Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6090/20.2T8GMR.G1
Relator: MARIA GORETE MORAIS
Descritores: ANULAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA
AUSÊNCIA DE ENUNCIAÇÃO DO SUBSTRATO FACTUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjetivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível.
II- A ausência ou deficiência na enunciação do substrato factual relevante para efeito de apreciação de questão submetida à apreciação jurisdicional, justifica a anulação da decisão recorrida por aplicação do disposto no artigo 662º, nº 2, al. c), do Código Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., instaurou a presente ação declarativa comum, que qualifica como sendo de simples apreciação negativa, contra BB, residente na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., pedindo que se declare:

a) que não obstante o incremento negocial da sociedade comercial “J... – Comércio Internacional, Lda.”, com as empresas “O... – Obras Públicas e Particulares, Lda.” e “E... – Empresa Nacional de Construção e Infraestruturas Básicas”, nunca foram distribuídos lucros aos seus sócios desde a sua constituição até à cessão da sua atividade em outubro de 2011;
b) que da quantia de 488.961,00 euros do exercício de 2008, o Réu não justificou contabilisticamente a quantia de 14.021,00 euros, valor este que integrou no seu património pessoal;
c) que da peticionada quantia de 488.961,00 euros do exercício de 2008, o montante de 33.240,00 euros em numerário, levantado pelo Réu em caixa multibanco ATM, não justificado contabilisticamente, e por ele assumido como lucros para os sócios nunca distribuídos, foi integrado no seu património pessoal;
d) que nos exercícios dos anos de 2007 e 2008 foram efetuados levantamentos de cheques da J..., em caixas multibanco ATM, no montante global de 121.066,00 euros (857.766,00 euros – 736.700,00 euros), sem qualquer justificação contabilística, sendo 73.805,00 euros (121.066,00 euros – 47.261,00 euros) relativa ao ano de 2007, e 47.261,00 euros ao ano de 2008, valor estes que o réu integrou no seu património;
e) que da quantia referida de 420.012,00 euros do exercício de 2008 nunca o Réu utilizou 2.400,00 euros em gratificações a gerentes, integrando assim, este valor no seu património pessoal;
f) que do exercício de 2008 o Réu integrou no seu património pessoal a quantia de 397.600,00 euros em gratificações aos trabalhadores deslocados em ..., que nunca existiram;
g) que do montante de 420.012,00 euros do exercício de 2008, a importância de 20.012,00 euros, contabilizada como lucros, não distribuídos e que não transitaram para o exercício de 2009, constituíram valores que o Réu integrou no seu património pessoal;
h) que no exercício do ano de 2008, a quantia total de 141.000,00 euros, que o Réu transferiu da conta da J... junto do Banco 1..., para uma conta particular por ele titulada, nunca foi restituída à sociedade mutuante, fazendo o Réu integrar, esse valor de 141.000,00 euros, no seu património pessoal;
i) que nos anos de 2009 e 2010, entre cheques descontados ao balcão e levantamentos efetuados por multibanco, o Réu procedeu ao levantamento da importância de 113.381,02 euros, que não destinou à liquidação de qualquer dívida da J..., fazendo, assim, integrar esse valor no seu património pessoal;
j) que no ano de 2010 o valor de 303.472,83 euros, que o Réu lançou a crédito da sua conta individual de suprimentos provindo de recursos pessoais, nunca este valor representou qualquer empréstimo à J..., fazendo, assim, integrar a citada quantia de 303.472,83 euros no seu património pessoal;
k) que o Réu nunca deu entrada da quantia de 130.00,00 euros nas contas da J..., respeitante ao preço da venda do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...82, da freguesia ..., ao invés, esta importância foi contabilizada a crédito na sua conta de suprimentos, que nunca existiram;
l) que nos anos de 2002 a 2009 a J... obteve um lucro de 1.156.036,63 euros, que nunca foi contabilizado nas contas da J..., nem deu entrada nos seus cofres;
m) que da quantia de lucro apurado nos autos de 2002 a 2009 de 1.156.036,63 euros, o Réu integrou, pelo menos, no seu património pessoal, a importância de 578.018,32 euros;
n) que o Réu integrou no seu património pessoal uma quantia entre 80.000,00 euros a 100.000,00 euros de juros de aplicação a prazo à margem da J... de receitas que lhe eram próprias, oriundas da empresa de obras públicas ligadas ao estado angolano denominada “E... – Empresa Nacional de Construção e Infraestruturas Básicas”.
