Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2134/16.0T8VRL.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: DIVÓRCIO
PARTILHA BENS COMUNS
BENS PRÓPRIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Discutindo-se, para efeitos de partilha subsequente a divórcio, se é próprio ou comum um estabelecimento comercial (café) – bem jurídico de natureza sui generis cuja concepção, formação, nascimento e consequente entrada na titularidade subjectiva de uma pessoa, dada a sua constante dinâmica e evolução, lhe conferem características peculiares e em constante mutação –, fundamental será determinar-se quando o mesmo foi criado e adquirido e, para tal, quando se reuniram, tornaram consistentes e ganharam vida os diversos elementos essenciais dele integrantes por forma a conferir-lhe – ainda que apenas com âmbito mínimo ou necessário – a substância, solidez e definitiva identidade capaz de, enquanto unidade jurídica, lhe dar imagem reconhecível no tráfico mercantil e, assim, de o tornar objecto de relações jurídicas, nomeadamente de ser coisa sobre que incida o direito de propriedade passível de ser adquirido. Numa palavra, importa fixar em que consiste o estabelecimento comercial, qual o “critério” definidor do mesmo, de modo a que, perante certa realidade, se possa concluir que ele está constituído como um bem a se e apto a ser objecto de negócios jurídicos.

2. Tendo o café sido instalado pelo ex-cônjuge que se dedicava a esse ramo profissional em imóvel por ele adquirido, adaptado, recheado, licenciado e pago por ele com dinheiro próprio ou obtido mediante financiamento, tudo antes de casar, e apesar de ele ainda não ter começado a laborar, por falta do alvará requerido antes mas só obtido depois, considera-se constituído o estabelecimento como tal, já como unidade jurídica com valor objectivo diverso do dos elementos integrantes e assim criadocomo valor de posição no mercado” e, portanto, na titularidade daquele e ingressado originariamente no seu património próprio, apesar de a exploração se ter iniciado e prosseguido após o casamento com o trabalho de ambos e de com o produto deste ter sido pago o empréstimo obtido para as obras, equipamento e demais despesas.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

P. C., com apoio judiciário, intentou, em 18-12-2016, no Tribunal de Vila Real, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra o réu V. M..

Pediu que:

a) Seja este condenado a reconhecer que do património comum do casal faz parte o estabelecimento comercial designado por “Café ...”, sito na Rua …, Vila Real;
b) Seja declarado que o valor daquele estabelecimento comercial era, à data da produção dos efeitos do divórcio, de 125.000 €;
c) Que aquele estabelecimento comercial esteve locado nos últimos 8 anos, auferindo o Réu, em exclusivo, o valor do seu aluguer, quantia esta que também deverá integrar o património comum do casal, num valor nunca inferior a 60.000 €.

Alegou, em síntese, na petição, como fundamentos, que, tendo estado casados, um com o outro, desde 07-07-1995 até 24-04-2007, na partilha subsequente ao divórcio divergiram sobre um estabelecimento comercial existente. Apesar de o mesmo ter sido instalado em imóvel do réu e aberto com recurso a um financiamento por ele apresentado em data anterior à do casamento, foi na constância deste e com o produto do trabalho de ambos que aquele foi pago, foram feitas obras de conservação, restauro e beneficiação, adquiridos ou substituídos equipamentos, mormente as cadeiras e mesas (por comodato). Além disso, foi com o trabalho constante e empenhado da autora que o estabelecimento cresceu, granjeou e fidelizou clientela e foi com as boas receitas do mesmo que sustentaram a sua vida e necessidades familiares. Após o divórcio, o réu cedeu a exploração do estabelecimento e recebe as rendas. Trata-se, pois, de bens e de rendimentos comuns.

Na contestação, o réu, impugnando, alegou que o estabelecimento está instalado em imóvel que comprou em solteiro e com dinheiro seu, foi por si legalizado também antes do casamento e nele investiu valores próprios conseguidos antes, tendo também sido ainda antes do casamento que tratou de todo o processo para a sua legalização e investido no estabelecimento valores adquiridos no estado de solteiro. Concluiu que o bem é próprio dele e pela improcedência da acção. Sem deduzir qualquer reconvenção, pediu que, caso contrário, seja “reconhecido que o Réu detém um crédito muito superior a 8.511,49€, em consequência directa dos valores investidos, como bens próprios, e dos valores pagos a título de crédito habitação, considerados num total nunca inferior a 100.000,00€.”

A autora, notificada, não respondeu.

Na audiência prévia, fixou-se o valor da causa, proferiu-se saneador tabelar, identificou-se o objecto do litígio, enunciaram-se os temas da prova, apreciaram-se os requerimentos à mesma respeitantes e ordenou-se a realização de perícia.

Após prolongadas vicissitudes relativas à instrução, realizou-se em 24-05-2019 a audiência de julgamento, nos termos e com as formalidades narradas na acta respectiva, no seu decurso tendo sido ouvidas as partes, tomados esclarecimentos à Perita e inquiridas três testemunhas.

Com data de 25-06-2019, foi proferida a sentença que culminou na seguinte decisão:

“Por tudo quanto exposto ficou:
a) Declaro que o estabelecimento comercial denominado “Café ...” esteve locado, tendo sido o réu quem auferiu o valor da respetiva renda.
b) Julgo improcedentes todos os demais pedidos formulados pela autora, deles absolvendo o réu.
c) Custas a cargo da autora, já que a parte em que a ação procedeu não tem relevância para a pretensão da autora e foi pelo réu confessada.”

Não se resignando, a autora apelou a que esta Relação altere o decidido, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

“1.º Considerando os documentos juntos, os depoimentos da Recorrente e Recorrido, bem como das testemunhas M. F. e C. V., cujas declarações se indicaram nas partes consideradas essenciais, não podia o Tribunal “a quo” dar como não provados, da forma como o fez, os pontos enumerados nas alíneas b) a h), j) a l), n) e o);
2.º O que deverá determinar a alteração da resposta à matéria de facto por forma a que seja dado como provado que:

b) Foi com o fruto do trabalho de ambos que foram sendo feitas, ao longo do matrimónio, obras de restauro e beneficiação no espaço utilizado;
c) Como foi sendo substituído, ao longo do matrimónio, o equipamento que, adquirido de início, foi ficando obsoleto ou se ia danificando.
d) Bem como foi sendo comprado equipamento novo.
e) Foi o que sucedeu, a título de exemplo, com o revestimento das paredes com madeira, as constantes renovações da pintura, a compra de uma televisão, quadros de parede ou de mesas de maior dimensão para fazer face ao crescente número de pessoas que vinham para almoçar.
f) Ao longo do tempo, fruto do trabalho da Autora, foi servindo cada vez mais refeições, chegando às 80 refeições por dia, acrescido de 30 pequenos almoços.
g) O estabelecimento nunca teve funcionários e só contava com o Réu, nas horas de maior movimento, para servir às mesas.
h) Foi com o esforço, trabalho, simpatia e entrega constante da Autora, sete dias por semana, desde a data da abertura até à dissolução da vida conjugal, sem férias, folgas ou dias de descanso, que o Café ... foi fidelizando uma clientela que lhe permitia ter receitas médias de 12.000€/mês.
j) Ao valor do apoio inicial, foram ainda adquiridos, para fazerem parte do estabelecimento comercial, diversos bens e créditos.
k) Como foram sendo feitas obras de conservação e beneficiação.
l) O trabalho desenvolvido, em especial pela Autora, permitiu ao estabelecimento comercial ter uma clientela fiel e constante.
n) As receitas retiradas do “Café ...” permitiram ao Réu vestir só e apenas roupa de marcas reputadas.
o) Permitiram ao casal comprar, sempre em numerário, mobília de qualidade superior.
3.º Provado que se mostram os factos enumerados na conclusão anterior, deverá ser proferia sentença que julgue a acção procedente por provada;

