Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5193/19.0T8BRG-A.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: AUTORIDADE DE CASO JULGADO
SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
PRESUNÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ENRIQUECIMENTO
UNIÃO DE FACTO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
DIREITO DE RESTITUIÇÃO
CONTAGEM DOS PRAZOS
SEPARAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I – Em relação ao arguido condenado no processo penal opera plenamente e sem quaisquer restrições a autoridade do caso julgado da sentença penal condenatória no que tange à matéria da autoria, da ilicitude e da culpa, pelo que está vedado ao arguido num subsequente processo cível entre as mesmas partes ilidir a presunção decorrente da sentença penal; ou seja, os factos que foram considerados provados na sentença penal, têm de ser atendidos na sentença cível como factos provados, não sendo admissível contrariá-los por qualquer meio de prova.
II- Apenas um terceiro é que poderá ilidir a presunção estabelecida no art. 623º-do CPC, em homenagem ao princípio do contraditório, alegando factos e produzindo prova para demonstrar que o arguido não praticou os factos pelos quais foi condenado.
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III- Nos casos de enriquecimento ocasionados por uma união de facto, o prazo de prescrição do direito de pedir a restituição por ele provocado só se inicia com o termo ou dissolução da união.
IV- Para que se possa dizer que cessou a união de facto, tal como na separação de facto nos termos do art. 1782º do CC, importa atentar nos elementos material (objetivo- a separação de facto) e psicológico (subjetivo- a vontade de pelo menos um dos unidos de facto de não a restabelecer).
V- No caso concreto, é irrelevante o período de separação de facto de cerca de um mês, porque não se demonstra que a relação entre o casal tenha cessado (considerada a inexistência do elemento subjetivo: propósito de pelo menos um deles de não restabelecer a comunhão de vida entre eles-cfr. art.8º,nº1, b) da Lei 7/2001), não chegando, pois, a haver uma interrupção definitiva da situação de facto e da situação jurídica que já tinha sido adquirida, aliás como sucede similarmente no caso do art. 1781º do CC.
VI- O prazo da prescrição nos termos do art. 482º do CC conta-se a partir da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e este ocorre quando cessa a união de facto e cessa a fruição dos bens adquiridos durante a união.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório (que se transcreve):

A autora D. V., residente na Rua …, Barcelos, intentou a presente acção declarativa contra C. C., residente na Rua …, freguesia de …, concelho de Barcelos, pedindo que o réu seja condenado a restituir pelo menos 50% do valor do património adquirido através do esforço comum de ambos enquanto viveram em união de facto no período entre 2005 e 17 de Março de 2018, e que equivale a quantia não inferior a €945.446,50, bem como o valor que corresponde a 50% do património resultante dos depósitos a prazo, à ordem e demais aplicações financeiras em nome do réu em qualquer instituição financeira, cuja liquidação remete para momento posterior, bem como juros vencidos e vincendos.
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O réu apresentou contestação, invocando a excepção de prescrição do direito invocado, alegando que:

- a união de facto, que a A. e R. iniciaram em Dezembro de 2006, dissolveu-se em - de Agosto de 2014, por vontade da A., bem como por vontade do R.;
- já passaram mais de três anos desde a data da dissolução/rompimento da união de facto entre a A. e o R., ocorrida em 11/08/2014, e a data da citação do R. para esta acção, ocorrida em Outubro de 2019.
Deduziu ainda reconvenção contra a autora pedindo que seja declarada a dissolução no dia 11 de Agosto de 2014, por vontade da autora e do réu, da união de facto que estes iniciaram em Dezembro de 2006 e peticionando a condenação da demandante como litigante de má fé.
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Foi apresentada réplica, na qual se conclui pela improcedência da reconvenção e se peticiona a condenação do réu em multa e indemnização como litigante de má fé.
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Na sequência do despacho de fls. 331, a autora respondeu à excepção de prescrição através do requerimento de fls. 332 ss., concluindo pela sua improcedência.
Por despacho de fls. 342 foi suscitada oficiosamente a excepção de caso julgado no que concerne às questões já decididas no âmbito do processo penal nº 296/18.1GBBCL do Juízo Local Criminal de Barcelos - Juiz 2.
A autora pronunciou-se sobre a mesma através do seu requerimento de fls. 355 ss., cujos fundamentos aqui se dão por reproduzidos, concluindo que deverá improceder a reconvenção e a excepção de prescrição invocada pelo réu.
Por sua vez, o réu veio pronunciar-se através do seu requerimento de fls. 357 ss., concluindo pela procedência da reconvenção e da excepção de prescrição.
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Foi proferido despacho saneador a decidir do mérito da causa na parte acima enunciada com o seguinte dispositivo:

