Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5569/17.8T8.BRG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
DIREITO DE REGRESSO
CONVOLAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
ANULABILIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- Instaurando o autor uma ação pedindo a condenação da ré a restituir-lhe determinada quantia monetária com fundamento em enriquecimento sem causa, não pode o tribunal condenar a ré a essa restituição com fundameno no direito de regresso, por tal implicar uma convolação da causa de pedir invocada pelo autor para causa de pedir diversa.

2- Essa convolação consubstancia violação flagrante dos princípios do dispositivo e do contraditório e, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d) do CPC, determina a “nulidade” da sentença.

3- Apesar do art. 615º, n.º 1, al. d) consubstanciar o vício genético que afeta a sentença de “nulidade”, trata-se rigorosamente de uma situação de anulabilidade da sentença e, por isso, subtraído ao conhecimento oficioso do tribunal ad quem.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente: Sandra (…)
Recorrido: Márcio (…)

Márcio (…), residente na Rua da (…), n.º ..., (…), instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Sandra (…), residente na (…), moradia (…), Esposende, pedindo a condenação desta a restituir-lhe a quantia de 6.564,59 euros, acrescida de juros de mora, desde 15 de janeiro de 2012 até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese, que aquele e a Ré foram casados, tendo sido decretado o divórcio entre ambos em 02/02/2015, estando em curso o processo de partilha das repetivas meações;
Autor e Ré eram titulares de um contrato de crédito celebrado com o Banco ..., S.A.;
No âmbito do processo judicial de partilha dos bens do casal, Autora e Ré aprovaram o passivo relacionado e assumiram o pagamento do mesmo em termos solidários;
No âmbito do passivo relacionado encontrava-se a dívida de que ambos detinham sobre o Banco ... emergente do sobredito contrato de crédito, no valor de 13.329,19 euros;
O Banco ..., na sequência do incumprimento do dito contrato de crédito instaurou execução contra Autor e Ré;
No âmbito dessa execução foi celebrado acordo, mediante o qual Autor e Ré se obrigaram a pagar a quantia exequenda e as custas em 54 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 15/01/2012 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, num total de 13.129,19 euros, sendo o Autor responsável pelo pagamento de metade dessa quantia e a Ré pelo pagamento da outra metade;
Sendo Autor e Ré solidariamente responsáveis pelo pagamento daquela quantia nos termos do acordo celebrado no âmbito do processo de partilha de bens do ex-casal, foi o Autor que pagou a totalidade das prestações referentes ao acordo alcançado ao Banco ..., S.A;
Pede a condenação da Ré a restituir-lhe metade da quantia que pagou a essa instituição bancária cujo pagamento era da responsabilidade daquela com base no instituto do enriquecimento sem causa.

A Ré contestou, mas essa contestação foi julgada extemporânea e determinou-se o respetivo desentranhamento dos autos por despacho proferido a 10/09/2018, transitado em julgado.

Proferiu-se despacho considerando confessados os factos articulados pelo Autor e facultou-se o processo às partes para exame pelo prazo de dez dias, para alegarem, querendo, por escrito.

O Autor alegou por escrito em que pugna pela total procedência da ação.

Por sua vez, a Ré alegou por escrito invocando a exceção dilatória do erro na forma de processo, sustentando que atento o caráter da subsidiariedade que a lei imprime ao instituto do enriquecimento sem causa, esse instituto é impróprio para que o Autor pudesse reaver o dinheiro que pagou em vez da sua ex-mulher por causa de uma dívida contraída enquanto casados, tendo aquele de recorrer para o efeito ao instituto do direito de regresso.

Conclui que por via da exceção invocada, se absolva aquela da instância.

Proferiu-se sentença em que se julgou improcedente a exceção dilatória do erro na forma do processo arguida pela Ré e em que se julgou totalmente procedente a ação e se condenou a Ré no pedido, constando essa sentença da seguinte parte dispositiva:

“De acordo com o disposto no art.º 567.º, n.º 3, do C.P.C., considerando-se confessados os factos alegados pelo A. e sendo manifestamente simples a solução de direito da causa - distinta da invocada pelo A., mas a que o tribunal não está vinculado, nos termos do art.º 5.º, n.º 3, do C.P.C. -, que assenta no exercício por parte do A. do direito de regresso previsto no art.º 524.º do Código Civil contra a R., condevedora solidária ao credor “Banco ..., S.A.”, julga-se totalmente procedente a ação e, consequentemente, decide o Tribunal condenar a R. no pedido pelo A.”.

Inconformada com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso de apelação em que apresenta as seguintes conclusões:

1.º - A aqui Recorrente não se pode conformar com a douta decisão ora em crise, porquanto o Tribunal a quo entendeu que “(…) não se vislumbra qualquer nulidade do processo, porque que quer o exercício do direito decorrente do enriquecimento sem causa quer o exercício do direito de regresso - mencionado pela própria A. - são feitos pela via adjetiva da ação declarativa comum. Ou seja, a forma de processo de uma ou de outra é igual, não havendo qualquer erro.”.
2.º- Mas, o que está em causa, claramente não é a forma de processo (declarativa comum) mas sim os pressupostos que cada um dos institutos jurídicos - enriquecimento sem causa e direito de regresso - requerem.
3.º - O Recorrido alega que a dívida reclamada nos presentes autos seria solidária entre ambos e para o efeito lançou mão da ação de enriquecimento sem causa para reaver o montante por si pago, porém entende a Recorrente que por força do carácter da subsidiariedade que a nossa lei imprime ao enriquecimento sem causa, esta ação não pode ser utilizada sempre que sejam disponibilizados ao empobrecido outros meios para se defender (art.º 474, 1ª parte, do Código Civil doravante C.C.) concretamente, o direito de regresso.
4.º - O instituto do enriquecimento sem causa obriga à verificação cumulativa de três requisitos “positivos”: enriquecimento de alguém; à custa de quem requer a restituição e que o enriquecimento seja sem causa justificativa.
5.º- E de um requisito “negativo”: é que mesmo quando verificados os demais, devido ao preceituado no art.º 474.º do C.C. - a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa que afasta a aplicação do enriquecimento sem causa quando a lei faculte outro meio de restituição ou indemnização ao lesado, quando a lei negue a restituição ou quando a lei atribua outros efeitos ao enriquecimento – o acesso ao enriquecimento sem causa acaba por ser vedado.
6.º - Isto porque a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa impede que este seja aplicado quando haja outro modo facultado pela lei de o lesado ser indemnizado ou restituído, tornando o enriquecimento sem causa um instrumento menos operacional em relação a outros.
7.º - E este tem sido o entendimento dominante, quer da doutrina como da jurisprudência.
8.º - Por um lado, a doutrina, não “fecha os olhos” à subsidiariedade do enriquecimento sem causa, como os Professores Antunes Varela e Pires de Lima por exemplo que entendem que o enriquecimento sem causa só tem lugar em segunda mão e só quando o outro meio facultado pela lei deixou de poder ser utilizado (por caducidade/prescrição). – in VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES e LIMA, PIRES, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1967.
9.º - E por outro lado, quase que se pode afirmar que os tribunais só aplicam o instituto do enriquecimento sem causa em duas situações: quando não haja efetivamente outro meio e quando outra ação deixa de ser viável.
10.º - Das várias pesquisas em www.dgsi.pt os poucos acórdãos que admitem o enriquecimento sem causa, fazem-no em virtude de não se encontrar na lei outro meio e só nessas situações é que o instituto de enriquecimento sem causa tem aplicação direta.
11.º - Neste sentido o Acórdão do STJ com o n.º de processo 6553/12.3TBCSC.L1S1 datado de 22.10.2015 que enuncia o acórdão de 19- 02-2013 (1ª Secção, Alves Velho), na revista nº1051/03.9TBVNO.C1.S1; o acórdão de 16-01-2007, (1ª Secção, Sebastião Póvoas), na revista n º4386/06; o acórdão de 04-10-2007 (2ª secção, Santos Bernardino), na revista nº 2721/07; o acórdão de 02-02-2010 (1ª Secção, Sebastião Póvoas), na revista n.º 1761/06.9TVPRT.S1, e o acórdão de 18-12-2012 (2ª secção, Oliveira Vasconcelos), na revista nº 978/10.6TVLSB-A.L1.S1. e todos eles no exacto sentido de que “o empobrecido apenas poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos”.
12.º - A pretensão do Autor, aqui Recorrido derivava do direito de regresso resultante do carácter solidário da obrigação, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 524.º e 1697.º do C.C.
13.º - Dessa forma, estamos perante um vício processual de erro na forma de processo, vício que terá de obrigatoriamente determinar a anulação de todo o processo e a absolvição da Ré da instância, não podendo, salvo o devido respeito por opinião diversa, ser a própria petição inicial aproveitada para a forma de processo adequada (artºs. 193.º, 278.º, nº 1, al. b); 576.º, nº 2, e 577.º, al. b), todos do C.P.C.) considerando que em lado algum da petição inicial o Autor alega o direito de regresso sobre a Ré, pelo que, decidindo conforme o alegado nas doutas conclusões, V. Exa. fará como sempre a habitual justiça.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir:
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, lidas atentamente as conclusões de recurso apresentadas pela apelante, são as seguintes questões que a mesma submete à apreciação desta Relação:

a- se a sentença recorrida padece de erro de direito ao julgar improcedente a exceção dilatória do erro na forma de processo;
b- se aquela sentença padece de erro de direito quanto à decisão de mérito nela proferida ao julgar procedente a ação e ao condenar a apelante no pedido, quando não se encontravam preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa e, por via disso, se impunha que se anulasse todo o processo e se absolvesse a apelada da instância, a propósito do que, se suscita a necessidade de concretizar vários conceitos jurídicos, cuja real significância jurídica não foi devidamente tida em consideração pela apelante, fazendo-a incorrer em vários erros e, depois, impõe-se tratar várias outras questões jurídicas cuja não arguição pela apelante ditará o resultado da presente apelação.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos julgados como provados na sentença recorrida foram a totalidade dos factos alegados pelo Autor na petição inicial e que a 1ª Instância se absteve de selecionar, na medida em que, socorrendo-se do n.º 3 do art. 567º do CPC, limitou a sentença que proferiu à parte decisória desta, precedida da identificação das parte e da fundamentação sumária do julgado, pelo que nos abstemos agora, em sede de recurso, de operar essa seleção até porque, essa atividade, seria absolutamente inútil e como tal violadora do princípio da limitação dos atos processuais, consagrado no art. 130º do CPC, perante a sorte que vai merecer a presente apelação e dos fundamentos que infra se irão explanar que fundamentam esse resultado.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Já enunciamos supra quais os concretos fundamentos de recurso aduzidos pela apelante e como então tivemos ensejo de escrever, suscita-se, a esse propósito, a necessidade de operar uma série de distinções de conceitos jurídicos, cuja real significância jurídica não foi devidamente ponderada pela apelante de modo que a mesma incorreu numa série de incongruências jurídicas, as quais importa esclarecer e cujo esclarecimento ditará a sorte da presente apelação.

Urge esclarecer que a apelante contestou, mas essa sua contestação foi julgada extemporânea e foi determinado o respetivo desentranhamento dos autos, por decisão transitada em julgado.

Tendo sido julgados confessados os factos articulados pelo Autor (apelado), a apelante apresentou alegações escritas em que suscitou a questão de não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais do instituto do enriquecimento sem causa em que o apelado ancorou o seu pedido, isto porque, na sua perspetiva (neste concreto aspeto, correta), atento o caráter subsidiário desse instituto (requisito negativo do enriquecimento sem causa), existe uma causa justificativa para o seu pretenso enriquecimento sem causa em detrimento do apelado (Autor), que era a circunstância de pelo pagamento da dívida que este liquidou, aquele e a apelante serem solidariamente responsáveis perante o credor, “Banco ..., S.A.” e a lei lhe facultar um mecanismo jurídico – o direito de regresso – que, nas relações internas entre apelante e apelado, permitiam ao último reaver daquela a sua quota-parte de responsabilidade em relação àquele pagamento que fez (é este o sentido da alegação da apelante).

Apesar de ser este o sentido da alegação da apelante naquelas suas alegações escritas e de ser esse o sentido das alegações de recurso que agora apresenta junto dessa Relação contra a decisão proferida na sentença recorrida, e de, consequentemente, os argumentos que assim esgrima se reconduzirem a uma questão de mérito, ou seja, porque não se encontram preenchidos todos os pressupostos do enriquecimento sem causa, impunha-se concluir pela improcedência da ação e pela, consequente, absolvição da apelante do pedido, o certo é que não foi esta consequência jurídica que a apelante extraiu dessa sua alegação.

Com efeito, após assim ter argumentado, conclui a apelante (e continua a concluir perante a sentença, entretanto proferida no âmbito dos presentes autos, de que ora recorre), que sendo o instituto jurídico adequado para satisfazer o pedido de restituição que o apelado vem exercer nos autos o do direito de regresso, o vício em que este incorreu ao formular esse seu pedido de restituição com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, não se reconduz (como, efetivamente e incontestavelmente, se reconduz), a uma questão de fundo/mérito, mas a um vício processual, mais concretamente, a uma exceção dilatória, que determina a anulação de todo o processo por erro na forma de processo, e implica a absolvição da apelada da instância.

Foi neste contexto que o tribunal a quo, em sede de saneador que proferiu no âmbito da sentença recorrida, conheceu e apreciou da alegada e invocada pela apelante exceção dilatória do erro na forma do processo, concluindo pela improcedência dessa exceção, sustentando que “(…) não se vislumbra qualquer nulidade do processo, porque que quer o exercício do direito decorrente do enriquecimento sem causa quer o exercício do direito de regresso – mencionado pela própria A. – são feitos pela via adjetiva da ação declarativa comum. Ou seja, a forma de processo de uma ou de outra é igual, não havendo qualquer erro”.

Nas alegações de recurso que apresentou em relação à sentença recorrida, sustenta a apelante que “… o que está em causa, claramente não é a forma de processo (declarativa comum) mas sim os pressupostos que cada um dos institutos jurídicos – enriquecimento sem causa e direito de regresso - requerem”.

De seguida, esgrime o argumento de que “o recorrido alega que a dívida reclamada nos presentes autos seria solidária entre ambos e para o efeito lançou mão da ação de enriquecimento sem causa”, querendo claramente significar que o Autor/apelado invocou, em sede de petição inicial, como causa de pedir para sustentar a sua pretensão de tutela judiciária (pedido) o instituto do enriquecimento sem causa.

Esgrime o argumento de que os pressupostos legais para o instituto do enriquecimento sem causa não se encontram preenchidos, por claudicar o pressuposto negativo da subsidiariedade desse instituto, dado que o apelado tem ao seu dispor um meio específico que a lei lhe faculta – o direito de regresso – com vista a exercer o direito de restituição que vem exercer na ação contra a apelada, que é o direito de regresso.

Apesar desta sua alegação contender, clara e indiscutivelmente, com o mérito da ação, conclui a apelante (e, reafirma-se, continua a concluir) que se está perante uma exceção dilatória, geradora da nulidade de todo o processo e que implica a absolvição da mesma da instância.

Precise-se que para além das múltiplas confusões jurídicas em que incorre a apelante ao assim argumentar e que infra se irão especificar, uma primeira incoerência, desde já, se impõe esclarecer.

Os únicos vícios que determinam a nulidade de todo o processo é o da ineptidão da petição inicial, a que se reporta o art. 186º, n.º 1 do CPC, e, bem assim, o erro na forma de processo quando não seja possível o aproveitamento da petição inicial para a forma processual adequada, vício este a que alude o art. 193º do CPC.

Não admira assim, que perante a alegação da apelante de que ocorreria o vício da nulidade de todo o processado, impondo-se a absolvição da mesma da instância, o tribunal a quo tivesse legitimamente entendido que a apelante, que não arguira o vício da ineptidão da petição inicial, vício este que, de resto, não se verificava indiscutivelmente nos autos, com essa sua alegação, pretendia e estava a arguir a exceção dilatória do erro na forma de processo e tivesse sindicado e apreciado a verificação desse pretenso vício.

Acontece que proferida a sentença recorrida, em que se conclui pela não verificação desse vício, não obstante a apelante ser expressa em dizer que… o que está em causa, claramente não é a forma de processo (declarativa comum) mas sim os pressupostos que cada um dos institutos jurídicos – enriquecimento sem causa e direito de regresso - requerem”, verifica-se que a mesma, continua a esgrimir, agora nas suas alegações de recurso, ocorrer o vício da nulidade de todo o processo, concluindo, inclusivamente, as suas alegações do seguinte modo: “…vício que terá de obrigatoriamente determinar a anulação de todo o processo e a absolvição da Ré da instância, não podendo (…) ser a própria petição inicial aproveitada para a forma de processo adequada (arts. 193º, 278º, n.º 1, al. b), 576º, n.º 2 e 577º, al. b), todos do CPC), considerando que em lado algum da petição inicial o Autor alega o direito de regresso sobre a Ré…”.