Mas, ainda que assim não entenda,

4.º O estabelecimento comercial é um conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas, devidamente organizado para a prática do comércio. O estabelecimento comercial compreende, portanto, elementos da mais variada natureza que, em comum, têm apenas o facto se encontrarem interligados para a prática do comércio;
5.º Por conseguinte, o valor do estabelecimento comercial resulta do somatório do conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas, que o constituem;
6.º No caso em concreto, o valor, em 2007, de um café/restaurante, aberto em 1995, cujos bens corpóreos e obras, há muito se mostram amortizados e sem valor económico, será determinado pelas coisas incorpóreas, nestas assumindo particular relevo os conhecimentos (da cozinheira); a simpatia (das empregadas de mesa e balcão); os clientes, o aviamento;
7.º Provado que se mostra que o Recorrido investiu, antes de casar, dinheiro na execução de obras e aquisição de equipamento do café/restaurante e que, após o casamento, foi com o trabalho de ambos os membros do extinto casal, que foi pago parte de um empréstimo e se assegurou, ao longo de 12 anos, os demais elementos incorpóreos do estabelecimento comercial, será de concluir que aquele bem é composto por bens, coisas, adquiridas, em parte, com dinheiro próprio do recorrido, em parte com dinheiro comum do casal;
8.º E, atento valor residual da parte composta de bens próprios do Recorrido, face à maior percentagem do valor comum do casal, deverá ser proferida decisão que, nos termos do disposto no art.º 1.726.º do Cód. Civ., declare que o bem é um bem comum do casal;
9.º Não se tendo conseguido apurar, por falta de elementos o valor concreto do bem em causa, terá o Tribunal de proferir decisão que relegue para sede de incidente de liquidação de sentença o valor que o estabelecimento comercial tinha à data do divórcio;
10.º Mais deverá ser proferida decisão que condene o Recorrido, atenta a natureza comum do estabelecimento comercial, a entregar à recorrente, metade do valor das rendas auferidas, no valor de 450€ mês, desde a data do divórcio;
11.º Ao assim não decidir violou o Tribunal “a quo” o preceituado no art.º 1.726.º do Cód. Civil bem como o art.º 413.º e 414.º, do CPC;
12.º Se Vossas Excelências, em face das conclusões atrás enunciadas revogarem a sentença da primeira instância e em sua substituição, proferirem acórdão que:
A) Altere as respostas à matéria de facto dada como provada e não provada nos termos expostos nas conclusões 1.ª a 3.ª, que aqui se dão por reproduzidos por razões de economia processual;
B) Julgue procedente, por provado, o pedido formulado na alínea a) da P.I.;
C) Relegue para incidente de liquidação de sentença o pedido formulado na alínea b) da P.I.;
D) Julgue procedente por provado o pedido formulado na alínea c) da P.I., condenando o Recorrido a pagar à Recorrente metade do valor das rendas auferidas desde a data do divórcio;
Farão uma vez mais serena, sã e objectiva JUSTIÇA.”

O réu não respondeu.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre proferir a decisão, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir se:

a) Deve alterar-se a matéria de facto, nos pontos indicados.
b) Deve declarar-se que o estabelecimento é um bem comum do casal, designadamente nos termos do artº 1726º, do CC.
c) Deve relegar-se “para sede de incidente de liquidação de sentença o valor que o estabelecimento tinha à data do divórcio”.
d) Deve condenar-se o réu a entregar à autora metade do valor da renda respectiva (450,00€/mês), por ele recebida desde a data do divórcio.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou relevantes e decidiu julgar como provados os seguintes factos:

“1º Autora e Réu foram casados entre si desde o dia -/07/1995 até ao dia --/04/2007.
2º Por não se terem entendido quanto aos termos como deveria ser feita a partilha do património comum, deu a Autora entrada de um processo de Inventário que correu seus termos com o nº 2143/06.3TBVRL-A do extinto 3º Juízo do Tribunal da Comarca de Vila Real.
3º No âmbito desse processo, apresentada a relação de bens, veio a Autora a apresentar a competente reclamação, designadamente para que fosse incluído um estabelecimento comercial denominado “Café ...”, composto de mesas, balcão, máquinas de café e de jogos, bilhares, instalado no o r/c, da casa de habitação do casal.
4º Café que foi aberto com recurso a um projeto de financiamento apresentado em data anterior à do casamento.
5º Mas cujo financiamento foi pago já na constância do matrimónio.
6º Foi com o trabalho de ambos, Autora e Réu, que o empréstimo pedido para pagar o investimento realizado, foi pago.
7º Como foi com o fruto do trabalho de ambos que foi sendo assegurado o comodato de equipamento, como sucedeu com as cadeiras ou as mesas.
8º O estabelecimento comercial é composto de 3 salas e 4 casas de banho, e nesse estabelecimento eram servidos petiscos e algumas refeições, tendo também um salão de jogos.
9º A Autora sempre trabalhou, durante a constância do matrimónio, a tempo inteiro e em exclusividade, no citado café e restaurante.
10º Notificado o Réu da reclamação, veio este defender que o estabelecimento comercial em questão era um bem próprio.
11º E, feito o competente julgamento, foi relegado para os meios comuns a discussão sobe a natureza própria ou comum do bem.
12º O Réu continua a ser, nos últimos 8 anos a esta parte, o único beneficiário do estabelecimento, auferindo uma renda pela cessão de exploração que recebe por inteiro.
13º Do total do investimento inicial, foi atribuído ao Réu um apoio inicial de 25.534,46 €, do qual 8.511,49 € não era reembolsável e 17.022,97 € foi pago na constância do matrimónio.
14º Era através da exploração do estabelecimento comercial “Café ...” que Autora e Réu auferiam os rendimentos necessário a fazer face às suas despesas.
15º Como única fonte de receita e trabalho que ambos tinham.
16º As receitas retiradas do estabelecimento comercial permitiram ao casal realizar várias obras no interior da casa, designadamente a instalação de um sistema de aquecimento central.
17º Em 1997, a pronto e com dinheiro, o réu adquiriu uma viatura automóvel marca OPEL, modelo “FRONTERA”, pelo qual pagou 4.476.000$00 (a que equivaleriam 22.325,75€).
18º Em abril de 2007, o casal tinha poupanças no valor de 64.200€, dos quais 47.000€ foram emprestados ao irmão do réu.
19º O Réu adquiriu, anteriormente ao casamento, no ano de 1993, por escritura pública de compra e venda, o prédio onde se situa o Café ....
20º Para o efeito, socorreu-se de um crédito habitação que, atualmente, tem a prestação mensal de 342,79€.
21º Foi o Réu que, sozinho, e antes do casamento, tratou de todo o processo junto da CMVR para a legalização do café.
22º O réu foi o único responsável pelo pagamento de todas as despesas inerentes a projetos, pedidos de licenciamento e alvará.
23º No ano de 2002, o Réu recebeu 37.409,98 € da transação efetuada no âmbito do proc. nº 295/02, que decorreu no 3º juízo do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.
24º Neste processo esteve em causa um estabelecimento comercial de Café Snack Bar, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Vila da Feira, de que era o Réu proprietário, desde 29 de Abril de 1992, e que tinha sido abusivamente ocupado por outra firma.
25º Estabelecimento comercial, adquirido pelo Réu enquanto solteiro.
26º Após o casamento, e em virtude de ser a única fonte de rendimento, ambos trabalharam no café para garantir a subsistência do casal e, mais tarde, dos seus filhos.
27º O Réu sempre procurou obter patrocínios ou apoios para modernizar, principalmente e no que diz respeito ao mobiliário e aos equipamentos necessários, para o funcionamento do café.
28º Tendo subscrito e assumido um contrato com a marca … para os devidos efeitos.
29º O Réu, após o divórcio, optou por arrendar o estabelecimento comercial, auferindo uma renda mensal de cerca de 450,00 €.
30º No entanto, desde o ano de 2014, que os arrendatários não lhe pagam qualquer valor a título de renda.
31º Os arrendatários têm, para cobrir as rendas em falta, realizado, por sua conta e risco, todas as obras de manutenção e de melhoria necessárias para o bom funcionamento do espaço.”

Mais decidiu julgar não provados os seguintes factos:

“a) Os demais bens adquiridos que compõem o estabelecimento foram pagos já na constância do matrimónio.
b) Foi com o fruto do trabalho de ambos que foram sendo feitas, ao longo do matrimónio, obras de restauro e beneficiação no espaço utilizado.
c) Como foi sendo substituído, ao longo do matrimónio, o equipamento que, adquirido de início, foi ficando obsoleto ou se ia danificando.
d) Bem como foi sendo comprado equipamento novo.
e) Foi o que sucedeu, a título de exemplo, com o revestimento das paredes com madeira, as constantes renovações da pintura, a compra de uma televisão, quadros de parede ou de mesas de maior dimensão para fazer face ao crescente número de pessoas que vinham para almoçar.
f) Ao longo do tempo, fruto do trabalho da Autora, foi servindo cada vez mais refeições, chegando às 80 refeições por dia, acrescido de 30 pequenos almoços.
g) O estabelecimento nunca teve funcionários e só contava com o Réu, nas horas de maior movimento, para servir às mesas.
h) Foi com o esforço, trabalho, simpatia e entrega constante da Autora, sete dias por semana, desde a data da abertura até à dissolução da vida conjugal, sem férias, folgas ou dias de descanso, que o Café ... foi fidelizando uma clientela que lhe permitia ter receitas médias de 12.000€/mês.
i) O réu recebia rendas de valor nunca inferior a 625€/mês, num total de 60.000€.
j) Ao valor do apoio inicial, foram ainda adquiridos, para fazerem parte do estabelecimento comercial, diversos bens e créditos.
k) Como foram sendo feitas obras de conservação e beneficiação.
l) O trabalho desenvolvido, em especial pela Autora, permitiu ao estabelecimento comercial ter uma clientela fiel e constante.
m) À data do divórcio, o estabelecimento comercial tinha um valor de 125.000,00 €.
n) As receitas retiradas do “Café ...” permitiram ao Réu vestir só e apenas roupa de marcas reputadas.
o) Permitiram ao casal comprar, sempre em numerário, mobília de qualidade superior.
p) O réu foi o único responsável pelo pagamento de todas as despesas inerentes às obras necessárias no estabelecimento.
q) A Autora, já antes do casamento, era sustentada pelo Réu, em virtude de não ter qualquer forma de rendimento.
r) O Réu investiu no estabelecimento comercial valores adquiridos enquanto solteiro, pois já era proprietário de um “bom pé-de-meia”.
s) O Projeto de licenciamento do IEFP somente veio compensar os valores investidos pelo Réu, enquanto bens próprios e anteriores ao casamento.
t) No ano de 2002, o Réu fez o investimento do valor de 37.409,98 €.
u) Pelas dificuldades económicas que chegaram a atravessar, viu-se o Réu obrigado, para além de estar no café, a trabalhar na agricultura para daí retirar rendimentos e investi-los no café. “

Para assim decidir, o tribunal expôs a seguinte motivação:

“O Tribunal baseou a sua decisão sobre a matéria de facto no conjunto dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e no seu confronto, bem como no teor dos documentos que constam dos autos.
Assim, a prova testemunhal pouco ajudou à decisão, já que as testemunhas ouvidas não tinham conhecimento direto dos factos em litígio.
A testemunha arrolada pela autora, M. F., disse ser amiga da autora, tendo referido que conheceu o café, que sempre frequentou, afirmando que trabalhava lá a autora. Disse que achava que ao longo do tempo foram feitos melhoramentos, mas acabou por admitir que, na realidade, não sabia descrever remodelações concretas. Como disse também que havia muitos clientes, estando a maior parte das mesas ocupadas, mas não soube precisar quantas pessoas seriam. Acabou por referir que o que sabe é o que a autora lhe contou.
Por sua vez, a testemunha A. N., arrolada pelo réu, disse ser primo deste e conhecer o café que, no entanto, frequentava pouco, não sabendo quem o abriu ou quem fez as obras.
A testemunha C. V., ainda referiu que esteve a explorar o estabelecimento em causa, desde dezembro de 2007 até 2018, mas referiu não saber quem investiu no estabelecimento. Disse que já fez várias obras nesse estabelecimento e que enquanto o explorou tinha uma faturação de cerca de quinhentos euros por dia, mas não sabe dizer qual era o lucro. Referiu que o café se situa numa zona boa, onde trabalha muita gente. Admitiu que deixou de pagar a renda a partir de determinada altura, porque fez obras e porque o réu não celebrou o contrato de cessão de exploração como haviam acordado.
Nada de relevante para a prova dos factos controvertidos, tendo resultado da prova testemunhal, também não foi possível ultrapassar as dúvidas sobre a matéria de facto com base nos depoimentos e declarações de parte da autora e do réu, as quais foram contraditórias quanto aos factos essenciais em causa.
O réu V. M. afirmou, no essencial, que comprou o imóvel onde se situa o estabelecimento em causa e fez as obras do estabelecimento, ainda em solteiro e com dinheiro apenas seu, tal como adquiriu, em solteiro, os equipamentos do estabelecimento, referindo que quando casou, em julho de 1995, o estabelecimento de café estava pronto, embora só começassem a explorar em outubro, porque as licenças demoraram. Disse que após o casamento não foram feitas quaisquer obras no estabelecimento e nunca foi necessário renovar quaisquer equipamentos. Admitiu que trabalhavam os dois no café, mas não sabe precisar a receita média, referindo que resultará da contabilidade. Contudo, disse que a receita foi baixando de ano para ano, até que fecharam o estabelecimento em 2004, tendo sido arrendado durante um ano, em 2006, e depois foi novamente arrendado em dezembro de 2007, mas apenas recebeu rendas até 2012. Insistiu que a compra da casa e as obras do estabelecimento foram pagas com dinheiro seu, que obteve do valor da venda de um estabelecimento comercial que teve no Porto. Insistiu também que ao longo do casamento não foi comprado nada para o estabelecimento, nem foi feita qualquer obra. Disse que o estabelecimento fechou em 2004, porque não dava lucro, tendo o réu e a autora emigrado para a Inglaterra, não tendo voltado a explorar esse estabelecimento.
Já a autora P. C. admitiu que o prédio foi adquirido pelo réu, antes do casamento, com o dinheiro que recebeu do estabelecimento do Porto. Mas, disse que para fazer as obras foi já contraído um empréstimo, em nome de ambos. Quanto ao estabelecimento de café, disse que foi feito um projeto e receberam dinheiro a fundo perdido, em 1994. Mas afirmou que houve um empréstimo para abrir o café, que foi pago com o fruto do trabalho de ambos, no café. Admitiu que fecharam o café, quando ainda estavam casados, porque foram para Inglaterra, mas disse que o café tinha bom rendimento e que nos primeiros anos serviam cerca de oitenta refeições por dia. Admitiu que a licença do estabelecimento foi pedida antes de casar e que o empréstimo para as obras também foi obtido antes do casamento, mas afirmou que foi pago com o rendimento comum, esclarecendo que o Centro de Emprego atribuiu o empréstimo ao réu, em 13 de abril de 1994, mas que foi pago após o casamento e com o rendimento comum. Referiu que o réu arrendou o estabelecimento, e falou sobre os rendimentos do casal. Referiu que fizeram algumas obras, após casados, mencionando a colocação de madeira nas paredes, a aquisição de uma mesa de bilhar, a aquisição de um quadro e de um televisor, bem como cadeiras e mesas, mas não apresentou prova cabal de tais aquisições. Disse que chagaram a ter uma receita de 500 a 600 contos por dia, mencionando o modo de vida que tinham. Contudo, não soube explicar por que motivo, se tinham um rendimento tão elevado, contraíram um empréstimo em 1997, ou por que motivo emigraram para Inglaterra.
Perante as contradições que resultam das declarações de autora e réu, foram considerados os documentos que constam dos autos, bem como a prova pericial realizada.

