Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
119/13.8GAVVD.G1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: Pode ser valorado o depoimento de testemunha que no julgamento relata uma conversa mantida com o arguido sobre os factos que são objeto da acusação, ainda que o arguido tenha optado por não se pronunciar sobre tais factos no exercício do seu direito ao silêncio.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO
No processo sumário n.º119/13.8GAVVD do 1ºJuízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, por sentença proferida oralmente, em 10/4/2013, a arguida Maria F... foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.292.º n.º1 do C.Penal, na pena 75 dias de multa, à taxa diária de €6,00, a pagar em 6 prestações mensais, iguais e sucessivas e nos termos do art.69.º n.º1 al.a) do C.Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses.
Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O douto tribunal a quo baseou a sua decisão de julgar provado que a ora Recorrente conduziu o veículo de matrícula 02-...-56, no tempo, lugar e circunstâncias melhor descritas na acusação, exclusivamente no depoimento das testemunhas CAMILO S... e JOÃO G....

2. As referidas testemunhas depuseram, no que àquele concreto facto diz respeito, transmitindo aquilo que lhes teria sido comunicado pela ora Recorrente em momento posterior à eventual prática do crime, ou seja, prestaram um depoimento indirecto, de ouvir dizer, tal como é confirmado no douto aresto recorrido.

3. A Arguida, em obediência ao direito ao silêncio, que lhe assiste, não prestou declarações.

4. Ora, nos termos das disposições conjuntas dos arts. 125º e 129º, nº 1 CPP, não vale como prova o depoimento indirecto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao Arguido que se remete ao silêncio, pelo que, por conseguinte, esses depoimentos não poderão ser valorados, nem por via de presunções decorrentes desse conhecimento indirecto.

5. Solução contrária à ora defendida poria em causa o direito ao silêncio e o princípio da não auto-incriminação do Arguido, constitucionalmente consagrados.

5. Nesta conformidade, o art. 129º, nº 1 CPP é inconstitucional, por violação, entre outros, do art. 32º, nº 1 CRP, quando interpretado no sentido de permitir o depoimento indirecto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao Arguido depois da ocorrência do crime, quando este, presente no julgamento, tenha feito uso do direito ao silêncio.

6. Valorando, como valorou, os mencionados depoimentos, o douto tribunal a quo laborou, para além do mais, num erro notório de apreciação da prova, uma vez que lançou mão de elementos probatórios que não poderiam ter sido ponderados.

7. Expurgando a prova ilegalmente obtida, supra referida, nenhum outro elemento probatório existe que comprove que a Recorrente era a condutora do veículo em causa, pelo que não restaria alternativa ao tribunal recorrido a julgar esse facto como não provado, e, em consequência, a absolver integralmente a Arguida.
Sem prescindir,

8. Ainda que se venha a considerar que o depoimento indirecto das testemunhas CAMILO S... e JOÃO G... poderia ter sido valorado, o que não se consente e apenas aduz por mera cautela e dever de patrocínio, impunha-se que tivesse sido julgado como não provado que a Arguida conduziu o veículo em mérito.

9. Decorre dos depoimentos das mencionadas testemunhas que estes, uma vez chegados ao local, se depararam com a Arguida já fora do veículo acidentado, mais tendo afirmado que não houve necessidade de desencarceramento de vítimas - cfr. depoimento das testemunhas CAMILO S..., gravado através do sistema integrado de gravação digital, na sessão de audiência e julgamento de 10 de Abril de 2013, entre as 10h43m52s e as 10h48m57s, nomeadamente entre os 00m47s a 01m03s e 04m49s a 05m00s do segmento de gravação a ele referente e JOÃO G..., gravado através do sistema integrado de gravação digital, na sessão de audiência e julgamento de 10 de Abril de 2013, entre as 10h49m38s e as 10h53m53s, nomeadamente entre os 00m31s a 00m41s do segmento de gravação a ele referente.

10. A testemunha JOÃO G... não negou, inclusivamente, a possibilidade de haver mais passageiros no veículo acidentado, que tenham saído do veículo - cfr. depoimento da referida testemunha, nomeadamente entre os 03m13s a 03m44s do segmento de gravação a ele referente.

11. Ainda que comunicando factos transmitidos pela ora Recorrente, as citadas testemunhas não garantiram, com a certeza exigida em processo penal, que a Arguida era a condutora do veículo acidentado, antes tendo utilizado termos como “supostamente” e “possivelmente” - cfr. depoimento da testemunha CAMILO S..., entre os 02m13s a 02m24s do segmento de gravação a ele referente, e da testemunha JOÃO G..., entre os 03m45s a 04m10s do segmento de gravação a ele referente.

12. Acresce que, a Arguida estava comprovadamente etilizada, e, segundo o afirmado na douta decisão recorrida, teria provavelmente um trauma, um stress pós-traumático.

13. Ora, estas circunstâncias impediram necessariamente a transmissão precisa e fiel dos factos ocorridos, ou, quando menos, limitaram a percepção correcta da realidade comunicada, pelo que as declarações assim tomadas não poderão servir de prova no âmbito dos presentes autos,

14. ainda para mais quando desacompanhadas de elementos probatórios adicionais, como é comprovadamente o caso dos autos.

15. Pelas razões expostas, resulta evidente que a decisão em mérito deveria, quando menos, e em obediência ao princípio in dubio pro reo, ter julgado como não provado que a Arguida conduziu o veículo motorizado, e, em conformidade, tê-la absolvido, decisão que ora se pugna, em substituição da recorrida.

O Ministério Público junto da 1º instância respondeu ao recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida [fls.93 a 95].
Remetidos os autos ao tribunal da Relação e aberta vista nos termos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pela improcedência do recurso [fls.114 e 114 v.].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos elevados à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
Antes de enunciarmos a factualidade provada e não provada, afigura-se-nos necessário realçar o seguinte: este tribunal da relação, porque no recurso foi suscitado o erro notório na apreciação da prova e a sentença havia sido proferida oralmente ao abrigo do art.389-A do C.P.Penal, ordenou a transcrição da sentença, a efectuar pelo tribunal recorrido, ao abrigo do disposto no art.101.º n.º5 do C.P.Penal.
Sucede que a transcrição enviada pelo tribunal recorrido, concretamente na parte relativa à motivação, se encontrava redigida em termos que, por vezes, denotava manifestas incorrecções, tornado o texto pouco inteligível, o que obrigou a relatora deste processo a ouvir o CD e fazer ela a transcrição fiel das palavras do Sr.Juiz que procedeu ao julgamento.
Faz-se um alerta para que as transcrições devem corresponder ipsis verbis às palavras proferidas, devendo o magistrado antes de ordenar a remessa dos autos à relação certificar-se da conformidade da transcrição, o que, no caso, não ocorreu.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos e respectiva motivação:
Factos provados
« - No dia 29 de Março de 2013, cerca das 9h34m, a arguida Maria F... conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 02-...-56, na Rua P..., em Vila Verde.
-A arguida conduzia, em tais circunstâncias de tempo e lugar, com uma taxa de alcoolemia de 1,77 g/l em virtude de, momentos antes, ter ingerido bebidas alcoólicas.
-Sabia a arguida que ingeriu bebidas alcoólicas em momento anterior ao início da condução do veículo automóvel em quantidade que provocou a taxa de alcoolemia acima mencionada, superior ao mínimo legal que a faria incorrer em responsabilidade criminal, e não obstante, decidiu conduzir o referido veículo.
-Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tal conduta é proibida por lei e punida, além do mais, com proibição de conduzir veículos com motor.
- É viúva, tem um filho de oito anos, está desempregada, vive em casa de uma amiga e tendo vivido em casa dos pais quando o marido era vivo.
- Completou ou tem a frequência do 11 ° ano e completou o 9° ano.
- Não tem antecedentes criminais.
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Não provado que não fosse a arguida que conduzisse o veículo, mas um terceiro.
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Motivação
A arguida remeteu-se ao silêncio, e tem esse direito, e, portanto, não é prejudicada por isso. Mas desse silêncio não resulta, ou não pode resultar, nenhuma convicção sobre os factos.
Foi produzida prova testemunhal. Ouvimos um militar da GNR na primeira sessão de julgamento, o agente autuante, e, efectivamente, esse senhor não se deslocou ao local no momento do acidente.
Foi ao Hospital Escala Braga, e depois fez, lavrou o expediente, o auto de notícia, e toda a documentação, bem como exame que foi feito, ou seja, não tendo assistido ao despiste, não se tendo deslocado ao local, não pode obviamente, directamente, dizer quem é que conduzia o veículo. O Tribunal, depois, por requerimento do MP e oficiosamente, no uso dos poderes de que está investido, decidiu ouvir mais prova testemunhal e ordenou também a junção de documentação. A documentação do Hospital Escala Braga consta aqui do processo e comprova o atendimento hospitalar (fls. 51 e seguintes).
Foi ouvida a Sra. Deolinda C..., a senhora que terá sido a primeira pessoa que se apercebeu do despiste, mas a senhora, com clareza, disse que não viu quem ia a conduzir o veículo. Apenas confirmou o despiste e que, mais tarde foi chamado o INEM, ou ambulância, como se costuma dizer.
Mas, para a formação da convicção do Tribunal foi decisivo o depoimento dos dois bombeiros ouvidos: quer o senhor Silva, quer o senhor Gonçalves, foram claríssimos, depuseram com rigor e com isenção, e, no exercício das suas funções, disseram, reproduziram o que ouviram, o que foi transmitido pela arguida, que estava ferida, que estava em ansiedade. O senhor Gonçalves até reparou, até referiu que estava com trauma, com stress pós-traumático momentâneo, obviamente, e, portanto, essas informações são absolutamente essenciais. A senhora mostrava preocupação com o destino do veículo, pois ninguém poderia ficar com ele a não ser a senhora que estava a conduzir, a arguida, e referiu também que era ela a condutora do veículo, era ela que estava a conduzir o veículo, que estava a acabar de levar um amigo a casa e estava de regresso à suas própria residência, tendo tido o acidente.
Estes depoimentos são absolutamente esclarecedores.
Mal andaria eu se, como magistrado, não julgasse esta acusação procedente, porque, senão, teríamos que ter alguém a assistir aos acidentes de viação.
As coisas não se passam assim. A prova é uma prova pode ser uma prova directa ou pode ser uma prova indirecta com base em presunções. E portanto, como estes senhores bombeiros mostraram isenção e independência, depuseram com rigor, não têm qualquer interesse na causa, não conhecem a senhora e são profissionais do socorro digamos assim, eu penso que, com base nestes depoimentos, não resulta qualquer tipo de dúvida de que era a senhora que conduzia o veículo. De outro modo, o Tribunal tem que dizer que um terceiro é que era o condutor do veículo. Face à prova produzida, parece ir longe de mais, muito longe até.
Temos também o talão que foi realizado pela senhora no próprio Posto, que acusou 1,77 gramas por litro de sangue. E temos o Auto de Notícia, que está elaborado também, e portanto, face a esta prova toda, e o Certificado de Registo Criminal, que está limpo, face a esta prova toda, reitero, portanto, é minha convicção profunda de que os factos foram praticados pela arguida, sem margem para qualquer dúvida.»

Apreciação
Atento o disposto no art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso está delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º n.º2 do C.P.Penal.
Face às conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal ad quem são as seguintes:
-erro notório na apreciação da prova por valoração de prova proibida,
-erro de julgamento

1ªquestão: Na tese recursiva, uma vez que a convicção do tribunal no sentido de que era a arguida que conduzia o veículo automóvel nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas nos autos, se baseou tão-só nos depoimentos das testemunhas CAMILO S... e JOÃO G..., sendo que estas prestaram depoimentos indirectos, as suas declarações não podem ser valoradas dado que a arguida se remeteu ao silêncio em audiência de julgamento.
Estabelece o art.128.º n.º1 do C.P.Penal que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova.
Apesar desta regra, não está completamente arredado o testemunho de “ouvir dizer”, dispondo o art.129.º do C.P.Penal, sob a epígrafe Depoimento indirecto : «1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2.(…)
3. Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos».
O depoimento indirecto é, pois, uma excepção, só podendo ser valorado nos estritos termos previstos nesta norma.
Muito se tem discutido acerca da distinção entre depoimento directo e depoimento indirecto. A este propósito é elucidativo o Ac.R.Porto de 24/9/2008, proc. n.º0843468, relatado pelo Desembargador António Gama, disponível in www.dgsi.pt., «O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto.»
Considerando que o depoimento indirecto é a comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro, afigura-se-nos que não constitui depoimento indirecto o prestado por uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, pois versa sobre factos de que directamente teve conhecimento na conversa que estabeleceu com o arguido.
No caso presente as testemunhas relataram a conversa que tiveram com a arguida, pelo que estamos perante depoimentos directos; diferente seria se as testemunhas relatassem o que ouviram dizer a um dos interlocutores numa conversa a que não assistiram.
Por não estamos perante depoimentos indirectos cuja validade dependa do chamamento a depor da testemunha-fonte, não tem aplicação o regime do art.129.º n.º1 do C.P.Penal.
Mas ainda que se considerasse, como defende alguma jurisprudência, que as declarações de uma testemunha relatando conversa mantida com o arguido constituem depoimento indirecto, sempre in casu os depoimentos das testemunhas podiam ser valorados, não obstante o silêncio da arguida.
«É inquestionável que, nos termos do normativo do artigo 343º, do CPP, o arguido é inteiramente livre de se pronunciar sobre os factos da acusação ou sobre os que resultarem da discussão da causa, assistindo-lhe inclusivamente o direito de se remeter ao silêncio, sem que daí o tribunal possa extrair ilações, em seu prejuízo ou benefício. Porém, a coberto desse silêncio não pode impedir que o tribunal aprecie livremente os depoimentos das testemunhas, ainda que a razão de ciência das mesmas radique em informações ou declarações que o arguido lhe tenha prestado. Com efeito, nesses casos, não pode afirmar-se a afectação do contraditório, que é a razão subjacente à proibição de depoimentos indirectos estabelecida no artigo 129º, do C. P. Penal.» - Ac.R.Guimarães de 17/5/2004, proc. n.º2012/03.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves.
O direito ao silêncio não visa beneficiar o arguido, condicionando a prova testemunhal; decorre antes do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que imputa ao arguido, facultando a este um comportamento que possa obstar à sua auto-incriminação.
Ora, estando o arguido presente em audiência, pode sempre contraditar a testemunha que relatou aquilo que lhe ouviu dizer, requerer as diligências que entenda pertinentes, de forma a demonstrar a sua falta de idoneidade.
Esta interpretação não viola o art. 32.º n.º e 5 da C.R.P, pois, conforme decidiu o Ac.T.C de 8/7/99, publicado no DR, II Série, de 9/11/99, o art.129.º n.º1 do C.P.Penal, «interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatam conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido». Esta posição foi reafirmada no Ac.T.C n.º440/99, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
Assim, a valoração dos depoimentos das testemunhas CAMILO S... e JOÃO G... não constitui prova proibida.
A recorrente invocou o erro notório na apreciação da prova – art.410.º n.º2 al.c) do C.P.Penal, com fundamento no facto do tribunal ter recorrido à valoração de prova proibida.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, é manifesto que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão diferente daquela a que chegou o tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detectado pelo homem médio.
Porém, como afirmam Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 2ºVolume, pág.515, «o erro notório na apreciação da prova não ocorre apenas quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum, mas também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis».
Analisando a fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, concluímos não assistir razão à recorrente quanto ao invocado vício do art.410.º n.º2 al.c) do C.P.Penal; o que a recorrente faz é divergir do modo como o tribunal a quo apreciou a prova produzida em audiência, sustentando que o tribunal recorreu à valoração de prova proibida, o que, como assim se explicitou, não aconteceu.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
2ªquestão: sustenta a recorrente que, mesmo a considerar-se que os depoimentos das testemunhas CAMILO S... e JOÃO G... podem ser valorados, o tribunal não apreciou correctamente a prova produzida, não podendo dar-se como provado que era a arguida/recorrente quem conduzia o veículo, pois a testemunha JOÃO G... não afastou a possibilidade de haver mais vitimas que já tivessem saído do veículo.
Dispõe o art.412.º n.º3 do C.P.Penal «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente provados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
E o n.º4 do mesmo dispositivo estabelece «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.»
A impugnação ampla da matéria de facto não conduz a um novo julgamento em que relação aprecia toda a prova produzida em 1ªinstância, como se o julgamento já realizado não existisse; ao invés, os recursos, em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, os quais devem ser indicados com menção das provas que os evidenciam.
Note-se que o art.412.º n.º3 al.b) do C.P.Penal refere «As provas que impõem decisão diversa da recorrida» e não as que permitiriam uma decisão diversa. A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da primeira instância, o qual beneficia da imediação e da oralidade, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados e que são imperceptíveis na gravação de um depoimento, como a linguagem gestual, o olhar.
Tendo presente o que acabou de se referir, a impugnação apresentada pela recorrente não colhe pois, a pretexto de pretender impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, vem, na verdade, colocar em causa a formação da convicção do tribunal recorrido.
Ouvidas as concretas passagens de prova gravada dos depoimentos das testemunhas indicadas na motivação e nas conclusões do recurso, não impõem aquelas uma decisão diversa da recorrida, face às regras da experiência comum e respeitando a livre convicção do julgador.
A recorrente não invoca erros de julgamento, questionando tão-só a convicção do tribunal. «A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 184/2004, de 24.11.2004, in www.tribunalconstitucional.pt
Em síntese, a recorrente não aponta erros de julgamento, antes se insurgindo quanto à convicção do tribunal a quo, pelo que não colhe a impugnação ampla da matéria de facto.
Soçobra, pois, também este fundamento do recurso.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça.