Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
190/20.6T8MGD.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ILICITUDE
CÓDIGO DA ESTRADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) No âmbito da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, para efeitos de se considerar verificado o requisito da ilicitude, torna-se necessário que a norma violada vise proteger interesses particulares e que o dano se produza no círculo de interesses privados que a lei tem em vista acautelar;
2) É de considerar a culpa exclusiva na produção de um acidente, ocorrido de noite, em que o réu conduzia um veículo com uma taxa de álcool no sangue de 1,28 g/l, o que determinou para este a diminuição da concentração, dos reflexos e da acuidade visual, desatenção, perceção errada da realidade e perigo, tempo de reação diminuído e estado de desinibição e euforia, tendo embatido com a parte frontal direita do seu veículo no lado esquerdo do escarificador que se encontrava atrelado a um trator agrícola estacionado paralelamente à faixa de rodagem, ocupando cerca de metade da faixa de rodagem por onde o réu circulava, junto à berma direita da via, atento o sentido de circulação daquele veículo, local onde existia iluminação pública e a visibilidade era boa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) X - Seguros Gerais, SA, veio intentar a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra R. P., onde conclui pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de €7.183,33, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, bem como no pagamento das custas e demais encargos legais.
Para tanto alega, em síntese, que pela apólice nº .............67 tinha sido transferida para si a responsabilidade pela circulação do veículo com a matrícula PA e, na sequência de acidente de viação ocorrido em 8 de junho de 2019 que se ficou a dever a responsabilidade do réu, que o conduzia, teve a autora que proceder ao reembolso dos danos materiais sofridos no trator agrícola com a matrícula TL e no arado, bem como no custo da obtenção da certidão da participação de acidente da GNR.
Mais alegou que o réu acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,28g/l, conduzindo assim o veículo em estado de embriaguez, que deu origem à sua condução desatenta e desconcentrada, sendo causa para a ocorrência do acidente dos presentes autos, encontrando-se, portanto, preenchidos os requisitos legais para que a autora seja ressarcida nos termos do disposto no artigo 27º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto.
O réu R. P. apresentou contestação onde conclui entendendo dever absolver-se o réu do pedido.
Alega, para tanto, em síntese que no local e momento em que ocorreu o sinistro a visibilidade não era boa e o veículo TL não se encontrava regularmente estacionado e o arado não se encontrava devidamente assinalado, e por isso não era exigível, nem sequer possível ao réu evitar o embate.
Mais referiu que, o facto de o réu apresentar indícios de álcool no sangue no momento do embate não foi determinante para a ocorrência do embate, mas, antes, a posição do trator e do seu atrelado, bem como a pouca luminosidade do local e o período temporal noturno.
Por fim, e por mera cautela, invocou que, caso se considere que a taxa de alcoolémia acusada pelo réu contribuiu para o sinistro em causa, se deverá considerar que a atuação do proprietário do trator também contribuiu em igual medida para a verificação do sinistro.
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Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decidiu:

a) Condenar o réu a pagar à autora a quantia de €3.491,67 acrescida de juros, à taxa de 4%, contados desde a data da citação do réu até integral pagamento.
b) Absolver o réu no mais peticionado.
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B) Inconformada com a decisão proferida, veio a autora, X - Seguros Gerais, SA, interpor recurso (ref. 39917935), o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (ref. 23866393).
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Nas alegações de recurso da apelante X - Seguros Gerais, SA, são formuladas as seguintes conclusões:

1. A recorrente dissente da douta sentença impugnada, na parte em que esta atribui culpa concorrente ao proprietário do veículo estacionado, escudando-se, singelamente, na circunstância de ser vedado o estacionamento, em arruamento urbano, de um veículo agrícola.
2. Percorrendo a matéria de facto assente, nenhum outro facto, estacionamento indevido à parte, suporta o juízo de censura estradal, que conduziu à parcial absolvição do réu.
3. Da dinâmica do acidente, dada como assente, nada se pode retirar, na perspetiva da recorrente, que permita concluir que a presença do veículo estacionado, por si só, constituiu fator causal para a produção do acidente.
4. Deve apurar-se se um condutor médio e prudente, em plena posse das suas faculdades, teria igualmente embatido, no veículo agrícola estacionado, nas mesmas circunstâncias.
5. Ora, de acordo com a matéria assente, o arruamento urbano, onde ocorreu o acidente dispunha de iluminação pública e a visibilidade era boa; o veículo agrícola estava estacionado junto à berma direita e alinhado com esta, ocupando cerca de 2,25m da faixa (metade da hemifaixa com 4,5m, numa via com 9m de largura, o que significa que o réu dispunha de 6,75m de espaço livre para contornar o veículo estacionado; o réu nem precisava de utilizar espaço da hemifaixa contrária, uma vez que o espaço livre na sua hemifaixa (2,25m) é superior à largura de um auto ligeiro (1,60m/1,70m).
6. Quando o embate ocorreu, às 04h30, o trator já estaria estacionado, naquele local, há várias horas, o que permite presumir que, ao longo das mesmas e até à hora do acidente, muitos outros veículos percorreram a Rua ..., sem causar qualquer acidente.
7. Conclui-se, assim, que um condutor médio, nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, teria passado pelo veículo estacionado ou contornado o mesmo, sem que ocorresse qualquer embate.
8. Esta asserção, no fundo, é corroborada pela própria sentença recorrida, na parte em que a mesma, não considerou como provadas as circunstâncias alegadas pelo réu, no sentido de atribuir culpa concorrente ao posicionamento do veículo agrícola, em termos de estabelecimento de relação causa-efeito e que, a seguir se enunciam:
- Não era exigível, nem sequer possível ao réu evitar o embate, pois não era possível observar atempadamente o obstáculo, nem se poderia esperar que o réu antecipasse que a sua faixa de rodagem estivesse parcialmente obstruída (facto não provado C);
- A posição do trator e da alfaia agrícola e fraca luminosidade do local e o período temporal noturno foram a causa determinante do embate (facto não provado D);
- Qualquer condutor médio, prudente e cumpridor das regras estradais teria embatido no trator, mesmo sem a taxa de alcoolemia (facto não provado E)
9. Perante a matéria de facto assente em primeira instância, em que o embotamento dos sentido e faculdades do réu, desempenhou um papel decisivo na produção do evento lesivo, permite-se concluir que o embate teria igualmente ocorrido, nas mesmas de circunstâncias de tempo e lugar, se o veículo estacionado, comportasse a mesma largura, mas integrasse uma tipologia de veículo não inibida de estacionar num arruamento urbano, como um veículo pesado de mercadorias com semirreboque acoplado ou um automóvel ligeiro com uma embarcação atrelada.
10. Isto porque, a causa essencial do embate deriva do estado do ébrio do réu, mercê da elevada taxa de alcoolemia registada (1,28 g/l), o qual, como ficou provado na douta decisão impugnada, lhe provocou diminuição de concentração, reflexos e acuidade visual, desatenção, perceção errada da realidade e perigo, tempo de reação diminuídos e estado de desinibição e euforia.
11. Para que haja imputação de responsabilidade civil subjetiva e, por consequência, a obrigação de indemnizar, exige a lei a concorrência de vários pressupostos: facto voluntário, ilicitude, culpa (ou imputação do facto ao lesante), dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano, conforme decorre do disposto nos artigos 483º nº 1 e ss. do Código Civil.
12. Em relação ao proprietário do veículo agrícola, não se verificam, manifestamente, os pressupostos de responsabilidade civil, cuja verificação é cumulativa, sendo certo que, o réu não logrou alegar e provar os factos, por este, alegados, no sentido de afastar ou mitigar a sua própria culpa.
13. Não basta apurar uma conduta ilícita, para estribar a culpa na eclosão do sinistro, sendo necessário, igualmente, estabelecer uma relação de causalidade entre a conduta estradal e o evento danoso o que, em relação ao condutor do veículo agrícola, manifestamente não se verifica, merecendo a douta decisão recorrida justa crítica, no segmento objeto do presente recurso.
14. O tribunal a quo, ao atribuir culpa concorrente ao condutor do veículo agrícola TL, inaplicou ou interpretou, incorretamente, o disposto nos artigos 483º nº1 e 487º nº 1 do Código Civil.
15. Deve, assim, a douta sentença recorrida, ser revogada parcialmente, com a consequente atribuição de culpa exclusiva no acidente ao réu e condenado o mesmo na totalidade do pedido formulado na ação.
