Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
494/09.9GAFLG.G1
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS TÍPICOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Provando-se uma reiteração de condutas que se traduziram, em agressões físicas, injúrias, humilhações e ameaças, levadas a cabo na constância do casamento, idóneas, sobretudo se sopesadas no seu conjunto, a produzir um apoucamento da dignidade que a qualquer ser humano é devida, traduzindo, assim, um comportamento maltratante, concretizado em actos de violência que degradaram, física e psiquicamente, a condição humana da vítima, mostra-se preenchido o tipo objectivo do crime de violência doméstica.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 494/09.9GAFLG do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, mediante acusação pública, acompanhada pela assistente/demandante Maria F..., foi submetido a julgamento, com a intervenção do tribunal singular, o arguido/demandado Joaquim P..., melhor identificado nos autos, sendo-lhe imputada a prática como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04.09.

2. Realizado o julgamento, por sentença de 30.11.2010, veio o arguido a ser condenado pela prática do sobredito crime na pena de 13 [treze] meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de 13 [treze] meses, subordinada às regras de conduta na mesma definidas, a saber: proibição de contactar ou aproximar-se da assistente; pagar à Associação Portuguesa de Apoio à Vitima, no prazo estipulado, a quantia de € 500,00.
Mais foi condenado, a título de indemnização civil por danos não patrimoniais, a pagar à demandante a quantia de € 1.000,00 [mil euros], acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação do pedido até integral pagamento.