Foram levados em conta, designadamente, os seguintes documentos:

- O assento de casamento de fls. 8 comprova a data do casamento, bem como do divórcio de autora e réu;
- A certidão de fls. 9 a 39, do processo de inventário, comprova os bens que foram partilhados e o envio das partes para os meios comuns quanto à questão do estabelecimento comercial, sendo relevante a informação que foi prestada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional e que se mostra junta a fls. 28 dos autos, da qual resulta que ao réu foi concedido apoio financeiro no valor de € 25.534,46, sendo € 8.511,49 de subsídio não reembolsável, e € 17.022,97 de empréstimo reembolsável, sendo certo que o documento de fls. 30 verso comprova que tal empréstimo foi reembolsado já na constância do matrimónio, concretamente, entre 29 de abril de 1996 e 24 de novembro de 2000;
- As certidões da Conservatória do Registo Predial de fls. 52 a 53 que comprovam a aquisição pelo réu do prédio onde se situa o estabelecimento comercial em causa, no ano de 1993, ou seja, antes do casamento;
- Cópia de algumas peças do projeto de obras do imóvel, junta a fls. 54 a 61, com pedido em nome do réu, do qual resulta que o pedido teve início em 1993, antes do casamento, embora o alvará sanitário, para exploração do estabelecimento, apenas tenha sido emitido em 20 de setembro de 1995, já após o casamento de autora e réu;
- O contrato com a …, junto a fls. 62 a 66, datado de 20 de junho de 1995, antes do casamento;
- O documento de fls. 67 que comprova que o alvará do estabelecimento em causa foi averbado em nome da testemunha ouvida, que disse ter sido arrendatária do mesmo, desde dezembro de 2007;
- Os contratos de cessão de exploração de fls. 323 verso a 327.
- A documentação fiscal de fls. 109 a 247 e 261 a 304, relativa ao estabelecimento em causa e que serviu de base à perícia realizada nos autos.
Finalmente, foi considerado o relatório pericial que se mostra junto a fls. 333 a 344.
No essencial, desse relatório retira-se que não foi possível indicar o valor do estabelecimento comercial, nomeadamente à data do divórcio, sendo certo que tal estabelecimento tem estado arrendado, pelo menos, desde 2007.
De resto, nada de relevante resulta de tal perícia, tendo em conta o que está em causa nos autos, já que não resulta de quem são os meios utilizados para financiamento do estabelecimento comercial em causa, não revela se houve ou não renovação de equipamentos ou obras, nem sequer permite ter uma ideia exata das receitas médias mensais.
Confrontando a prova documental com as demais provas referidas, o tribunal ficou convencido que a autora contribuiu para o pagamento da quantia recebida pelo réu no âmbito do apoio financeiro que havia conseguido, na parte reembolsável, nada mais tendo resultado da prova quanto à participação da autora, nomeadamente em obras ou aquisição de novos equipamentos, que não se provou terem existido.
Relativamente aos outros factos não provados e não expressamente referidos, nenhuma testemunha revelou ter conhecimento direto dos mesmos, nem existem documentos que os comprovem.”

IV. APRECIAÇÃO

Gira o objecto da causa, e consequentemente deste recurso, em torno da questão de saber se o estabelecimento “Café ...” é, como já fora alegado na petição, um bem comum do extinto casal, pressuposto pacífico que é terem autora e réu sido casados sem convenção antenupcial e, portanto, no regime de comunhão de adquiridos – artºs 1717º e 1721º, CC .

Grosso modo, são considerados bens próprios os que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento – artº 1722º, nº 1, alínea c).

São bens comuns os adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, não exceptuados por lei – artº 1724º, alínea c).

Na regulação, ainda, do que sejam uns e outros em várias hipóteses diversas daquelas, intervêm as restantes normas dos artºs 1722º a 1731º.

A autora, algo imprecisamente, alegara que o estabelecimento foi instalado na “casa de habitação do casal” (não disse a quem pertencia o respectivo imóvel, nem a que título), que foi aberto (sem referir a data) com um financiamento pedido, pelo réu, antes do casamento, mas que a parte reembolsável do mesmo (17.022,97€), tal como os bens daquele componentes, foram adquiridos na constância do casamento. Foi também com o fruto do trabalho de ambos e uma vez já casados que pagaram o comodato de mesas e cadeiras, fizeram obras de conservação, restauro e beneficiação do espaço, substituíram equipamentos obsoletos ou danificados e compraram outros novos. Foi com o trabalho, esforço, simpatia, entrega constantes e sem qualquer descanso da autora que aumentaram e fidelizaram a clientela e foi com as receitas (que chegaram a atingir a média mensal de 12.000,00€) que custearam todas as suas necessidades, individuais e comuns.

Neste contexto, pretende que o estabelecimento é um bem comum (apenas tendo o réu um crédito correspondente ao valor do financiamento não reembolsável que recebeu), nos termos das disposições conjugadas dos artºs 1722º, nº 1, alínea c), e 1726º.

Da primeira das aludidas normas, no entanto, resulta que são considerados bens próprios os adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior, ao passo que a segunda estabelece, no nº 1, que “Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações”, ressalvando-se, porém, a compensação, de acordo com o referido no nº 2.

Tratando-se, no caso, de um estabelecimento comercial e, portanto, de um bem com natureza e características sui generis cuja concepção, formação, nascimento e consequente entrada na titularidade subjectiva de uma pessoa, dada a sua constante dinâmica e evolução lhe conferem feições em constante mutação, fundamental será saber-se quando o mesmo foi criado e adquirido e, para tal, quando se reuniram, tornaram consistentes e ganharam vida os diversos elementos essenciais dele integrantes por forma a conferir-lhe a substância, solidez e definitiva identidade capaz de, enquanto unidade jurídica, lhe dar imagem reconhecível no tráfico mercantil e, assim, de o tornar objecto de relações jurídicas, nomeadamente de ser coisa sobre que incida o direito de propriedade passível de ser adquirido.

Numa palavra, importa fixar em que consiste o estabelecimento comercial, qual o “critério” definidor do mesmo, de modo a que, perante certa realidade, se possa concluir que ele está constituído como um bem a se e apto a ser objecto de negócios jurídicos.

Sabendo-se que o estabelecimento não é o conjunto ou agregado de elementos heterogénos que o integram enquanto incapazes de extravasar um valor objectivo potenciado pela sua unidade e diverso do da sua soma, são nele identificáveis, segundo J. A. Mendes de Almeida [1], “três ordens de valores: «valores externos ou periféricos», valores do «lastro ostensivo» – que têm uma relativa autonomia jurídico-económica em face do próprio estabelecimento, que tanto podem ser valores corpóreos como valores incorpóreos (por ex. uma patente, uma marca, contratos, etc., e desempenham uma função constituinte dos valores de organização e uma função identificante e transportante dos valores de exploração; «valores de organização» e «valores de exploração»; «valores sui generis, que só surgem com o estabelecimento e através dele; e «valores de posição no mercado» - que constituem o núcleo, o cerne, o valor intrínseco do estabelecimento mercantil, que são valores de «confiança pública», «valores de acreditamento diferencial» (ao nível económico), constituídos pela posição – do ponto de vista da repercussão pública, do bom nome e da reputação – que no mercado venha a ocupar o processo produtivo” [2].

Assim, continua o mesmo autor, “feita a análise aos valores necessários e naturais do estabelecimento, poderemos concluir que o estabelecimento existe e, como tal, pode ser negociado, a partir do momento em que os valores do lastro ostensivo (valores materiais e imateriais) e os valores de organização (complementaridade económica, selecção óptima, dimensão óptima e combinação óptima) asseguram já um lugar no mercado que imprime a esse conjunto energia que a torna potencialmente vantajosa. Portanto, só a partir do momento em que surge o valor específico do estabelecimento comercial, que é o valor de acreditamento diferencial ou o valor de posição que se adquire ao nível do mercado, e que diferencia aquele centro produtivo de outros centros produtivos na imagem pública e na memória pública, o estabelecimento mercantil existe como unidade jurídica e, como tal, pode ser objecto de negócios.
O estabelecimento comercial será então, segundo Orlando de Carvalho, «uma organização concreta de factores produtivos como valor de posição no mercado, organização, portanto, que, concreta como é, exige um complexo de elementos ou meios em que a mesma radica e que a tornam reconhecível.
O estabelecimento comercial não surge, assim, ao contrário da obra de engenho, como um bem imaterial puro, visto que, embora não possa reduzir-se a coisa ou coisas materiais, é «incindível de certos elementos externos, não sendo, pois, resolúvel num puro plano organizatório (apesar de consistir em uma organização) ou em meros valores de acreditamento ou de fama – tais como a clientela, a freguesia, etc. (apesar de ser um valor de posição, como se disse)». Será, desta forma, um bem imaterial «encarnado, radicado num lastro material ou corpóreo, que o concretiza e, concretizando-o, o sensibiliza; será, pois, um caso de «incorporalidade sui generis, o que o distingue dos bens incorpóreos puros, como a obra de engenho, objecto do direito de autor – que é a pura ideia inventiva.” [3]

Com a definição daquilo em que consiste o estabelecimento comercial se prende a da determinação do âmbito de entrega em caso de ele ser negociado.

Sabendo-se que tal âmbito se analisa em um máximo, ou em um natural ou, ainda, num mínimo ou necessário, evidentemente que indagar quais os elementos do “lastro ostensivo” que terão se estar presentes para que o negócio se diga incidente sobre um estabelecimento e que, portanto, terão de ser forçosamente transmitidos caso aquele ocorra, constitui tarefa prioritária.

O mesmo acontece quando, como no caso que ora nos ocupa, se pretende saber como e em que momento pode considerar-se constituído o estabelecimento como tal, já como unidade jurídica com valor objectivo diverso do dos elementos integrantes e, portanto, para o efeito que aqui interessa, quando – e logo por quem – foi criado o “Café” enquanto “valor de posição no mercado” e já reconhecível como bem ou coisa negociável e, portanto, em que titularidade (do cônjuge ou do casal?) e património (próprio ou comum?) ele originariamente ingressou.

Como diz, o referido autor [4], “Em suma, para que haja negociação – ou aquisição, diremos nós – sobre a empresa, é necessário que dos elementos do lastro ostensivo, variáveis, designadamente, em função da empresa e do ramo de comércio em que ela se situa, sejam transmitidos, pelo menos, aqueles que sejam aptos a exprimir a «organização no seu conjunto».
O âmbito necessário ou mínimo do estabelecimento como valor negociável pressupõe, pois, a presença de um conjunto de elementos adequado a projectar no público a imagem da empresa – a projectar os «valores de organização e de exploração que verdadeiramente indiciam o estabelecimento como bem».”

O problema é que este “âmbito mínimo” só em concreto pode ser determinável, dada a panóplia de tipos de estabelecimento possíveis e a diversidade de negócios realizáveis.

“Não sendo o «âmbito necessário» definível como num conjunto fixo de elementos, o seu elenco varia, ou pode variar, de caso para caso – os elementos do «âmbito mínimo» poderão ser quaisquer uns, desde que susceptíveis de sensibilizar e exprimir o «valor de posição no mercado» que a empresa representa.
[…]
A priori é muito difícil definir quais os elementos necessários para que um dado «tipo de comércio» se possa afirmar como tal. Não obstante, a tipologia do estabelecimento, pelas indicações que pode fornecer, deverá ser o primeiro factor a ter em consideração. Importará então verificar: se estamos perante uma produção de bens ou de serviços, que tipo de bens se produzem, se é um estabelecimento que se localiza num único lugar ou em vários lugares (cidades ou países), o tipo de comércio desenvolvido (se é uma actividade sedentária ou se é uma actividade ambulante), o tipo de ligação com o público (se desenvolve uma clientela determinada por motivos objectivos ou também por factores subjectivos), se é um estabelecimento a que possamos chamar um valor mais objectivo ou mais subjectivo, se é um estabelecimento pessoal ou impessoal, ou ainda, se é um estabelecimento autónomo ou vinculado.” [5]

No mesmo sentido se pronunciou o Prof. Ferrer Correia [6]. Efectivamente, num caso que correu em juízo, em que se discutia se um negócio sobre um Campo de Golf, que ainda não tinha entrado em funcionamento, era um contrato de arrendamento de prédio rústico ou uma cessão de estabelecimento comercial e em que, para fundamentar a existência deste, constituía pressuposto imprescindível demonstrar que a realidade subsistente e alvo da cedência era algo mais e diverso, na sua perspectiva unitária, do que um simples terreno com relva e já um todo organizado como valor de posição de mercado, considerou que o momento da criação de um tal estabelecimento não dependia da sua entrada em funcionamento [7].

Ponto é que ele já existisse mesmo, ainda que minimamente.

“A entrada em funcionamento de uma dada organização não pode, pois, ser erigida em critério de reconhecimento dessa organização como estabelecimento comercial ou industrial.
[…]
Para se qualificar como estabelecimento comercial determinada organização, não é forçoso que estejam presentes todos os elementos que hão-de concorrer para o seu eficaz e perfeito funcionamento. Bastará que se encontrem reunidos os elementos essenciais que individualizam e dão consistência ao estabelecimento (…) – que seja reconhecido o núcleo essencial do estabelecimento mercantil, o qual traduz a sua capacidade lucrativa ou o seu aviamento.
Tudo dependerá, pois, de saber quais sejam esses elementos fundamentais. A este propósito não será viável formular um critério geral que permita reconhecer um estabelecimento pela presença de certos e determinados componentes. Com efeito, grande é a variedade de estabelecimentos que a prática oferece, pelo que o referido núcleo essencial não apresentará sempre a mesma composição, variando em função do ramo de comércio ou indústria, da dimensão da empresa, etc., etc.”.

Tendo o réu alegado que instalou o Café num imóvel que ele próprio comprou, antes do casamento, a crédito, que antes disso e sozinho tratou de todo o processo camarário para o legalizar, pagou todas as despesas de obras, projecto, licenças e alvará com dinheiro seu, que tinha de solteiro (até porque a autora não auferia quaisquer rendimentos), que nele investiu 37.409,98€ recebidos em 2002 de um transacção judicial relativa ao litígio sobre um outro Café de que também já era dono e que foi com trabalho seu e outros apoios de terceiros que assegurou o funcionamento e modernização do Café aqui em causa, dadas as dificuldades por que ambos passaram, e, portanto, que já tinha o estabelecimento antes de se consorciar com a autora, importará, no quadro exposto, discernir se o estabelecimento efectivamente já existia ou não, isto é, se estavam ou não reunidos os elementos essenciais organizativos capazes de o erigir em valor de posição no mercado fruto da decisão e actuação do réu, em solteiro (se dele já era titular ou não ao tempo da celebração do casamento) ou se o mesmo foi “adquirido” (rectius: constituído) só depois.

Vamos, então, aos temas do recurso.

Matéria de facto

Impugna a autora a decisão da matéria de facto quanto às alíneas b) a h), j) a l), n) e o) do elenco dos factos julgados não provados, pretendendo que este Tribunal os declare todos como provados.

Esses pontos respeitam, em suma, a alegadas obras de beneficiação e restauro, substituição e compra de equipamento, aquisição de bens e créditos e à sua própria participação e contribuição para a execução e prestação dos serviços do Café, na angariação de clientela e, enfim, na obtenção das receitas crescentes que fizeram ascender o valor do estabelecimento e com que faziam face às suas necessidades.

A impugnação observa, suficientemente, os requisitos exigidos no artº 640º, do CPC.

Ora, como resulta da transcrição da motivação acima feita, o tribunal a quo considerou que a prova testemunhal produzida “pouco ajudou à decisão, já que as testemunhas ouvidas não tinham conhecimento directo dos factos” e que “nada de relevante” dela resultou, pelo que “não foi possível ultrapassar as dúvidas sobre a matéria de facto”, o mesmo sucedendo em face do depoimento de cada uma das partes.

Quanto àquelas (uma, apenas, da autora e duas do réu), referiu, sobretudo, a sua ignorância sobre a matéria controvertida em discussão. E, quanto a estas, acentuou as respectivas contradições (reflexo, obviamente, do choque de interesses que propulsiona a sua parcialidade).