Em conformidade, julga-se improcedente a excepção de prescrição invocada pelo réu, bem como improcedente a reconvenção, absolvendo-se a autora do pedido reconvencional.
Custas da reconvenção a cargo do réu (art. 527º do Código de Processo Civil).
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Nos termos do art. 306º do mesmo Código, fixa-se à causa o valor de € 975.447,50.”
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Inconformado com esta decisão, veio o R interpor recurso, e formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“1. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho Saneador proferido pela Mma. Juiz “a quo”, na parte em que julgou: «Em conformidade, julga-se improcedente a excepção de prescrição invocada pelo réu, bem como improcedente a reconvenção, absolvendo-se a autora do pedido reconvencional. Custas da reconvenção a cargo do réu (art. 527º do Código de Processo Civil).».
2. Resultando daquele douto despacho saneador sob recurso, não só um manifesto erro de julgamento quanto à aplicação da matéria de direito no caso concreto, muito por causa da falta de produção de prova necessária para julgar e decidir naquele sentido, tendo em conta os factos e fundamentos referidos para a Douta Decisão, como ainda a prática de um acto processual ferido do vício de nulidade.
3. A falta de avaliação de provas produzidas, tal como a sua errada avaliação, constituirá um erro de julgamento da matéria de facto.
4. Por seu lado, a decisão é nula, essencialmente, quando resulta de uma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos, que lhe são confiados.
5. Nos termos do disposto no art.º 615.º do CPC, os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença a provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, tal como ocorre quando o Tribunal não trata de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
6. Essencial torna-se que a fundamentação da sentença reflicta de forma clara, inteligível e segura a convicção a que o julgador chegou sobre os factos provados e não provados, e a aplicação subsumida do direito aos factos provados (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) – sob pena de nulidade (cfr. art.º 615.º, n.º 1, al.ªs b) e c), do CPC) –, pois, só desta forma é possível aos destinatários sindicar a justeza da decisão tomada no caso concreto.
7. A errada fundamentação e apreciação dos factos provados, no processo 296/18.1CBBCL do Juízo Criminal de Barcelos – Juiz 2, levada a cabo pelo Tribunal “a quo” é mais do que manifesta, uma vez que a apreciação da questão reconvencional a decidir, levada pelos R./Recorrente aos autos, e a respectiva aplicação das normas jurídicas, ao caso concreto, não estão correctas. Exigindo-se, pois, neste sentido, a correcta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, que o Tribunal “a quo” não fez.
8. O R./Reconvinte, através do seu pedido reconvencional, apenas pretende e pede em concreto que seja “declarada a dissolução no dia 11 de Agosto de 2014, por vontade da A. e do R., da união de facto que estes iniciaram em Dezembro de 2006”, ou seja, apenas pede que seja declarado que esta concreta e primeira união de facto da A. e do R.” teve o seu início em “Dezembro de 2006” e “dissolução no dia 11 de Agosto de 2014”, e nada mais além disso.
9. Invocando o R./Reconvinte a excepção de prescrição do pretenso direito da A./Recorrida à restituição “à A. pelo menos de 50% do valor correspondente ao património adquirido através do esforço comum de ambose de restituir à A. o valor correspondente a 50% do património resultante de depósitos a prazo, à ordem e demais aplicações financeiras existentes em nome do R., que a A./Recorrida identifica na sua petição, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, no que respeita ao período compreendido entre “Dezembro de 2006” e “11 de Agosto de 2014”, data esta em que se dissolveu a “união de facto que estes iniciaram”.
10. O Tribunal “a quo”, erradamente, entendeu julgar improcedentes a excepção de prescrição invocada e a reconvenção, absolvendo-se a autora do pedido reconvencional, atendendo para o efeito, apenas, aos “factos julgados provados na sentença penal acima referida”, com os fundamentos contantes da decisão.
11. Fundamentos que não podem ser aceites, desde logo porque da própria fundamentação da Sentença penal condenatória consta também o seguinte: “E foram estas as razões que levaram a ofendida a tomar a decisão, no ano de 2014, de por termo à relação, dizendo, a este respeito, que foi protelando a saída de casa por medo e dependência económica do arguido.
Neste contexto, sublinhou D. V. que, quando manifestou essa intensão ao arguido este reagiu da forma descrita nos pontos 6 e 7 dos factos provados, descrevendo o incidente de forma absolutamente cristalina, acrescentando que, nessa altura, a sua mãe e o seu irmão “tiraram-na de lá”.
E depois de um interregno de cerca de um mês e meio, D. V. explicou que foi na convicção de que o arguido podia mudar que aceitou reatar o relacionamento.
“A repetição destes comportamentos levaram a que D. V., em dia não concretamente apurado do ano de 2014, comunicasse ao arguido a intenção de terminar o relacionamento que mantinham,”
“Contudo, passados cerca de 4 anos, mais concretamente em Março de 2018, voltou a terminar o relacionamento e a sair de casa, ” (sublinhados e negritos são nossos).
12. Resultando claro que ocorreu uma ruptura definitiva da relação de facto em 2014, tendo a A./Recorrida, naquela altura, manifestado a sua vontade definitiva e inequívoca ao R./recorrente “de terminar o relacionamento que mantinham”,
13. ruptura definitiva que em nada é afectada pela nova relação que A. e R. iniciaram “depois de um interregno de cerca de um mês e meio”, nova relação que a A. “voltou a terminar”, factos estes que também tornam claro que o anterior relacionamento rompeu-se definitivamente em 11 de Agosto de 2014.
14. Na douta Sentença penal condenatória, também com relevância para decisão sobre a invocada excepção prescrição e reconvenção, foi considerado provado, além do mais, que:
5.º - Em dia não concretamente apurado do ano de 2014, a ofendida disse ao arguido que queria terminar o relacionamento que mantinham.
6.º - Ao ouvir tal intenção o arguido pegou numa faca de cozinha, apontou-a à ofendida e em simultâneo disse-lhe que antes que a matava.
7.º - De seguida agarrou as mãos da ofendida e retirou-lhe os anéis que esta trazia nos dedos, pegou no seu telemóvel e partiu-o, partiu objectos que se encontravam no interior da residência e rasgou diversas peças de vestuário da ofendida, que se encontravam nos armários da residência.
8.º - Nesse dia a ofendida saiu de casa ” (sublinhados e negritos são nossos).
15. Sendo, por isso, claro que a dissolução/ruptura definitiva ocorreu em 11 de Agosto de 2014, ou no mínimo “Em dia não concretamente apurado do ano de 2014”, e que nessa altura a A./Reconvinda quis romper a união de facto que mantinha com o R./reconvinte e não restabelecer a vida em comum com o mesmo, o que também foi vontade do R./reconvinte,
16. O mesmo tendo acontecido em Março de 2018, quando pela segunda vez a A. quis acabar com a nova união de facto que mantinha com o R. desde 2014 e não restabelecer a vida em comum com o mesmo, o que também foi vontade do R./reconvinte, tendo sido dado como provado na Sentença penal condenatória que:
10.º Cansada dos comportamentos a que o arguido a sujeitava, a ofendida no dia 03 de Março de 2018, disse-lhe que queria terminar o relacionamento.
12.º Desde esse dia e até ao dia 16 de Março de 2018, dia em que saiu de casa, …” (sublinhados e negritos são nossos).
17. Não existindo qualquer diferença entre o conjunto dos factos provados na sentença, relativos a cada uma das duas vezes em que efectivamente se dissolveram/romperam definitivamente cada uma das duas uniões de facto ocorridas entre a A. e o R., existindo o propósito de ambos, nessas duas vezes, em Agosto de 2014 e em Março de 2018, de romper e não restabelecer essas uniões,
18. Estando, por isso, provados dois distintos episódios da vida da A. e R., em tudo iguais no que respeita à efectiva dissolução/ruptura das referidas uniões de facto que mantiveram, por vontade de ambos e com intenção de não as restabelecer, em cada um desses episódios.
19. Sendo a própria A. a admitir, no artigo 39.º da sua Réplica, a existência, em 2014, de uma “interrupção do relacionamento que ambos mantinham” (sublinhados e negritos são nossos).
20. O facto de A. e R., em 2014, “cerca de um mês depois” da dissolução/ruptura da união, terem passado novamente a viver juntos em nova união de facto, em nada altera a efectiva anterior dissolução da comunhão de vida entre ambos, que levou à interrupção da situação de facto e situação jurídica que anteriormente tinha sido adquirida entre A. e R., sendo evidente e relevante para todos os efeitos, nomeadamente patrimoniais, a dissolução/ruptura definitiva da união de facto entre A. e R. ocorrida no ano de 2014.
21. Nesse sentido Jorge Duarte Pinheiro “A LUF regula a situação jurídica de duas pessoas que vivam em união de facto há mais de dois anos (art. 1.º, n.° 2, da mesma lei). O requisito temporal da união de facto protegida cria uma dúvida: o prazo de dois anos tem ou não de decorrer consecutivamente? Forma-se uma união de facto, os seus membros separam-se passado um ano e reconciliam-se um mês depois. Com a separação, o prazo suspende-se ou interrompe-se? O ano inicial de convivência em união de facto soma-se ou não ao período de coabitação subsequente à reconciliação? Parece que o prazo tem de voltar a ser contado desde o início, a partir da data da reconciliação. Se numa certa data deixou de haver comunhão de habitação porque um dos membros da união de facto revelou o propósito de não a restabelecer, a ligação extingue-se por vontade de uma das suas partes, ao abrigo do art. 8.º n.º1, al. b), da LUF. A reconciliação não renova a união de facto, origina uma nova união com os mesmos membros da anterior.”,
22. o mesmo seria dizer, a título de exemplo e tendo em conta a proximidade da união de facto ao casamento, que se marido e mulher, casados no regime da comunhão, se divorciassem e, um mês depois, voltassem a casar novamente um com o outro no regime supletivo da comunhão de adquiridos, vindo posteriormente a divorciar-se uma segunda vez, não teriam ambos o direito à partilha dos bens comuns do casal após o primeiro divórcio, mas apenas a proceder à partilha após e por força do segundo divórcio, sendo irrelevante e não produzindo qualquer efeito o primeiro divórcio entre eles, nomeadamente a cessação das relações patrimoniais, o que não teria qualquer cabimento lógico ou legal.
23. Não tendo o R./reconvinte o ónus de provar no processo a dissolução/cessação da união de facto em 11 de Agosto de 2014 ou no mínimo “Em dia não concretamente apurado do ano de 2014”, pelo simples facto de a mesma já estar provada na sentença proferida no processo penal, tendo em conta a factualidade dada como provada nos pontos 5.º, 6.º, 7.º e 8º dos factos provados dessa sentença, data que, aliás, foi também admitida pela A. na sua réplica para a essa ruptura.