Para substanciar tais pretensões alega, em síntese, ser irmão de CC e do Réu e que os três são os únicos sócios e gerentes das sociedades “J...”, “V...” e “V..., Lda.”, obrigando-se as três sociedades mediante a assinatura conjunta de dois gerentes, sendo que, quanto à sociedade “V...”, tal aconteceu apenas até abril de 2011, uma vez que, na sequência de CC e do Réu terem cedido as suas participações sociais nesta sociedade, os mesmos renunciaram à gerência desta;
Na “V...” a gerência de facto era exercida predominantemente pelo Réu;
Na “V... e Irmãos”, a gerência de facto era hegemonicamente exercida pelo Autor;
E na “J...” a gerência de facto foi sempre exercido pelo Réu e por CC, este apenas até meados de 2007;
O Réu era o TOC das três sociedades;
A “J...” foi constituída em 2001 para servir de apoio à sociedade angolana “O...”, fornecendo-a de materiais e máquinas necessárias ao exercício da sua atividade, que a “J...” comprava no mercado português, e também fornecia mão de obra a essa sociedade, que a “J...” contratava em Portugal e que cedia à “O...”, mediante contrapartida entre elas acordada;
A partir de 2007, a “J...” estabeleceu uma relação comercial com a sociedade angolana “E...”, a quem fornecia material e maquinaria pesada;
Nos anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 a “J...” faturou 20.676.120,14 euros, em comercialização de mercadorias e na prestação de serviços, mas em 2001 viu reduzido drasticamente o seu desempenho comercial, tendo apresentado declaração fiscal de cessão de atividade em outubro de 2011;
Acontece que nos anos de 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 a “J...” nunca distribuiu lucros aos seus sócios, circunstância que adveio da ocultação contabilística perpetrado pelo Réu, que ficcionou despesas, custos e suprimentos e se locupletou desses lucros;
Entre 15/04/2009 e 23/09/20009, a “J...” foi objeto de uma ação inspetiva pelas Finanças, relativa aos exercícios de 2007 e 2009;
Nessa ação inspetiva verificou-se que, nesses exercícios, a “J...” apresentava débitos de caixa na ordem de um milhão de euros, provenientes de levantamento de cheques sacados sobre as contas da J...;
Confrontado o Réu com esse facto, este referiu que esses levantamentos se destinaram a efetuar pagamentos aos fornecedores de “G...” e “VT”, a efetuar depósitos em outras sociedades e, bem assim a assegurar adiantamentos aos trabalhadores deslocados para ..., a título de despesas de alojamento e alimentação;
Acontece que nos anos de 2007 e 2008, o Réu levantou cheques no montante de 121.066,00 euros, sem qualquer justificação contabilística, quantia essa que foi ocultada ao Autor pelo Réu e em relação à qual não auferiu qualquer dividendo, apesar de deter 40% no capital social da “J...”;
Nos exercícios de 2008, a “J...” obteve um resultado líquido de 420.012,00 euros, justificado contabilisticamente pelo Réu da seguinte forma: 397.600,00 euros, como referentes ao pagamento de gratificações aos trabalhadores deslocados em ...; 2.400,00 euros, referentes ao pagamento de gratificações a gerentes; e 20.012,00 euros, relativos a lucros não distribuídos e a transitar para o exercício seguinte;
Acontece que a “J...” nunca pagou quaisquer gratificações aos trabalhadores deslocados em ..., não sendo os restantes factos igualmente verdadeiros;
Em 2008, sem o consentimento do Autor, o Réu transferiu para uma conta particular dele a quantia de 141.000,00 euros, que contabilizou como empréstimos efetuados ao Réu, e em 19/11/2008 transferiu para a sua conta 104.000,00 euros, igualmente à revelia do Autor;
Da contabilidade da “J...” não resulta que tais quantias tivessem sido restituídas pelo Autor à sociedade;
Entre 21/10/2011 e 23/03/2012, a “J...” foi alvo de nova ação inspetiva por parte das Finanças, agora relativamente aos exercícios de 2009 a 2010;
Na sequência dessa ação inspetiva apurou-se que nos anos de 2009 a 2010, o Réu levantou 113.381,00 euros da “J...”, que não destinou à satisfação de qualquer encargo desta;
Perspetivando a cessão da atividade da “J...”, em 2010, o Réu ficcionou suprimentos à última e, de seguida, por contrapartida desses pretensos empréstimos, lançou na sua conta individual a quantia de 303.471,83 euros;
Atuando em representação da “J...”, em 11/09/2001, o Réu vendeu um prédio aos seus filhos, pelo preço de 130.000,00 euros, que declarou ter já recebido, mas essa quantia não deu entrada nos cofres da “J...”, mas antes foi contabilizada a crédito, na conta de suprimento do Réu na contabilidade da “J...”;
Entre março de 2007 e dezembro de 2009, a “O...” efetuou pagamentos à J..., em numerário, no montante global de 1.317,400 dólares americanos, que não foi contabilizados na contabilidade da “J...”;
No mail de 04/10/2021, enviado por DD, gerente da “O...”, ao Réu, aquele reconhece factos (que o Autor elenca) de que resulta que nas relações estabelecidas entre a “O...” e a “J...”, nos anos de 2002 a 2009, resultou um lucro para a última de 1.156.036,63 euros, o qual nunca foi contabilizado nas contas da “J...”;
No mesmo mail, o identificado DD reconhece que a “O...” deve ao Réu a quantia de 162.907,55 euros, mas esta quantia é, na realidade, da “J...”;
E no mesmo mail, DD adiciona o valor de 125.000,00 euros, respeitante ao preço de um veículo automóvel da marca ...”, cuja existência o Autor desconhece, mas que é propriedade da “J...”.