De resto, valeu-se daquilo que a prova documental junta mostra, da completa falência da perícia e, enfim, concluiu que “o tribunal ficou convencido que a autora contribuiu para o pagamento da quantia recebida pelo réu no âmbito do apoio financeiro que havia conseguido, na parte reembolsável, nada mais tendo resultado da prova quanto à participação da autora, nomeadamente em obras ou aquisição de novos equipamentos, que não se provou terem existido”, sendo que nos pontos provados espelhou alguma daquela contribuição em conformidade com aquele convencimento.

Em face disso, a recorrente, para fundamentar a sua impugnação e consequente alteração no sentido preconizado da decisão proferida sobre os referidos pontos, argumentou que esta “resulta do conjunto da prova acareada [8] para o processo, designadamente o depoimento de parte do R., as declarações de parte da A. e o depoimento prestado pelas testemunhas, cujas passagens infra se citam.” Bem assim, os elementos recortados de alguns documentos juntos.

Por referência a cada um daqueles, indicou os segmentos do respectivo depoimento gravado e salientou aquilo que, em seu entender, deles se extrai a propósito a respeito dos pontos questionados. Do mesmo passo, quanto à restante prova, enfatizou as compras, o modo de vida do réu e a existência de conta bancária.

Sobrevalorizando o teor do seu (dela) próprio depoimento, concluiu, pois, que “Em resumo, demonstram o conjunto de provas elencadas que os rendimentos do casal, auferidos em exclusivo com a exploração do café, foram muito superiores àquelas que o R. veio defender. Mais fica demonstrado à saciedade que o recorrente não declarava os seus rendimentos reais porquanto só o valor dos bens e das poupanças comprovadas nos autos não são compatíveis com os baixos rendimentos de um empresário inserido no regime simplificado de tributação”.

Sucede que, em confronto com a substância da motivação expendida pelo tribunal recorrido na qual avulta a sua análise crítica dos meios de prova, mormente quanto à sua razão de ciência, valor, credibilidade e consequente grau de convencimento (ou não), é notória a claudicação dos argumentos da recorrente, na medida em que extrai e salienta de cada meio aspectos que julga relevantes e por si demonstrativos da sua tese, mas escusa-se de os analisar, de um ponto de vista crítico, não fazendo a sua incisiva apreciação e valorização criteriosa em termos de merecimento e consequente força probatória, sobretudo em confronto com a desenvolvida e exposta na sentença, de modo a por esta em causa e convencer nela existir erro de julgamento carente de correcção.

Ainda assim, procedemos à análise de toda a documentação junta aos autos e ouvimos toda a prova oral gravada – que não, apenas, os segmentos dispersos e descontextualizados apontados.

Em função dela e do apreço e valoração que lhe atribuímos nos convencemos que nenhum erro existe merecedor de ser corrigido.

Com efeito, no segmento indicado pela recorrente a respeito do depoimento do réu, mais não disse ele senão que “fomos os dois” que (após a montagem em solteiro e abertura meses depois de casados quando foram obtidas as licenças) trabalharam no Café. Nada disse quanto a terem tido ou não funcionários ou a fazerem-no ou não em exclusivo (aliás, a autora narrou que, nos primeiros dois anos, tiveram empregados). De resto, todo o depoimento foi no sentido de que o estabelecimento foi instalado num imóvel seu para o efeito adquirido e remodelado, todo ele equipado, apetrechado e aprontado para funcionar, incluindo com a celebração de contrato de fornecimento de café e obtenção de correspondente contrapartida financeira da …, ainda em solteiro e com meios próprios, negando a realização de obras posteriores ao casamento, aquisição de equipamentos, dizendo ser mentira o que a autora a esse respeito alega. Aliás, referiu que o rendimento dava só para ambos viverem, que ele foi decrescendo (até porque abriram outros concorrentes) até que fecharam e emigraram.

Por sua vez, a autora, nas suas declarações, além de titubear, de não saber, apenas achar ou de não recordar, nada mais de credível acrescentou quanto aos pontos de facto questionados, mormente nos segmentos indicados, que não tenha sido já contemplado no elenco dos factos provados (v.g., pontos 5, 6, 9, 13 e 16). Acentuou, na verdade, que sempre trabalhou no Café, como cozinheira e no balcão, tal como o marido, que servia as refeições ao almoço e as confeccionava e lá ficava à noite, apenas tendo tido empregados nos dois primeiros anos. Ao dizer que, “para fazer as obras” contraíram um empréstimo quando “já estávamos casados” (o que não é verdade), que servia 80 refeições (o que é impossível que fizesse sozinha) e que realizavam “bastante dinheiro” de receita, na ordem dos “500/600 contos” (!) por dia (valor objectivamente inacreditável, incompatível com a alegação de que, já casados, precisaram de contrair um outro empréstimo e, bem assim, com o fecho e abandono do estabelecimento e emigração de ambos para a Inglaterra), a autora não contribuiu para se credibilizar, não nos parecendo que, contrariamente ao alegado no recurso, o seu depoimento “não deixa dúvidas” e que “só a versão dela permite justificar as poupanças e bens adquiridos”. De todo o modo, quanto a obras, substituições e aquisições, nada mais de concretamente significativo e credível descreveu para lá do que já está compreendido na matéria provada (v.g., pontos 7 e 16), assim corroborando, no fundo, a tese do réu no sentido de que o estabelecimento estava pronto a funcionar já antes de casados (apenas faltando as licenças, motivo porque só abriu três meses depois disso), sendo pontuais, mas de todo o modo não documentadas nem justificadas, muito menos avaliadas, por outros meios de prova, algumas alterações referidas (pintura, forragem a madeira de parte do espaço, colocação de um quadro, aquisição de uma televisão, substituição de parte das mesas e cadeiras e montagem de ar condicionado).

De resto, como bem se diz e, afinal, a recorrente não põe em causa, a demais prova produzida, seja a documental, seja a dos dois depoimentos de M. F. e de C. V., maxime nos segmentos discriminados, e de A. N., ou, ainda, a pericial (e respectivos esclarecimentos prestados na audiência), em nada abalam a motivação quanto a eles exposta pelo tribunal recorrido e efeitos a partir dela extraídos, muito menos corroboram a versão que a autora, com a alteração dos pontos especificados, pretendeu demonstrar, mormente, ao contrário do que ela concluiu e resumiu quanto aos rendimentos, já que especialmente quanto à matéria naqueles incluída acabou por nem sequer especificar onde e como encontra elementos convincentes das obras, substituições, aquisições.

Pelo que o recurso, nesta parte, não merece provimento e deverá ser julgado improcedente.

Sem embargo e ao abrigo do disposto no artº 662º, CPC, importa, mesmo oficiosamente, suprir algumas patentes deficiências na matéria de facto provada, afinal até considerada na sentença e não questionada mas ali não vertida de forma integral e precisa.

Assim, relativamente ao ponto provado nº 1, importa corrigir a data do casamento (que, de acordo com o Assento nº 132 junto, ocorreu em 08 e não em 07 de Julho de 1995) e acrescentar um facto primordial (considerado na sentença, aliás pacífico e naquele documento claramente expresso mas não vertido no elenco dos factos provados), ou seja, o de que autora e réu casaram sem convenção antenupcial. [9]

No ponto 3º, importa precisar, para evitar equívocos, que o imóvel em que o Café foi instalado, ainda que tenha sido habitação do casal, é propriedade do réu, por o ter adquirido em 1993, conforme documentos juntos e, aliás, pacífico entre as partes, e também provado no ponto que na sentença tinha o nº 19.

Nos pontos 4º, 21º e 22º, interessa precisar e aditar a data da abertura do Café, bem como, segundo documentos juntos, os termos e data do financiamento pelo réu obtido, antes de casar, para a sua instalação e montagem, bem como explicitar que o mesmo já se encontrava pronto a funcionar em Maio de 1995, quando foi requerida a Vistoria, tanto mais que, como também referiu aquele no seu depoimento e resulta, afinal, de todo a prova produzida concatenada, que a autora não contesta e implicitamente até reconhece, tomando-se por certo, ainda, aliás também em função dos documentos juntos, que em Junho já ele celebrou com a … contrato de fornecimento de café e desta recebeu como contrapartida do respectivo exclusivo a quantia de 600 contos, naturalmente aplicada no seu equipamento.