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.º O presente recurso reporta-se à sentença proferida nos presentes autos e que condenou o arguido na prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º nº 1 al. a) do C. Penal na pena de 13 meses de prisão.
2.º O arguido, ora recorrente não tem antecedentes criminais.
3.º Tem 73 anos de idade e é reformado.
4.º Na sentença em análise, ora recorrida, o Tribunal a quo não apreciou nem valorou correctamente a matéria fáctica produzida, nem tão pouco fez uma adequada subsunção da mesma às normas jurídicas, bem como desconsiderou o princípio norteador do processo penal, “in dubio pro reo”.
5.º O Tribunal a quo na sentença ora recorrida incorreu em erro de julgamento, logo fez uma incorrecta aplicação do direito.
6.º A prova produzida em julgamento foi manifestamente insuficiente para dar como provados determinados factos. Houve por assim dizer insuficiência de provas produzidas para alicerçar a convicção do Tribunal acerca de determinados factos. O Tribunal a quo tirou uma conclusão ilógica, arbitrária, tendo realizado uma incorrecta apreciação da prova.
7.º O recurso versa sobre matéria de facto, cuja prova consta toda dos autos uma vez que tem por base os depoimentos testemunhais que foram gravados. Ora, de acordo com o artº 127º do C.P.P., salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é produzida segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
8.º A propósito do princípio da livre apreciação da prova o Professor Figueiredo Dias ensinou na obra “Direito Processual Penal”, 1.º vol. pags 203/207, “o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imutável e incontornável – e portanto arbitrária – da prova produzida.” E acrescenta que tal discricionariedade tem limites inultrapassáveis: “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”.
9.º Ainda segundo o Professor “a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E se a verdade que se procura é uma verdade prático jurídica, e se, por um lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, quando o tribunal tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudesse haver razões, por pouco verosímil que ela se apresentasse.
10.º Na sentença ora posta em crise, a matéria dada como provada e relativamente ao crime de violência doméstica, salvo melhor opinião, encontra-se erradamente julgada.
11.º Com efeito em toda a audiência de julgamento as declarações da assistente bem como os depoimentos das testemunhas da acusação não lograram demonstrar que o arguido, ora recorrente, tenha praticado o supra referido tipo legal.
12.º E ainda que assim não entendesse, deveria o tribunal a quo, por referência ao principio basilar do processo penal “in dubio pro reo” ter absolvido o arguido da prática do mesmo, atenta a insuficiência da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento quanto aos factos concretamente vertidos na acusação.
13.º Não resulta do texto da sentença recorrida prova suficiente e necessária para a condenação do arguido no tipo legal “violência doméstica”. O arguido negou a prática dos factos de que vem acusado, sendo certo que o Tribunal a quo se baseou unicamente nas declarações da assistente, nitidamente parcial por ter interesse na condenação do arguido, para prova dos factos alegadamente ocorridos em Outubro de 2009 em dia não concretamente apurado.
14.º Nenhuma das testemunhas de acusação presenciou os factos alegadamente ocorridos no dia 17 de Dezembro de 2008, nem sequer os pretensamente ocorridos depois do mês de Agosto de 2008 e concretamente em Outubro de 2009 tal como fora alegado em sede de audiência de julgamento.
15.º Da transcrição dos depoimentos das testemunhas de acusação nenhuma delas foi capaz de testemunhar os factos imputados ao arguido no libelo acusatório, ou porque nunca tivessem assistido a qualquer desentendimento entre a assistente e o arguido ou porque naquelas circunstâncias de tempo nada presenciaram.
16.º À testemunha Sérgio P... no decurso da audiência de julgamento não lhe foram feitas perguntas sobre os factos imputados ao arguido e ocorridos depois de Agosto de 2008. O mesmo testemunhou factos alegadamente ocorridos antes de ele próprio se ter casado e quando vivia em casa dos pais, ou seja, factos ocorridos há cerca de 20 anos atrás. Questionado sobre os factos alegadamente ocorridos no dia 17 de Dezembro de 2008 o mesmo disse nada ter assistido.
17.º As testemunhas Maria da G... e Maria J... no seu testemunho foram peremptórias ao afirmar que nunca assistiram a qualquer discussão entre ofendida e arguido e que desconheciam a situação alegadamente ocorrida no dia 17 de Dezembro de 2008 bem como as pretensamente ocorridas depois de meados do mês de Agosto de 2008.
18.º A testemunha Joaquim T... prestou mesmo um testemunho indirecto, de ouvir dizer, logo proibido por lei, não obstante o Tribunal a quo o ter valorado e vertido na sentença recorrida.
19.º As declarações da ofendida/assistente, apesar da natureza parcial das mesmas, atento o seu interesse na condenação do arguido, levam a crer que as alegadas palavras “puta”, “vaca” e “tens amantes” a terem sido ditas pelo arguido e que o mesmo lhe dirigia no contexto das discussões do casal, configuram expressões difamatórias e injuriosas, segundo parâmetros normais na ocorrência das referidas discussões do casal.
20.º É que se bem se interpreta a lei e na parte que aqui interessa, não se pretendeu, com a alteração efectuada ao art.º 152º pela Lei nº 59/2007 de 04 de Setembro, subsumir a esta norma todo e qualquer acto de agressão entre cônjuges ou ex -cônjuges, de modo a que deixe de ser configurável, entre tais intervenientes, a incriminação do artº 181º do C. Penal (injurias).
21.º À luz do princípio da investigação ou da verdade material, todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não podem considerar-se como provados. Mas se o princípio da investigação obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido. Um non liquet, na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.
22.º Ora, relativamente ao crime de violência doméstica alegadamente praticado pelo arguido atenta a insuficiência de prova testemunhal ou outra produzida em sede de audiência de julgamento, sobre os factos vertidos no libelo acusatório ocorridos no dia 17 de Dezembro de 2008 ou a partir de meados do mês de Agosto de 2008 a dúvida que emergiu no decorrer da audiência de julgamento sobre se os factos terão acontecido nessas circunstâncias temporais, teria necessariamente que levar o tribunal a quo a decidir pela absolvição do arguido por referência ao princípio “in dubio pro reo”.
23.º Houve uma incorrecta aplicação do direito, aplicou-se o art.º 152º nº 1 al. a) do C. Penal, para condenar o arguido quando este deveria ter sido absolvido por não ter violado o referido preceito legal.

Nestes termos e nos melhor de direito, que Vossas Exçªs doutamente melhor suprirão, reapreciando a prova gravada, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogada a sentença que condena o arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º, nº 1 al. a) do C. Penal na pena de 13 meses de prisão, e absolvido do mesmo.

Assim decidindo farão Vossas Excªs a costumada Justiça.

4. Ao recurso responderam Ministério Público e assistente, pugnando ambos pela improcedência do recurso com a manutenção da decisão recorrida – [cf. fls. 285/288 e 290/294].