O Réu contestou defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção dilatória da ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir, alegando que a decisão sob a distribuição de dividendos na “J... nunca esteve autonomamente na sua esfera, pois não dispunha de direito de voto suficiente para tal, mas o inverso é já verdadeiro, dado que o Autor podia deliberar sozinho a distribuição de lucros naquela sociedade, pelo que não consegue percecionar a utilidade do pedido deduzido pelo Autor na alínea a) do petitório; que todos os pedidos formulados pelo Autor não são pedidos de simples apreciação negativa, mas sim pedidos de condenação, dos quais o Autor pretende extrair a exigência de uma prestação de coisa ou de facto, direito esse que não se encontra na esfera do Réu, mas, quando muito, da J...;
Invocou (implicitamente, que não expressamente) a exceção da falta de interesse em agir do Autor para intentar a presente ação, ao alegar que, além de inepta, a presente ação é inútil, pois a pretensão última do Autor é claramente obter a condenação do Réu em valores que considera devidos à sociedade;
Invocou a exceção da ilegitimidade ativa do Autor para intentar a presente ação, sustentando que este carece dessa legitimidade e que, quando muito, esta pertence à “J...”;
Invocou a exceção perentória da prescrição, sustentando que a entender-se que se está perante uma ação de condenação do Réu pelos factos que praticou enquanto gerente e TOC da “J...”, que os factos alegados pelo Autor para suportar esse pedido condenatório, de acordo com a alegação do próprio Autor, ocorreram de 2007 a outubro de 2011, pelo que a sua responsabilidade pelos danos emergentes desses factos, enquanto gerente e TOC da “J...”, está prescrita, nos termos do art. 174º, n.º 2 do CSC, dado que apenas foi citado para a presente ação em 22/12/2020;
Invocou a exceção dilatória do caso julgado, advogando que apesar do Autor ter classificado a presente ação como de simples apreciação negativa, quando, na realidade, pretende a condenação do Réu na entrega de quantias, e apesar de tentar formular pedidos diversos nesta ação, o certo é que a presente ação é a repetição da que correu termos no Processo n.º 2055/12.6TAGMR, da Instância Local ..., Secção Criminal, Juiz ..., em que o aqui Réu, ali arguido, foi acusado de vários crimes, o aqui Autor se constituiu assistente e deduziu pedido de indemnização civil, crimes esses de que o aqui Réu veio a ser absolvido e em que o pedido de indemnização cível foi julgado improcedente, por sentença transitada em julgado, ocorrendo entre a presente ação e aquela outra, já decidida em definitivo, identidade de sujeitos, bem como identidade de pedidos, dado que o Autor, na presente ação, pretende obter o mesmo efeito jurídico, efetuando o mesmo pedido que formulou naquela outra, “apesar de indireto”, posto que (nessa outra ação) pedia que as quantias supostamente apropriadas pelo Réu fossem devolvidos à sociedade”, além de que entre ambas as ações ocorre igualmente identidade de causas de pedir;
Impugnou a generalidade dos factos alegados pelo Autor.
Concluiu pedindo que, por via da procedência da exceção da ineptidão da petição inicial, seja “absolvido dos pedidos”; que por via da procedência da “exceção da nulidade da petição inicial (ato inútil por o objeto da ação ser condenatório, com intenção de execução futura, em ação meramente declarativa sem efeitos coercivos), seja absolvido dos pedidos”; que por via da procedência da exceção da prescrição, seja absolvido dos pedidos”; que por via da “invocada exceção do caso julgado (…) seja absolvido dos pedidos”; que “por não corresponderem a direitos na esfera do Autor sob os quais não se assume legitimado para o pedido (…), seja absolvido dos pedidos”; e que, em todo o caso, seja absolvido dos pedidos.
Realizou-se audiência prévia, em que, uma vez frustrada a conciliação das partes, concedeu-se a palavra ao Autor para se pronunciar em relação às exceções invocadas pelo Réu na contestação, que dela fez uso, concluindo pela improcedência de todas essas exceções.
Em 19/05/2021 proferiu-se despacho, em que se fixou o valor da presente ação em 1.824.211,10 euros, seguindo-se despacho saneador tabelar, em que não se conheceu de nenhuma das exceções dilatórias invocadas pelo Réu na contestação.
Após conheceu-se da exceção perentória da prescrição quanto aos pedidos formulados pelo Autor nas alíneas a) a j), l) e m) do petitório, julgando-a procedente e absolvendo o Réu destes pedidos.
Quanto aos pedidos formulados pelo Autor nas alíneas k) e l) do petitório, notificou-se este para “alegar concretamente as datas em que ocorreram as condutas relevantes nos termos do art. 174º, n.º 1 do CSC”.
Inconformado com a decisão que conheceu da exceção perentória da prescrição em relação aos pedidos formulados nas alíneas a) a j), l) e m) do petitório, e que absolveu o Réu destes pedidos, o Autor interpôs recurso dessa decisão (cfr. alegações de recurso entradas em juízo em 21/06/2016).
Por decisão de 15/09/2021, esse recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e com efeito meramente devolutivo (cfr. despacho de 15/09/2021), estando ainda pendente nesta Relação.
Acatando a notificação que lhe foi dirigida pela 1ª instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas k) e n) do petitório, por requerimento entrado em juízo em 07/06/2021, o Autor alegou o seguinte:
1º- Quanto ao pedido sob o item K), conforme flui do art. 105º da petição inicial, o Réu, atuando em representação da J..., celebrou a escritura pública de compra e venda do pavilhão em 11 de agosto de 2010, aí declarando ter recebido em nome da sociedade o preço da venda, no valor de 130.000,00 euros, pese embora, a citada importância nunca ter dado entrada nos cofres da empresa, tudo com o argumento que tal verba se destinava à liquidação de suprimentos;
2º- No que tange ao pedido sob o item N) a factualidade nele inserta remonta a 31 de janeiro de 2011 (doc. n.º ...0 da p.i.)”.
Observado o contraditório quanto a esta concretização, o Réu nada disse.
Por decisão de 15/09/2021, a 1ª Instância conheceu da exceção perentória da prescrição em relação aos pedidos formulados pelo Autor nas alíneas k) e n) do petitório, que julgou procedente e absolveu o Réu destes pedidos, constando essa decisão do seguinte: Nos termos do nº 2 do art.164º (CSC) - as ações para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários que, para tal efeito são considerados representantes legais da generalidade dos sócios; qualquer destes pode, contudo, propor ação limitada ao seu interesse.
Do que estamos a falar quando falamos, dos direitos de crédito exigíveis por antigos sócios contra terceiros é da cobrança de créditos da sociedade que estejam abrangidos – é este o nº1 do art.164º - na existência de bens não partilhados.
Estes créditos, como já se disse no anterior despacho do qual este é complemento, estes créditos em relação aos quais se pode falar de cobrança, esses, prescrevem no prazo de cinco anos.
A esse respeito esclarece o A.:
Quanto ao pedido sob o item K), conforme deflui do art. 105º da p.i., o Réu, atuando em representação da J..., celebrou a escritura pública de compra e venda do pavilhão em 11 de agosto de 2010, aí declarando ter recibo em nome da sociedade o preço da venda no valor de € 130.000,00, pese embora, a citada importância nunca ter dado entrada nos cofres da empresa, tudo com o argumento que tal verba se destinava à liquidação de suprimentos.
No que tange ao pedido sob o item N/ a factualidade nele inserta remonta a 31 de janeiro de 2011 (doc. nº ...0 da p.i.).
Deste modo, e como já foi dito, o art. 174º fixa uma prescrição objetiva (o prazo inicia-se independentemente de concretos conhecimentos de sujeitos) de tipo quinquenal. Domina uma preocupação de segurança jurídica.
Sendo que no número 1 estão os momentos de contagem dos prazos.
Como resulta dos presentes autos, o R. foi citado em 22/12/2020.
Pelo exposto, julga-se procedente a exceção de prescrição quantos aos factos abrangidos nos pedidos K) e N), absolvendo-se o R do ali peticionado.
Custas pelo A.”.
Inconformado com esta decisão, que julgou também procedente a exceção da prescrição quanto aos pedidos formulados nas alíneas k) e n) do petitório, e deles absolveu o Réu, o Autor interpôs recurso de apelação, vindo o Tribunal da Relação a julgar a aludida apelação procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida, que julgou procedente a exceção perentória da prescrição quanto aos pedidos formulados pelo apelante nas alíneas k) e n) do petitório e absolveu o apelado desses pedidos e ordenou o prosseguimento dos autos, devendo a 1ª Instância conhecer das exceções dilatórias invocadas pelo apelado na contestação (ainda não conhecidas), incluindo das exceções dilatórias inominadas da falta de interesse em agir e da autoridade do caso julgado, após observância do contraditório do apelante quanto a estas últimas duas exceções, considerando a forma não discriminada e enviesada como o apelado as invocou na contestação, salvaguardando-se, assim, de uma eventual nulidade, por alegada decisão surpresa.
Em cumprimento do decidido no douto acórdão, o Tribunal de 1ª instância em 17.2.2022 proferiu despacho a notificar o A. para se pronunciar sobre as supra aludidas exceções (falta de interesse em agir e da autoridade do caso julgado) no prazo de 10 dias, vindo este responder nos termos do requerimento junto em 2.3.2022.
Seguidamente o Tribunal de 1ª instância veio a proferir decisão, em 28.03.2022, onde entre outros, julgou procedente a exceção dilatória da autoridade do caso julgado.
Notificadas as partes do aludido ato decisório, o Autor não se conformando com o segmento que julgou procedente a exceção de (autoridade) do caso julgado quanto ao pedido formulado sob o item K) e que, consequentemente, absolveu o Réu da instância quanto a esse pedido, interpôs recurso de apelação.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
                                   
CONCLUSÕES:

1ª - Aflora a decisão em crise:
Sucedendo que, no processo 2055/12.6TAGMR concluiu-se que o ora réu não se apropriou de qualquer quantia, que os montantes declarados como pagos, o foram efetivamente, quer a fornecedores, quer a funcionários. Nesse provado foi dado como assente:
- No dia 11 de Agosto de 2010 o R. atuando em representação da J... – Comércio Internacional, Lda. (por si e por instrumento de delegação de poderes outorgado pelo participado CC), celebrou escritura pública de compra e venda, mediante a qual, pelo preço de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros) – que em nome da J... – Comércio Internacional, Lda. declarou ter recebido – transmitiu para os seus filhos BB e EE (este à data ainda menor e por isso representado no ato notarial pela sua mãe FF, mulher do referido BB), o prédio urbano composto por pavilhão destinado a armazém e atividade industrial e logradouro, sito no lugar ..., Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...82 da freguesia ....
- Montante que o R. declarou ter recebido mas que nunca deu entrada nos cofres e nas contas da sociedade J... – comércio internacional, Lda.
- Tendo sido contabilizado a crédito da conta de suprimentos do R. como devolução de suprimentos.
2ª - Explana o requerimento do Autor (ref. ...10) de 01/06/2021:
1º - Quanto ao pedido sob o item K), conforme deflui do art. 105º da pi, o Réu, atuando em representação da J..., celebrou a escritura pública de compra e venda do pavilhão em 11 de Agosto de 2010, aí declarando ter recibo em nome da sociedade o preço da venda no valor de € 130.000,00, pese embora, a citada importância nunca ter dado entrada nos cofres da empresa, tudo com o argumento que tal verba se destinava à liquidação de suprimentos.  
3ª – Evidencia o veredito em crise:
“De outro modo, a decisão proferida no primeiro processo – abrangendo os fundamentos de facto e de direito – que lhe dão sustento, seria posta em causa, de novo apreciada e decidida de modo diverso neste processo.”
“Ora a factualidade é na verdade a mesma e como tal está vedada pronúncia sobre os mesmos por força da autoridade do caso julgado, procedendo nesta medida a exceção dilatória referida e absolvição da instância do R.” (cfr. fls.)”.
4º - Consigna o pedido K):
1 – Que o Réu nunca deu entrada da quantia de €130.000,00 nas contas da J..., respeitante ao preço da venda do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...82 da freguesia ..., ao invés, esta importância foi contabilizada a crédito na sua conta de suprimentos, que nunca existiram (cfr. fls. da pi).
5º - É pacífica a doutrina e jurisprudência, quando devota que:
I – A exceção do caso julgado material comporta um efeito negativo, consistente na inadmissibilidade das questões abrangidas por caso julgado anterior voltarem a ser suscitadas, entre as mesmas partes, em ação futura, tendo como requisitos a tríplice identidade de sujeitos e causa de pedir, nos termos do artigo 581º do Código de Processo Civil.
II – Diferentemente, a autoridade do caso julgado tem, antes, o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito e, sem prescindir da identidade das partes, dispensa a identidade do pedido e da causa de pedir nos casos em que existe uma relação de prejudicialidade entre o objeto da ação já definitivamente decidida e a ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico necessário (…) - Ac. STJ, Proc. nº 5837/19.4T8GMR.G1.S1, 2ª Secção, 16/11/2021, Relator Rosa Tching (Unanimidade).
6º - O Recorrente não questiona a força obrigatória do caso julgado material no âmbito do processo 2055/12.6TAGMR. Manifesto se nos afigura, à luz do art. 619º do CPC que: “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”.
7º - Não há dúvidas quanto à identidade do Réu na ação cível enxertada no processo crime, e na presente demanda, porém, o mesmo não se pode certificar quanto à identidade do pedido e da própria causa de pedir (responsabilidade civil extracontratual), mesmo partindo de um acervo fáctico aparentado.
8º - Dimana do nº 2 do art. 10º do CPC, que as ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. As ações de simples apreciação têm por fim obter unicamente a declaração de existência ou inexistência de um direito ou de um facto, daí a sentença proferida não constituir título executivo (cfr. nº 3, al. a), art. 10º). As ações de condenação têm como fim exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito.
9º - Em sentido oposto, uma ação de simples apreciação se alinha perante uma situação de incerteza sobre a existência ou inexistência de um direito ou de um facto suscetível de causar prejuízos.
10º - Em súmula, a ação de condenação pressupõe a lesão ou violação de um direito. Aliás, o Ac. da Relação de Guimarães, no âmbito deste processo (Ac. de 02/12/2021, proc. nº 6090/20.2T8GMR.G1, de fls. 13 e sgts.) clarifica que os pedidos formulados consignam uma ação de simples apreciação (negativa e positiva) e não uma ação condenatória, em nenhum deles se pretende a condenação do Réu.
11º - Mesmo inculcando a doutrina e jurisprudência que a tríplice identidade do art. 581º CPC é condição essencial para a verificação de caso julgado na sua vertente de exceção dilatória (efeito negativo) e que já não é pressuposto para a ocorrência da verificação da autoridade de caso julgado, certo é que, in casu, considerando a natureza dos pedidos, e, em particular do item K) do petitório (simples apreciação negativa e positiva), descarta-se qualquer identidade formal, ou mesmo informal com os pedidos e, da própria causa de pedir, do dito processo crime. Isto, malgrado a sua improcedência em resultado da absolvição do aqui Réu dos ilícitos no qual vinha pronunciado.
12º - Ao invés da pretensão do Autor no processo crime, o pedido K) não materializa uma condenação ao pagamento de uma determinada quantia pelo Réu, muito menos uma indemnização ancorada no instituto da responsabilidade civil, apenas que o tribunal declare a existência e a inexistência de factos, mormente: a) o Réu nunca deu entrada da importância de € 130.000,00 nas contas da J...; b) que nunca existiram suprimentos feitos pelo Réu à J...; pedidos estes de apreciação negativa (cfr. Ac. Relação de 02/12/2021 de fls. 19, proc. nº 6090/20.2T8GMR.G1), e também que declare que o Réu contabilizou os € 130.000,00 a crédito na sua conta de suprimentos.
13º - Salvo melhor e avalizada opinião, não se enxerga do pedido K) qualquer relação de prejudicialidade entre a decisão no processo crime 2055/12.6TAGMR e a presente demanda.
14º - O objeto do pedido civil formulado visava a condenação do ora Réu no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por danos patrimoniais e morais, ao invés do pedido k) como retro se retratou.
O pedido K) não propende alterar a relação jurídica material definida no proc. 2055/12.6TAGMR.
15º - A presente ação e em particular o pedido K) não pressupõe ou prevê a violação ou lesão de um direito, somente a declaração do tribunal da existência factos (positivos) e inexistência de factos (negativos) face à sua incerteza.
16º - A decisão recorrida violou os artigos 10º; 580º; 581º e 619º do CPC.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Remetidos os autos a este Tribunal foi proferida decisão singular na qual se determinou “a anulação da decisão impugnada, devendo o tribunal recorrido proferir nova decisão em que supra a mencionada omissão na enunciação do quadro factual relevante para efeito de apreciação da ajuizada exceção dilatória [do caso julgado]”.
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Inconformado com esse ato decisório, veio agora o recorrido apresentar a presente reclamação para a conferência requerendo que seja proferido acórdão sobre a matéria da decisão, por entender «que, em beneficio do principio da celeridade e economia processual, invés de ser ordenada a prolação de nova decisão pelo Tribunal de Primeira Instância, deverá ser proferido acórdão sobre a exceção de caso julgado quanto ao pedido formulado sob o item K), pois que, salvo melhor opinião, os elementos juntos com o recurso, são suficientes para tal fim e, naturalmente, tal possibilidade encontra-se dentro dos poderes permitidos ao Tribunal da Relação, que deve manter, alterar ou revogar as decisões de primeira instância com base nos fundamentos que entenda de maior aplicabilidade ao diferendo em apreciação».
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.           
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA RECLAMAÇÃO
           
O objeto da presente reclamação traduz-se em determinar se, in casu, será, ou não, de anular a decisão recorrida.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para efeito de apreciação do objeto da presente reclamação é a que dimana do antecedente relatório, sendo de sublinhar que no ato decisório sob censura não foram consignados quais os concretos factos relevantes para conhecer a invocada exceção dilatória do caso julgado.    
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se referiu, o reclamante insurge-se contra a decisão singular que determinou a remessa dos autos à 1ª instância para fixação do substrato factual relevante para a apreciação da exceção do julgado, por, na sua perspetiva, “os elementos juntos com o recurso, são suficientes para tal fim”.
Não se nos afigura, contudo, que a decisão sumária do relator mereça censura, posto que as questões que nela foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos acertada.
Como assim, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou a aludida decisão singular e que se passam a transcrever: «O Recorrente insurge-se contra a decisão que julgou procedente a exceção do caso julgado relativamente ao pedido inserto na al. K) do petitório, por aí se ter considerado que a factualidade a ele atinente é a mesma que foi apreciada no processo 2055/12.6TAGMR, e por tal razão está vedada nova pronúncia sobre a mesma por força da autoridade do caso julgado, tendo declarado procedente a aludida exceção dilatória, com a consequente absolvição da instância do R. quanto a tal pedido.
Portanto, na resolução da questão supra enunciada, tudo se resume em dilucidar que efeito a decisão condenatória proferida no referido processo nº 2055/12.6TAGMR, e já transitada em julgado, tem na sorte da presente demanda, importando, desde logo, apurar se o ato decisório recorrido se mostra devidamente fundamentado, quer de facto, quer de direito.
Como é consabido, o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência do disposto no artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “As decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas nas formas previstas na lei”.
Trata-se de uma injunção constitucional de conformação legal, porquanto confere ao legislador o seu modo de regulação.
Mas também surge como uma vertente do direito fundamental a um processo equitativo, consagrado no artigo 20º, nº 4 da Constituição, assim como nos instrumentos normativos de direito internacional, seja a nível global (artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), seja a nível regional europeu (artigo 6º, § 1º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).
Por sua vez, é a própria Constituição a afirmar, a propósito da função jurisdicional, que competência para administrar a justiça (artigo 202º, nº 1) em nome do povo exprime a sua vontade geral através da lei, que são os actos normativos (artigo 112º).
O Código Civil menciona que a lei é a fonte imediata do direito (artigo 1º), devendo os tribunais julgar em obediência à lei (artigo 8º), sendo de considerar que esta expressa valores (bens em si), princípios (mandatos de optimização) e regras (mandatos definitivos).
O Código de Processo Civil renova igualmente esse “dever de fundamentação da decisão”, enumerando no nº 1, do artigo 154º que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, acrescentando no seu nº 2 que “ A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Por sua vez, ao enumerar no seu artigo 615º, nº 1, os casos de nulidade da sentença, refere-se a três situações em que está em causa a sua fundamentação, que são os seguintes: b) “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”; c) “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) “ O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O Tribunal Constitucional tem entendido que a injunção constitucional cumpre essencialmente duas funções: uma, de ordem endoprocessual (a), mediante uma avaliação propedêutica e de autocontrolo crítico da lógica decisória por parte do julgador (i), permitindo depois às partes o conhecimento da racionalidade dessa decisão (ii) colocando, eventualmente, o tribunal de recurso na melhor posição para, em termos mais seguros, exprimir um juízo decisório concordante ou divergente; outra, de ordem extraprocessual (b), possibilitando à comunidade um controlo externo e geral sobre a fundamentação decisória, tanto factual, como jurídica, garantindo, desse modo, a transparência do processo e dos sentenciamentos judiciais (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 55/85, BMJ 360/195, n.º 135/99 e n.º 408/2007, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio verifica-se que o Sr. Juiz a quo, quanto à questão que nos ocupa, proferiu a seguinte decisão:
“ O primeiro dos identificados pedidos - o da alínea k – consubstancia-se num pedido de simples apreciação, mas que é complexo, na medida em que engloba três pedidos: o A. pretende que se declare jurisdicionalmente que “o Réu nunca deu entrada da quantia de 130.000,00 euros nas contas da J...” e que “nunca existiram suprimentos feitos pelo Réu à J...”, isto é, que o tribunal declare a inexistência de dois factos (1º- o Réu não deu entrada dos 130.000,00 euros nas contas da J...; e 2º- o Réu nunca fez suprimentos a esta sociedade).
E ainda que o tribunal declare que o Réu contabilizou esses 130.000,00 euros, “a crédito, na sua conta de suprimentos”, na contabilidade da J..., e aqui este já deduz uma terceira pretensão (pedido) em que pretende que o tribunal declare a existência de um facto positivo (lançamento pelo Réu, dos 130.000,00 euros, a crédito, na sua conta de suprimentos da J...), pelo que, quanto a este pedido, a presente ação é de simples apreciação positiva.
Passando ao pedido formulado na alínea n) do petitório, o A. formula um único pedido, o qual se consubstancia em o tribunal declarar um facto positivo (“O Réu integrou no seu património pessoal entre 80.000,00 a 100.00,00 euros de juros de aplicação a prazo à margem da J... de receitas que lhe eram próprias, oriunda da E...).
Da exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir do apelante para formular aqueles pedidos e (caso esse interesse se afirme), da exceção dilatória inominada da autoridade do caso julgado.