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Pelo apelado R. P. foi apresentada resposta onde conclui entendendo dever ser negado provimento ao recurso interposto pela autora, com as legais consequências.
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C) Foram colhidos os vistos legais.
D) As questões a decidir no recurso são as de saber:
1) Se deverá ser alterada a decisão quanto à responsabilidade do acidente;
2) Se o réu deverá ser condenado na totalidade do pedido.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) I. FACTOS PROVADOS

1. O veículo ligeiro de passageiros, marca Mitsubishi L200, com a matrícula nº PA é propriedade de R. C.;
2. (…) e a responsabilidade de circulação do aludido veículo, através da apólice nº .............67 foi transferida para a autora;
3. O veículo trator agrícola, marca John Deere 615, L004, com a matrícula nº TL, e o arado escarificador atrelado são propriedade de P. P.;
4. No dia 8 de junho de 2019, pelas 04h30m, o réu conduzia o veículo PA, na Rua ... em direção à Rua ..., em Mogadouro e,
5. (…) o veículo TL, com o arado escarificador atrelado encontrava-se estacionado, paralelamente à faixa de rodagem, junto à berma direita da via, atento o sentido de circulação do veículo PA;
6. O veículo trator TL e a alfaia agrícola que a si se encontrava atrelada ocupavam cerca de metade da faixa de rodagem onde o réu circulava;
7. A alfaia agrícola acoplada ao trator TL não se encontrava devidamente sinalizada com refletores e,
8. (…) estendia-se para além do espaço que o trator em si ocupava, estendendo-se ainda mais para “dentro” da faixa de rodagem;
9. A dado momento, já após ter efetuado a curva à direita existente na Rua ..., o veículo PA embate, violentamente, com a sua parte frontal direita no lado esquerdo do escarificador que se encontrava atrelado ao trator TL;
10. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4º, era noite, existia iluminação pública e a visibilidade era boa;
11. (…) o piso da via era de asfalto e encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação;
12. (…) no local do embate a via tinha a configuração de arruamento urbano, com 9 metros de largura e dois sentidos de circulação, delimitados por linha longitudinal descontínua e perfil de reta;
13. O réu ao conduzir o veículo nas referidas circunstâncias, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,28 g/l;
14. (…) facto que deu origem ao inquérito crime nº 60/19.0GAMGD;
15. O estado ébrio do réu determinou, para este, a diminuição da concentração, dos reflexos e da acuidade visual, desatenção, perceção errada da realidade e perigo, tempo de reação diminuído e estado de desinibição e euforia, circunstâncias que motivaram o embate referido em 9;
16. Fruto do embate do veículo PA, o trator TL sofreu estragos no suporte traseiro, braço inferior, sensor, barra e apoio hidráulico, cablagem e barra de engate;
17. Os serviços técnicos da autora procederam à peritagem de danos do veículo trator agrícola TL e estimaram o valor da reparação em €4.581,02;
18. A autora pagou à A. & Irmãos, Lda, oficina que procedeu à reparação do veículo TL, a quantia de €4.581.03;
19. O arado escarificador atrelado ao trator TL, em virtude do embate do veículo PA, sofreu danos no respetivo quadro, cilindros, cantoneira, tesoura e dobradiças;
20. O proprietário do arado escarificador, P. P., ordenou a reparação da alfaia agrícola e procedeu ao pagamento da mesma, no montante de €2.530, 31;
21. Em 22 de agosto de 2019, a autora indemnizou o terceiro lesado, P. P., na quantia de €2.602,31, correspondente ao somatório do valor despendido na reparação do escarificador (€2.530,31) e do custo de obtenção de certidão da participação de acidente da GNR, no valor de €72,00;
22. A autora interpelou o réu para que este procedesse ao pagamento dos aludidos danos e,
23. (…) até à data nada pagou.
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II. FACTOS NÃO PROVADOS:

A) O réu não conseguiu manter o veículo PA enquadrado na faixa de rodagem, perdeu o controle do mesmo e este desviou-se para o lado direito, descrevendo uma trajetória oblíqua e,
B) (…) embateu na traseira do trator com a matrícula TL;
C) Não era exigível, nem sequer possível ao réu evitar o embate, pois não era possível observar atempadamente o obstáculo, nem se poderia esperar que o réu antecipasse que a sua faixa de rodagem estivesse parcialmente obstruída;
D) A posição do trator e da alfaia agrícola e fraca luminosidade do local e o período temporal noturno foram a causa determinante do embate;
E) Qualquer condutor médio, prudente e cumpridor das regras estradais teria embatido no trator, mesmo sem a taxa de alcoolemia.
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B) O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) A apelante X - Seguros Gerais, SA, veio intentar ação de regresso contra o réu R. P., entendendo que a responsabilidade pela produção do acidente apenas a este é imputável.
Na sentença recorrida entendeu-se que a conduta do réu integrava a previsão dos artigos 3º nº 2 e 11º nº 2 do Código da Estrada (CE), a que acresce a circunstância daquele conduzir com uma TAS de 1,28 g/l, presumindo-se um efetivo nexo causal entre a TAS que o réu apresentava no momento da ocorrência e o acidente.
No entanto, entendeu também a sentença recorrida que o veículo TL, violou a norma estradal prevista no artigo 50º nº 1 alínea g) do Código da Estrada, que proíbe o estacionamento de veículos agrícolas, exceto nos parques de estacionamento especialmente destinados a esse efeito, pelo que entendeu existir concorrência de culpas entre o réu e o condutor daquele veículo TL.
Mas não parece que assim deva ser.
Os requisitos da responsabilidade por factos ilícitos, pressupõem a existência de um facto voluntário do agente, a ilicitude, que se pode traduzir na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou na violação de um direito subjetivo, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Os danos a considerar podem ser patrimoniais ou não patrimoniais, conforme os mesmos sejam, ou não, suscetíveis de avaliação pecuniária.
Quanto aos danos não patrimoniais, há que notar que nem todos são atendíveis, apenas se considerando aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, nos termos do disposto no artigo 496º nº 1 do Código Civil.
Estipula-se no artigo 562º do mesmo diploma que, quem estiver obrigado a reparar um evento, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Por outro lado, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, conforme se pode ler no artigo 564º nº 1 do Código Civil.
Quanto à indemnização em dinheiro, a mesma tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos - artigo 566º nº 2 daquele diploma.
Refira-se ainda que se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566º nº 3 do Código Civil).
Quanto à ilicitude, como acima se mencionou, a mesma pode traduzir-se na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou na violação de um direito subjetivo.
Conforme se refere no Código Civil anotado, Volume I, Pires de Lima e Antunes Varela, 3ª edição, a páginas 445 e seg., no que se refere à violação de um direito subjetivo “a violação do direito de outrem só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica… De um modo geral pode dizer-se que não procedem ilicitamente os que atuam no exercício regular de um direito ou no cumprimento de uma obrigação legal (cfr. Vaz Serra, Causas justificativas de um facto danoso, nºs 23 e segs, BMJ, nº 85).
A ilicitude pode consistir também na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Há aqui que distinguir as normas que protegem interesses particulares, sem, todavia, atribuírem um direito subjetivo ao titular do interesse lesado, das regras que protegem apenas interesses particulares, mas que não chegam a atribuir um direito subjetivo ao respetivo titular, para não ferirem um outro interesse particular mais qualificado ( … ).
Mas já não são abrangidos pelo artigo 483º aquelas normas que visam apenas proteger certos interesses gerais ou coletivos, embora da sua aplicação possam beneficiar, mediata ou reflexamente, determinados interesses particulares. Trata-se de normas que, diretamente, apenas protegem a coletividade como tal, especialmente o Estado e que só beneficiam o indivíduo na medida em que cada um está interessado no bem da coletividade [Enneccerus-Lehmann, Derecho de Obligaciones, §235, I, 2, b)].
Assim sucede com a generalidade das normas constitucionais, com muitos preceitos do direito administrativo, com as disposições relativas à defesa da integridade territorial do Estado, com os preceitos do direito penal que punem os chamados delitos contra a segurança interna ou externa do Estado, etc. É certo que da observância dos deveres impostos nestas normas derivam benefícios para os vários cidadãos que integram a coletividade. Mas não foi para tutelar o interesse de cada cidadão, individualmente considerado, que tais deveres foram fixados na lei. Como acentuam Enneccerus-Lehmann (ob. cit., §325, I, 2), para determinar se a violação de certa norma origina a obrigação de indemnizar, «o decisivo não é o efeito, mas sim o conteúdo e o fim da disposição». Não basta que esta seja proveitosa também para o indivíduo lesado com a violação: é necessário que vise proteger interesses particulares.
E é ainda necessário – acrescente-se – que o dano se produza no círculo de interesses privados que a lei tem em vista tutelar. Este requisito não se verifica, por exemplo, quando uma postura administrativa manda iluminar determinados recintos para proteção dos operários que laboram em certas fábricas ou das crianças que frequentam certa escola e a falta de iluminação vem a causar danos em pessoas estranhas que se introduzem indevidamente no recinto (v. g. para furtar). Outro exemplo extraído da jurisprudência italiana (e citado por Trimarchi, Causalità e danno, pág. 70, nota 25): uma criança trepou por um poste de uma linha elétrica, colocado a altura inferior à regulamentar, e foi vítima de acidente; a empresa ficou isenta de responsabilidade, por se considerar que a altura mínima da linha, fixada no regulamento, não visa impedir a escalada dos postes, mas obstar a que as coisas transportadas por pessoas ou veículos, circulando ao nível do solo, contactem com as linhas.”
Sintetizando o exposto, dir-se-á que para efeitos de verificação do requisito da ilicitude é necessário que a norma vise proteger interesses particulares e que o dano se produza no círculo de interesses privados que a lei tem em vista tutelar.

Se atentarmos nas normas do Código da Estrada verificamos que no artigo 48º se estabelece que:

1. Considera-se paragem a imobilização de um veículo pelo tempo estritamente necessário para a entrada ou saída de passageiros ou para breves operações de carga ou descarga, desde que o condutor esteja pronto a retomar a marcha e o faça sempre que estiver a impedir ou a dificultar a passagem de outros veículos.
2. Considera-se estacionamento a imobilização de um veículo que não constitua paragem e que não seja motivada por circunstâncias próprias da circulação.
5. Ao estacionar o veículo, o condutor deve deixar os intervalos indispensáveis à saída de outros veículos, à ocupação dos espaços vagos e ao fácil acesso aos prédios, bem como tomar as precauções indispensáveis para evitar que aquele se ponha em movimento.
Já vimos que o artigo 50º nº 1 alínea g) do Código da Estrada proíbe o estacionamento de veículos agrícolas, exceto nos parques de estacionamento especialmente destinados a esse efeito.
Cremos que a proibição de estacionamento de veículos agrícolas fora dos parques de estacionamento destinados a esse fim tem a ver com a circunstância de se pretender limitar a circulação e estacionamento de tais veículos, pouco adequados à circulação na via pública, dotados de uma segurança limitada, até pela sua estrutura, dispondo, normalmente, de duas rodas traseiras de dimensões bastante superiores às das rodas da frente que, por sua vez estão inseridas num eixo bastante menor do que o traseiro, muito mais adequados à circulação em espaços agrícolas, com vista a disporem de uma capacidade de tração própria para os trabalhos nesse campo, daí se compreendendo a proibição de circulação de veículos agrícolas em autoestradas, bem como o limite de velocidade de circulação dos tratores, dentro das localidades, a 20 km/h, nas zonas de coexistência, de 30 km/h noutras zonas e 40km/h nas restantes vias públicas.
No que se refere especificamente ao estacionamento, a proibição justificar-se-á, ainda, quer pelas dimensões anómalas de tais veículos, quer pela ocupação do espaço de estacionamento que, normalmente, tem em conta a dimensão usual de veículos ligeiros, enquanto que aqueles veículos, particularmente, no eixo traseiro se apresentam sobredimensionados o que poderia constituir um embaraço para a circulação dos demais veículos e, inclusivamente, perturbar um eventual estacionamento de um veículo ligeiro à retaguarda daquele, ou a saída deste de tal local.
Aliás, não pode deixar de se referir que um veículo pesado de transporte de passageiros ou de mercadorias, poderá ter dimensões superiores às de um trator de pequena ou média estatura e, nem por isso, é proibido o seu estacionamento.
De resto, estando o veículo agrícola estacionado junto à berma direita e alinhado com esta, a ocupar cerca de metade da faixa de rodagem onde o réu circulava, tendo a via 9 metros de largura e duas vias de circulação, tal significa que ocupava cerca de 2,25m da faixa, pelo que o réu dispunha de 6,75m de espaço livre para contornar o veículo estacionado, dispondo de cerca de 2,25 metros para circular na sua faixa de rodagem, sem necessidade de invadir a faixa de rodagem contrária, distância esta que é superior em cerca de 40/50 cm do espaço livre total da faixa de rodagem em que o réu circulava, de qualquer forma, tendo o acidente ocorrido pelas 4,30h da madrugada, não é, sequer, previsível, que houvesse outro trânsito, que obstasse, ainda que fosse necessário, introduzir-se na faixa de rodagem contrária.
Afigura-se-nos, assim, que a proibição de estacionamento de veículos agrícolas fora dos locais aos mesmos destinados não se destinou primacialmente a evitar acidentes, ainda que tal estacionamento pudesse embaraçar o demais trânsito, como se referiu, pelo que tal facto não assume a relevância que lhe foi dada na 1ª instância, pelos motivos apontados.

De resto, na parte que aqui diretamente interessa, provou-se que:
No dia 8 de junho de 2019, pelas 04h30m, o réu conduzia o veículo PA, na Rua ... em direção à Rua ..., em Mogadouro e o veículo TL, com o arado escarificador atrelado encontrava-se estacionado, paralelamente à faixa de rodagem, ocupando cerca de metade da faixa de rodagem onde o réu circulava junto à berma direita da via, atento o sentido de circulação do veículo PA.
A dado momento, já após ter efetuado a curva à direita existente na Rua ..., o veículo PA embateu, violentamente, com a sua parte frontal direita no lado esquerdo do escarificador que não se encontrava sinalizado com refletores e que se encontrava atrelado ao trator TL;
Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, era noite, existia iluminação pública e a visibilidade era boa, o piso da via, com 9 metros de largura e dois sentidos de circulação, era de asfalto e encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação;
O réu ao conduzir o veículo nas referidas circunstâncias, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,28 g/l, estado ébrio que determinou para este a diminuição da concentração, dos reflexos e da acuidade visual, desatenção, perceção errada da realidade e perigo, tempo de reação diminuído e estado de desinibição e euforia, circunstâncias que motivaram o embate referido.
Em face do exposto, não pode deixar de se considerar que a produção do sinistro ocorreu por culpa exclusiva do réu, motivo pelo qual este terá, por força da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, bem como do disposto no artigo 27º nº 1 alínea c) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/08, onde se estabelece que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, de indemnizar a autora e apelante, no montante de €7.183,33, correspondente à soma dos valores constantes dos pontos 18 e 21 dos factos provados, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Termos em que a apelação terá de ser julgada procedente e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida.
Face ao total vencimento da posição da apelante e decaimento do apelado, sobre este recai a obrigação de suportar as inerentes custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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D) Em conclusão:

1) No âmbito da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, para efeitos de se considerar verificado o requisito da ilicitude, torna-se necessário que a norma violada vise proteger interesses particulares e que o dano se produza no círculo de interesses privados que a lei tem em vista acautelar;
2) É de considerar a culpa exclusiva na produção de um acidente, ocorrido de noite, em que o réu conduzia um veículo com uma taxa de álcool no sangue de 1,28 g/l, o que determinou para este a diminuição da concentração, dos reflexos e da acuidade visual, desatenção, perceção errada da realidade e perigo, tempo de reação diminuído e estado de desinibição e euforia, tendo embatido com a parte frontal direita do seu veículo no lado esquerdo do escarificador que se encontrava atrelado a um trator agrícola estacionado paralelamente à faixa de rodagem, ocupando cerca de metade da faixa de rodagem por onde o réu circulava, junto à berma direita da via, atento o sentido de circulação daquele veículo, local onde existia iluminação pública e a visibilidade era boa.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, condenando-se o réu e apelado a pagar à autora e apelante a quantia indemnizatória de €7.183,33, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, assim se revogando a douta sentença recorrida.
Custas pelo apelado.
Notifique.
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Guimarães, 24/03/2022

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares