Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2381/14.0T8GMR-F.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) No caso da alínea b) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, estão em causa informações falsas ou incompletas que o devedor forneceu nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
2) Em tal situação é necessário que as informações tenham sido fornecidas por escrito, com dolo ou culpa grave (por razões de segurança jurídica), e que essas informações sejam relativas às suas circunstâncias económicas «com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza»
Decisão Texto Integral: Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2º Adjunto: Desembargador Joaquim Espinheira Baltar
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
A) Teresa F veio apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante, nos termos do seu requerimento de fls. 4 e seguintes, onde conclui requerendo que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, decretada a insolvência da requerente, com carácter pleno, por a mesma não dispor de meios ou bens suficientes para fazer face às suas obrigações e que seja deferido o pedido de exoneração do passivo restante, por preencher os respetivos requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas.
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B) Foi proferido despacho em que se indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
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C) Inconformada com esta decisão, veio a insolvente Teresa F interpor o presente recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo (fls. 24).
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Nas suas alegações, a apelante Teresa F formula as seguintes conclusões:
1. A decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante com base na al. b), do nº 1, do art. 238º do CIRE exige a atuação com dolo ou culpa grave na prestação de informações;
2. De toda a atuação da devedora não resultou nenhum prejuízo para os credores e muito menos para o credor António S, pois era este quem geria de facto o estabelecimento;
3. Como se informou anteriormente os presentes autos, a devedora é estudante, e o estabelecimento comercial era gerido pelo seu namorado à data, sendo este quem tinha pleno conhecimento do rendimento que a devedora tinha com o estabelecimento.
4. Existe má-fé quando o credor António S, alega que não sabia da situação económica da devedora, pois era este que fazia as encomendas para o estabelecimento comercial, era este que fazia os pagamentos, era este quem pagava os salários dos trabalhadores, tendo sido este credor quem negociou o contrato promessa de trespasse, sendo que a insolvente apenas o assinou;
5. A devedora era uma mera "testa de ferro" na exploração do estabelecimento, merecendo uma nova oportunidade, querendo pagar os seus créditos no período da exoneração;
6. Por outro lado, o contrato promessa de trespasse foi celebrado pela devedora e pelo seu companheiro na altura, sendo que este não o assinou atenta a sua qualidade de GNR, estando impossibilitado de o fazer, atento o seu estatuto profissional;
7. Não pode, agora, enquanto credor vir alegar que foi "enganado";
8. A previsão da aI. b) do nº 1 do 238º do CIRE tem em vista casos em que o devedor tenha agido com dolo para manipular os acordos com os credores, o que in casu não sucede, pois desde o início do negócio que o credor sabia de todos os pormenores do negócio, e sabia muito mais que a devedora, que atenta a sua idade e a ausência do estabelecimento comercial, confiou e acreditou na pessoa que o geria e que lhe tratava de todos os assuntos relacionados com o negócio;
9. Apesar de a insolvente não ter consciência do que ficou consignado na ata referida no ponto 8, tal não significa que, automática e necessariamente, com aquela conduta agravou o seu passivo e que causou um prejuízo efetivo aos credores;
10. Não se encontra, nos factos apurados, um comportamento da insolvente que tenha causado um prejuízo efetivo aos credores;
11. A realidade dada como provada é insuficiente para que dela se extraia tal conclusão;
12. Em vista do explanado, entendemos que não se mostra preenchido o pressuposto previsto na al. b) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, devendo, por isso, ser revogada a decisão recorrida, que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela apelada;
13. Pelo que, ao decidir como decidiu, fez o Mm" Juiz" a quo" errada interpretação e aplicação, entre outros, do disposto no art. 238º, nº 1, al, b) do CIRE.
Termina entendendo dever o despacho em crise ser revogado e ordenada a sua substituição por despacho que receba liminarmente o pedido formulado, seguindo-se os demais trâmites legais.
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D) Não foi apresentada resposta.
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E) Foram colhidos os vistos legais.
F) A questão a decidir neste recurso é a de saber se deverá ser alterada a decisão que indeferiu liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Consideram-se provados os seguintes factos:
1. A insolvente Teresa F nasceu a 10/05/1987 e não tem antecedentes criminais (cfr. Fls. 56 e 58).
2. A insolvente trabalha atualmente na sociedade "A, Lda.", onde exerce funções como "operadora de telemarketing" e aufere um rendimento mensal bruto no valor de €550,00.