Conforme requerimento do A. (ref. ...10) de 01/06/2021:
1º - Quanto ao pedido sob o item K), conforme deflui do art. 105º da pi, o Réu, atuando em representação da J..., celebrou a escritura pública de compra e venda do pavilhão em 11 de agosto de 2010, aí declarando ter recibido em nome da sociedade o preço da venda no valor de € 130.000,00, pese embora, a citada importância nunca ter dado entrada nos cofres da empresa, tudo com o argumento que tal verba se destinava à liquidação de suprimentos.
2º - No que tange ao pedido sob o item N/ a factualidade nele inserta remonta a 31 de janeiro de 2011 (doc. nº ...0 da p.i.).
Sucedendo que, no processo 2055/12.6TAGMR concluiu-se que o ora réu não se apropriou de qualquer quantia, que os montantes declarados como pagos, o foram efetivamente, quer a fornecedores, quer a funcionários.
Nesse processo foi dado como provado que:
- No dia 11 de Agosto de 2010 o R. atuando em representação da J... – Comércio Internacional, Lda. (por si e por instrumento de delegação de poderes outorgado pelo participado CC), celebrou escritura pública de compra e venda, mediante a qual, pelo preço de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros) — que em nome da J... – Comércio Internacional, Lda. declarou ter recebido — transmitiu para os seus filhos BB e EE (este à data ainda menor e por isso representado no ato notarial pela sua mãe FF, mulher do referido BB), o prédio urbano composto por pavilhão destinado a armazém e atividade industrial e logradouro, sito no lugar ..., Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial e Guimarães sob o n° ...82 da freguesia ....
- Montante que o R. declarou ter recebido, mas que nunca deu entrada nos cofres e nas contas da sociedade J... – c..., Lda.
- Tendo sido contabilizado a crédito da conta de suprimentos do R. como devolução de suprimentos.
Conforme se decidiu no A. da RP de 11/10/2018, a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 581º do CPC.
Por força da autoridade de caso julgado, impõe-se aceitar a decisão proferida no primeiro processo, na medida em que o núcleo fulcral das questões de direito e de facto ali apreciadas e decididas são exactamente as mesmas que as autoras aqui pretendem ver apreciadas e discutidas.
Há, pois a necessária relação de prejudicialidade. De outro modo, a decisão proferida no primeiro processo – abrangendo os fundamentos de facto e de direito – que lhe dão sustento, seria posta em causa, de novo apreciada e decidida de modo diverso neste processo.
Ora a factualidade é na verdade a mesma e como tal está vedada nova pronúncia sobre os mesmos por força da autoridade do caso julgado, procedendo nesta medida a exceção dilatória referida e absolvição da instância do R…”
Analisada a decisão recorrida constata-se que a mesma não enuncia, de forma cabal, quais os concretos factos a que atendeu para firmar o juízo decisório que julgou procedente a ajuizada exceção dilatória, isto é, não se indicaram quais os concretos factos de uma e outra ação (ou seja, do processo-crime e conexo pedido de indemnização civil e desta ação cível) que apresentam similitude tendo em vista a alegada relação de prejudicialidade, de molde a permitir-se a conclusão firmada no despacho ora posto em crise.
Ora, como já anteriormente se enfatizou, na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjetivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível.
Como assim, sem a enunciação do substrato factual que o tribunal recorrido considera relevante para efeito de julgar positivamente verificada a exceção dilatória do caso julgado, no seu efeito positivo de autoridade, mostra-se este tribunal ad quem impossibilitado de apreciar e controlar o iter decisório trilhado por aquele tribunal.
Deste modo, em consonância com o que se dispõe no art. 662º, nº 2, al. c), do Cód. Processo Civil, impõe-se a anulação da decisão recorrida, determinando-se a “baixa” do processo à 1ª instância a fim de o juiz a quo colmatar a descrita omissão».
             Atentas as razões alinhadas na decisão singular e ora transcritas, não se vislumbra razão válida para divergir do sentido decisório nela acolhido relativamente às concretas questões que nela foram objeto de análise, sendo que, como emerge da lei adjetiva, dada a natureza do recurso de apelação como recurso de reponderação, compete, em primeira linha, ao tribunal de 1ª instância fixar a materialidade relevante para a decisão das questões que são submetidas à sua apreciação[1].
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não atender a reclamação, mantendo, pois, a decisão singular.
Custas a cargo do reclamante, fixando-se a respetiva taxa de justiça em duas Ucs.                  
Guimarães, 27.4.2023


[1] Cfr., sobre a questão, entre outros, o acórdão desta Relação de 30/11/2022 (processo nº 1360/22.8T8VCT.G1) e acórdão da Relação de Lisboa de 7/12/2021 (processo nº 8513/09.2YYLSB-B-L2-7), acessíveis em www.dgsi.pt.