Deste modo, porque a apelante, contraditoriamente com aquela sua alegação inicial que apresenta nas suas alegações de recurso, continua a reconduzir toda a problemática que suscitou, em sede de alegações escritas que previamente apresentou à prolação da sentença recorrida, a uma questão de erro na forma de processo, impõe-se concluir que a mesma, continuando a confundir questão de mérito, com exceções dilatórias, maxime nulidade de todo o processado decorrente de um pretenso erro na forma de processo, acaba por imputar erro de direito à sentença recorrida quando julgou improcedente a exceção dilatória do erro na forma de processo, pelo que se impõe conhecer desse pretenso vício que imputa à sentença recorrida, para que não venhamos a ser acusados de omissão de pronúncia.

B.1- Do exceção dilatória do erro na forma de processo.

A lei processual civil regula a forma a que os atos processuais têm de obedecer e estabelece diversos ritualismos, isto é, diversos tipos de formalismos a que esses atos processuais têm de obedecer consoante o pedido e a causa de pedir deduzidos pelo autor - são as “formas de processo”.

Na precedente redação do CPC, a lei processual civil previa três formas distintas de processo comum declarativo: a ordinária, a sumária e a sumaríssima, a par de vários processos especiais.

No entanto, com a revisão ao CPC, introduzida pela Lei n.º41/2013, de 26/06, simplificou-se o sistema, de modo que, em face do atual vigente CPC, apenas passou a existir uma única forma de processo comum de declaração (548º do CPC).

A par dessa forma única de processo de declaração, continuou a lei processual, no Livro V do CPC, a prever uma multiplicidade de processos especiais.

É entendimento pacífico que é pela pretensão formulada pelo autor (pedido) e pela causa de pedir que aquele invoca, na petição inicial, para ancorar esse pedido – e não por referência ao pedido e/ou à causa de pedir que deviam ter sido por ele deduzidos -, que se terá de verificar a correção ou incorreção da forma processual por ele eleita, na petição inicial, para obter a satisfação dos desideratos que visa alcançar com a propositura da acção (1).

Deste modo, ocorrerá erro na forma de processo quando o autor indique, na petição inicial, determinada forma de processo a ser observada ao longo da ação que propõe mas, atento o pedido que formula e a causa de pedir que invoca nesse articulado para ancorar o primeiro, se verifica existir uma incongruência entre aquela forma processual que elegeu e aquela que, de acordo com os critérios abstratos da lei que regulam as diversas formas de processo, deveria ter escolhido, por ex: o autor recorreu à ação declarativa comum, em vez de recorrer a um processo especial, ou vice-versa, ou elegeu um determinado processo especial quando, segundo os critérios abstratos da lei, devia ter eleito outro tipo de processo especial.

Precise-se que o erro na forma de processo não dá, em regra, lugar à anulação de todo o processo, posto que, nos termos do n.º 1 do art. 193º do CC, esse erro importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.

No entanto, essa regra sofre a exceção do n.º 2 daquele mesmo preceito, que veda a possibilidade de se aproveitar atos de que resultem numa diminuição de garantias do réu.

Acresce que sendo a petição inicial a peça processual fundamental do processo, na medida em que é nela que o autor identifica os sujeitos contra quem pretende dirigir o seu pedido, delimitando, assim, subjetivamente os sujeitos da relação jurídica material controvertida, além de que é, igualmente, na petição inicial que o autor formula o seu pedido e a respetiva causa de pedir que lhe serve de alicerce, poderá acontecer que numa situação em que incorra em vício de erro na forma de processo, atenta aquela função fundamental da petição inicial e a proibição contida no n.º 2 do art. 193º do CPC, esse articulado seja, de todo inaproveitável, por não conter, designadamente, o pedido e/ou a causa de pedir.

Nesses casos de impossibilidade de aproveitamento da petição inicial, o erro na forma de processo, determina a nulidade da petição inicial e de todo o processado subsequente, configurando exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância (arts.193º, n.º 2, 552º, n.º 1, 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. b) do CPC) (2).

No caso, o apelado instaurou a presente ação declarativa comum pedindo a condenação da apelante a restituir-lhe a quantia de 6.564,59 euros, acrescida de juros de mora, com fundamento nos factos que aduz na petição inicial e nas regras do enriquecimento sem causa.

Sustenta a apelante que o apelado incorreu naquilo que denomina de “vício do processo” ao fundar o seu pedido no instituto do enriquecimento sem causa, quando atento o princípio da subsidiariedade que informa esse instituto, não o podia fazer, facto esse que, na sua perspetiva, determina a anulação de todo o processo, incluindo da petição inicial, que “não pode ser aproveitada para a forma de processo adequada”, dando lugar à absolvição da mesma da instância.

Para além de ao assim argumentar a apelante, como já referido, confundir erro de julgamento quanto à decisão de mérito proferida na sentença recorrida (questão de fundo), com exceções dilatórias, mais concretamente, com nulidade de todo o processo decorrente de erro na forma de processo, a mesma não toma em devida conta que a forma de processo afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor (pedido) e pela causa de pedir que este alega, na petição inicial, para ancorar o primeiro, e não por referência ao pedido e/ou à causa de pedir que devia ter deduzido.

Independentemente dessas incongruências em que incorre a apelante, dir-se-á que, conforme saliente o tribunal a quo em sede de decisão recorrida, seguindo atualmente o processo comum de declaração uma única forma, e não correspondendo manifestamente ao pedido e à causa de pedir um processo especial (o que a apelante nem sequer sufraga), é indiscutível que quer o apelado tivesse ancorado o seu pedido de restituição no instituto do enriquecimento sem causa (conforme ancorou), quer o tivesse fundamentado no instituto do direito de regresso (como o devida ter feito e foi o entendimento sufragado pelo tribunal a quo na sentença recorrida), inexiste qualquer erro na forma de processo, posto que, em ambos os casos, a forma processual adequada seria sempre o processo comum de declaração.