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal – [cf. fls. 295].

6. Na Relação, o Ilustre Procurador – Geral Adjunto, em douto parecer, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso – [cf. fls. 302/307].

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP não foi apresentada qualquer resposta.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respectiva motivação, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR I – A Série, de 28.12.1995].
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – [cf. artigos 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2 do CPP], salientando, a propósito, o Professor Germano Marques da Silva “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões” – [cf. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335].

No presente caso a inconformidade do recorrente dirige-se:
a) À matéria de facto, que em termos genéricos, impugna;
b) Ao enquadramento jurídico – penal dos factos no crime de violência doméstica.
São, pois, estes os aspectos a abordar por este tribunal.

2. A decisão recorrida

No que concerne aos factos provados ficou consignado na sentença recorrida:

1) O arguido Joaquim T... casou com a ofendida Maria F... no dia 26 de Maio de 1964.
2) De tal casamento nasceram 5 filhos, actualmente todos maiores de idade.
3) Desde data indeterminada, mas seguramente desde pelo menos o ano de 1969 até pelo menos Outubro de 2009, sempre de forma sistemática, reiterada e sucessiva que o arguido Joaquim P... agride fisicamente, insulta e ameaça de morte a ofendida Maria F..., em regra, sempre no interior da sua residência, sita no Lugar da D..., Torrados, Felgueiras.
4) No dia 17 de Dezembro de 2008, cerca das 19 horas, no interior da sua residência, sita no Lugar da D..., Torrados, Felgueiras, e na sequência de uma discussão e após ter sido abordada pelo arguido, a ofendida, de forma não concretamente apurada, desmaiou e caiu por terra.
5) Desde meados do mês de Agosto de 2008 e até pelo menos Outubro de 2009, sempre no interior da sua residência, sita no Lugar da D..., Torrados, Felgueiras, de forma quase diária, sistemática, sucessiva e reiterada, o arguido Joaquim , em tom sério, exaltado e elevado de voz e de forma intimidatória, dirigindo-se para a ofendida, diz-lhe: “…sua puta, sua vaca, tu tens amantes…um dia ainda te mato…”.
6) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, de forma reiterada e sistemática, no claro intuito de através da sua conduta agredir fisicamente, psicologicamente e insultar a ofendida, sua cônjuge, de forma sistemática e reiterada, causando-lhe medo pela sua vida e integridade física, como efectivamente causou, por diversas e múltiplas vezes, apesar de bem saber que a mesma era uma pessoa particularmente indefesa, para além de mais saber que a sua conduta provocou na ofendida vários sofrimentos, quer de cariz físico, quer psicológico, e que tal não lhe era permitido por lei.
7) O arguido mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou:
8) A ofendia Maria F..., no dia 17.12.2008 recorreu ao Hospital Agostinho Ribeiro, em Felgueiras, como consta da ficha clínica de fls. 40, e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
9) A ofendida e assistente, após o sucedido em 4), ficou muito abalada psicologicamente, chorou muito, deixou de comer e esteva acamada vários dias, tendo, como consequência de tudo, emagrecido muito, e passou a estar constantemente ansiosa, nervosa e com medo do arguido.
10) Como resultado directo das expressões referidas em 5), que são injuriosas e difamatórias, e que põem em causa o seu bom nome, honra e consideração de mulher honesta e séria que sempre foi, a assistente sentiu-se muito ofendida, humilhada, envergonhada e triste, sentimentos que ainda perduram.
11) Como a convivência entre arguido e ofendida se tornou insuportável, a mesma, em Outubro de 2009 saiu da casa de morada de família e foi viver com um seu filho, e, posteriormente, para um quarto alugado a uma vizinha, onde se mantém até hoje.
12) A ofendida instaurou uma acção de divórcio contra o arguido, acabando por desistir da mesma por vergonha.
13) Desde Agosto de 2008, que a ofendida dorme num quarto diferente do do arguido.
14) O arguido:
a) Encontra-se reformado, auferindo uma reforma mensal no valor de cerca de € 475;
b) Ainda se encontra casado, mas separado de facto;
c) vive em casa própria;
d) tem a 3ª classe;
e) do CRC do arguido nada consta.

Quanto aos factos não provados ficou a constar:

Não se provou que:
1) no dia referido em 4) dos factos dados como provados, o arguido tenha desferido uma pancada no corpo da ofendida, em sitio não apurado, tendo a mesma, em virtude de tal agressão desmaiado e caído por terra.
2) como consequência directa e necessária da conduta do arguido, cometida em 17 de Dezembro de 2008, a ofendida tenha sofrido uma lesão física não apurada, seguida de desmaio, cujo tempo de doença e de cura não foi possível apurar.
3) como consequência directa e necessária da agressão física do arguido, ocorrida no dia 17.12.2008, a assistente tenha sofrido fortes dores que se prolongaram por vários dias e a impediram de desempenhar as suas tarefas de casa.
4) a partir de finais de 2007, a Assistente, sem motivo justificativo, tivesse começado a demonstrar total falta de interesse e de cuidados em relação à pessoa do seu marido, ora arguido, e que desde Agosto de 2008 a assistente tivesse passado a cozinhar só para si.
5) o arguido seja uma pessoa exemplarmente integrada comunitariamente.
6) quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa articulados na acusação pública, no pedido de indemnização civil, na contestação ou alegados em audiência de discussão e julgamento que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes.

Em sede de fundamentação da matéria de facto ficou exarado:

A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados, baseou-se, fundamentalmente:
- nas declarações do Arguido Joaquim , no que concerne às suas declarações sobre a sua situação pessoal e económica, as quais se revelaram credíveis. No mais as suas declarações, negando os factos, não se revelaram credíveis, pelas razões que se vão expor.
De facto, o depoimento da Assistente e ofendida, Maria F..., ainda esposa do arguido, no entender deste tribunal, foi prestado de uma forma sofrida, mas ao mesmo tempo credível, sincera e verdadeira, começando por descrever a personalidade do arguido e como o mesmo era, e nalgumas das suas palavras que ficaram registadas, o mesmo “era um terror”, “acusa-me de ter amantes”, “foi sempre horrível, e desde que veio para casa reformado a situação piorou, porque ele só bebe”. Mais referiu que, já no passado, esteve duas ou três vezes fora de casa. Confirmou que, durante o casamento, o arguido sempre foi uma pessoa muito nervosa, e que a apelidava de “puta, vaca”, “tens amantes”, “tua a mim não me enganas, vaca”. Concretizou ainda que tudo teria começado há cerca de 40 anos atrás, e que saiu muitas vezes de casa, e que sempre suportou tudo calada, com medo do arguido, e em atenção aos filhos, pois não queria que aqueles sofressem, tendo referido que muitas das vezes escondia-se nos cantos à espera que tudo passasse, e só não levava muita porrada porque fugia, tendo desabafado “ele foi muito ruim”, “era um purgatório”. Na situação ocorrida no dia 17 de Dezembro de 2008, a ofendida não se recorda do que se passou, apenas tendo referido que desmaiou, e que, na altura, já se encontrava a viver num quarto separado do arguido, sensivelmente desde Agosto de 2008, uma vez que o arguido desde que veio reformado piorou o seu comportamento para com ela. Esclareceu que anteriormente estavam a discutir por causa de uma chave. Confirmou ainda que saiu de casa no dia das eleições legislativas, em Outubro de 2009, tendo ido viver para um quartinho cedido por uma vizinha, com uma casa de banho, onde tem permanecido, tendo desabafado “agora libertei-me”. Mais esclareceu que intentou uma acção de divórcio contra ao arguido, mas acabou por desistir da mesma porque estava em sossego, já que havia saído de casa, e porque tinha vergonha de se divorciar nesta idade, e porque tem vergonha do divórcio.
Mais se referira que este depoimento da assistente, foi prestado, como se referiu de uma forma sofrida, mas convincente, tendo o tribunal ficado com a convicção clara e inequívoca de que as situações de violência doméstica, traduzidas neste caso concreto, nos insultos e palavras injuriosas dirigidas contra a assistente, e constantes dos factos provados, bem como nos comportamentos violentos do arguido, com agressões, poucas na forma consumada e muitas na forma tentada, e ainda das ameaças proferidas pelo arguido, de facto se verificaram e não se limitaram a configurar uma situação de discussão normal entre cônjuges, tendo ido muito, mas muito para além disso, e muito para além do razoável e do normalmente espectável.
O Tribunal formou ainda a sua convicção com base no seguinte:
- no depoimento do filho do casal, Sérgio P..., o qual, num depoimento comovido, e credível, começou por esclarecer o Tribunal que toda esta situação já vem desde há muitos anos, e que o seu pai, aqui arguido, sempre foi muito desconfiado, e apelidava, frequentemente a sua mãe, e aqui ofendida, de “puta” e dizia-lhe que ela tinha amantes. Mais referiu que a mãe já havia saído de casa há uns anos atrás, mas tendo regressado, referindo “éramos todos pequenos e era muito complicado”. Mais referiu que nunca viu o pai bater na sua mãe, mas viu-o a oferecer-lhe porrada; sendo que muitas das vezes não chegaram a vias de facto, ou porque a mãe fugia, ou porque eles se metiam a meio. Confirmou igualmente que a sua mãe também chamava o seu pai de “borracho”, porque ele quando chegava ás alturas do Verão bebia um pouquito mais e alterava o seu comportamento. Confirmou que o seu pai, quando estava nervoso, e no meio das discussões, virava-se para a sua mãe e dizia que a matava. Confirmou que, actualmente a sua mãe vive num quartinho, numa casa de uma vizinha. Afirmou desconhecer a situação ocorrida no dia 17.12.2008, mas que quando viu a sua mãe, em tal mês, a mesma estava muito magra. Referiu ainda que ele e os seus irmãos, por vezes tinham medo, e à noite sentiam medo, tanto que às vezes colocavam uma cadeira na fechadura da porta do quarto onde dormiam. Confirmou que o seu pai é uma pessoa violenta, quando ficava nervoso.
- no depoimento da testemunha Maria da G..., a qual conhece quer o arguido, quer a ofendida, a qual apenas relatou que ouvia a ofendida queixar-se que o arguido era uma pessoa violenta, e que a insultava de “puta e vaca, e que tinha amantes”, muitas vezes, e que a mesma se refugiou em casa de um dos filhos, confidenciando-lhe que já não conseguia mais aturar o marido. Mais ficou com a percepção de que o arguido é uma pessoa nervosa e que a ofendida tinha medo dele e que ficava triste quando o mesmo a insultava e a acusava de ter amantes. Confirmou que em Dezembro de 2008, a ofendida foi para casa de um dos filhos, onde esteve algum tempo, e que quando foi para lá estava muito magra e muito triste.
- no depoimento da testemunha Joaquim T..., reformado e vizinho do arguido e da ofendida, o qual, de uma forma sincera e no que a estes autos se reportam, apenas referiu que, e nas suas palavras “dizia-se e contava-se que eles (o arguido e a ofendida) não se davam muito bem, e desde que ele veio reformado, nunca mais se entenderam”.
- no depoimento da testemunha, Maria J..., a qual conhece o arguido e a ofendida, e que não assistiu a nenhuma confusão entre os dois, apenas confirmando e relatado que a ofendida saiu de casa, por causa de uma zanga, há cerca de 5 anos, tendo ficado em casa da depoente. Mais referiu que quando a ofendida chegou a sua casa, nessa altura, começou a chorara e a dizer que o marido a tratava mal, e que não o podia aturara e que o mesmo a acusava de ter amantes.
No que concerne às testemunhas de defesa apresentadas pelo arguido:
- o filho Rui J..., referiu que, e nas suas palavras “os dois nunca se entenderam” (referindo-se aos seus pais), confirmando que nunca viu o seu pai a agredir a sua mãe, mas que “discussões havia”, “eles discutiam muito”, e que quando eles discutiam ele fugia, e que isso já acontecia desde que eles eram pequenos. Referiu que o seu pai era uma boa pessoa.
- o neto, Rui M..., também, confirmou que ouvia os seus avós a discutirem, mas nunca viu o avô a bater na avó, e que ambos proferiam insultos um contra o outro. Mais referiu que muitas vezes vias os avós tristes e abatidos.
No que concerne à testemunha de defesa, Gracinda P..., irmã do arguido, o seu depoimento não foi muito credível, não só atenta a forma como foi prestado, mas também pelo tom exaltado e pouco isento com que foi prestado; além de ter sido um muito genérico, incoerente e um pouco desconexo, no que concerne aos factos relatados.
Foram ainda relevantes para a formação da convicção do tribunal:
- o assento de nascimento, de fls. 32 e 33;
- relatório do exame médico-legais de fls. 63 a 66 e 91 a 94.
- elementos clínicos de fls. 40;
- documento de fls. 14;
- CRC do arguido de fls. 108.

3. Apreciando

a)

Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, poderá este tribunal conhecer de facto e de direito desde que se mostre cumprido o disposto no artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP.
Contudo, se é notório que nas conclusões [as quais, repete-se, delimitam o objecto do recurso] o recorrente não satisfez tal ónus, não o é menos que ao longo da motivação se limita a “impugnar” de forma genérica a matéria de facto, não especificando concretamente os pontos que considera incorrectamente julgados, nem as concretas provas que impõem [e não já que consentem], relativamente a cada um deles, decisão diversa da recorrida.
Da análise da motivação constata-se, isso sim, que o recorrente, embora fazendo alusão ao teor do depoimento de algumas testemunhas, transcrevendo-o em parte, não se conforma com a credibilidade atribuída pelo tribunal a quo, designadamente às declarações da assistente, pretendendo, assim, sobrepor a sua apreciação da prova à valoração que da mesma foi feita em 1.ª instância.
Ora, perscrutada a motivação da matéria de facto alcança-se, com suficiente clareza, os fundamentos em que assentou a convicção do tribunal, o motivo porque as declarações da assistente foram consideradas credíveis, corroboradas, naturalmente em aspectos circunstanciais, mas nem por isso irrelevantes na medida em que as fortalecem, pelo depoimento, designadamente das testemunhas Maria G... e Maria J..., as quais deram conta do estado de espírito da assistente, da necessidade que teve de sair de casa e da debilidade física e psíquica que, então, apresentava.
Também não deixa de conferir credibilidade às declarações da assistente – as quais, diga-se em abono da verdade, bastante impressivas, relevadoras do temor e da vergonha, sempre presentes em pessoas de tal faixa etária, que as mais das vezes “explicam” a submissão a toda uma vida de humilhações, achincalhamentos, comportamentos desprezíveis, atentatórios da dignidade de qualquer ser humano - o depoimento da testemunha Sérgio Paulo [filho do casal], porquanto procedeu a uma retrospectiva do que foi a vida dos pais, retirando-se do mesmo que se tratou de uma situação prolongada, que vem de longe, traduzida numa vivência em que, desde cedo, pautaram os insultos, as humilhações, as ameaças, por parte do arguido à assistente.
Quanto à testemunha Joaquim T..., não obstante o tribunal a quo lhe fazer referência em sede de motivação, ao invés do alegado pelo recorrente, não se trata de um depoimento indirecto [artigo 129.º do CPP], caindo, antes, na previsão do artigo 130.º do mesmo diploma legal e, nessa medida, inadmissível.
Contudo, apesar da sentença recorrida se lhe reportar é evidente não ter constituído o mesmo, nem por aproximação, o factor determinante da convicção, o que significa que não o considerando este tribunal de recurso, suprimindo, assim, a sua valoração, em nada fica a mesma afectada, face à demais prova produzida.
Na verdade, passou a constituir lugar comum sempre que estão em causa factos da natureza dos ora em análise – as mais das vezes, por motivos óbvios, levados a cabo fora do olhar de terceiros, num espaço confinado, normalmente no interior da habitação – a tentativa de desvalorizar as declarações da vítima, com a alegação da ausência de testemunhas presenciais seguida da conclusão, no mínimo precipitada, “de que se trata da palavra de um [vítima] contra a palavra de outro [agressor]”.
Argumentação que, evidentemente, não procede quando existem fundados motivos para atribuir credibilidade àquela, em detrimento deste, como acontece no caso.
Com efeito, debruçando-nos sobre a fundamentação de facto conclui-se que o tribunal a quo procedeu à apreciação da prova de acordo com o critério estabelecido no artigo 127.º do CPP, ou seja segundo as regras da experiência e da livre convicção e não já de forma discricionária ou arbitrária, não se detectando qualquer preterição do princípio in dubio pro reo, dado que nenhuma dúvida razoável se lhe colocou, nem se coloca a este tribunal de recurso, perante a prova produzida, explanada e criticamente apreciada em sede de motivação, no sentido da prática pelo arguido das condutas que lhe vem imputadas.
É que, como vem referido no acórdão do STJ de 24.03.1999 “A violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o Colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido” – [cf. CJ, ASTJ, T. I, pág. 247] -, o que não ocorre na situação sub judice.
Como bem dá nota o recorrente nas conclusões apresentadas, o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º do CPP], sendo que “A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal” – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – [cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204].
Por outro lado, impõe-se relembrar que o julgador da 1.ª instância, por força do princípio da imediação, aprecia as provas a cuja produção assistiu, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos e coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem ser objecto de reapreciação por este tribunal.
Constatando-se da motivação de recurso que a real divergência do recorrente se situa ao nível da valoração da prova, levada a efeito pelo tribunal a quo, pondo em causa a credibilidade das declarações da assistente, perante o que ficou dito sobre os princípios que presidem à apreciação da prova, à formação da convicção do tribunal e ao processo lógico – dedutivo que transparece da motivação, mantém-se inalterada a matéria de facto.

b)

Mais se insurge o recorrente contra a qualificação jurídica dos factos, os quais, na sua perspectiva, não integrariam o crime por que foi condenado.
Vejamos.
Nos termos do n.º 1 do artigo 152.º do C. Penal incorre na prática do crime de violência doméstica “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex – cônjuge”.
A propósito do tipo objectivo escreve Paulo Pinto de Albuquerque “… inclui as condutas de “violência” física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal. O novo elenco legal de maus tratos é exemplificativo, concretizando o conceito legal de maus tratos, mas não o esgotando. A Lei n.º 59/2007 apenas visou esclarecer que as “privações da liberdade” e as “ofensas sexuais” se incluem entre os maus tratos e os maus tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado” – [cf. Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 405].
O crime em causa preenche-se, pois, com comportamentos, tais como ofensas à integridade física, humilhações, provocações, injúrias, que de forma, reiterada ou não, afectam a dignidade pessoal do cônjuge, sendo que os bens jurídicos protegidos pela incriminação são “a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra” – [cf. autor e ob. cit, pág. 404].
No mesmo sentido Taipa de Carvalho quando, reportando-se ao artigo 152.º, na redacção anterior à reforma penal de 2007, refere que a sua ratio não está “na protecção da comunidade familiar, conjugal (…), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”, para concluir que “o bem jurídico protegido por este crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental” [cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, T. I, Coimbra Editora, pág. 132].
No dizer de Conde Fernandes “O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos” – [cf. “Violência Doméstica”, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305].
Perante a factualidade apurada, ao contrário do defendido pelo recorrente, que pretende banalizar as ameaças, humilhações, injúrias, durante a longa vivência em comum, onde pautaram as agressões físicas e psíquicas, inscrevendo-as “nos parâmetros normais na ocorrência das referidas discussões do casal” – estranho conceito de normalidade, este! - dúvidas não subsistem de que se mostram reunidos os elementos típicos do crime pelo qual o recorrente sofreu condenação.
Com efeito, constata-se uma reiteração de condutas que se traduziram, em agressões físicas, injúrias, humilhações e ameaças, levadas a cabo na constância do casamento, idóneas, sobretudo se sopesadas no seu conjunto, a produzir um apoucamento da dignidade que a qualquer ser humano é devida, traduzindo, assim, um comportamento maltratante, traduzido em actos de violência que degradaram [física e psiquicamente] a condição humana da vítima.

Conclui-se, pois, no sentido de que, preenchido o elemento objectivo do tipo, bem como o elemento subjectivo, o qual se basta com o dolo do agente em qualquer das suas modalidades, nenhuma censura merece a sentença recorrida enquanto subsumiu a conduta do recorrente ao crime em referência.

III. Decisão

Termos em que, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente em 3 (três UCs) de taxa de justiça.

Guimarães, 9 de Maio de 2011