.
VIII) O conceito de decisão utilizado pelo legislador no disposto no n.º1 do art.13.º do RRCEE é utilizado em sentido amplo, abrangendo sentenças, despachos e acórdãos proferidos pelos Tribunais, independentemente da ordem jurisdicional em que se inserem.IX) Sobre o necessário carácter ilegal da decisão danosa, elucida-nos o já citado Juiz Conselheiro Salvador da Costa: “A ilegalidade é o que está em oposição à lei, seja de origem interna, seja de origem externa. É suscetível de abranger o conceito jurídico de ilícito, ou seja, o que é feito contra a proibição legal. Assim, o adjetivo ilegal, referenciado a decisões, jurisdicionais pretende individualizar as que são proferidas contra o disposto na lei. Nesta perspetiva, são decisões manifestamente ilegais as que envolverem clara, óbvia e inequívoca violação da lei ordinária, independentemente da sua natureza adjetiva ou substantiva. (…)”.
X) Já sobre o enquadramento da exigência da prévia revogação da decisão danosa enquanto pressuposto da ação de indemnização fundada em erro judiciário, importa ter em consideração as conclusões de Carlos Cadilha in “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, 2.ªEdição, Coimbra Editora, pág.277: “(…) Por outro lado, caso seja feita prova da revogação, caberá ao juiz do processo apurar se a decisão revogatória implica o reconhecimento de um erro judiciário cometido por um tribunal inferior (…) Isto é, a revogação da decisão recorrida deverá ter por base a existência de um erro quanto à apreciação da prova ou à fixação dos factos materiais da causa (erro de facto) ou a constatação de que a solução jurídica adotada pelo tribunal recorrido não era a que se adequava aos factos apurados (erro de direito).
XI) A decisão judicial do Tribunal de Família e Menores de Braga de indeferir liminarmente os embargos de terceiro referentes ao procedimento cautelar de arrolamento, no âmbito do qual o Juiz .. ordenou que fosse arrolado o imóvel onde se localizava à data a sede da sociedade de que era gerente o aqui Recorrente, violou frontal e deliberadamente o disposto no artigo 5.º do CSC, facto do qual resulta o carácter ilegal da mesma.
XII) Além da manifesta ilegalidade, a mesma decisão teve consequências danosas para o Recorrente, tendo sido revogada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, facto este dado como provado da decisão do Tribunal a quo relativa à matéria de facto.
XIII) Andou mal o Tribunal a quo ao não dar como verificado o preenchimento dos pressupostos materiais do regime legal do erro judiciário a que alude o artigo 13.º do RRCEE a saber, a existência de uma decisão jurisdicional manifestamente ilegal que tenha sido expressamente revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior.
XIV) Na sentença de que se recorre Meritíssima Juiz a quo refere:“ Sustenta o autor a sua pretensão indemnizatória na existência de decisões jurisprudenciais manifestamente injustificadas por erros do Excelentíssimo Juiz de Direito do Tribunal de Família e Menores de Braga e erros praticados pelo Senhor Funcionário Judicial daquele Tribunal (…) Todavia, em causa está um pedido indemnizatório baseado em erro de um funcionário judicial na execução de uma providência cautelar de arrolamento, erro in procedendo(…). Ora a competência para a apreciação de uma e outra atuação compete a jurisdições distintas.(…) já para a ação que tem por causa de pedir um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (funcionário judicial) no exercício da atividade estranha à função de julgar, são competentes os tribunais administrativos.(…) Nos termos do art.99º, do CPC, a infração das regras de competência em função da matéria, determina a incompetência absoluta do Tribunal, o que constitui uma exceção dilatória que, como tal obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa(…)”.
XV) Não pode o Recorrente subscrever o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo referente ao juízo de imputação dos danos decorrentes do erro judiciário que fundamenta o presente pedido indemnizatório contra o Recorrido, e sobre o qual o Tribunal a quo concluí que o Recorrente sustenta que in casu haverá lugar a uma alegada imputação de responsabilidade ao funcionário judicial.
XVI) Na verdade, como aliás foi alegado pelo aqui Recorrido ainda na fase dos articulados, o funcionário judicial atuou sempre cumprindo as ordens e comandos do responsável pela condução de todo o procedimento cautelar de arrolamento, o Juiz ..
XVII) Não foi o funcionário judicial que decidiu por si só e de forma absolutamente ILEGAL, decretar a apreensão judicial um estabelecimento comercial pertencente a uma entidade terceira perante o litígio judicial.
XVIII) Tal decisão coube a uma pessoa só, o JUIZ..!
XIX) Foi o Juiz .. que, na qualidade de Juiz que presidia o processo e que conduzia a forma e o conteúdo das diligências judicias, pelo que em momento algum o Recorrente visou imputar responsabilidade pelos danos decorrentes do erro judiciário verificado e já supra alegado, que não ao magistrado judicial competente pela direção do processo judicial em causa!
XX) De forma alguma se pode sustentar que a verificação de tal exceção dilatória já que o Recorrido se limita a convocar a responsabilidade do magistrado judicial pelo erro judiciário cometido, já que era a este que cabia o poder de direção e condução do processo judicial!
XXI) NÃO SE IMPUTA QUALQUER RESPONSABILIDADE AO FUNCIONÁRIO JUDICIAL QUE SE LIMITOU A CUMPRIR OS COMANDOS EMITIDOS PELO JUIZ!
XXII) Desta forma, não se verifica o preenchimento de qualquer exceção dilatória que obste a que o Tribunal a quo conheça do mérito da causa, em especial uma exceção fundada na incompetência material do Tribunal.
XXIII) Isto porque o Recorrente sustenta o pedido indemnizatório na responsabilidade do magistrado judicial pelo erro judiciário e não na responsabilidade do funcionário judicial!
XXIV) É ao Juiz que cabe o poder de dirigir o processo, bem como assim, o dever de administrar justiça, nos termos da lei, proferindo a decisão judicial sobre as questões jurídicas suscitadas pelo litígio em causa, como aliás resulta da leitura do n.º1 do artigo 156.º do CPC.
XXV) Pelo que não se verifica a exceção dilatória invocada pelo Tribunal a quo relativa à incompetência material, devendo este pronunciar-se sobre os factos relativos à atuação do funcionário judicial que atou no cumprimento das decisões e instruções do Juiz ..!
XXVI) Na mui douta sentença de que agora se recorre, o Tribunal a quo pronunciou-se pela verificação de uma exceção perentória, em concreto, a falta de decisão revogatória como um pressuposto processual da ação indemnizatória.
XXVII) Também a esta parte, e salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao pronunciar-se pela verificação da sobredita exceção perentória e, em consequência, absolvendo o Réu/Recorrido do pedido.
XXVIII) Desde logo a esta parte a tese do Tribunal a quo padece de um vício de raciocínio na aplicação do regime substantivo da responsabilidade civil extra contratual do Estado e a sua relação com os pressupostos do regime processual.
XXIX) A existência ou inexistência de uma decisão revogatória da decisão danosa que fundamenta o pedido indemnizatório é um pressuposto de natureza substantiva, ou melhor, relevante para efeitos de discussão do MÉRITO DA CAUSA e não, como defende a Meritíssima Juiz a quo, um pressuposto processual específico!
XXX) Tal argumento é convocado pela Meritíssima Juiz a quo na sequência de uma errónea interpretação do regime substantivo em causa face aos factos que consubstanciam a causa de pedir apresentada pelo Recorrente.
XXXI) A decisão danosa, como aliás já supra se alegou fundamentadamente, é a decisão do Juiz .. de indeferir liminarmente os embargos de terceiro, e que foi REVOGADA PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES!
XXXII) Pelo que, para além de a existência de uma decisão revogatória da decisão danosa NÃO SER UM VERDADEIRO PRESSUPOSTO PROCESSUAL QUE OBSTE A QUE O TRIBUNAL CONHEÇA DO MÉRITO DA CAUSA, a verdade é que mesmo que se perfilhe um diferente entendimento sobre tal questão jurídica, (sustentando-se que este é um verdadeiro pressuposto processual específico da ação de indemnização contra o Estado) É FACTO ASSENTE E DADO COMO PROVADO PELO TRIBUNAL A QUO, QUE O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES REVOGOU A DECISÃO DE INDEFERIMENTO LIMINAR DOS EMBARGOS, decisão judicial sobre a qual o Recorrente formulou o seu pedido de indemnização contra o Réu/Recorrido.
XXXIII) A decisão ilegal e perante a qual o Recorrido imputa os danos que sofreu, corresponde ao despacho de indeferimento liminar dos embargos e NÃO à sentença na qual o Tribunal de Família e Menores de Braga de pronunciou pela improcedência dos embargos!
XXXIV)Acrescente-se ainda que, mesmo que se perfilhe a tese de que a existência de uma decisão revogatória da decisão danosa é um verdadeiro pressuposto processual específico, também sob esse prisma o Tribunal a quo decidiu mal, já que, mesmo que, a ser assim, deveria ter absolvido o Réu/Recorrido da INSTÂNCIA mas NUNCA, repita-se, NUNCA, absolvido do PEDIDO, já que a não verificação de um pressuposto processual tem como consequência a verificação de uma exceção dilatória, conforme dispõe o n.º do artigo 576.ª do CPC e não de uma exceção perentória, como sustenta o Tribunal a quo.
XXXV) Em momento algum se poderá retirar da leitura cuidada do disposto no n.º2 do artigo 13.º a exigência do reconhecimento do erro judiciário em ação autónoma e anterior à ação de indemnização contra o Estado, como refere a Meritíssima Juiz a quo.
XXXVI) Nos casos de responsabilidade civil extracontratual do Estado por exercício da função jurisdicional na modalidade de erro judiciário, o legislador faz depender a procedência do pedido de indemnização da verificação de uma decisão revogatória da decisão danosa, pela jurisdição competente. Ou seja, exige que um Tribunal hierarquicamente superior ao que proferiu a decisão danosa se tenha pronunciado sobre a mesma e concluído pela sua revogação. Esta exigência de uma prévia revogação da decisão danosa é uma condição sine qua non face ao pedido indemnizatório formulado pelo lesado pelos efeitos decorrente de uma decisão jurisdicional contrária à Lei.
XXXVII) Salvo melhor entendimento, entende o Recorrente que tal exigência é contrária ao disposto na Constituição da República Portuguesa (adiante CRP), na medida em que viola o Princípio constitucional da Igualdade decorrente do artigo 13.º da CRP, configurando ainda como uma restrição do direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional (artigo 20.º da CRP) e violando ainda o disposto no n.º2 do artigo 202.º da CRP, preceito normativo este que institui o dever dos órgãos que exercem a função jurisdicional, mormente os Tribunais, de “(…) assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (…)”.
XXXVIII) A exigência de uma prévia decisão revogatória traduz-se, perante o actual regime processual vigente no ordenamento jurídico português, numa violação do Princípio da Igualdade na medida em que casos há em que as decisões jurisdicionais não podem ser objeto de recurso, como será o caso, a título meramente exemplificativo, de uma decisão sobre uma causa cujo valor é inferior ao da alçada do tribunal superior, precludindo-se assim qualquer tipo de possibilidade de recurso, ou ainda, se a decisão judicial for proferida pela instância suprema da jurisdição em que se insere, entre nós, o Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo.
XXXIX) Desta forma, duas decisões materialmente idênticas serão suscetíveis de gerar ou não o dever de indemnizar decorrente da verificação de erro judiciário, consoante o valor da causa ou ainda, consoante a posição hierárquica ocupada pelo tribunal que as emitiu perante a jurisdição a que pertence.
XL) A esta parte auxiliamo-nos dos argumentos de Luís Fábrica, in “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, Universidade Católica Editora, 2013, Lisboa, págs.359 a 361:“ (…) Mais grave, todavia, do que a carência de fundamentos sólidos para a solução consagrada no n.º2 do artigo 13.º é o facto de esta norma estar em contradição com regras de direito constitucional e de direito da União Europeia. A contradição resulta, em primeiro lugar, do facto de uma decisão poder reunir todos os requisitos para ser qualificada como erro judiciário e, todavia, o sujeito lesado não poder obter o ressarcimento dos danos causados aos seus direitos pela circunstância de tal decisão não poder ser objeto de recurso (….). Assim, duas decisões materialmente idênticas podem gerar ou não gerar dever de indemnizar por erro judiciário consoante o valor da causa ou o tribunal que as tenha proferido. Um dos lesados obtém o ressarcimento dos danos sofridos e o outro não (…) Em suma, da norma do n.º2 do artigo 13.º resulta uma violação do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º), por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um motivo ou outro, não podem ser objeto de recurso. (…)”.
XLI) Andou mal o Tribunal a quo ao aplicar o disposto no n.º2 do artigo 13.º do RRCEE, pronunciando-se pela inexistência de uma prévia decisão revogatória da decisão danosa, e em consequência, absolvendo o Réu/Recorrido do pedido.
XLII) Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 13.º, 22.º e 202.º, n.º2 e 204.º da CRP. NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e consequentemente revogada a sentença recorrida, sendo substituída por decisão que ordene o prosseguimento do processo, assim se fazendo inteira Justiça!

O Ministério Público respondeu entendendo que “é totalmente correta a douta sentença recorrida, pelo que deve negar-se provimento ao recurso de apelação”.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
As questões a resolver são as seguintes, tendo em conta que o objeto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do apelante (artigos 608.º, n.º 2 e 635.º, n.º 4 do Código de Processo Civil):
- é correta a decisão de incompetência material relativamente ao pedido de indemnização sustentado em erros praticados pelo funcionário do Tribunal?
- a alegada decisão danosa do Mmº Juiz foi revogada por Tribunal Superior?
- a inexistência de uma decisão revogatória da decisão danosa que fundamenta o pedido indemnizatório é um pressuposto relativo ao mérito da causa ou um pressuposto processual?
- a norma que estabelece a necessidade de revogação é inconstitucional?

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na parte da sentença que se pronunciou sobre a exceção perentória de falta de decisão revogatória da alegada decisão danosa, foram considerados assentes os seguintes factos:
- O autor foi casado com C.., com quem havia contraído matrimónio em 18/05/2002, tendo o mesmo sido dissolvido, na sequência de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que correu termos na .. Secção do Tribunal de Família e Menores de Braga, com o número de processo...
- Previamente à ação de divórcio, C.., requereu o arrolamento dos bens comuns do casal – Proc nº.. do Tribunal de Família e Menores de Braga, que depois veio a ser apenso à ação de divórcio nº .. do mesmo Tribunal.
- O arrolamento foi decretado por decisão de 6 de Setembro de 2010.
- Na sequência de tal decisão, foi o autor notificado, por carta registada com aviso de receção de que sic:«deve abster-se de resolver quaisquer contratos de qualquer forma, ou de o mesmo outorgar qualquer contrato promessa, cessação de exploração, permuta ou em espécie, nomeadamente através da cessação de posição que detém no contrato da sociedade, ou qualquer outro ato, sem intervenção da requerente C..…» e «de que pode no prazo de dez dias, fazer as declarações que entender quanto ao direito do requerido e ao modo de o tornar efetivo.
- Carta com finalidade idêntica foi enviada à O.., Ldª na pessoa do seu gerente, o aqui autor.
- A Sociedade O.., Ldª, em 11 de outubro de 2010 apresentou, por apenso ao processo de arrolamento, embargos de terceiro onde pedia lhe fosse reconhecida a posse e propriedade dos veículos arrolados de matrículas ..-XN e ..-FP-.. e o consequente levantamento do arrolamento – (Apenso ..).
- A mesma Sociedade O.., Ldª, em 3 de dezembro de 2010 apresentou, por apenso ao processo de arrolamento embargos de terceiro onde pedia lhe fosse reconhecida e restituída a posse do imóvel sito na Rua.., Braga, e ainda reconhecida e restituída a ela, embargante, a posse do estabelecimento comercial D.. e, assim, o consequente levantamento do arrolamento quanto aos ditos bens – (Apenso ..).
- Em ambos os processos de embargos de terceiro foi proferido despacho rejeitando liminarmente os embargos.
- A embargante interpôs recurso das decisões de indeferimento liminar, os quais vieram a ser julgados procedentes em 30/06/2011, tendo sido revogadas as decisões de 1ª instância, e determinado o prosseguimento dos processos.
- Em obediência às decisões do Tribunal Superior, o Tribunal de Família e Menores designou data para a inquirição de testemunhas que se realizou em 12 de agosto de 2011, após o que veio a decidir-se pelo recebimento dos embargos e, assim, determinada a notificação dos requeridos para os contestarem.
- Em 7 de março de 2012 foi proferida decisão final nos processos de embargos (Apensos B e C do ..), tendo ambas as decisões julgado improcedentes os respetivos embargos.
- As decisões foram devidamente notificadas, e das mesmas não foi interposto recurso, tendo transitado em julgado.

A estes factos relativos à decisão sobre a exceção perentória (que constam da sentença e não foram impugnados), deve acrescentar-se o seguinte, quanto à decisão de incompetência material:
- o autor, na petição inicial, imputa ao Sr. Funcionário judicial – que nomeia de forma individualizada - vários erros que, alegadamente dariam origem à indemnização peticionada – cfr. artigos 69.º, 118.º, 183.º, 188.º da petição inicial – bem como, expressamente, se refere ao mesmo funcionário judicial na parte em que articula de direito, em paralelo com a imputação que faz ao Juiz de Direito.

As conclusões da alegação do apelante apresentam-se muito extensas, repetitivas e não ordenadas em relação às matérias que pretende ver reapreciadas.
Contudo, por uma questão de ordenação processual e lógica, seguiremos o “iter decisório” da sentença, começando por analisar a questão da incompetência material.
Relativamente a esta, o próprio apelante não põe em causa que a apreciação de actos praticados pelo funcionário judicial está vedada ao tribunal comum, por ser da competência dos Tribunais Administrativos.
Com efeito, dúvidas não existem quanto ao facto de a competência para uma ação que tem por causa de pedir um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (funcionário judicial) no exercício da atividade estranha à função de julgar, ser dos tribunais administrativos – cfr. artigo 4.º, n.º 1 g) e n.º 3 a) do ETAF, bem como Acórdãos n.º 3/05, de 29 de Novembro de 2006 e n.º 5/11, de 22/09/2011, proferidos pelo Tribunal de Conflitos, disponíveis em www.dgsi.pt e citados na sentença sob recurso.
O que o apelante alega é que sustenta o pedido indemnizatório na responsabilidade do magistrado judicial pelo erro judiciário e não na responsabilidade do funcionário judicial, “que se limitou a cumprir os comandos emitidos pelo juiz”.
Salvo o devido respeito, tal conclusão não ressalta da leitura atenta da petição inicial, sendo, apenas agora, trazida à colação.
Como já acima deixámos enunciado, o autor por variadas vezes refere expressamente comportamentos do funcionário judicial em causa – que identifica pelo nome – com a clara intenção de lhe imputar actos danosos, consubstanciadores de responsabilidade civil do Estado. E, não só lhe atribui tais comportamentos, como, na parte da sua petição que intitula “Do Direito” individualiza, em artigos próprios (237.º e 242.º) a atuação deste funcionário como geradora de responsabilidade do Estado.
Assim, considerando a forma como o próprio autor desenvolve a causa de pedir da sua ação, entendemos que bem andou a Sra. Juíza de 1.ª instância, ao separar o pedido indemnizatório baseado em erro do funcionário judicial, “erro in procedendo”, do erro grosseiro nas decisões proferidas pelo Mmº Juiz, “erro in judicando”, distinguindo a competência material para a apreciação de uma e outra atuação.
Sempre se dirá, no entanto, que, se não se imputa qualquer responsabilidade ao funcionário judicial, como agora pretende o apelante, então aquela parte da sentença é perfeitamente inóqua para si, pois, não a podendo discutir nesta ação, também não terá que a discutir em qualquer outra, uma vez que, conforme agora sustentado (repete-se) ela não existirá.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação do apelante relativas à parte da sentença que se pronunciou sobre a incompetência em razão da matéria.

A segunda questão que cabe analisar tem a ver com a reiterada alegação do apelante de que a decisão danosa foi objeto de prévia revogação.
Diremos apenas que o apelante fica muito perto de uma litigância de má fé ao persisitir na alegação de que a decisão danosa foi revogada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, face aos factos provados nos autos e contra os quais o apelante não se insurgiu, não tendo, por qualquer forma, impugnado a decisão sobre a matéria de facto.
Isto porque, resulta com toda a evidência, que a decisão que o Tribunal da Relação de Guimarães revogou, foi o indeferimento liminar dos embargos de terceiro movidos contra o arrolamento (apensos B e C), determinando este Tribunal superior, o prosseguimento dos processos.
Ora, tendo os processos prosseguido, em obediência a essa decisão do Tribunal da Relação, veio a ser proferida decisão final (após instrução dos autos, com inquirição de testemunhas e contestação), que julgou improcedentes os embargos. Destas decisões não foi interposto recurso, pelo que as mesmas transitaram em julgado.
Como é óbvio, são estas decisões finais que, eventualmente, constituirão a decisão danosa com base na qual é peticionada a indemnização fundada em responsabilidade por erro judiciário e não aquelas outras que se limitaram a indeferir liminarmente uma pretensão que, posteriormente, veio a ser julgada e decidida.
Uma vez que os embargos de terceiro prosseguiram para julgamento, é com base na decisão final aí proferida que se definiram e fixaram os direitos das partes, e não com base num indeferimento liminar que foi posto em causa e revogado para que os autos prosseguissem.
Não tem razão, portanto, o apelante, ao persistir na alegação de que a decisão danosa terá sido revogada pelo Tribunal da Relação.

Questão diversa é a que se prende não só com a constitucionalidade de tal imposição como com a definição do tipo de pressuposto contido em tal normativo.
Vejamos.
O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicos foi aprovado pela Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro e estabelece, no seu artigo 13.º a responsabilidade civil decorrente do erro judiciário, acrescentando o seu n.º 2 que “o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.
Tal revogação tem que ser vista como uma condição prévia da ação de indemnização, tendo o legislador estatuído neste preceito uma condição de procedência da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário. A ausência de revogação da decisão danosa fundada num vício de julgamento qualificável como erro judiciário determina, só por si, a improcedência da ação de responsabilidade – cfr. Carlos Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, anotação 8 ao artigo 13.º, pág. 274, nota 479 e anotação 9 ao artigo 13.º, pág. 276, nota 483 e Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, nota 3 ao artigo 13.º, pág. 357, ambos citados no recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 186, de 23 de setembro de 2015.
Assim sendo, estamos perante um pressuposto da ação indemnizatória, pressuposto esse que determina, só por si, a improcedência da ação, conduzindo à absolvição do réu do pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – artigo 576.º, n.º 3 do CPC.

Finalmente, cabe apreciar da constitucionalidade do referido artigo 13.º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Seguindo de perto o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2015, publicado no DR 2.ª Série, n.º 186, de 23/09/2015, que decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”, diremos o seguinte:
- o artigo 22.º da CRP reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração, mas o mesmo artigo 22.º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito;
- reconhece-se uma larga margem de conformação ao legislador, quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado, cabendo-lhe densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar, não podendo, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da CRP;
- sabendo que a efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito;
- ora, o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais, tem de ser o recurso (e reclamação);
- é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º da Lei 67/2007;
- o que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; menos ainda se poderá admitir que a decisão judicial definitiva sobre uma determinada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior;
- a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário, constituem bens constitucionais reconhecidos.
Desta pequena súmula do Acórdão do T. Constitucional a que nos vimos referindo (que pode ser aprofundada pela sua integral leitura) resulta que a mencionada solução legal “limita-se a estabelecer que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação. Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2 do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido”.
Pelo que, também quanto a esta questão da constitucionalidade, terá que ser julgada improcedente a apelação em análise e, em conclusão, confirmada a sentença recorrida.

Sumário:
1 - A competência para uma ação que tem por causa de pedir um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (funcionário judicial) no exercício da atividade estranha à função de julgar, pertence aos tribunais administrativos.
2 – Sendo a causa de pedir um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar) serão competentes os tribunais judiciais, para o conhecimento de ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
3 – O pedido de indemnização por responsabilidade civil decorrente do erro judiciário, deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente – artigo 13.º, n.º 2 da Lei n.º 67/2007 de 31/12
4 – Tal norma não é inconstitucional.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Guimarães, 1 de outubro de 2015
Ana Cristina Duarte
Francisco Xavier
Francisca Mendes