Aqui chegados, impõe-se concluir pela improcedência do invocado erro de direito que a apelante assaca à sentença recorrida ao julgar improcedente a exceção dilatória do erro na forma de processo.

B.2- Erro de direito quanto à decisão de mérito.

Sustenta a apelante que a sentença recorrida padece de erro de direito quanto à decisão de mérito nela proferida ao julgar procedente a ação e ao condenar aquela no pedido, quando não se encontravam preenchidos os requisitos legais do enriquecimento sem causa, mais concretamente, o requisito legal da subsidiariedade desse instituto, o que, na sua perspetiva, impunha que se anulasse todo o processo, incluindo a petição inicial, que “não pode ser aproveitada para a forma de processo adequada”, dando lugar à absolvição daquela da instância.

Ao assim argumentar, a apelante confunde nulidades processuais, mais concretamente, a exceção dilatória da nulidade de todo o processado com fundamento em pretenso erro na forma de processo, com mérito da causa.

O erro na forma de processo, quando determine a total impossibilidade de aproveitamento da petição inicial, consubstancia uma exceção dilatória, que impede que o tribunal entre na apreciação do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância (arts. 577º, al. b) e 576º, n.º 2 do CPC).

Essa exceção carece, reafirma-se, de ser apreciada em função do pedido e da causa de pedir invocadas pelo autor em sede de petição inicial e não em função do pedido e/ou da causa de pedir que o mesmo devia ter deduzido.

No caso presente, o pedido formulado pelo apelado, em sede de petição inicial, é um pedido de condenação da apelante a restituir-lhe uma determinada quantia monetária que aquele alega ter pago a um determinado credor de ambos (o “Banco ..., S.A.”), em relação ao qual alega serem ambos solidariamente responsáveis pelo pagamento dessa dívida.

O apelado deduz esse pedido de condenação da apelante à restituição com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.

A apelante sustenta que os pressupostos legais deste instituto não se encontram preenchidos, na medida em que claudica o pressuposto da subsidiariedade que é típico desse instituto, como efetivamente o é (art. 474º do CC), uma vez que a lei lhe faculte um meio específico que lhe permite obter essa restituição, que é o direito de regresso.

Embora o raciocínio jurídico explanado pela apelante se mostre perfeitamente conforme ao regime jurídico decorrente dos arts. 519º, n.º 1 e 524º do CC), atenta a factualidade alegada pelo apelado na petição inicial (e que veio a provar), já não é indiscutivelmente certa a conclusão de que tal situação consubstancie qualquer situação de erro na forma de processo (vide fundamentos supra).

O vício em que incorreu o apelado ao ancorar o pedido de restituição que formula contra a apelante no instituto do enriquecimento sem causa, quando não se encontra preenchido um dos pressupostos legais desse instituto, mais concretamente, o requisito negativo da subsidiariedade, é um vício que contende, única e exclusivamente, com o mérito da causa, gerando a improcedência da ação e a consequente absolvição da apelante do pedido.

Acontece que entendeu-se na sentença recorrida que a circunstância do apelado ter formulado aquele pedido de restituição contra a apelante no instituto do enriquecimento sem causa, quando o devia ter feito com fundamento no instituto do direito de regresso, não obstava à procedência desse pedido, por se tratar de uma mera questão de qualificação jurídica dos factos alegados e provados pelo apelado, não consubstanciadora de qualquer alteração da causa de pedir por ele invocada, e, no seguimento desse entendimento, estabelecendo o art. 5º, n.º 3 do CPC, que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das suas regras de direito, julgou-se procedente a ação e condenou-se a apelante no pedido.

Perante este entendimento sufragado pela 1ª Instância, o que se deve questionar (e devia ter sido questionado pela apelante, nas suas alegações de recurso, questão essa que, no entanto, aí não cuidou em suscitar) é se assiste razão à 1ª Instância quando assim ponderou e decidiu e se, efetivamente, ocorre uma situação de mera alteração da qualificação jurídica dos factos alegados pelo apelado na petição inicial, em que lhe era consentido (após observância do contraditório, que igualmente inobservou, com o que incorreu na nulidade processual por violação dos princípios do dispositivo e do contraditório, decorrente da postergação do disposto no n.º 3 do art. 3º do CPC, nulidade processual essa que, porém, não foi arguida pela apelante nas suas alegações de recurso, pelo que, não se tratando de nulidade de conhecimento oficiosa, se encontra subtraída ao conhecimento desta Relação - arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC) o trilhar do caminho jurídico que encetou, ou se, como nos parece ser o caso, se está perante uma alteração da causa de pedir invocada pelo apelado na petição inicial, determinativa de nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. d) do CPC.

Com efeito, decorre do n.º 4 do art. 581º do CPC, que a causa de pedir é o ato ou o facto jurídico.

Trata-se do ato ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer na ação e, consequentemente, não o facto jurídico abstrato, mas o ato jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal (3) em que aquele fundamenta legalmente o seu pedido (4).

Enuncie-se que por força do princípio do dispositivo, nos termos do disposto no art. 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1, al. d) do CPC, cabe ao autor o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir que serve de fundamento à ação, enquanto sobre a ré, nos termos daquele mesmo art. 5º, n.º 1 e 572º, al. c) do CPC, cabe alegar os factos em que se baseiam as exceções deduzidas.

Deste modo, são factos essenciais aqueles que constituem a causa de pedir invocada pelo autor ou pelo réu-reconvinte para sustentar o pedido que formulam, respetivamente, em sede de ação ou de reconvenção e de cuja verificação depende a procedência da pretensão por eles deduzida em sede de, respetivamente, ação ou reconvenção.

