Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1854/14.9TBGMR.G1
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
RESOLUÇÃO
ENTREGA DA COISA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Independentemente da questão da validade ou invalidade da claúsula de reserva de propriedade do bem (veículo automóvel) a favor do financiador (não fornecedor ou alienante), este último tem, antes de mais, direito ao cumprimento do contrato de mútuo/financiamento, através do reembolso das quantias mutuadas e demais acréscimos legais, designadamente os juros convencionados, a respectiva cláusula penal (situada dentro dos limites legais) e imposto de selo.

2. Não obstante a dita cláusula de reserva de propriedade, em caso de incumprimento por parte do mutuário o financiador não tem direito à entrega do bem cuja aquisição foi financiada, mas antes ao cumprimento do contrato, ou seja ao pagamento dos valores acima referidos.

3. Todavia, por iniciativa do mutuário e com o seu consentimento, sempre poderá o mutuante fazer vender extrajudicialmente o bem em apreço e com o valor assim obtido deduzir os valores em dívida no âmbito do contrato de financiamento.

4. Esta entrega e posterior venda do bem financiado apenas fará extinguir a reserva de propriedade a favor do financiador, mas não o contrato de mútuo/financiamento, a menos que o mutuante assim o declare (dando quitação do cumprimento integral do contrato) ou se o valor obtido com a aludida venda for o bastante para a liquidação integral do valor mutuado e demais acréscimos convencionados e legais.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente: A.

Recorrido: “ Banco B. ”
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1. BANCO B., sociedade anónima, com sede em , propôs contra A., solteiro, maior, residente em , e contra C., residente em , acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato destinada a obter a condenação no pagamento da quantia de € 5.014,33 acrescida de €391,71 de juros vencidos até ao presente - 16 de Julho de 2014 - e de € 15,67 de imposto de selo sobre os juros vencidos e ainda, os juros que sobre a dita quantia de € 5.014,33, se vencerem, à taxa anual de 17,710%, desde 17 de Julho de 2014 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair.


Para tanto, alega o incumprimento de um empréstimo por si efectuado ao Réu e incumprido por este último, o que conduziu à sua resolução, sendo certo que a Ré era fiadora solidária no dito contrato.

2. O Réu deduziu oposição, alegando, que celebrou um contrato de financiamento para a aquisição de um veículo automóvel, depois renegociado (em 25.08.2010), mas que entregou o veículo automóvel em apreço (cuja propriedade ficou reservada a favor da ora Autora) a 17.12.2013.
Desta forma, e sendo certo que a propriedade do veículo nunca foi para si transferida, face à entrega do mesmo ocorreu a resolução do contrato de financiamento.
Mais, alegou, ainda, que a cláusula penal é excessiva, pois é pessoa modesta, que ficou sem veículo, e tem de pagar tudo como o contrato fosse cumprido, ainda mais cedo, sem qualquer hipótese de negociação.

3. O Autor ofereceu resposta, pugnando pela improcedência das excepções invocadas e concluiu como na petição inicial.
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4. Procedeu-se à audiência de julgamento e foi, nessa sequência, proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou os RR. a pagar ao Autor a quantia de € 5. 014, 33, acrescida de juros à taxa anual de 16, 710%, desde 23.06.2014 e de imposto de selo sobre os juros à referida taxa de 4% até integral pagamento.
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5. Inconformado com a dita sentença, dela veio interpor recurso de apelação o Réu A., deduzindo as seguintes
CONCLUSÕES:
1ª Pelas razões e fundamentos do ponto 3. do ponto II. do corpo destas alegações impõe-se que no facto 6º dos factos provados deve constar, apenas, “ O Réu entregou ao A. o veículo , em 17 de Dezembro de 2013 ”, devendo, em consequência, o segmento fáctico “...por sua iniciativa,..., para que o A. diligenciasse proceder à respectiva venda, creditasse o valor que por essa venda obtivesse por conta do que o dito R. lhe devesse e ficando este, de pagar ao A. o saldo que viesse a verificar ficar então em débito ”, passar para os factos dados como não provados.
2ª Pelas razões e fundamentos do ponto 4. do ponto II. do corpo destas alegações impõe-se que o facto 7º dos factos provados, seja considerado não provado.
3ª O A. optou por reservar para si a propriedade do veículo automóvel, em detrimento de constituir uma hipoteca sobre o mesmo, pelo que a propriedade do veículo não se transferiu para o recorrente.
4ª Não consta do autos, nem o A. alegou que antes ou no momento da entrega do veículo, tivesse prescindido ou cancelado a reserva de propriedade do mesmo, pelo que, a propriedade do veículo nunca se transferiu para o recorrente e aquando da sua entrega, face à reserva, o A. era o seu proprietário.
5ª Ora, com a entrega do veículo ao Autor, detentor da reserva de propriedade, devido ao incumprimento do contrato por parte do recorrente, o referido contrato celebrado entre o A. e o recorrente cessou automaticamente, deixando, assim, o recorrente de estar obrigado a cumprir a sua obrigação de pagamento, pelo que, não deve ao A. a quantia reclamada na presente acção.

Assim, concluiu, a sentença recorrida, por erro de aplicação e de interpretação violou o disposto no artº 342º, artº 393º e artº 409º, todos do Código Civil, devendo ser revogada e substituída por outra, que julgue a acção improcedente com as legais consequências.
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O Banco Recorrido ofereceu contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença proferida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTOS.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, n.º 3, e 639º, nºs 1 e 2, do NCPC.

Neste seguimento, as questões suscitadas no recurso e a dirimir são, em primeiro lugar, a alteração da matéria de facto provada e não provada, nos termos propostos pelo Recorrente e, em segundo lugar, da alegada resolução do contrato de financiamento/mútuo por via da entrega do veículo a que se faz referência nos autos e, ainda, se essa entrega importa a extinção total do débito do Réu e ora apelante.

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III). FUNDAMENTOS de FACTO.

Em termos factuais, o tribunal de 1ª instância julgou a causa nos seguintes termos:

FACTOS PROVADOS:

1.º O A., no exercício da sua atividade comercial, por contrato escrito particular datado de 25 de Agosto de 2010, que aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos, concedeu ao Réu crédito direto, com vista ao pagamento de débitos anteriores, nomeadamente um destinado à aquisição de um veículo automóvel de marca , modelo , com a matrícula SX, em que foi constituída reserva de propriedade, que se manteve na renegociação.
2.º Nos termos do contrato celebrado, o Autor emprestou ao Réu a importância de Euros 8.795,05 com juros à taxa nominal de 13,710% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão com imposto de selo incluído, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida, a serem pagos, nos termos acordados, em 66 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 5.10.2010 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.
3.º As prestações acordadas, no montante de € 197,15 cada, seriam pagas, mediante transferência bancária a efetuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para uma conta bancária, sediada em , titulada pelo ora Autor.
4.º Conforme acordado, a falta de pagamento três ou mais prestações sucessivas, implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações, tendo sido estipulado

que nelas se incluíam os juros remuneratórios e demais encargos incorporados no montante de cada prestação mencionada nas Condições Especificas.
5.º Mais foi acordado que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada - 13,710% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 17,710%.
6.º O Réu por sua iniciativa, entregou ao A. o veículo SX, para que o A. diligenciasse proceder à respetiva venda, creditasse o valor que por essa venda obtivesse por conta do que o dito R. lhe devesse e ficando este, de pagar ao A. o saldo que viesse a verificar ficar então em débito.
7.º O valor obtido com a venda do veículo, foi imputado às prestações em mora à data da venda, ficando ainda em conta corrente o valor de € 111,57.
8.º O Réu não pagou a 41.ª prestação e seguintes, - num total de 26 - vencida a primeira em 5 de Fevereiro de 2014, tendo o Autor comunicado ao Réu a perda do benefício do prazo contratual, por carta datada de 03/06/2014, caso não procedesse à regularização no prazo de 20 dias.
9.º A Ré C., nos termos constantes do referido contrato, assumiu perante o A., a responsabilidade de fiador solidário, ou seja, fiador e principal pagador, por todas as obrigações assumidas no contrato referido pelo Réu.
10.º Do contrato constam cláusulas contratuais previamente inseridas, sem margem de negociação das mesmas.

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IV). FUNDAMENTOS de DIREITO.


1. Da alteração da matéria de facto provada e não provada.
A primeira questão suscitada na apelação, reporta-se à alteração da matéria de facto dada provada e não provada na sentença proferida em 1ª instância.

Nesta matéria, o apelante discorda do julgamento proferido quanto aos pontos de facto n.º 6 e n.º 7 do elenco dos factos provados.

Quanto ao n.º 6, sustentando que ali se deveria ter julgado como provado apenas que o Réu entregou ao Autor o veículo SX, em 17.12.2013, restando não provado que «por sua iniciativa…» e «… para que o Autor diligenciasse proceder à respectiva venda, creditasse o valor que por essa venda obtivesse por conta do que ele R. lhe devesse e ficando este de pagar ao Autor o saldo que se viesse a verificar ficar em débito.»

Quanto ao n.º 7, sustentando que o mesmo deveria antes ter sido julgado não provado.

Como fundamento desta impugnação, invoca o apelante os documentos de fls. 89 (declaração de recepção do veículo), de fls. 34 (doc. n.º 4 junto com a p.i.), o depoimento da testemunha J., assim como, quanto ao ponto n.º 7, a ausência de prova documental do mesmo, sendo certo que, esse facto, não pode resultar provado apenas à luz do depoimento de testemunhas, as quais, aliás, não revelaram ter conhecimento directo ou pessoal da matéria em causa.

Vejamos.



A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao Recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao Recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação.

Sob a epígrafe ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe, com efeito, o n.º 1 do art. 640º do CPC., que “ Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. ”

Mais, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas

tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. ” (sublinhado nosso)

No caso em apreço, mostrando-se observados os aludidos ónus à luz da conjugação do corpo das alegações e das conclusões, cumpre decidir da matéria de facto impugnada e antes referida.

E decidir afirmando que, com o devido respeito, não assiste razão ao apelante.

Relativamente à matéria de facto constante do ponto n.º 6, a nosso ver, ela resulta, de forma clara e linear, à luz da declaração de fls. 89 (declaração de recepção do veículo), da qual emerge, não só, que o veículo foi entregue pelo Réu Brás Cassiano (e por sua iniciativa pois que era ele o detentor ou possuidor do veículo em causa e, inexistindo – como é o caso – notícia de uma qualquer actuação de apreensão ou captura unilateral ou coerciva do veículo por parte do financiador e ora Autor, de facto só ele (Réu) estava em condições de efectuar a entrega do veículo (acompanhado de declaração de venda e respectivas chaves – vide a citada declaração a fls. 89), actuando, por isso, nessas circunstâncias, por sua livre vontade e/ou iniciativa, mas, ainda, que, não obstante essa entrega, o banco não renunciava a «exigir do cliente as importâncias que ele (o cliente) eventualmente lhe deva ou possa dever relativamente ao contrato que com o mesmo celebrou (n.º 946833), não dando o Banco A. por isso quitação ao seu cliente das importâncias em dívida», sendo certo que uma tal declaração lhe foi lida e foi por ele próprio (Réu) assinada («Foi lida a presente declaração e vai ser assinada»), assinatura esta que não foi posta em crise pelo seu autor, ou seja o Réu e ora apelante.

Como assim, à luz de uma tal declaração subscrita pelo Réu o mesmo dela teve conhecimento e da mesma ficou ciente, sendo certo que não dão conta os autos de uma qualquer actuação ou missiva do Réu ao Autor (anterior à contestação da presente acção) no sentido de contrariar, duvidar ou esclarecer do ali levado a seu conhecimento, o que seria o normal que tivesse sucedido se, de facto, a entrega não tivesse ocorrido por sua iniciativa, com o seu consentimento e nas demais circunstâncias narradas no dito documento.

Assim, conjugando estes elementos, com os depoimentos das testemunhas J. (gestor de clientes do Autor) e H. (gerente do balcão do banco Autor em - que revelaram conhecer, com precisão e rigor das circunstâncias e contactos que precederam a entrega do veículo pelo Réu (em face do incumprimento de várias prestações do negócio em apreço), bem como das causas/razões desse incumprimento (incapacidade financeira do Réu para efectuar o reembolso das prestações mensais acordadas) e do propósito do Réu - aceite pelo banco Autor - de efectuar a venda do veículo para abatimento da dívida (o que se evidencia do texto da citada declaração, assinalando-se que a entrega não prejudica a cobrança de outras quantias em débito no âmbito do contrato de financiamento/mútuo antes firmado pelas partes) -, não nos assaltam dúvidas quanto à convicção formada pelo tribunal recorrido quanto à matéria dos pontos de facto n.º 6 e 7 em discussão, convicção essa que é por nós secundada.

Com efeito, escutados integralmente os citados depoimentos, a matéria em apreço nos pontos n.º 6 e n.º 7, em termos de convicção, colhe apoio seguro, não só […]

nos referidos depoimentos (sérios, objectivos e credíveis), mas, ainda, no documento de fls. 89 dos autos, numa perspectiva do que é normal, razoável e lógico e que, estamos em crer, à luz das regras da experiência comum e do proceder honesto e sério, o Réu não podia ignorar, antes tinha que conhecer.

Acresce que, quanto ao ponto n.º 7 (ou seja ao apuramento do valor que ficou em crédito da conta corrente do Réu após a venda do veículo por si entregue), nenhum sentido tem convocar o art. 393º do Cód. Civil, sendo certo que este preceito se reporta apenas à prova de declarações negociais que, por disposição legal ou vontade das partes, tiverem de ser reduzidas a escrito, o que, manifestamente, não sucede com os factos que constam do ponto n.º 7 do elenco dos factos provados (valor em crédito na conta corrente do Réu após a realização da venda do veículo e considerando o seu produto).

E, assim sendo, nesta parte, a apelação terá, a nosso ver, que improceder, mantendo-se a factualidade julgada como provada na sentença recorrida e antes elencada.

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2. Da resolução do contrato por via da entrega do veículo em apreço e da extinção da dívida do Réu A.

Atenta a factualidade provada – ou seja a que o tribunal recorrido fixou no elenco acima transcrito – cumpre conhecer da questão suscitada pelo Réu A. nas suas conclusões, sendo certo que, como já antes referimos, são estas que fixam o «thema decidendum» da apelação, salvo no que for matéria de conhecimento oficioso.

Nesta sede, a (única) questão suscitada pelo Réu e ora apelante reporta-se à alegada resolução do contrato de financiamento/mútuo celebrado com o ora Autor, resolução essa operada por via da entrega do veículo em apreço nos autos (de que nunca foi ele, Réu, proprietário) e, por via disso, à alegada cessação «automática» do dito contrato, «deixando, assim, o recorrente de estar obrigado a cumprir a sua obrigação de pagamento, pelo que não deve ao Autor a quantia reclamada na presente acção.» - vide conclusões 3ª, 4ª e 5ª das conclusões do recurso.

Salvo o devido respeito, cremos ser seguro que a pretensão recursiva do ora apelante, nos termos em que a mesma se mostra colocada e tendo presente o específico e concreto contrato em causa (mútuo/financiamento para aquisição de um bem móvel – automóvel), não pode colher.
Vejamos.

Em primeiro lugar, sustenta o Réu e apelante que, ao efectuar a entrega do veículo em causa, procedeu à resolução do contrato de financiamento e, assim, o aludido contrato cessou «automaticamente».

Neste conspecto, é de referir que a resolução consubstancia uma declaração unilateral receptícia, adoptada por um dos contraentes, tendo por base um facto posterior à celebração do contrato, com vista à destruição da relação contratual, seja, como é regra, com efeitos retroactivos, ou não. – cfr. arts. 433º e 434º do Cód. Civil. Vide, neste sentido, A. VARELA, “ Direito das Obrigações ”, II volume, Almedina, 4ª edição, pág. 265, P. ROMANO MARTINEZ, “ Da Cessação do Contrato ”, Almedina, 2ª edição, pág. 179 e ALMEIDA COSTA, “ Direito das Obrigações ”, Almedina, 11ª edição, pág. 319.


A aludida declaração não está sujeita a forma, pode ser judicial ou extra-judicial e pode, ainda, revestir a forma expressa ou tácita, em conformidade com o disposto no arts. 217º, n.º 1 e 219º do Cód. Civil.

Como refere ALMEIDA COSTA, op. cit., pág. 319, em regra, exige-se que o autor invoque e prove o fundamento da resolução (incumprimento definitivo ou cumprimento defeituoso), mas pode ela ficar, em certos casos, dependente da mera discricionariedade das partes. Vide, ainda, no mesmo sentido, A. VARELA, op. cit., pág. 265.

Em qualquer caso, no entanto, como resulta do n.º 1 do art. 432º do Cód. Civil, a resolução do contrato terá de colher fundamento legal (v.g., arts. 801º, n.º 2, 802º, 808º ou 437º, todos do Cód. Civil) ou convencional, através de convenção prevista pelas partes outorgantes no negócio em causa. Vide, por todos, neste sentido, A. VARELA, P. LIMA, “ Código Civil Anotado ”, I volume, Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 409, ALMEIDA COSTA, op. cit., pág. 319 e C. MOTA PINTO, “ Teoria Geral do Direito Civil “, Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 627-628.

Ora, no caso dos autos, a alegada resolução do contrato de financiamento ou mútuo (bancário) não colhe apoio em qualquer fundamento legal (sendo, ademais, seguro que nenhum facto se mostra invocado pelo Réu, a título de incumprimento ou desvio contratual, imputável ao financiador e ora Autor), ou em qualquer fundamento convencional, sendo certo que do negócio outorgado entre o ora Autor e o Réu (contrato denominado de «mútuo com fiança n.º 946833», constante a fls. 30-33 dos autos) não se vislumbra uma qualquer claúsula que sustente ou suporte a resolução do negócio em apreço por parte do cliente/consumidor/mutuário, mais ainda sem qualquer causa ou fundamento, a não ser a própria entrega do bem cuja aquisição foi financiada e cujo

preço, diga-se, terá sido pago ao respectivo fornecedor ou vendedor do bem pelo ora Autor.

Acresce que, independentemente do exposto, aceitando o próprio Réu que, à data de entrega do veículo em causa, se encontrava já em incumprimento/mora quanto a prestações vencidas do aludido mútuo (vide facto provado em 6º do elenco da sentença recorrida e conclusão 5ª das alegações de recurso do apelante), sempre não lhe assistiria o direito à resolução do contrato, em conformidade com o preceituado no art. 438º do Cód. Civil.

Uma tal conduta seria, a todas as luzes, inaceitável, constituindo um abuso de direito, na modalide de «tu quoque», pretender o ora Réu prevalecer-se do seu próprio incumprimento do contrato e incapacidade para pagamento das prestações de reembolso do capital mutuado e demais acréscimos para proceder à extinção do mesmo por meio de resolução.

E de denúncia do contrato também não se pode falar pois que o contrato de mútuo ou financiamento em apreço não consubstancia, claramente, um contrato de execução duradoura e por tempo indefenido (como o arrendamento, o contrato de fornecimento ou de sociedade), sendo certo que a denúncia é uma «figura privativa» deste tipo de contratos. Vide, neste sentido, A. VARELA, “ Das Obrigações…”, cit., pág. 269, ALMEIDA COSTA, op. cit., pág. 322 e L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações “, I volume, Almedina, 7ª edição, pág. 137-140.

Desta forma, é de concluir que, no caso em apreço, se não vislumbra um qualquer fundamento para a alegada cessação do contrato de mútuo/financiamento em

apreço, não colhendo apoio factual ou legal a alegada resolução (ou denúncia) do mesmo.

Todavia, sempre se põe a questão de saber, em face dos termos do recurso do apelante e do seu objecto definido pelas respectivas conclusões, se a entrega do veículo por si efectuada ao Banco Autor (e sendo certo que, segundo o apelante, foi este último sempre o proprietário do veículo) conduziu à extinção ou cessação do aludido contrato de financiamento efectuado e, portanto, à sua obrigação de pagamento das demais prestações emergentes desse contrato.
Vejamos.

Antes de mais deve salientar-se que não está em causa, em face dos termos do recurso, avaliar da validade ou invalidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do terceiro financiador, sendo certo que essa questão, não obstante o AC UN do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2008 (in DR, Iª série, de 14.11.2008), se mantém controvertida. Vide sobre a controvérsia em apreço, apenas a título exemplificativo, AC RL 10.02.2015, relator Des. PIMENTEL MARCOS, AC RG de 21.05.2009, relator Desª ISABEL ROCHA, AC RP de 18.12.2013, relator Des. ALBERTO RUÇO, todos com referência às várias posições perfilhadas e menção de várias outras decisões dos Tribunais da Relação, e, ainda, na doutrina, por todos, F. GRAVATO MORAIS, “ Contratos de Crédito ao Consumo ”, Almedina, 2007, pág. 301 e segs… e MARIA ISABEL MÉNERES CAMPOS, “ A reserva de propriedade do vendedor ao financiador ”, Coimbra Editora, 2013, pág. 382.

Todavia, independentemente da posição que se venha a acolher no âmbito da citada controvérsia, resulta, a nosso ver, incontornável a conclusão de que a reserva de propriedade quando convencionada a favor do financiador (como é o caso), não é reconduzível directamente à situação prevista no art. 409º, n.º 1 do Cód. Civil.

Trata-se, segundo julgamos, de conclusão que resulta evidente quando se atenta em que a situação ali prevista se reporta aos casos em que quem «reserva» a propriedade da coisa vendida é o alienante, ou seja quem detém a propriedade da coisa vendida ou alienada, e que, por essa via, e como garantia do cumprimento pela outra parte das obrigações que para ela decorrem do contrato de alienação, mantém na sua esfera jurídica o direito de propriedade da coisa alienada, excepcionando assim a regra consagrada no art. 408º do Cód. Civil, da eficácia translativa dos contratos reais (quoad effectum), diferindo para momento posterior – o momento em que se complete o cumprimento das obrigações da outra parte – aquele efeito translativo próprio da compra e venda. Vide, neste sentido, por todos, L. MIGUEL PESTANA de VASCONCELOS, “ Direito das Garantias ”, 2015, 2ª edição, pág. 419.

Diferentemente, segundo se nos afigura, o financiador, ainda que beneficie de uma claúsula de reserva de propriedade, não deteve o direito de propriedade sobre o bem em causa, limitando-se a financiar a sua aquisição pelo devedor/mutuário, sendo que este último, de facto, sempre teve a posse e fruição/utilização do bem cuja aquisição foi financiada.

Com efeito, e ao contrário do que parece ser o entendimento do ora apelante, a financiadora, a nosso ver, nunca adquiriu o veículo em questão através do contrato de compra e venda celebrado com o fornecedor ou vendedor (e proprietário) do veículo, sendo este adquirido pelo ora Réu e apelante.

A única intervenção que o Autor e ora apelado teve nesse contrato foi, enquanto entidade financiadora, a de, em substituição do adquirente do veículo (o Réu A.), pagar


ao fornecedor e proprietário do veículo o respectivo preço, sendo, depois, reembolsada do respectivo capital e demais acréscimos convencionados e legais.

Por outro lado, a estipulação no contrato de mútuo celebrado da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador (não alienante), não tem esse efeito translativo.
Como se refere no AC RP de 18.04.2013, relator Des. FREITAS VIEIRA, in www.dgsi.pt, sendo embora a reserva de propriedade a favor do financiador uma figura anómala - não sendo o proprietário do veículo ou o seu alienante não se concebe facilmente como possa o financiador reservar (manter) para si a propriedade do mesmo -, a sua admissibilidade decorre, por um lado do princípio da liberdade contratual e da estreita conexão entre contrato de compra e venda e o contrato de mútuo celebrado para financiar aquela compra, sendo nítida a interdependência de interesses entre o triângulo de sujeitos contratuais, o que, por sua vez, legitimaria que, no âmbito da intangibilidade da liberdade negocial das partes (art. 405º do Cód. Civil), fosse acordado que a reserva de propriedade tutelasse, não já directamente o interesse do vendedor do veículo, mas, outrossim, estivesse apta a garantir o direito de crédito da financiadora.

No entanto, abstraindo desta «vexata questio», em qualquer caso, como também se refere no citado aresto, na reserva de propriedade a favor do financiador, estaremos perante uma figura em que avulta a natureza de garantia de crédito que, não podendo ser qualificada como uma verdadeira garantia real das obrigações, se destina a conferir ao credor uma posição jurídica que lhe permite realizar, à custa do valor do valor da coisa (se for ele o bastante), o respectivo crédito.



Essa garantia, reportando-se à reserva de propriedade, assenta no facto de as partes terem acordado expressamente que a transferência da propriedade para o comprador só se dará, não com o recebimento do preço pelo vendedor, como ocorreria numa compra e venda normal, mas com o pagamento da totalidade da dívida ao financiador, que nesse acordo foi sub-rogado nos direitos do vendedor.

Desta forma, com as aludidas características, «da referida garantia resulta que o credor, por força do contrato de mútuo celebrado, tem antes de mais direito ao cumprimento através da entrega da quantia mutuada acrescida dos juros convencionados e dos juros moratórios que forem devidos, estando o devedor obrigado perante o mutuante ao cumprimento nos termos resultantes do contrato de crédito que subscreveu, ao pagamento da quantia mutuada e dos juros antes referidos, e não através da entrega de qualquer outra prestação, nomeadamente da entrega do bem cuja aquisição aquele crédito visou financiar, mesmo que haja sido a estipulada a reserva de propriedade a favor do credor.»

E, por isso, ainda, em caso de incumprimento das prestações vencidas, como no caso sucedeu, tem o financiador, ainda que com cláusula de reserva de propriedade a seu favor, direito (apenas) a exigir o pagamento coercivo da quantia mutuada em dívida, acrescida dos demais juros convencionados, dos juros moratórios, da claúsula penal (desde que sujeita aos limites legais), mas não tem direito a exigir a entrega do bem financiado.

Sucede que, e ao contrário do que sugestivamente tenta inculcar o Réu e ora apelante, o Autor não exigiu a entrega do bem financiado, o que, à partida, seria, a nosso ver, contraditório com o contrato de mútuo para financiamento da aquisição do

mesmo por parte do ora Réu e apelante e com a natureza da reserva de propriedade, que visa garantir apenas e só o pagamento dos valores mutuados e demais acréscimos legais.

De facto, ao contrário do por si ora sustentado, foi ele próprio Réu, ciente dos valores que lhe tinham sido mutuados (no âmbito dos contratos n.ºs 830420 e 906315 e em que não procedeu ao pagamento das prestações 33ª a 84ª e 21ª a 60ª, respectivamente – o que esteve na origem da renegociação do financiamento ora em apreço – vide contrato a fls. 30-33 dos autos), ciente do incumprimento (mora) em que se encontrava relativamente ao pagamento de prestações vencidas, quem procedeu à entrega do veículo em causa, não para o Banco Autor o fazer seu, mas antes para o vender e com o produto obtido proceder ao pagamento dos valores em débito até à data, como sucedeu, resultando dessa operação um crédito a seu favor (do Réu) no montante de € 111, 57 - vide factos provados em 6º e 7º - e sem prejuízo de outras prestações que se viessem a vencer posteriormente, atinentes ao reembolso do financiamento que por via do contrato ajuizado lhe foi concedido pelo Autor.

Na verdade, o Réu e ora apelante, à luz da tese por si defendida nas presentes alegações, coloca-se como se as prestações por si pagas na vigência do contrato fossem apenas e só a retribuição ou a contrapartida pelo uso e fruição do veículo automóvel, embora com opção de compra (aluguer de longa duração ou locação financeira) - razão porque, na sua perspectiva, cessando esse gozo e fruição e tendo o veículo sido entregue e aceite pela parte contrária, deixaria de existir causa para o pagamento das prestações em apreço -, quando as prestações ora em causa não têm manifestamente essa natureza, antes, em face do contrato de mútuo/financiamento celebrado, constituem o reembolso ao mutuante/financiador dos valores que este pagou (em substituição ou no lugar do Réu) ao fornecedor/vendedor do bem em apreço.

Ora, sendo assim, como é, impõe-se-lhe esse reembolso/pagamento das mesmas, não obstante a entrega do veículo e salvo se o valor obtido pela venda do veículo fosse suficiente para a liquidação integral (e antecipada dos valores mutuados e demais acréscimos convencionados e legais) ou se, por via dessa entrega, o credor/financiador tivesse dado integral quitação do valor mutuado e os mesmos acréscimos, o que, como se viu, no caso dos autos, não sucedeu.

E, assim sendo, também esta segunda questão suscitada pelo apelante (a da entrega e cessação da sua obrigação de pagamento das demais prestações do mútuo/financiamento em apreço), terá que improceder, com a inerente e lógica improcedência «in totum» do presente recurso, sendo certo que não existem outras questões a conhecer «ex officio».

E, assim, concluindo, terá a presente apelação que improceder, sendo de manter a sentença recorrida.

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III. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença proferida.

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Custas pelo Recorrente, que ficou vencido.
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Guimarães, 2.05.2016
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Sumário:

1. Independentemente da questão da validade ou invalidade da claúsula de reserva de propriedade do bem (veículo automóvel) a favor do financiador (não fornecedor ou alienante), este último tem, antes de mais, direito ao cumprimento do contrato de mútuo/financiamento, através do reembolso das quantias mutuadas e demais acréscimos legais, designadamente os juros convencionados, a respectiva cláusula penal (situada dentro dos limites legais) e imposto de selo.

2. Não obstante a dita cláusula de reserva de propriedade, em caso de incumprimento por parte do mutuário o financiador não tem direito à entrega do bem cuja aquisição foi financiada, mas antes ao cumprimento do contrato, ou seja ao pagamento dos valores acima referidos.

3. Todavia, por iniciativa do mutuário e com o seu consentimento, sempre poderá o mutuante fazer vender extrajudicialmente o bem em apreço e com o valor assim obtido deduzir os valores em dívida no âmbito do contrato de financiamento.

4. Esta entrega e posterior venda do bem financiado apenas fará extinguir a reserva de propriedade a favor do financiador, mas não o contrato de mútuo/financiamento, a menos que o mutuante assim o declare (dando quitação do cumprimento integral do contrato) ou se o valor obtido com a aludida venda for o bastante para a liquidação integral do valor mutuado e demais acréscimos convencionados e legais.
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Dr. Jorge Miguel Pinto de Seabra
Dr. José Fernando Cardoso Amaral
Drª Helena Gomes de Melo