24. Nos termos do disposto no artigo 623.º do C.P.Civil “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.”.
25. A sentença penal supra referida, transitada em julgado, formou caso julgado que deve ser considerado no presente processo, considerando-se plenamente provados neste processo os factos já considerados provados na sentença,
26. estando proibida a repetição do julgamento sobre os mesmos factos, relativamente à A./Reconvinda e ao R./reconvinte, por razões de elementar economia processual e em obediência ao princípio “non bis in idem” previsto no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República.
27. Não podendo mais ser livremente, nem sequer subjectivamente pelo julgador, apreciados noutro processo, nomeadamente no presente processo, onde têm de ser considerados assentes sem qualquer contestação.
28. Tendo em conta o disposto no artigo 482.º do Código de Processo Civil, já ocorreu a prescrição do pretenso direito da A. “à A. pelo menos de 50% do valor correspondente ao património adquirido através do esforço comum de ambose restituir à A. o valor correspondente a 50% do património resultante de depósitos a prazo, à ordem e demais aplicações financeiras existentes em nome do R., que a A./Recorrida identifica na sua petição, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, no que respeita ao período compreendido entre “Dezembro de 2006” e “11 de Agosto de 2014”, data esta em que se dissolveu a “união de facto que estes iniciaram” naquela data.
29. Quando o R./reconvinte foi citado para a presente acção já se encontravam decorridos mais de três anos sobre a dissolução/rompimento, ocorrida em 11 de Agosto de 2014, da união de facto que a A. e o R. iniciaram em Dezembro de 2006.
30. Nos termos do disposto no artigo 482.º do Código Civil “O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data e que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento”.
31. Em 11 de Agosto de 2014, data em que cessou a convivência entre o R. e a A., ou seja a supra identificada união de facto entre ambos, a A. teve conhecimento do direito à restituição que alegadamente lhe competia, que esta só agora peticiona nesta acção, e da pessoa por si alegada como responsável pela restituição, ou seja o R.,
32. tendo sido naquela data de 11/08/2014, com a dissolução da união de facto de ambos, que nasceu o direito alegado pela A. a exigir a restituição por enriquecimento sem causa do R., direito que, diga-se, não lhe assiste, mas que, se por mera hipótese académica existisse e assistisse à A., o que não acontece, já se encontrava prescrito,
33. A jurisprudência vem entendendo que nos casos de alegado enriquecimento sem causa, ocasionado por via da dissolução da união de facto, o prazo de prescrição do direito de pedir a restituição por ela provocado só se inicia e conta-se a partir do termo ou dissolução da união de facto, prazo que, no caso da dissolução da união de facto da A. e R., ocorrida em 11/08/2014, iniciou e conta-se a partir desse dia 11/08/2014.
34. Nesse sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Maio de 2011, proferido no processo 112/09.2TBVFC-A.L1.S1, que dispôs o seguinte: “No âmbito da presente revista excepcional, reitera-se o entendimento do acórdão fundamento segundo o qual, face ao disposto no art. 482.º do CC, o momento relevante para o início do prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa surge quando cessa a união de facto e, por via disso, cessa a fruição em comum dos bens adquiridos durante a união de facto com a participação de ambos os membros da união” disponível em www.dgsi.pt.
35. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, nos termos do disposto no artigo 323º, n.º 1 do Código Civil,
36. não tendo, no caso da união de facto entre a A. e o R., dissolvida em 11 de Agosto de 2014, ocorrido qualquer interrupção da referida prescrição dentro do referido prazo de três anos após 11/08/2014,
37. tendo o R. apenas sido citado para a presente acção, em Outubro de 2019, acção essa pela qual a A. exerce pela primeira vez o seu alegado direito à restituição, após a dissolução/rompimento da união de facto entre a A. e o R. em 11/08/2014, direito que, de acordo com a supra referida regra geral, já se encontrava prescrito antes da citação.
38. Já passaram mais de três anos desde a data da dissolução/rompimento da união de facto entre a A. e o R., ocorrida em 11/08/2014, e a data da citação do R. para esta acção, ocorrida em Outubro de 2019, o que permite afirmar que o alegado supra referido direito da A. já se encontra prescrito.
39. Não pode ser aceite, tal como entendeu o Tribunal “a quo”, que “não se vislumbra encontrarem-se nessa altura, em 2014, reunidos os pressupostos de facto e de direito do direito à indemnização por enriquecimento sem causa, designadamente que, naquele interregno de um mês de separação temporária, a autora pudesse ter tomado consciência e conhecimento da sua ora alegada posição de empobrecida e do invocado direito à restituição por enriquecimento sem causa, de modo a poder exercê-lo.”.
40. Tendo em conta os factos provados na Sentença penal condenatória, os documentos juntos aos autos na audiência prévia de 18 de Maio de 2021, que demonstram que a A./Recorrida levantou, por meio de cheque, no dia 14/11/2014, a quantia de 2.000,00€, da conta bancária nº ………………2, exclusivamente aprovisionada pelo R./recorrente, do Banco Montepio, que a A. conservou para si até esta data,
41. os documentos anteriormente juntos aos autos, nomeadamente a queixa-crime de violência doméstica, apresentada pela A./Recorrida, contra o R. /recorrente, em 12/08/2014, logo no dia seguinte à separação definitiva de ambos, com o n.º 785/14.7GBBCL, conforme Doc. 5 da contestação,
42. na qual a A. afirma “que decidiu acabar com a relação e separar-se do denunciado, manifestando tal intenção ao mesmo”, “Pelas 08:30 horas, do dia 11-08-2014, o casal decidiu conversar sobre o fim da relação”, “o denunciado expulsou a vítima e os filhos de casa”, “A vítima dirigiu-se para a casa da mãe com os seus filhos, sita na Rua … n.º …, apartamento … – Barcelos”, o que tinha ocorrido no dia anterior 11 de Agosto de 2014 – Doc. 5 da contestação
43. tendo a A., no mesmo processo e em 20 de Agosto de 2014, afirmado que “Confirma que viveu com o denunciado, em condições análogas à do cônjuge e terminou no dia 11-08-2014.”, “Confirma que o denunciado aproximou-se da denunciante e queria que a mesma assinasse os documentos para alterar os registos de propriedade do veículo de marca Mercedes CLS. Posto isto, a denunciante manifestou que antes de assinar tais documentos teriam de resolver outras coisas relacionadas com o relacionamento de ambos”, “vais com a roupa no corpo, não tens direito a nada”, “A denunciante disse que queria levar as suas coisas e dos filhos”, “Confirma que antes de a denunciante abandonar a residência, o denunciado proibiu-a de voltar a entrar em casa de ambos e também na fábrica, tendo-lhe retirado as chaves de casa e da fábrica.”, “casa da declarante, local onde a denunciante e os filhos se encontram a residir” - Doc. 5 da contestação,
44. o documento relativo ao veículo da marca Renault, modelo Mégane III, com a matrícula OI, adquirido pela A., em 28 de Fevereiro de 2014, pelo valor de 19.500,00€ (dezanove mil e quinhentos euros), que a A. levou consigo e continua a ser por ela utilizado,
45. o documento comprovativo da transferência de propriedade do veículo da marca Mercedes, modelo CLS, com a matrícula CM, em 27 de Agosto de 2014, da titularidade da A./Recorrida para a titularidade do R./recorrente, conforme Doc. 2 da contestação, que a A. Recorrida afirma estar “em poder do R.”, o que já acontece desde Agosto de 2014, e que o mesmo tem o “valor de 40 000 euros, vide artigo 11º, alínea b) da Petição Inicial,
46. Existem nos autos alegações da própria A. e documentos que demonstram o contrário deste fundamento do Tribunal “a quo”, ou seja que a A./Recorrida, em Agosto de 2014, teve conhecimento do direito que lhe compete, tendo tomado consciência e conhecimento da sua suposta posição de empobrecida e do seu pretenso direito à restituição por enriquecimento sem causa, de modo a poder exercê-lo.
47. Mesmo que assim não se entendesse, em última análise e sem qualquer dúvida, os factos alegados pelo R./Recorrente, nos artigos 1.º a 55.º e 227.º a 235.º da contestação, bem como os documentos juntos aos autos, apesar de extensos e complexos, ainda assim, sempre seriam necessários e essenciais para a boa aplicação do direito. E, como tal, deviam ter sido tomados em conta pelo Tribunal “a quo”, com a devida atenção e ponderação, na decisão a proferir quanto à invocada excepção de prescrição e quanto ao pedido reconvencional,
48. factos quanto aos quais se devia ter produzido ulterior prova e, por conseguinte, devia ter sido relegado para final a apreciação da excepção de prescrição e pedido reconvencional, o que o Tribunal “a quo” não fez, mas podia e devia ter feito, motivo pelo qual também deve ser revogada a Douta Decisão proferida sob recurso.
49. O Tribunal “a quo” violou e fez uma errada interpretação e aplicação das normas previstas nos artigos 195.º, n.º 1, 595.º, 607.º, n.º 5, 608.º, 615.º, n.º 1, alínea d), 623.º, do Código de Processo Civil, e dos artigos 306.º, 323.º, n.º 1, 473.º a 482.º do Código Civil. E, ainda, praticando uma nulidade processual, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, esta que, para os efeitos tidos por convenientes, é agora expressamente alegada pelo R./Recorrente, já que o Tribunal “a quo” não atendeu a todos os factos essenciais alegados nos autos pelas partes e documentos juntos, para a decisão relativa à invocada excepção de prescrição e pedido reconvencional.
50. Por isso, olhando para os factos alegados e documentos contantes dos autos, bem como tendo em conta todos os factos dados como provados na Sentença penal condenatória, não temos qualquer dúvida em afirmar que o Tribunal “a quo” devia ter interpretado as normas supra referidas no sentido de julgar desde logo procedentes a excepção de prescrição invocada e o pedido reconvencional, ou, em última análise o Tribunal “a quo” podia e devia ter relegado para final a apreciação da excepção de prescrição e do pedido reconvencional, produzindo ulterior prova quanto aos factos alegados nos artigos 1.º a 55.º e 227.º a 235.º da contestação,
51. termos em que, Vossas Excelências, revogando a douta sentença sob recurso proferida pelo Tribunal “a quo”, nestes termos, farão, como sempre, a habitual”
*
A A apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo e foi proferido despacho nos termos do art. 617º do CPC.
*
O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:

1- Analisar se a sentença padece de nulidade ( por não ter feito constar no elenco dos factos provados ou não provados os factos alegados na contestação-arts.1º a 55º e 227 a 235º, factos em relação aos quais deveria ter sido produzida ulterior prova e, por conseguinte, devia ter sido relegada para final a apreciação da prescrição e pedido reconvencional, devendo ter sido apreciados os documentos juntos);
2- Se ocorreu erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante;
3- E, como consequência, se deve ou não ser mantida a decisão recorrida, o que passará pela análise das seguintes questões da ação e deste recurso:
. se ocorreu ou não a prescrição do direito de ação ( num caso de enriquecimento ocasionado por uma união de facto, quando inicia a contagem do prazo de prescrição do direito de pedir a restituição e como contar o mesmo) e a improcedência do pedido reconvencional.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na decisão sob recurso são os seguintes:

1. Factos provados

Com relevância para o efeito, resulta provado nos autos que:
1- por sentença proferida no processo 296/18.1GBBCL do Juízo Local Criminal de Barcelos - Juiz 2, transitada em julgado em 16-12-2019, em que era arguido o aqui réu e ofendida e demandante civil a aqui autora, conforme certidão de fls. 343 a 354, foram julgados provados, entre outros, os seguintes factos:
“1.º- O arguido e D. V. mantiveram um relacionamento de comunhão de cama, mesa e habitação desde 2006 até Março de 2018.
2.º- Dessa relação nasceu a 26 de Junho de 2009, G. T..
3.º- Pouco tempo após o início do relacionamento, e a partir do momento em que D. V. deixou de trabalhar e passou a residir com o arguido, este, no interior da residência sita na Travessa …, em …, Barcelos, por diversas vezes e sempre que a ofendida vestiu camisolas com decote ou saia curta, disse-lhe “tu assim não sais de casa, ou trocas de roupa ou não sais de casa”, “não tem jeito nenhum a roupa que vestes, andas para aí a oferecer-te, não tens homem em casa? Andas à procura de alguém, não te satisfaço”.
4.º- Com frequência quase diária o arguido disse à ofendida “tu não és ninguém, tu sem mim não és nada, ninguém gosta de ti”, dizendo-lhe ainda que a mesma mantinha relacionamentos amorosos com outros homens.
5.º- Em dia não concretamente apurado do ano de 2014, a ofendida disse ao arguido que queria terminar o relacionamento que mantinham.
6.º- Ao ouvir tal intenção o arguido pegou numa faca de cozinha, apontou-a à ofendida e em simultâneo disse-lhe que antes que a matava.
7.º- De seguida agarrou as mãos da ofendida e retirou-lhe os anéis que esta trazia nos dedos, pegou no seu telemóvel e partiu-o, partiu objectos que se encontravam no interior da residência e rasgou diversas peças de vestuário da ofendida, que se encontravam nos armários da residência.
8.º- Nesse dia a ofendida saiu de casa, contudo cerca de um mês depois, perante as promessas do arguido de que iria alterar os seus comportamentos, a ofendida regressou a casa e retomou o relacionamento com o arguido.
9.º- Durante cerca de dois meses o arguido manteve um comportamento mais tranquilo, volvidos os quais retomou as suas condutas e continuou a dizer à ofendida “não tem jeito nenhum a roupa que vestes, andas para aí a oferecer-te, não tens homem em casa? Andas à procura de alguém, não te satisfaço, tens outros”, querendo com isto dizer e como tal era entendido pela ofendida que esta mantinha relacionamentos amorosos com outros homens.
10.º- Cansada dos comportamentos a que o arguido a sujeitava, a ofendida no dia 3 de Março de 2018, disse-lhe que queria terminar o relacionamento.
11.º- No dia seguinte, o arguido disse-lhe “tu gostas de mim, estás é possuída por um espírito mau, tens o diabo no corpo”.
12.º- Desde esse dia e até ao dia 16 de Março de 2018, dia em que saiu de casa, o arguido, pelo menos por uma vez, levou a ofendida a um centro de espiritismo, contra a sua vontade, dizendo-lhe que estava possuída por um espírito mau”;
2- o réu foi citado para os termos da presente ação em 25 de Outubro de 2019, face ao conteúdo do A/R de fls. 23.
*
IV. Do objeto do recurso.

1- Analisar da existência da nulidade da sentença:

O recorrente entende que a sentença é nula.
Para o efeito, nas conclusões, invoca a alínea d) do art. 615º do CPC e sustenta, em síntese, que é nula a sentença por omissão de pronúncia, na medida em que não conheceu da alegação aduzida na contestação, nos artigos 1.º a 55.º e 227.º a 235.º, factos quanto aos quais se devia ter produzido ulterior prova e, por conseguinte, devia ter sido relegado para final a apreciação da exceção de prescrição e pedido reconvencional, o que o Tribunal “a quo” não fez, mas podia e devia ter feito, motivo pelo qual deve ser revogada a Douta Decisão proferida sob recurso.
E nas alegações sustentou a nulidade da sentença invocando as al.s b) e c) do nº1 do art. 615º do CPC, concluindo que “ o Tribunal “a quo” violou e fez uma errada interpretação e aplicação das normas previstas nos artigos 195.º, n.º 1, 595.º, 607.º, n.º 5, 608.º, 615.º, n.º 1, alínea d), 623.º, do Código de Processo Civil, e dos artigos 306.º, 323.º, n.º 1, 473.º a 482.º do Código Civil”.
A Mª Juíza a quo pronunciou-se nos termos do art. 617º do CPC e, em síntese, sustentou inexistir qualquer nulidade nos seguintes termos: “Nas suas alegações de recurso, o réu veio, além do mais, arguir a nulidade da decisão recorrida, invocando o disposto no art. 615º/1-b) e c) do Código de Processo Civil.
De acordo com tal normativo, a sentença é nula, entre outras situações, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Contudo, salvo o devido respeito por opinião diversa, não nos parece que a decisão proferida padeça do vício que lhe foi apontado pelo recorrente, uma vez que dela consta a motivação de facto e de direito que sustenta a decisão.
Por outro lado, a fundamentação aduzida encontra-se em harmonia com a decisão proferida, inexistindo a oposição a que alude o citado normativo legal.
Acresce que a decisão recorrida se afigura inteligível, na medida em que é clara quanto ao seu sentido, não se afigurando ser passível de várias interpretações ou comportar sentidos dúbios.
Não se vislumbra assim que se verifiquem os vícios apontados pelo recorrente. Nestes termos, entendemos não se verificar a invocada nulidade
Vejamos.