3. Os créditos de que a insolvente se tomou incumpridora encontram-se elencados a fls. 121 dando-se essa lista aqui por reproduzida.
5. Foram apreendidos para a massa insolvente os bens referidos a fls. 151.
6. A insolvente tem despesas mensais correntes como alimentação, vestuário e deslocações cerca de €250,00 mensais.
7. No âmbito de acordo homologado judicialmente no processo na 6866/14.0YIPRT além do pagamento em prestações ficou acordado que caso a insolvente conseguisse o trespasse do seu estabelecimento comercial efetuaria o pagamento do valor que estivesse em dívida.
8. Mas a insolvente não era proprietária desse estabelecimento comercial, era apenas titular de um contrato-promessa de trespasse pelo qual se encontrava a amortizar a quantia acordada pelo negócio celebrado, contudo desde dezembro de 2013 que a insolvente não pagava as prestações acordadas ao proprietário.
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A apelante entende que deverá ser revogado o despacho recorrido e admitido liminarmente o pedido formulado de exoneração do passivo restante.
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Quanto às questões propriamente jurídicas, conforme se escreveu no Acórdão desta Relação de 12/10/2010, proferido na Apelação nº 2495/09.8TBBRG.G1, “no caso de se tratar de uma pessoa singular é possível a concessão da exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste - artigo 235º do CIRE.
Trata-se da liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente, como referem os Drs. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, a páginas 778.
O pedido de exoneração do passivo restante é feito na petição inicial de apresentação à insolvência pelo devedor ou, se a iniciativa de apresentação à insolvência não for deste, no prazo de 10 dias posteriores à sua citação (artigo 236º nº 1 CIRE).
Importa notar que nos termos do disposto no artigo 18º nº 1 do CIRE, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la, pressupondo, a concessão efetiva da exoneração, que não seja aprovado e homologado um plano de insolvência.
Por força do disposto no artigo 3º nº 1 do CIRE, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
O fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante constante do artigo 238º nº 1 alínea b) do CIRE pressupõe que o devedor, com dolo ou culpa grave, tenha fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.
Como refere a Dra. Assunção Cristas (in Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição especial, Novo Direito da Insolvência, pp. 165-182) a páginas 169, citada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/05/2010 (relatado pela Exª Desembargadora Isabel Fonseca), disponível no endereço www.dgsi.pt, “o procedimento de exoneração do passivo restante comporta dois momentos fundamentais, a saber, o despacho inicial e o despacho de exoneração.
Por contraponto ao despacho inicial vem o despacho de indeferimento liminar, sendo que “o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz.
O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos.
Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. (…)
É neste momento inicial de obtenção do despacho inicial de acolhimento do pedido de exoneração que há porventura os requisitos mais apertados a preencher e a provar”.
No mesmo aresto refere-se ainda que a ratio da figura da exoneração do passivo restante, que se aplica apenas aos devedores que sejam pessoas singulares – artigo 235º – encontra-se perfeitamente delineada no preâmbulo do Dec.-Lei 53/04, de 18.3, podendo aí ler-se:
“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.
Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores.
No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobre-endividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores…
Na tentativa de delimitar as situações subsumíveis ao quadro legal enunciado, a jurisprudência tem usualmente assinalado os seguintes pressupostos, de verificação cumulativa:
a) o incumprimento pelo devedor do dever de apresentação ou, não estando obrigado a apresentar-se, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
b) que dessa atuação tenha resultado prejuízo para os credores;
c) que o insolvente conhecesse não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica ou não podendo ignorá-lo, sem culpa grave.
Divergindo-se, essencialmente, sobre o conceito de prejuízo e da sua concreta verificação em cada um dos casos em análise.”
A decisão proferida nos autos, objeto de recurso, entendeu verificar-se no caso em análise a situação prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, que fundamentou o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
E refere-se na decisão recorrida que é pressuposto da admissibilidade deste procedimento que, a requerente tenha de qualquer forma falseado a informação sobre a sua situação económica, estando assim verificado o requisito da alínea b) supra referido.
Ora neste aspeto temos de salientar o facto vertido em 8, porquanto essa informação não foi fornecida ao credor respetivo e contraparte no aludido nesse processo e que se nos afigura relevante e que poderia levar o credor a perspetivar a situação da insolvente de outra forma e eventualmente melhor acautelar os seus interesses.
Do exposto deflui que, a insolvente forneceu informações inexatas ao credor, as quais eram relevantes, razão pela qual concluímos não estarem integralmente satisfeitas as condições de procedência do pedido de exoneração do passivo restante.
O que consta do ponto 8) dos factos provados e que serviu de fundamento para o indeferimento liminar é o seguinte: mas a insolvente não era proprietária desse estabelecimento comercial, era apenas titular de um contrato-promessa de trespasse pelo qual se encontrava a amortizar a quantia acordada pelo negócio celebrado, contudo desde dezembro de 2013 que a insolvente não pagava as prestações acordadas ao proprietário, pelo que sabia logo aí que nunca poderia celebrar o aludido trespasse.
Se analisarmos o conteúdo do referido ponto 8., independentemente de se saber se o promitente trespassante resolveu o contrato de trespasse face à falta de pagamento das prestações acordadas a si pela insolvente, verificamos que o mesmo apresenta uma formulação de natureza conclusiva que, juridicamente – e face aos elementos disponíveis nos autos – se mostra tecnicamente incorreta, uma vez que, pelo facto de o contrato-promessa de trespasse ter uma natureza obrigacional, não impedia que a insolvente celebrasse um novo contrato-promessa de trespasse, agora na qualidade de trespassante, que pudesse, pelo seu valor, satisfazer a totalidade das prestações em dívida e as vincendas, celebrando-se o contrato de trespasse original e, de seguida, o novo contrato de trespasse, atuando a insolvente, então, na qualidade de trespassante.
É que no contrato-promessa com natureza obrigacional, não se exige que o promitente-vendedor, na data em que celebra o contrato-promessa, já seja o proprietário do bem prometido alienar, mas apenas que o seja na data da celebração do contrato-prometido.
Assim sendo, por conter uma conclusão, determina-se a eliminação da expressão pelo que sabia logo aí que nunca poderia celebrar o aludido trespasse, do ponto 8 dos factos provados, constantes da sentença, tendo em conta que, como resulta do disposto no artigo 607º nº 3, 4 e 5 NCPC, apenas deverão constar da fundamentação factos e não conclusões, nem matéria de direito – referimo-nos, naturalmente, à fundamentação de facto, uma vez que as conclusões e a matéria de direito têm lugar na fundamentação jurídica da decisão.
Daqui não resulta a impossibilidade de o tribunal recorrido tirar as conclusões que entenda adequadas, em face da matéria de facto apurada, o que não pode é incluir, na fundamentação de facto, conclusões que condicionam, ou podem condicionar, ilegitimamente a apreciação jurídica da causa.
A propósito da alínea b) do nº 1 do artigo 238º do CIRE diz-nos o Professor Alexandre de Soveral Martins na sua obra Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, 2ª Edição, a páginas 590/591, que “no caso da alínea b), estão em causa informações falsas ou incompletas que o devedor forneceu nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
É necessário que as informações tenham sido fornecidas por escrito, com dolo ou culpa grave (por razões de segurança jurídica), e que essas informações sejam relativas às suas circunstâncias económicas «com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza».
As informações escritas foram fornecidas pelo devedor, mas isso não significa que a lei exija a sua assinatura.
O regime exposto não afasta, evidentemente, a eventual responsabilidade criminal pela conduta em causa.”
Do exposto já resulta claramente que não se verificam os pressupostos constantes da alínea indicada porque, desde logo, não existe qualquer informação falsa ou incompleta sobre as circunstâncias económicas da insolvente com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.
Face a todo o exposto e sem necessidade de ulteriores considerações, não pode deixar de se concluir que não existem elementos bastantes para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, pelo que se impõe o prosseguimento dos termos do incidente de exoneração do passivo restante, assim procedendo a apelação e, em consequência, revogando-se a douta decisão recorrida.
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D) Em conclusão:
1) No caso da alínea b) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, estão em causa informações falsas ou incompletas que o devedor forneceu nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
2) Em tal situação é necessário que as informações tenham sido fornecidas por escrito, com dolo ou culpa grave (por razões de segurança jurídica), e que essas informações sejam relativas às suas circunstâncias económicas «com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza».
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III. DECISÃO
Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a douta decisão recorrida, prosseguindo os termos do incidente de exoneração do passivo restante.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 15/09/2016