Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3129/13.1TBBRG.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL DAS REGRAS PROCEDIMENTAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Tendo o devedor omitido, no âmbito do processo especial de revitalização, a existência de um credor cuja existência era sua conhecida, credor esse que por isso não foi citado nem participou no processo, verifica-se uma violação não negligenciável das regras procedimentais.
II - Tal implica a anulação da lista provisória de credores e dos atos processuais subsequentes.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – Relatório;

Recorrente(s): Construções…, Ldª (credora);
Recorrido(s): J… e M…;

*****

Construções…, Ldª, credora nos autos de processo especial de revitalização proposto por J… e mulher M…, notificada da sentença de homologação do plano de recuperação, proferida em 13.03.2014, veio interpor recurso de apelação da mesma, por dela discordar, assim como do despacho judicial, a fls. 223, que indeferiu a nulidade processual por si suscitada, cujo teor foi o seguinte:
“Fls. 187/191:
Indefere-se o requerido, atentas as razões invocadas pelo administrador judicial provisório a fls. 196/199, as quais se reproduzem aqui para todos os efeitos legais”.
Nas alegações do recurso interposto formula as seguintes conclusões:
(…)

Houve contra alegações.


II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

As questões suscitadas pela credora Construções…, Ldª são a de se saber se a homologação do plano de insolvência devia ter sido rejeitada pelo facto de, aquando da sua aprovação, terem sido preteridas formalidades legais, bem como violação não negligenciável de regras procedimentais, por um lado, e se se verifica a arguida nulidade processual, por omissão da mesma credora no procedimento de negociações e elaboração do plano, face à ocultação do seu crédito por parte dos devedores, e ainda se a decisão que decidiu tal nulidade é ela também nula por falta de fundamentação, por outro.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade a considerar é a que se encontra exposta no Relatório supra.
Com incidência jurídico-processual ainda o teor da certidão judicial junta aos autos, relativa à sentença condenatória proferida nos autos de acção declarativa nº 4976/08.1TBBRG, da Vara Mista de Braga e à respectiva execução intentada sob o apenso C).
*****

2. De direito;

a) Se a homologação do plano de insolvência devia ter sido rejeitada pelo facto de, aquando da sua aprovação, terem sido preteridas formalidades legais, bem como violação não negligenciável de regras procedimentais,
b) Se se verifica a arguida nulidade processual, por omissão da mesma credora no procedimento de negociações e elaboração do plano, face à ocultação do seu crédito por parte dos devedores, e ainda se a decisão judicial que conheceu da mesma é nula por falta de fundamentação.


Por razões de sistematologia, começaremos por abordar a questão relativa à decisão de fls. 223, proferida acerca da nulidade processual invocada pela recorrente, uma vez que o seu deferimento conduzirá à anulação dos actos subsequentes, afectando assim o decidido sobre a homologação do plano de recuperação.
Em primeira linha, a recorrente insurge-se quanto à própria decisão judicial de fls. 223 que conheceu e julgou a nulidade processual por si arguida – devido à omissão/ausência da mesma credora no procedimento de negociações e elaboração do plano, face à ocultação do seu crédito por parte dos devedores - por padecer do vício de nulidade, devido a falta de fundamentação, limitando-se a aderir meramente aos fundamentos invocados pelo Sr. Administrador Judicial.

Apreciando.
O dever de fundamentar as decisões tem consagração constitucional – artº 205º, nº 1, da CRP – e ao nível do direito processual civil – artºs 154º, nº1, 607º, nº4, do CPC.
Por sua vez, a falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão acarreta a nulidade desta – artºs 613º, nº3 e 615, nº1, al. b) do CPC – ainda que jurisprudencialmente se entenda que só a falta absoluta de fundamentação traduz tal vício.

Sindicando o caso concreto, temos de convir que o despacho recorrido não apresenta de forma crítica os fundamentos de facto e de direito que conduziram à decisão, não valendo como tal a mera remissão para o requerimento de resposta-oposição apresentado pelo Sr. Administrador Judicial a fls. 196 a 199, desde logo porque o citado artº 154º, no seu nº 2, impede que a motivação consista na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
Acresce que, tratando-se de pedido controvertido, no qual a recorrente arguiu a apontada nulidade processual, susceptível de afectar a tramitação processual posterior, nomeadamente a homologação do plano de recuperação, alegando expressamente as razões do seu pedido, impunha-se que o tribunal a quo conhecesse daqueles argumentos aduzidos pela requerente/credora e especificasse em concreto os fundamentos de facto e de direito que justificaram a sua decisão de indeferimento, ao invés de se limitar a dar como reproduzidas as razões invocadas pelo Sr. Administrador, para as quais remete, sem proceder a qualquer escrutínio próprio.
Assim, no despacho recorrido é inexistente qualquer factualidade ou fundamentos de direito que tenham servido de suporte à decisão de indeferir a dita nulidade.
Cabia, portanto, repete-se, ao tribunal recorrido explicitar as razões de facto que estiveram na base do despacho recorrido e enunciar, mesmo concisamente, as razões de direito que estiveram na base da sua decisão, não traduzindo tal a mera adesão e remissão para os argumentos aduzidos pelo Sr. Administrador Judicial - cfr. apontados artºs 154º, nº2 e 607º, nºs 3 e 4, do CPC.
Ou seja, inexiste absoluta falta de fundamentação de facto.
Trata-se de omissão absoluta de fundamentação que conduz à sua nulidade, nos termos dos artºs 154º e 615º, nº1, al. b) do CPC [1], como é, aliás, jurisprudência uniforme.
Na doutrina, Antunes Varela in «Manual de Processo Civil», 2.ª edição, pág. 687, ensina que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.
*
Ainda assim, no caso concreto, impõe-se ter presente o disposto no artº 665º, do CPC, nºs 1 e 2, do CPC, o qual estatui que, muito embora seja nula a decisão, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação, desde que disponha dos elementos necessários.
É a regra da substituição ao tribunal recorrido.
In casu, está em causa o conhecimento de nulidade processual que a credora/recorrente arguiu, por ter sido precludida no procedimento de negociações e elaboração do plano de recuperação, em consequência da omissão/ocultação do seu crédito por parte dos devedores, sendo deles conhecido.
Vejamos.
Não obstante o processo especial de revitalização (PER) ser norteado, segundo ratio legis recente, por razões de economia e celeridade processual, certo é que, como emana do artº 17º-D, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aditado pela Lei nº 16/2012, de 20.04, em conjugação com os princípios orientadores que constam da Resolução nº 43/2011, de 25.10, as partes, nomeadamente os devedores, devem pautar a sua actuação no processo de recuperação/revitalização por princípios de transparência, boa fé e equidade, ressaltando-se que “ o devedor deve adoptar uma postura de absoluta transparência durante o período de suspensão, partilhando toda a informação relevante sobre a sua situação, nomeadamente respeitante aos seus activos, passivos, transacções comerciais e previsões da evolução do negócio”.
Tanto assim que, como prescreve o nº 11 do citado artº 17º-D, o devedor que não cumpra os deveres de comunicação previstos neste preceito, por omissão ou por incorrecção dos elementos de informação transmitidos, responde pelos danos causados ao credor ou credores.
Ora, o nº1 do mesmo artº 17º-D impõe ao devedor o dever de comunicação a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração que dá início ao processo de revitalização a que alude o artº 17º-C que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o nº 1 do artº 24º se encontra na secretaria do tribunal para consulta.
E, por força do estatuído no apontado artº 24º, nº 1, als. a) e b), com a petição o devedor, quando seja o requerente, como sucede no caso em apreço, deve juntar relação de todos os credores, com indicação dos montantes dos seus créditos, bem como relação e identificação de todas as acções e execuções que contra si estejam pendentes.
Ora, como se verifica no caso em análise, os devedores, perfeitamente cientes de que existia contra si o crédito agora reclamado pela requerente Construções…, Ldª (por lhes ter sido reconhecido por sentença proferida em 24.01.2012, transitada em julgado, em acção declarativa sob o nº 4976/08.1TBBRG contra si proposta na Vara Mista de Braga, além de ter sido intentada a subsequente e respectiva acção executiva para pagamento do mesmo, em 16.04.2013), omitiram a existência desse crédito, bem como a dita comunicação do início do processo de revitalização, não fazendo constar sequer o mesmo da relação a que se refere as assinaladas alíneas a) e b) do nº 1, do artº 24º, no presente processo de revitalização proposto em 13.05.2013.
E, pasme-se, tal crédito, no valor de € 46.056,01 e respectivos juros de mora, constitui, além do mais, o segundo maior crédito sobre os devedores.
Daí que o seu comportamento indicie manifestamente uma atitude censurável, com falta de transparência e com quebra da confiança e boa fé que devem nortear as relações entre devedores e credores no propalado processo de revitalização.
Ademais, tal atitude omissiva e de ocultação de débitos não devia ser indiferente ao Sr. Administrador Judicial e era susceptível de ser escrutinada pelo tribunal a quo.
Houve, assim, falta da comunicação à credora, aqui recorrente, do início do processo de revitalização, nos termos do artº 17º-D, nº 1, falta da relação desta credora e do seu crédito e montante, nos termos do artº 24º, nº 1, als. a) e b), o que acarretou consequentemente a não citação da credora, a não reclamação do seu crédito e a sua não participação no processo de negociação que conduziu ao plano de homologação aprovado, inquinando a possibilidade legal da sua participação no processo de revitalização em causa.
Ocorreu, pois, a preterição das ditas formalidades essenciais por parte dos devedores/recorridos, as quais constituem violação não negligenciável de regras procedimentais.
Entende-se que “são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza”.[2]
Por seu turno, o artº 215º do CIRE, ex vi seu artº 17º-F, nº5, preceitua que a homologação do plano de recuperação deve ser recusada oficiosamente pelo juiz no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
Ademais, a omissão de tal comunicação à credora e de relação de tal crédito conhecido, por parte dos credores, configura uma irregularidade susceptível de influir no exame e na decisão da causa - desde logo de participação da credora nos actos de reclamação do seu crédito, de negociações com vista ao plano de recuperação e homologação deste – o que implica a anulação dos actos subsequentes à apresentação da lista provisória de credores, incluída esta, a fls. 167 a 173, devendo ser concedido à recorrente o prazo a que alude o artº 17º-D, nº2, a fim de reclamar o seu crédito.
Não se perfilha, portanto, o entendimento esgrimido pelo Sr. Administrador quanto à não necessidade de citação da recorrente, com o fundamento falacioso, salvo o devido respeito, de que a mesma “não integra a lista de credores apresentada nos autos, não podendo por isso concluir-se que se trata de credor conhecido” (sic).
Além de o conceito de credor conhecido e credor desconhecido ser aferido em função da pessoa do respectivo devedor e não do administrador judicial, na situação em apreço, não só o crédito da apelante era do perfeito conhecimento dos aqui devedores, logo no início do processo de revitalização, pelas razões acima aduzidas, como estaria criado o expediente para se tentar afastar deliberada e arbitrariamente da reclamação quaisquer credores, ocultando o devedor os seus créditos, quando a lei lhe impõe taxativamente que os declare, por força do disposto no artº 17º-D, nº 1, do CIRE.

Fica prejudicado o conhecimento da questão atinente à revogação da homologação do plano de recuperação, uma vez que a procedência da arguição da nulidade processual invocada conduz a anulação dos actos ulteriores, incluindo a mencionada homologação.


Pelo que se deixa dito, procede a apelação.

Sintetizando:
1. A omissão da comunicação à credora e de relação de tal crédito conhecido, por parte dos credores, previstas nos artºs 17º-D, nº1, e 24º, nº1, als. a) e b), ambos do CIRE, além de traduzirem uma violação não negligenciável de regras procedimentais, no âmbito do processo de revitalização, configuram uma irregularidade susceptível de influir no exame e na decisão da causa - desde logo impeditiva de participação da credora nos actos de reclamação do seu crédito, de negociações com vista ao plano de recuperação e homologação deste – o que implica a anulação dos actos subsequentes à apresentação da lista provisória de credores, incluída esta, devendo ser concedido à recorrente o prazo a que alude o artº 17º-D, nº2, a fim de reclamar o seu crédito.

IV – Decisão;

Em face do exposto, na procedência da apelação, acordam os Juízes desta secção cível – 1ª Secção – do Tribunal da Relação de Guimarães em:
1. Anular a decisão recorrida de fls. 223 dos autos;
2. Nos termos do artº 665º, do CPC, deferir a nulidade processual arguida pela recorrente, anulando-se os actos subsequentes à apresentação da lista provisória de credores, incluída esta, devendo ser concedido à recorrente o prazo a que alude o artº 17º-D, nº2, do CIRE, a fim de reclamar o seu crédito, seguindo-se os termos processuais ulteriores.
Custas pelos recorridos.
Guimarães, 3 de julho de 2014
António Sobrinho
Isabel Rocha
Moisés Silva
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[1] Neste sentido, vide Ac. RG de 26.01.2012, in dgsi.pt.
[2] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, pág. 713.