Clarificando-se, harmonizando-se e complementando-se, assim, alguns pontos, sempre em função da prova produzida, aproveita-se para reordenar, em termos de sequência lógica e histórica, a factualidade assente.

Posto isto, o elenco dos factos provados a tomar em conta será o seguinte:

1º A autora contraiu casamento com o réu, sem convenção antenupcial, em 08/07/1995 e, por sentença de 24/04/2007, foi decretado o seu divórcio.
2º Por não se terem entendido quanto aos termos como deveria ser feita a partilha do património comum, instaurou aquela um processo de Inventário que correu seus termos com o nº 2143/06.3TBVRL-A, do extinto 3º Juízo do Tribunal da Comarca de Vila Real.
3º Nesses autos, apresentada a relação de bens pelo réu (cabeça de casal), veio a mesma (autora) a deduzir a competente reclamação, designadamente para que fosse incluído um estabelecimento comercial denominado “Café ...”, composto de mesas, balcão, máquinas de café e de jogos e bilhares, instalado no r/c de um imóvel cuja propriedade o réu adquirira em 1993 e onde, depois, o casal teve a sua casa de habitação.
4º Notificado o réu de tal reclamação no inventário, respondeu ele que o estabelecimento comercial em questão era um bem próprio.
5º Instruído e julgado ali tal incidente, foi decidido relegar para os meios comuns a discussão sobe a natureza própria ou comum do bem.
6º O aludido Café entrou em funcionamento e abriu portas ao público em Outubro de 1995, apesar de já se encontrar pronto e equipado em Junho de 1995, por só em 20 de Setembro terem sido emitidas as licenças necessárias, apesar de já pedida a Vistoria em Maio anterior.
7º As obras de adaptação do edifício e de aquisição e montagem do respectivo recheio, para aquele fim, foram feitas com recurso a um financiamento pedido ao Instituto de Emprego pedido pelo réu, ainda solteiro, e a este concedido em 13-04-1994, no montante global de 25.534,46€, sendo 8.511,49€ a título de subsídio não reembolsável e a diferença de 17.022,97€ a título de empréstimo e, ainda, com o valor (600 contos, na moeda de então) atribuído pela … mediante contrato de fornecimento exclusivo de café celebrado em Junho de 1995.
8º Financiamento aquele (a parte reembolsável ao Instituto de Emprego) que foi pago por ele, já na constância do matrimónio, com o produto obtido do trabalho de ambos, autora e réu, no Café, em prestações, entre 29-04-1996 e 24-11-2000.
9º O Réu adquirira, anteriormente ao casamento, no ano de 1993, por escritura pública de compra e venda, o prédio onde se situa o Café ....
10º Para o efeito, socorreu-se de um crédito à habitação que, actualmente, tem a prestação mensal de 342,79€.
11º. Foi o réu que, sozinho, e antes do casamento, tratou de todo o processo junto da CMVR (Câmara de Vila Real) para a legalização do café, bem como das obras de adaptação do espaço do rés-do-chão do imóvel, aquisição do equipamento necessário e celebração do contrato de fornecimento do café com a ....
12º Assim como foi o réu que pagou, com o dinheiro obtido dos aludidos financiamentos, todas as despesas inerentes a obras, equipamentos, projectos, pedidos de licenciamento e alvará.
13º Assim como foi com o fruto do trabalho de ambos que foi assegurado o comodato das cadeiras ou as mesas que, já no decurso da exploração e fruto do aumento de clientela, resolveram ambos substituir.
14º O estabelecimento comercial é composto de 3 salas e 4 casas de banho, e nele, inicialmente, além do Café e outras bebidas, eram servidos petiscos e, só mais tarde, refeições, tendo também um salão de jogos.
15º A Autora sempre trabalhou, durante a constância do matrimónio, a tempo inteiro e em exclusividade, no citado café e restaurante.
16º O Réu continua a ser, nos últimos 8 anos a esta parte, o único beneficiário do estabelecimento, auferindo uma renda pela cessão de exploração que recebe por inteiro.
17º Era através da exploração do estabelecimento comercial “Café ...” que Autora e Réu auferiam os rendimentos necessário a fazer face às suas despesas.
18º Como única fonte de receita e trabalho que ambos tinham.
19º As receitas retiradas do estabelecimento comercial permitiram ao casal realizar várias obras no interior da casa, designadamente a instalação de um sistema de aquecimento central.
20º Em 1997, a pronto e com dinheiro, o réu adquiriu uma viatura automóvel marca OPEL, modelo “FRONTERA”, pelo qual pagou 4.476.000$00 (a que equivaleriam 22.325,75€).
21º Em abril de 2007, o casal tinha poupanças no valor de 64.200€, dos quais 47.000€ foram emprestados ao irmão do réu.
22º No ano de 2002, o Réu recebeu 37.409,98 € da transação efetuada no âmbito do proc. nº 295/02, que decorreu no 3º juízo do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.
23º Neste processo esteve em causa um estabelecimento comercial de Café Snack Bar, sito em ..., freguesia de ..., concelho de Vila da Feira, de que era o Réu proprietário, desde 29 de Abril de 1992, e que tinha sido abusivamente ocupado por outra firma.
24º Estabelecimento comercial, adquirido pelo Réu enquanto solteiro.
25º Após o casamento, e em virtude de ser a única fonte de rendimento, ambos trabalharam no café para garantir a subsistência do casal e, mais tarde, dos seus filhos.
26º O Réu sempre procurou obter patrocínios ou apoios para modernizar, principalmente e no que diz respeito ao mobiliário e aos equipamentos necessários, para o funcionamento do café, como foi o caso do aludido contrato com a ....
27º O Réu, após o divórcio, optou por arrendar o estabelecimento comercial, auferindo uma renda mensal de cerca de 450,00 €.
28º No entanto, desde o ano de 2014, que os arrendatários não lhe pagam qualquer valor a título de renda.
29º Os arrendatários têm, para cobrir as rendas em falta, realizado, por sua conta e risco, todas as obras de manutenção e de melhoria necessárias para o bom funcionamento do espaço.

Matéria de Direito

Sobre o caso concreto e com interesse relativamente às questões litigiosas a decidir, referiu-se na sentença:

“Autora e réu casaram um com o outro, no dia 7 de julho de 1995, tendo sido decretado o seu divórcio por decisão de 24 de abril de 2007, transitada em julgado em 7 de maio de 2007, casamento celebrado sem convenção antenupcial e, por isso, sob o regime da comunhão de adquiridos.
A questão controvertida, essencial, que cabe dirimir nos autos, tendo em conta os pedidos formulados pela autora, prende-se com saber se o estabelecimento comercial denominado “Café ...” é um bem comum do casal ou, pelo contrário, é bem pessoal do réu, por o ter adquirido/construído antes do casamento.
[…]
Esta questão da distinção entre bens comuns e bens próprios de cada um dos cônjuges, no regime da comunhão de adquiridos, afigura-se de especial relevância, tendo em conta que o imóvel onde se situa o estabelecimento comercial em causa, foi adquirido pelo réu, em data anterior ao casamento e está a ser pago o respetivo empréstimo contraído para o efeito, pelo réu, como resulta da documentação junta aos autos e, aliás, é admitido pela autora.
Está também provado e foi admitido pela autora, que para a construção do estabelecimento comercial em causa foi apresentado um projeto junto do IEFP, pelo autor, antes do casamento, o qual foi aprovado, tendo sido concedido um apoio financeiro, em data também anterior ao casamento (em 13 de abril de 1994, como resulta do documento de fls. 28 dos autos).
Por outro lado, o estabelecimento comercial estava pronto quando autora e réu se casaram, embora apenas tenha começado a funcionar ao público após o casamento, data em que foi concedida a licença para o efeito.
Desta factualidade temos de concluir que o estabelecimento comercial em litígio é um bem próprio do réu, adquirido enquanto solteiro, já na sua posse e propriedade quando se casou com a autora.
Não sendo um bem comum, improcede, desde logo, o primeiro dos pedidos formulados pela autora, de condenação do réu a reconhecer que tal estabelecimento faz parte do património comum do casal. “

Não tendo a recorrente obtido êxito na alteração da matéria de facto, tendo em conta tudo quanto ficou provado e à luz das considerações que inicialmente se deixaram exaradas sobre o momento de criação ou constituição do estabelecimento comercial e sua entrada na titularidade e património do réu, não há dúvida que ele já o tinha antes do casamento, independentemente do que, com a contribuição da autora, esta lhe aportou depois, nomeadamente para o pagamento do financiamento.

Com efeito, os factos mostram que ele, já entrosado no ramo (tivera outro Café antes), em edifício próprio que disponibilizou e afectou àquela actividade comercial, projectou e efectuou as obras de adaptação necessárias, equipou-o, tratou e obteve o licenciamento, contratou o fornecimento do Café, por si e com os meios próprios que tinha e obteve tendo suportado as respectivas despesas.

Só não o abriu e iniciou a exploração antes do casamento porque o alvará demorou apenas em Setembro lhe foi entregue, apesar da Vistoria requerida em Maio.

Cremos indubitável que, mesmo sem ainda funcionar, do conjunto de elementos por ele e à custa dele agregados antes do casamento já emanava um valor distinto objectivo e próprio, diverso do da sua soma, como valor de posição de mercado, apto a ser negociado e, portanto, a ingressar, como ingressou, logo nessa altura, na sua titularidade e património.

Ainda que se considere, assim, o estabelecimento apenas com a fisionomia própria de “âmbito mínimo” e que a autora, com a sua prestação e no âmbito do casamento, lhe aportou elementos (laborais ou outros) que implicaram a expansão daquele e, por isso, a sua potencialidade produtiva e inerente rentabilidade – problema e soluções que extravasam o objecto deste processo tal como delineado pela autora –, o certo é que o réu já o tinha em solteiro.

Daí que é inevitável corroborar a sentença na sua conclusão de que o Café é um bem próprio do réu e não comum.

Não se provou o seu valor à data do divórcio, questão que, desse modo e face à improcedência do primeiro pedido, perdeu interesse.

Como acrescentou o tribunal a quo:

“E não fazendo o estabelecimento parte do património comum do casal, nem sequer terá a autora interesse em provar o valor do estabelecimento à data da produção dos efeitos do divórcio, como também pede que se declare.
O interesse da autora, neste caso, será antes de provar em que medida contribuiu para o pagamento do apoio concedido ao réu sob a forma de empréstimo reembolsável e com realização de benfeitorias e aquisição de equipamentos, o que, contudo, não pede nesta ação.
Voltando aos pedidos formulados pela autora, nomeadamente que se declare que o valor do estabelecimento comercial era de € 125.000,00, cabia-lhe, como facto essencial para a procedência da sua pretensão, o ónus da prova de tal valor, nos termos do disposto no art. 342º, nº 1 do Código Civil, prova que, contudo, não logrou fazer, pelo que, sem necessidade de outras considerações, improcede também esta parte do pedido.
Finalmente, pretende a autora, se bem se entende, que se declare que o estabelecimento comercial em causa esteve locado nos últimos oito anos, que o réu recebeu valor nunca inferior a € 60.000,00 a título de rendas e que esse valor faz parte do património comum do casal.
Ora, que o estabelecimento esteve locado, o réu admite, pelo que nada impede que se declare tal facto.
Já o valor que o réu recebeu a título de rendas, não se provou.
E finalmente, não pode declarar-se que o valor recebido faz parte do património comum do casal, já que sendo o estabelecimento comercial um bem próprio do réu, como se decidiu supra, os respetivos frutos também o serão, uma vez que dizem respeito a um período após o divórcio do casal, pelo que também improcede este pedido.”

Certo que, no recurso, a autora, subsidiariamente e para a hipótese de se manter inalterada a matéria de facto, defende, entretecida em considerações e citações de jurisprudência sobre a natureza do estabelecimento comercial enquanto unidade jurídica e objecto de negócios jurídicos, que, atento o facto da participação dela no aviamento do estabelecimento e designadamente na contribuição com o seu trabalho para a obtenção de liquidez para pagamento do financiamento obtido pelo réu, que “será de concluir que aquele bem é composto por bens, coisas, adquiridas, em parte, com dinheiro próprio do recorrido, em parte com dinheiro comum do casal” e que, portanto, “atento o valor residual da parte composta de bens próprias do recorrido, face à maior percentagem do valor comum do casal, deverá ser proferida decisão que, nos termos do disposto no artº 1726º, do CC, declare que o bem é um bem comum do casal”.

Trata-se de uma afirmação mais baseada em crença pessoal do que em fundamentos de facto e de direito.

Sucede, na verdade, que tal norma pressupõe que tal bem tenha sido adquirido em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns e só em função disso dispõe que ele revestirá então a natureza da mais valiosa das prestações.

Ora, ele foi adquirido, pelo réu, como se viu, antes do casamento, não na constância deste.

Além disso, ignora-se – até porque nesse sentido muito deficientemente alegado e nada provado, uma vez que a acção foi norteada para a defesa de que se tratava de bem comum mais do que de bem adquirido em comparticipação – qual a parte, ou melhor, com que valor contribuiu um e outro para o posterior desenvolvimento e afirmação do estabelecimento, ainda que já não para a sua criação e aquisição.

Sendo peregrina (e até algo desfasada) a tese de que, não se provando isso, deve ser relegado para execução de sentença “por falta de elementos do valor concreto do bem em causa” a prova do “valor que o estabelecimento comercial tinha à data do divórcio”, uma vez que não é este (ou não é só este) que está em causa, que o incidente não quadra com a estrutura desta acção como objectivamente definida pela sua causa de pedir e pelo pedido e que tal solução é aqui inaplicável, é evidente que tal pretensão deve improceder.

Assim como a de que o réu deve ser condenado a pagar-lhe metade das rendas, uma vez que o pressuposto de tal pedido – o de que o Café é um bem comum – não foi demonstrado.

Termos em que deve julgar-se totalmente improcedente o recurso e confirmar-se, deste modo, a decisão recorrida.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente, sem prejuízo do apoio – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 23 de Janeiro de 2020
Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
Adjuntos: Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Eduardo José Oliveira Azevedo


1. Negociação e Reivindicação do Estabelecimento Comercial, Parte I, Negociação do Estabelecimento e Âmbito de Entrega, Almedina, 1993, página 21.
2. Valores que fazem com que, mesmo quando o conjunto ainda não se encontra em laboração e, portanto, enquanto o estabelecimento não funciona como tal, já existe um “valor de posição no mercado” diverso do do agregado dos elementos que o compõe e que já lhe conferem feição identificativa e o tornam objecto de negociação – ob. citada, páginas 17 a 21.
3. O autor que se vem citando segue de perto as obras magistrais do Prof. Orlando de Carvalho: Direito das Coisas (Do Direito das Coisas em Geral), Centelha, Coimbra, 1977, e Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial I, O Problema da Empresa como Objecto de Negócios, Atlântida Editora, Coimbra, 1977.
4. Ob. cit., página 32.
5. Ob. citada, páginas 35 a 37.
6. Parecer publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 47, páginas 785 a 820.
7. Parecer referido, página 798 e sgs., em que cita, no mesmo sentido, Barbosa de Magalhães, Orlando de Carvalho, Vasco Lobo Xavier, entre autores nacionais e estrangeiros.
8. Supomos que tenha querido dizer “carreada”.
9. Note-se que, na motivação e na fundamentação de direito, o tribunal recorrido dá como assentes e considera relevantes factos (relativos à falta de convenção antenupcial – e consequente regime de bens –, ao financiamento, ao projecto e pedido de licenças, ao alvará, ao contrato com a …, e ainda, de que “o estabelecimento comercial estava pronto quando autora e réu se casaram”) sem os ter expressamente incluído entre aqueles que considerou no elenco dos provados.