Na expressão de Lebre de Freitas, os factos essenciais são o núcleo fático essencial narrado pelo autor, tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais que aquele elege como causa do efeito pretendido (5) e que, por isso, são necessários à identificação da situação jurídica invocada pelo autor (ou pelo réu-reconvinte) para ancorar a sua pretensão de tutela judiciária (pedido) e cuja falta, determinará a ineptidão da petição inicial (ou da reconvenção) por inexistência de causa de pedir.

É assim que, conforme pondera Paulo Pimenta, a “causa de pedir tem um substrato fáctico cuja alegação compete ao autor, de modo a fundamentar a sua pretensão. (…) o autor deverá expor (narrar) o quadro factual atinente ao tipo legal de que pretende prevalecer-se na ação instaurada. Tal narração fáctica envolverá a alegação e a descrição, por exemplo, dos concretos factos relativos à celebração do negócio de compra e venda de um bem por via do qual o autor ficou credor do preço sobre o réu, os factos relativos à ocorrência de um acidente de viação e respetivas consequências e à responsabilidade civil daí decorrente, os factos relativos à celebração de um contrato de arrendamento e à conduta do réu violadora dos seus deveres como inquilino, os factos relativos à celebração de um contrato promessa de compra e venda e à falta de cumprimento do promitente vendedor, os factos relativos à posse de determinado bem imóvel pelo autor e o seu esbulho pelo réu, os factos relativos à invalidade formal de certo negócio. Será por via desses factos, isto é, pela demonstração desses factos em juízo, que o autor poderá vir a alcançar a tutela jurisdicional desejada. É da correspondência entre o quadro factual assim apurado nos autos e o quadro fáctico previsto numa ou mais normas substantivas que resultará o reconhecimento do direito invocado” (6).

Deste modo, a causa de pedir é o acervo de factos materiais (da vida real) alegados pelo autor na petição inicial que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema jurídico que estatuem o efeito jurídico por ele pretendido, ou dito por outras palavras “a causa de pedir é envolvida, além do mais, pelas características da facticidade e da concretização, estruturando-se na envolvência dos factos concretos correspondentes à previsão das normas substantivas concedentes da situação jurídica alegada pelas partes, independentemente da respetiva valoração jurídica” (7)

A causa de pedir exerce, assim, “… uma função individualizadora do pedido para o efeito do objeto do processo. Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608º, n.º 2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615º, n.º1, al. d)): não pode, por exemplo, em ação em que se pretenda o reconhecimento do direito de propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com fundamento na aquisição por testamento (…). Por isso também, a sentença de mérito que venha a ser proferida só vincula no âmbito objetivamente definido pelo pedido e pela causa de pedir” (8).

A causa de pedir não se confunde com a fundamentação de direito que o autor se encontra obrigado a operar na petição inicial, na medida em que a fundamentação de direito não exerce uma função individualizadora da pretensão e, por isso, não condiciona “o conteúdo da sentença: o juiz permanece livre na indagação, interpretação e aplicação do direito (art. 5º, n.º 3 do CPC)” (9).

Destarte, conforme se pondera no aresto do STJ de 03/10/1991 (10), quando no n.º 4 do art. 581º do CPC se alude à causa de pedir como ato ou facos jurídicos, está a referir-se ao “facto produtor de efeitos jurídicos” alegado pelo autor e não ao “facto juridicamente qualificado” por este, isto é, está-se a aludir aos factos alegados pelo autor e à coloração jurídica que lhes deu com vista a obter o efeito jurídico por ele pretendido - não à qualificação jurídica que aquele autor faça desses mesmos factos.

Deste modo, na qualificação jurídica da causa de pedir o juiz é livre, mas não pode convolar oficiosamente para outra causa de pedir, não podendo substituir a causa de pedir invocado pelo autor por outra, mas terá a sua atividade limitada pelo pedido e causa de pedir.

Para se orientar sobre esses limites da sua atividade, “o juiz deve tomar em consideração, antes de mais, as conclusões expressas nos articulados (e por estas há-de aperceber-se dos termos precisos do litígio ventilado entre as partes, da questão ou questões substanciais ou processuais, que estas lhe apresentam para que ele as resolva) e deve atender, ainda, aos fundamentos em que assentam as conclusões: além dos pedidos propriamente ditos, há que ter em conta a causa de pedir. Haverá que se verificar se existe identidade entre a questão posta pelas partes e a questão resolvida pelo juiz, o que sucederá quando essa e outra reúnam estes elementos comuns: sujeito, objeto (as pretensões jurídicas a que as partes aspiram) e o facto jurídico ou a causa jurídica de que fazem derivar essas pretensões”.

Em síntese, se o juiz é livre na interpretação jurídica da causa de pedir, já não é livre em alterar a perspetiva jurídica em que o autor enquadrou os factos que alegou para ancorar a sua pretensão, ou seja, não é livre de proceder à alteração da coloração jurídica que o autor emprestou aos factos por ele alegados em que alicerçou o seu pedido, sendo entre o binómio – descrição dos factos em que se baseia a ação – e o enquadramento jurídico que desses factos foi feito pelo autor que o tribunal terá de se mover, sob pena de condenar em causa de pedir diversa da alegada (11)

Assentes nestas considerações, no caso, o apelado alegou os factos essenciais que, na sua perspetiva, de acordo com o instituto jurídico que elegeu – o enriquecimento sem causa – lhe permitiam fundamentar o pedido de restituição da quantia monetária que formula contra a apelante.

Nas ações de enriquecimento sem causa, o ato ou facto jurídico que nos termos do disposto no n.º 4 do art. 581º do CPC consubstancia a causa de pedir é o “enriquecimento sem causa”.

Constitui entendimento pacífico serem requisitos cumulativos do instituto do enriquecimento sem causa: a) que exista um enriquecimento patrimonial de alguém; b) que esse enriquecimento careça de causa justificativa; e c) que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (12).

Quanto ao primeiro requisito, o enriquecimento patrimonial consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Essa vantagem pode, assim, traduzir-se num aumento do ativo patrimonial do enriquecido, numa diminuição do respetivo passivo, no uso ou consumo pelo mesmo de coisa alheia ou no exercício pelo mesmo de direito alheio ou, ainda, a poupança de despesas (13).

Já no que respeita ao segundo requisito, o enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que esteja em desarmonia “com a ordenação dos bens aceites pelo sistema” jurídico, isto é, se o enriquecimento está de acordo com o sistema jurídico, então a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, “por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”. Dito por outras palavras, haverá uma situação de enriquecimento sem causa quando à luz das regras ou dos princípios aceites no sistema jurídico, não exista uma relação ou um facto que legitime esse enriquecimento, quer porque essa relação ou facto que legitima o enriquecimento (a causa) nunca existiu, ou porque, entretanto, desapareceu (14).

Quanto ao último requisito exige-se que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição, isto é, que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa, isto é, a expensas da pessoa que exige a restituição, sem que exista de permeio, entre o ato gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro ato jurídico (15). Tem de se afirmar, assim, um nexo causal entre o enriquecimento do enriquecido e o empobrecimento da pessoa que exige a restituição.

Como é bom de ver o ato ou facto jurídico do instituto do enriquecimento sem causa e que constitui a causa de pedir em que o apelado ancorou nos autos o seu pedido de restituição que formulou contra a apelante não assenta no mesmo ato ou facto jurídico em que assenta o instituto do direito de regresso.

Na verdade, enquanto no enriquecimento sem causa a vantagem patrimonial do enriquecido não tem causa que à luz das regras ou dos princípios do nosso sistema jurídico justifique a deslocação patrimonial ocorrida, no direito de regresso existe essa causa justificativa. Ela consiste no facto da obrigação de apelante e apelada ser solidária perante o respetivo credor.

Por força do regime da solidariedade da obrigação, o credor podia exigir ao apelado, tal como o fez, o pagamento de toda a dívida, assim como podia exigir esse integral pagamento à apelante (art. 519º, n.º 1 do CC).

Por conseguinte, existe uma causa justificativa para o apelado ter pago a totalidade da dívida ao credor do mesmo e da apelante, apesar de nas relações internas existentes entre eles, metade dessa dívida ser sua e a restante metade ser da apelante, e daí que, nos termos do disposto no art. 524º do CC, lhe seja concedido direito de regresso sobre a apelante em relação à quantia que pagou em excesso por ser dívida desta.

Aqui chegados, contrariamente ao que é sustentado pelo tribunal a quo na sentença recorrida, entre o instituto do enriquecimento sem causa à sombra do qual o apelado ancorou o seu pedido de restituição e que, consequentemente, consubstancia a causa de pedir que aquele elegeu para ancora esse pedido, e o instituto do direito de regresso, com base no qual aquele tribunal julgou procedente a ação e condenou a apelante no pedido, não se coloca uma simples questão de enquadramento jurídico diverso do realizado pelo apelado em relação aos factos que alegou na petição inicial e que o mesmo veio a provar, diferente enquadramento jurídico esse que, caso fosse o caso, era efetivamente consentido pelo n.º 3 do art. 5º do CPC.

Existe antes uma efetiva e real convolação da causa de pedir que tinha sido invocada pelo apelado e que, reafirma-se, assentava no instituto do enriquecimento sem causa, para um causa de pedir diversa – o direito de regresso -, o que não é consentido por lei, por consubstanciar violação frontal dos princípios do dispositivo e do contraditório.

Essa convolação da causa de pedir invocada pelo apelado para causa jurídica diversa operada pelo tribunal a quo na sentença recorrida, nos termos da al. d), do n.º 1 do art. 615º do CPC, é causa de nulidade da sentença recorrida por nela o tribunal ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento.

A questão que se suscita é a de saber se não tendo a apelante, nas suas alegações de recurso, suscitado a questão da ilegalidade dessa convolação da causa de pedir e da consequente nulidade da sentença recorrida, limitando-se, como referido, a enquadrar toda esta problemática na exceção da nulidade por erro na forma de processo, se o tribunal ad quem pode oficiosamente conhecer dessa convolação ilegal da causa de pedir operada pela 1ª Instância e decretar ex officio a nulidade da sentença recorrida, o que nos remete para a problemática de se saber se as causas de nulidade da sentença taxativamente elencadas no art. 615º do CPC, configuram verdadeiras causas de nulidade, de conhecimento oficioso, ou antes meras causas de anulabilidade, carecendo, por isso, de ser arguidas pelas partes para que o tribunal ad quem delas possa conhecer.

Alberto dos Reis estabelece a diferença entre sentenças inexistentes, nulas e anuláveis.

Segundo este mestre são “inexistentes” as sentença que não reúnam o mínimo de requisitos para que possam ter a eficácia jurídica própria duma sentença, e dá os seguintes exemplos de sentenças inexistentes: sentenças lavradas por pessoa que não tenha poder jurisdicional, nem conferido pelo Estado, nem conferido pelos interessados mediante compromissos arbitral; sentenças em que é omitido o nome das partes ou em que são indicadas como partes pessoas imaginárias ou supostas; e sentenças em que não há decisão, porque nelas não existe comando, que é da essência da sentença conter.

Já são sentenças nulas aquelas que tendo existência jurídica, porque reúnem os elementos essenciais, estão inquinadas de vícios de formação e de atividade … (erro de construção ou formação).

Todas as sentenças afetadas de vícios de formação ou de vícios formais, que não hajam de enquadrar-se na categoria da sentença nula, pertencem à classe das sentenças anuláveis (16).

No entanto, a fls. 123 da obra acabada de identificar, esclarece que seria “anti-económico deitar abaixo uma sentença, quaisquer que sejam as imperfeições formais de que ela padeça, desde que deva reputar-se justa; o respeito pelas regras de formação cede perante o interesse superior da justiça. Ora, o facto do trânsito em julgado, é índice seguro de que a sentença é justa”.

Na esteira desta argumentação, conclui este autor que, contrariamente às sentenças inexistente e absolutamente nulas (sendo certo que antes, a fls. 122, esclarecera que dificilmente se descobrirão casos da vida real que devam enquadrar-se na figura da nulidade absoluta), em que ainda que a parte não alegue esses vícios, nem por isso a sentença fica isenta de mácula, devendo o tribunal conhecer desses vícios oficiosamente, já “todas as nulidades da sentença têm de ser arguidas mediante recurso; se o não forem e a sentença transitar em julgado consideram-se sanadas (…)” e continua “… o meio adequado para obter o suprimento das nulidades sanáveis é o recurso. A parte interessada, querendo arguir as nulidades de que enferme a sentença anulável, tem de servir-se do recurso; impugna a decisão mediante o recurso adequado e denuncia, na respetiva alegação, o vício que afeta a sentença”.

Resulta do que se vem dizendo, que segundo este mestre, excetuando os casos em que a sentença é inexistente, os restantes vícios que a possam afetar, não obstante serem qualificados como causas de nulidade da sentença, são, na verdade, causas de anulabilidade desta e, como tal, subtraídas ao conhecimento oficioso do tribunal.

Na mesma linha se posicionam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, que reportando-se ao atual vigente art. 615º do CPC, referem que “entre os fundamentos de nulidades enunciados no n.º 1, um há que merece indiscutivelmente essa qualificação: é o da alínea (falta de assinatura do juiz). Trata-se dum requisito de forma essencial. O ato nem sequer tem a aparência de sentença” (…). “Os casos das alíneas b) a e) do n.º 1 excetuada a ininteligibilidade da parte decisória da sentença, constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não verdadeira nulidade”, esclarecendo, a fls. 734, que esses vícios “carecem da arguição da parte” (17).

Também Ferreira de Almeida, refere que as nulidades da sentença podem ser declaradas ex officio pelo tribunal e esclarece que a doutrina, por vezes, reporta-se a esses vícios determinativos de nulidade como sendo causas de “inexistência” da sentença.

Como vícios geradores da nulidade/inexistência da sentença aponta: a falta absoluta de poder jurisdicional por parte da entidade prolatora e a falta de assinatura do juiz se não oportunamente suprida, concluindo que todas as causas de nulidade da sentença, taxativamente enunciadas no art. 615º, n.º 1, são, na verdade, causas de anulabilidade desta (18).

Tendo presente estes ensinamentos, que se subscrevem, não obstante o tribunal a quo tenha condenado a apelante no pedido com fundamento em causa de pedir diversa daquela em que o apelado tinha ancorado o seu pedido, e esse vício seja qualificado, nos termos da al. d), do n.º 1 do art. 615º do CPC, como fundamento de “nulidade” da sentença recorrida, trata-se antes de um vício determinativo da respetiva anulabilidade e, consequentemente, subtraído ao conhecimento oficioso do tribunal ad quem.

Deste modo, não tendo a apelante invocado o apontado vício da sentença recorrida, limitando-se, reafirma-se, a invocar o pretenso vício do erro na forma de processo, nada mais resta que concluir pela improcedência de todos os fundamentos de recurso aduzidos pela mesma e pela consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Decisão:

Nesta conformidade, acordam os juízes desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:

- confirmam a decisão recorrida.
*
Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 07 de fevereiro de 2019
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dra. Eugénia Maria Marinho da Cunha (2ª Adjunta)

1. Acs. STJ, de 12/12/2002, Agr. N.º398/02- 2ª Sumários, 12/2002; RP. de 17/06/1997, CJ. 1997, t. 3º, pág. 220.
2. Ac. RG.de 23/03/2010, CJ, t. 2º, pág. 275; RL de 22/02/2007, Proc. 8592/2006-2; 29/10/2009, Proc. 707/07.1TBLNH.L1-2, estes dois in base de dados da DGSI.
3. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, 1985,págs. 121 e 123.
4. Ac. STJ. de 25/03/2004, Proc. 04A968, in base de dados da DGSI: “Causa de pedir não é o facto jurídico como categoria abstrata mas o facto jurídico concretamente invocado, aquele de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente o seu pedido”
5. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz d Código Revisto”, Coimbra Editora, 1996, pág. 57.
6. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs. 138 e 139.
7. Ac. STJ.de 03/02/2005, Proc. 04B4773, in base de dados da DGSI.
8. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 5ª ed., Almedina, pág. 491.
9. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 492.
10. Ac. STJ de 03/10/1991, Proc. 080245, in base de dados da DGSI.
11. Ac. RC. de 12/09/2017, Proc. 444/16.6T8GRD.C1, in base de dados da DGSI.
12. Antunes Varela, ob. ct., vol. I, pág. 495.
13. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 454.
14. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 455 e 456.
15. Acs. STJ. de 04/10/2007, Proc. 07B2772, RC. de 09/01/2018, Proc. 1485/14.3TBLRA.C1, in base de dados da DGSI. No mesmo sentido Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, 2º, vol., 1990, AAFDL, pág. 56: “A ausência de causa emerge (…) da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, tolerada ou querida pelo Direito”.
16. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 457 e 458.
17. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, Coimbra Editora, 1984, págs. 113 a 123.
18. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., págs. 734 a 735.
19. Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 368 e 269.