Dispõe o artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Tal norma reporta-se à falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar e não de argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos pelas partes, aos quais não tem de dar resposta especificada ou individualizada, conforme tem vindo a decidir uniformemente a nossa jurisprudência.
Daí que possa afirmar-se que a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
Com efeito, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes.
Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (cfr. nomeadamente Acs. da Relação de Lisboa de 10.2.2004, e de 6.3.2012, acessíveis em www.dgsi.pt).
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.
Face ao exposto, a invocada desconsideração da referida alegação (de factos) contida na contestação é manifestamente inidónea para que se possa considerar que a sentença recorrida incorreu na nulidade a que vimos aludindo.
Com efeito, um facto ou um acervo de factos não se confundem com uma questão.
Por outro lado, a ocorrerem erros na fixação dos factos e na apreciação das provas – invocados pelo recorrente – não seriam, obvia e igualmente, sobreponíveis ao conceito de questão de que demos nota.
Refira-se que a falta de consideração daqueles factos constituiria, quando muito, um erro de julgamento que poderia ser suprido por este Tribunal mediante a inclusão daquela factualidade no elenco dos factos provados, se fosse o caso ( cfr. art. 662º do CPC).
Mas, a nosso ver, nem sequer tal inclusão é devida na medida em que, sem prejuízo do que infra se explanará acerca da apreciação da prova, os factos ( nº 1 a 55º e 227 a 235º da contestação) cuja prova o recorrente pretendia ver produzida dizem respeito à mesma questão já julgada no processo-crime e plasmada na sentença condenatória transitada em julgado.
Em verdade, no caso vertente, igualmente não se verifica qualquer omissão de pronúncia, pela simples razão de resultar claramente da decisão recorrida que o tribunal pronunciou-se sobre a questão da cessação definitiva da união de facto e da questão da interrupção da coabitação pelo período de cerca de um mês, fazendo ali constar tal facto provado, aliás sempre de acordo com os factos provados na sentença penal.
A ser assim, como sem dúvida resulta que é, temos que a decisão recorrida não deixou de conhecer qualquer questão que devesse conhecer.
Acresce que, como já referimos, o vício apontado pelo recorrente aludindo às alíneas b) e c) do art. 615º não pode confundir-se com a discordância relativamente ao julgamento da referida matéria de facto em função da valoração feita em face dos elementos probatórios disponíveis no processo, que se reporta a questão de erro de julgamento e não ao vício da decisão gerador da nulidade da mesma.
Não se verifica, por isso, qualquer vício de falta e/ou deficiência de fundamentação da matéria de facto determinante da nulidade de decisão recorrida, improcedendo, pois, a invocada nulidade.
*
Na verdade, o recorrente, quanto à questão da data da cessação da união de facto e dada como provada no facto nº1, sustenta duas posições nas conclusões de recurso:

1) por um lado, diz que que a decisão recorrida faz uma interpretação errada dos factos dados como provados na sentença penal e faz uma outra interpretação dos factos, o que inculca aceitação dos factos elencados como provados e não provados;
2) por outro lado, já diz que “ há factos quanto aos quais devia ser produzido ulterior prova e, por conseguinte, devia ter sido relegada para final a apreciação da exceção e pedido reconvencional”.
Ou seja, a respeito desta última posição, podemos concluir que questiona a eficácia probatória extraprocessual da sentença penal condenatória transitada em julgado proferida contra o Réu no processo-crime em que foi arguido e que correu os seus termos sob o n.º 296/18-JLC de Barcelos-J2.
Mas, então pergunta-se: quais os efeitos, na presente ação cível ( cuja questão suscitada sobre a prescrição do direito de ação e sobre o pedido reconvencional é a mesma: saber a data da cessação da união de facto entre A e R) da decisão penal condenatória definitiva proferida no mencionado processo-crime em que foi arguido V. C., réu nos presentes autos?
Por uma questão prática iremos seguir de perto o já analisámos a propósito desta temática, no Acordão desta Relação de Guimarães e também relatado pela ora relatora, de 24-09-2020, publicado in dgsi.pt: “ A propósito da «oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória» o artigo 623.º do CPC na formulação vigente, que reproduz, sem alterações, o anterior artigo 674.º – A, na redacção do Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, dispõe:
“A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção”.
Os artigos 153.º e 154.º do Código de Processo Penal de 1929 regulavam especificadamente a eficácia, em ação cível, das sentenças, condenatórias e absolutórias, proferidas em ações penais.
O Código de Processo Penal de 1987, não continha essa regulamentação, limitando-se a referir, no seu art.º 84.º que “a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.
Ficou, assim, por determinar a eficácia a atribuir às decisões penais, condenatórias ou absolutórias, de ilícitos penais, que sejam também fontes de direito de indemnização por responsabilidade civil quando os pedidos respectivos não tenham sido formulados na jurisdição criminal, no enxerto da acção civil ali permitido, mas não obrigatório.
Foi para preencher essa lacuna na lei que o legislador veio aditar, através do Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, ao Código de Processo Civil, os artigos 674.º.-A e 674.º.-B, que correspondem os actuais artigos 623.º e 624.º.
O artigo 623.º do CPC regula o caso de ter havido condenação pelo ilícito criminal e não ter sido exercido, nessa acção, o direito de pedir a indemnização. Ao contrário do que acontecia com a lei anterior segundo a qual a decisão condenatória definitiva constituía caso julgado quanto à existência e qualificação do facto punível e quanto à determinação dos seus agentes – presentemente a sentença condenatória transitada constitui apenas presunção ilidível quanto aos pressupostos da punição, aos elementos típicos legais e as formas do crime (art.º 10º a 30º do Cód. Penal). A decisão proferida em processo penal constitui, assim, uma presunção juris tantum (ilidível mediante prova em contrário de terceiro) da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação. Com efeito e, como sustenta Lebre de Freitas e Isabel Alexandre“não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença”. (1)
Essa possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado, a quem já foi dada a faculdade do contraditório. Ele teve oportunidade de juntar provas e aduzir as razões de facto e de direito, no processo penal e, não há falta de contraditório.
Também Lopes do Rego (2) defende que a norma do artigo 674.º- A (actual 623.º do CPC) estabelece “a relevância “reflexa” do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza cível, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo, nomeadamente em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza “prática” de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada”.
O artigo 623.º do CPC refere-se aos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como aos respeitantes às formas do crime.
Reconhecendo-se que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, não poderá, em todo o caso, recusar-se também que essa eficácia se encontra necessariamente limitada aos factos – efectivamente – apurados na acção penal. (3)
Em suma: segundo Lebre de Freitas, em síntese, se a presunção é invocável perante terceiros relativamente ao processo penal, entre as partes é inilidível.
Em verdade, enquanto os terceiros são alheios ao processo penal, o arguido teve oportunidade de defesa e de contraditório sobre as questões suscitadas.
Não se trata aqui, diretamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um ato jurisdicional com trânsito em julgado; não está, porém, em causa a eficácia do caso julgado (ao contrário do que a inserção dos artigos que regulam a matéria poderia levar a supor), mas a eficácia probatória da sentença penal. Ver MARIA JOSÉ CAPELO, “A sentença entre a autoridade e a prova: em busca de traços distintivos do caso julgado civil”, Coimbra, Almedina, 2015, ps. 149-224 e 394 : afastada a ideia de que a vinculação do juiz cível à sentença penal constitua um fenómeno de caso julgado, a autora entende que nos encontramos perante uma "situação sui generis, cuja consagração não tem em consideração tanto a dificuldade de prova dos factos "presumidos", mas sim uma "confiança” na averiguação dos factos feita pelo juiz penal” (4).
Por isso, aquela mesma autora ( in ob cit, p. 169) refere que Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, no CPC Anotado,Vol.II, reconduzem o fenómeno a uma questão de “ distribuição de prova”, explicitando, por exemplo, a propósito da eficácia de uma sentença penal condenatória que “ o titular do interesse ofendido não tem ónus de provar na ação civil subsequente o ato ilícito praticado nem a culpa de quem praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e nexo de causalidade”.
Sem embargo, e seja qual for a teoria utilizada para classificar a situação ( ou a do efeito reflexo do caso julgado ou a teoria da extensão do caso julgado ou da eficácia probatória da sentença penal, enquanto questão de distribuição de prova), cremos que ainda assim se poderá dizer com toda a propriedade o seguinte:
-em relação ao arguido condenado no processo penal opera plenamente e sem quaisquer restrições a autoridade do caso julgado da sentença penal no que tange à matéria da autoria, da ilicitude e da culpa, estando vedado ao arguido num subsequente processo cível entre as mesmas partes ilidir a presunção decorrente da sentença penal. Dito de outro modo: os factos que foram considerados provados na sentença penal, têm de ser atendidos na sentença cível como factos provados, não sendo admissível contrariá-los por qualquer meio de prova.
- apenas um terceiro é que poderá ilidir a presunção estabelecida no art. 623º do CPC, em homenagem ao princípio do contraditório, alegando factos e produzindo prova para demonstrar que o arguido não praticou os factos pelos quais foi condenado.
Revertendo ao caso concreto, encontra-se, em definitivo, assente na sentença condenatória penal a autoria dos atos integradores da violência doméstica e a intenção que presidiu aos mesmos e o enquadramento dos mesmos- enquanto a vítima ( ora autora) e o arguido ( ora Réu) mantiveram um relacionamento de comunhão de cama, mesa e habitação desde 2006 até março de 2018 ( facto nº1), apenas constituindo questão a decidir nos presentes autos ( para efeitos de deslinde da invocada prescrição do direito de ação) e pedido reconvencional a determinação da data da cessação da união de facto.

Saliente-se ainda que na dita sentença penal apurou-se aquele facto, bem como, além do mais:
- Em dia não concretamente apurado do ano de 2014, a ofendida disse ao arguido que queria terminar o relacionamento que mantinham ( facto nº5);
… Nesse dia a ofendida saiu de casa, contudo cerca de um mês depois, perante as promessas do arguido de que iria alterar os seus comportamentos, a ofendida regressou a casa e retomou o relacionamento com o arguido(facto nº8).
… Cansada dos comportamentos a que o arguido a sujeitava, a ofendida no dia 3 de Março de 2018, disse-lhe que queria terminar o relacionamento ( facto nº10)
… No dia seguinte, o arguido disse-lhe “tu gostas de mim, estás é possuída por um espírito mau, tens o diabo no corpo” ( facto nº11).
… Desde esse dia e até ao dia 16 de Março de 2018, dia em que saiu de casa, o arguido, pelo menos por uma vez, levou a ofendida a um centro de espiritismo, contra a sua vontade, dizendo-lhe que estava possuída por um espírito mau ( facto nº12).

Ora, atentas as considerações acima expostas, não merece censura a decisão recorrida, na parte em que atendeu ao valor probatório da sobredita sentença penal condenatória transitada em julgado e deu como provados aqueles factos provados no referido processo crime, pelo que não se impõe indagar sobre qualquer outro facto a respeito, nomeadamente os alegados na contestação por, além do mais, já terem sido alvo de contraditório no processo penal em que intervieram a ora autora e réu, respetivamente, ali como arguido e vítima (ofendida).
Por outro lado e ainda que assim se não entendesse, aquela alegação contida na contestação resulta numa verdadeira defesa por impugnação, pelo que consoante se refere no AC do STJ de 11.07.2019 ( in dgsi), os factos alegados pelo réu em sede de contraprova não se traduzem em factos essenciais nos termos do art. 5ºnº1 do CPC, incumbindo apenas ao autor provar os factos essenciais, como é o caso, pelo que é sobre estes que devem recair os juízos positivos e negativos e já não sobre os factos impugnativos.
Será, pois, com base no acervo factual anteriormente enunciado que hão de ser resolvidas as restantes questões suscitadas no presente recurso.
Com efeito, cremos mesmo que o recorrente assim o entendeu quando numa primeira aproximação conforme referimos, aceitando tais factos concluiu que a decisão recorrida interpretou erradamente os factos, porquanto na sua ótica “ estando provados dois distintos episódios da vida da A e R, em tudo iguais no que respeita à dissolução/rutura das referidas uniões de facto que mantiveram, por vontade de ambos e com intenção de não as restabelecer, em cada um desses episódios”, pelo que conclui que já estaria provada na sentença penal que a cessação da união de facto ocorreu num primeiro momento em 11.08.2014.
Vejamos se assim é.
Uma vez que não há que alterar qualquer acervo factual, entramos na

IV- Reapreciação de direito

Prima facie, importa salientar que a presente ação foi intentada na base da alegação do instituto do enriquecimento sem causa, o qual indubitavelmente permite solucionar os casos em que um dos membros da união adquiriu em seu exclusivo nome determinado bem, com o dinheiro de ambos, impelindo o formal adquirente a restituir ao outro membro aquilo com que injustamente se locupletou.
O caso dos autos tem esta configuração, constituindo objeto de controvérsia determinar se o exercício do direito à restituição, por parte da A. se mostra, ou não, atingido pela prescrição e quanto ao pedido reconvencional determinar se é de fixar em 2014 a data da dissolução da união de facto iniciada em Dezembro de 2006.

A decisão recorrida respondeu negativamente à questão da prescrição consignando, a propósito, o seguinte:
Ora, tal sentença (penal) é cristalina quanto ao período que perdurou a relação de união de facto entre autora e réu, quando, no facto nº 1, julga provado que os mesmos mantiveram um relacionamento de comunhão de cama, mesa e habitação desde 2006 até Março de 2018.
É certo que consta igualmente provado que - Em dia não concretamente apurado do ano de 2014, a ofendida disse ao arguido que queria terminar o relacionamento que mantinham; Nesse dia a ofendida saiu de casa, contudo cerca de um mês depois, perante as promessas do arguido de que iria alterar os seus comportamentos, a ofendida regressou a casa e retomou o relacionamento com o arguido.
É certo igualmente que foi ainda julgado como provado que Cansada dos comportamentos a que o arguido a sujeitava, a ofendida no dia 3 de Março de 2018, disse-lhe que queria terminar o relacionamento, bem como que No dia seguinte, o arguido disse-lhe “tu gostas de mim, estás é possuída por um espírito mau, tens o diabo no corpo” e que Desde esse dia e até ao dia 16 de Março de 2018, dia em que saiu de casa.
No entanto, salvo o devido respeito por opinião contrária, de tais factos não poderá concluir-se, como pretende o réu, que ocorreu a cessação da união de facto em 2014 e que, posteriormente, se iniciou uma nova relação que veio a terminar em Março de 2018.
Na verdade, como consta da fundamentação da sentença: depois de um interregno de cerca de um mês e meio, D. V. explicou que foi na convicção de que o arguido podia mudar que aceitou reatar o relacionamento, logo adiantando que as suas expectativas saíram goradas cerca de um par de meses depois, voltando o arguido a assumir as mesmas atitudes e a proferir as mesmas expressões, motivando assim a rotura definitiva da relação, ocorrida em Março de 2018.
Deste modo, da fundamentação da sentença resulta claro o motivo pelo qual se julgou como provado o facto descrito no seu nº 1 (que autora e réu mantiveram um relacionamento de comunhão de cama, mesa e habitação desde 2006 até Março de 2018), nela se esclarecendo que a ruptura definitiva da relação só veio a ocorrer nesta última data.
Por outro lado, é certo que nos termos do art. 8º/1- b) da citada Lei 7/2001, a união de facto cessa por vontade de um dos seus membros.
Contudo, não poderá deixar de exigir-se que essa vontade seja definitiva e inequívoca nesse sentido, não nos parecendo que baste a interrupção da comunhão de vida por um breve período de tempo para que se possa considerar como verificada e consumada essa cessação, antes que, similarmente ao que sucede com os fundamentos do divórcio, os factos terão de demonstrar uma ruptura definitiva da relação (cfr. o art. 1781º do Código Civil)…
… nas circunstâncias do caso concreto, mantendo-se a autora na fruição dos bens em causa após o reatamento da relação com o réu cerca de um mês depois de ter saído de casa em 2014, e mantendo-se, por isso, a causa que determinou o alegado enriquecimento do réu, não se vislumbra encontrarem-se nessa altura, em 2014, reunidos os pressupostos de facto e de direito do direito à indemnização por enriquecimento sem causa, designadamente que, naquele interregno de um mês de separação temporária, a autora pudesse ter tomado consciência e conhecimento da sua ora alegada posição de empobrecida e do invocado direito à restituição por enriquecimento sem causa, de modo a poder exercê-lo.
Nestes termos, a excepção de prescrição terá necessariamente de improceder.”

Também a idêntica conclusão a sentença chegou quanto à reconvenção deduzida:

Com efeito, considerando-se como demonstrado que a relação entre autora e réu terminou em 2018, a pretensão deduzida pelo réu mostra-se manifestamente improcedente.”
Vejamos.
O artigo 482 do CC estabelece dois prazos prescricionais do direito à restituição por enriquecimento: um de três anos a partir do momento em que o credor teve conhecimento do enriquecimento, isto é do seu direito e do responsável e um de vinte anos a partir do momento da verificação do enriquecimento, independentemente de qualquer conhecimento. (5)
Sublinhe-se que de acordo com o AC do STJ de 31.05.2011 (in dgsi) “ Face ao disposto no art. 482.º do CC, o momento relevante para o início do prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa surge quando cessa a união de facto e, por via disso, cessa a fruição em comum dos bens adquiridos durante a união de facto com a participação de ambos os membros da união.”.
Em síntese, nos casos de enriquecimento ocasionados por uma união de facto, o prazo de prescrição do direito de pedir a restituição por ele provocado só se inicia com o termo ou dissolução da união.

O caso vertente, tratando-se inequivocamente de uma união de facto de vários anos, tem a peculiaridade de ter tido uma interrupção na convivência entre os membros da união de facto de cerca de um mês, uma separação temporária.
Daí que se coloque a seguinte questão: é tal separação temporária suficiente para consubstanciar uma vontade de cessação da união de facto pelos membros da união de facto e prevista no art. 8º da Lei 7/2001?
Diz a decisão recorrida que existiu união de facto entre 2006 e Março de 2018, com uma interrupção de convivência de comunhão na mesma casa durante cerca de um mês, no ano de 2014, e que essa separação temporária dos membros da união de facto que durava há 8 anos, não tem a virtualidade de a dissolver, sendo que a vontade para fazer cessar a união de facto prevista no art. 8º da Lei 7/2002 tem de ser definitiva e inequívoca nesse sentido, como ocorre similarmente com os fundamentos do divórcio e o que não aconteceu no caso concreto,
O Réu/recorrente entende que dos factos provados se retira que ocorreu a cessação da união de facto em 2014 e que, posteriormente e passado um mês, se iniciou uma nova relação que veio a terminar em Março de 2018.
Vejamos.
A propósito do requisito temporal ter de decorrer consecutivamente para que a união de facto tenha proteção e seja considerada como alguma doutrina a denomina de “união de facto protegida”, a Lei n.º 23/2010 não é explícita quanto à matéria.
Exige apenas que se verifique modo de vida análogo ao dos cônjuges.
Escreve Jorge Duarte Pinheiro: «Se os membros da união de facto deixarem de coabitar, sem que haja da parte de qualquer um deles o propósito de pôr fim à comunhão de habitação, o prazo suspende-se. Por ex: forma-se a união de facto: um ano depois, por motivos profissionais, um dos membros tem de passar a residir em localidade distante da residência comum. [...]. Logo que as partes retomem a vida em comum, volta a correr o prazo que é condição da união de facto protegida» (6) ( sublinhado nosso).
Ou seja, aqui a falta de coabitação não representa rutura de ligação.
Sabe-se igualmente que o distanciamento físico entre os cônjuges não é impeditivo do cumprimento dos deveres conjugais, tal como foi referido na decisão recorrida.
Ora, também cremos, conforme sustentado na decisão recorrida, que sendo o modelo legal da união de facto o casamento (7), tem que se admitir que, tal como neste pode haver períodos de separação (ou de falta de coabitação) sem que tal implique a rutura do casamento, assim deve acontecer na união de facto.
Ou seja, a separação de facto, segundo previsão expressa na lei, para poder conduzir à rutura do casamento, implica não só a falta de comunhão de vida entre os cônjuges, mas também o propósito, pelo menos de um deles, de não a restabelecer (art. 1782 do CC).
“ A separação verifica-se quando se preencham dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo é a falta de vida em comum dos cônjuges, a ausência de coabitação. O elemento subjetivo consiste no propósito de não restabelecer a vida em comum, numa disposição interior de não retomar a coabitação; esse propósito tanto pode ser de ambos os cônjuges como de só um deles” (8)
Ora, o mesmo vale para a união de facto.
Assim sendo, convém saber se houve rutura da união de facto porque um dos membros revelou vontade de não restabelecer a vida em comum (a união de facto extingue-se por vontade de um dos seus membros, de acordo com a alínea b), do n.º 1 do art. 8.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio), ou se deixaram de coabitar por outras razões (por exemplo, motivos profissionais ou outros, por exemplo para desanuviarem de uma crise conjugal esporádica).
Por conseguinte, para que se possa dizer que cessou a união de facto, não basta constatar a existência de uma separação de facto.
Tem que se provar também que existe, da parte de pelo menos um dos unidos de facto, o propósito de não a restabelecer.
E, por isso, embora o facto de os unidos de facto deixarem de dormir na mesma casa, comerem à mesma mesa e viver debaixo do mesmo teto, aponte para a falta de comunhão de vida, tal não basta para se poder concluir pela cessação da união de facto, devendo fazer-se ainda a prova do elemento subjetivo da vontade de, pelo menos um deles, romper com a união de facto (de forma direta ou através de um conjunto suficientemente significativo de circunstâncias objetivas que apontem nesse sentido, isto é, que o permitam afirmar com base numa presunção natural ou judicial).
E isto será assim tanto mais que atualmente a união conjugal e a união de facto não são as únicas formas de organização da vida em comum íntima. Há uma terceira forma: a união sem comunhão de habitação-“LAT” ( Living Apart Together). Aqui as partes decidem residir habitualmente em locais distintos, sem abdicar de outros elementos que permitem identificar a existência de um casal: comunhão sexual, fidelidade, entreajuda. Verifica-se um propósito bilateral de vida a dois, mas as partes não residem nem pretendem residir no mesmo local. (9)
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Volvendo ao caso sub judicio, provou-se que A e R viveram um com o outro em união de facto desde 2006 até Março de 2018 e, em 2014, devido a comportamentos do réu consubstanciadores de maus tratos e violência doméstica em face da lei penal por a autora lhe ter dito que queria terminar o relacionamento, a autora foi viver para uma outra casa, o que aconteceu durante cerca de um mês, após o qual o casal retomou a sua relação (na casa onde habitaram, como se marido e mulher fossem, até Março de 2018). Ou seja, a autora perante as promessas do arguido de que iria alterar os seus comportamentos, regressou a casa e retomou o relacionamento com o réu.
Ora, destes factos não se extrai o referido elemento subjetivo – o propósito de um deles de não restabelecer a vida em comum – e o conjunto deles não aponta inequivocamente para a existência dele, sendo certo que não se retira tal conclusão apenas do facto de a autora ter dito uma única vez ao réu, em data não determinada do ano de 2014, que pretendia terminar o relacionamento entre ambos, sendo certo que este foi o mote para os atos pelos quais o réu foi condenado e a autora saiu de casa por cerca de um mês.
A ida da ré para outra casa, na sequência de tais atos não aponta para mais nada do que isso, ou seja, que ela estava zangada com o que o réu tinha acabado de perpetuar na sua pessoa, não que quisesse acabar definitivamente com a relação, sendo certo que o comportamento posterior deles naquele curto lapso temporal demonstra exatamente o contrário e aponta precisamente para que a ocorrência tivesse um enquadramento mais de uma crise do que uma rutura.
Em verdade, a vontade que existiu de retomar a vida em comum logo após cerca de um mês aponta nesse sentido de que a cessação da coabitação não foi definitiva não foi com um sentido de intenção de extinguir aquele vínculo.
Em suma, considera-se que a sentença teve razão em considerar irrelevante o período de separação de cerca de um mês, porque não se demonstra que a relação entre eles tenha cessado (considerada a inexistência do elemento subjetivo: propósito de pelo menos um deles, nomeadamente a autora, de não restabelecer a comunhão de vida entre eles).
Não chegou, pois, a haver uma interrupção definitiva da situação de facto e da situação jurídica que já tinha sido adquirida, aliás como sucede similarmente no caso do art. 1781º do CC, tal como realça a decisão recorrida.
Visto o caso dos autos à luz destes considerandos, o direito à restituição por enriquecimento a que a A. se arroga não se mostra prescrito e isto porque se prova que a união de facto entre esta e o R terminou em Março de 2018, data em que a autora saiu de casa e não mais reataram a relação como casal e a ação foi proposta em 2019 e, assim, antes de decorridos três anos sobre o termo da união de facto.

Acresce dizer que a decisão recorrida chega à mesma conclusão fazendo apelo ao disposto no art. 482º do CC nos termos do qual o prazo da prescrição se conta a partir da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e este ocorre quando cessa a união de facto e cessa a fruição dos bens adquiridos durante a união.
O R/ recorrente entende que existem nos autos alegações da própria autora e documentos que demonstram o contrário, ou seja, que a autora, em Agosto de 2014, teve conhecimento do direito que lhe compete, tendo tomado consciência e conhecimento da sua suposta posição de empobrecida e do seu pretenso direito à restituição por enriquecimento sem causa, de modo a poder exerce-lo.
Ou seja, reporta-se aos seguintes documentos: queixa-crime de violência doméstica, nos termos da qual se lê “ decidiu acabar e separar-se manifestando tal intenção ao mesmo” e que no mesmo processo teve outras declarações como “relação terminou no dia 11-08-2014”.
Ainda se refere aos documentos relativos ao veículo Renault adquirido pela autora e pela mesma utilizado desde Fevereiro de 2014; e o documentos da transferência da propriedade da recorrida para o recorrido do Mercedes em 27.08.2014.
Salvo o devido respeito, e em face da matéria dada como provada, não vislumbramos como é que o Reu/recorrente pretende que se retire a conclusão de que a autora tem conhecimento do seu direito à restituição desde agosto de 2014 em virtude quer do teor dos documentos quer do teor das declarações plasmadas no processo crime, nomeadamente quando já vimos que a matéria factual mantém-se inalterada.
Com efeito, valem aqui as razões acima já analisadas nomeadamente em face dos factos dados como provados e entendimento do tribunal a respeito da data da cessação da união de facto e irrelevância da interrupção da convivência entre A e R durante aquele lapso temporal de um mês.
Em verdade, reafirma-se que se deve continuar a perfilhar o entendimento segundo o qual o prazo de prescrição de três anos do direito à restituição fundada no enriquecimento sem causa, dada a deslocação patrimonial do empobrecido a favor do património do enriquecido em razão da união de facto, surge com o termo da união de facto e esta, no caso vertente, ocorreu em Março de 2018.
Daí concordarmos inteiramente com o que ressuma da decisão recorrida: “mantendo-se a autora na fruição dos bens em causa após o reatamento da relação com o réu cerca de um mês depois de ter saído de casa em 2014, e mantendo-se, por isso, a causa que determinou o alegado enriquecimento do réu, não se vislumbra encontrarem-se nessa altura, em 2014, reunidos os pressupostos de facto e de direito do direito à indemnização por enriquecimento sem causa, designadamente que, naquele interregno de um mês de separação temporária, a autora pudesse ter tomado consciência e conhecimento da sua ora alegada posição de empobrecida e do invocado direito à restituição por enriquecimento sem causa, de modo a poder exercê-lo.”
Por tudo o exposto, improcedem todos os argumentos esgrimidos pelo recorrente na presente apelação.
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V- Decisão:

Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Guimarães, 4 de novembro de 2021

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes


1. In CPC Anotado, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Vol. 2º, p. 763, 4ªed.
2. Cf. “Comentários ao Código de Processo Civil”, pag, 448). No mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 14.12.2006; proc. 06B3599, acessível em www.dgsi.pt.
3. Neste sentido também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/01/2010; proc. 1164/07.8TTPRT.S1, acessível em www.dgsi.pt., cujo sumário se transcreve parcialmente: «1. A decisão penal condenatória, transitada em julgado, no respeitante ao autor e à ré, que intervieram na acção penal, na qualidade, respectivamente, de arguido e de assistente, tem eficácia absoluta no tocante aos factos constitutivos da infracção, que não poderão, assim, voltar a ser discutidos dentro ou fora do processo penal, sendo o julgamento desses factos definitivos quanto ao arguido. 2. A possibilidade de ilidir a presunção iuris tantum estabelecida no artigo 674.º-A do Código de Processo Civil, conferida a terceiros, nunca é concedida ao arguido condenado, mas apenas aos sujeitos processuais não intervenientes no processo criminal, em homenagem ao princípio do contraditório (…)».
4. In CPC Anotado Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Vol. 2º, p. 763, 4ªed.
5. Cfr., por todos, Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações, edição de 1981, volume 2., página 65 e AC STJ de 28-03-1995, in dgsi.
6. In “ “ O Direito da Família Contemporâneo”, 7ª ed, p.642
7. Ainda que se entenda que a afinidade jurídica entre a união de facto e a convivência em economia comum é maior do que aquela que se verifica entre a primeira e a união conjugal- vide para mais desenvolvimentos sobre a natureza jurídica da união de facto e da convivência em economia comum, Jorge Duarte Pinheiro, “ “ O Direito da Família Contemporâneo”, 7ª ed, p.679
8. Vide, Jorge Duarte Pinheiro, ob cit, p.581.
9. Vide, Jorge Duarte Pinheiro, ob cit, p.687.