Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
354/14.1T8VCT-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: - Existe abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) AM e AC, vieram deduzir a presente oposição à execução que lhes moveu o B, onde concluem entendendo dever ser julgada procedente e, consequentemente, ser extinta a execução contra os ora opoentes AM e AC, prosseguindo apenas contra o executado L e S.

O embargada B, apresentou contestação onde conclui deverem ser julgados improcedentes os presentes embargos de executado e, em consequência, o Banco embargado absolvido, prosseguindo a ação executiva os seus trâmites.


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B) Foi proferido saneador-sentença onde se decidiu julgar a oposição improcedente, por não provada.

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C) Inconformado com a sentença, veio o embargante AM interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (fls. 195).

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Nas alegações de recurso do apelante AM, são formuladas as seguintes conclusões:

1. O imóvel penhorado nos autos sofreu adaptações necessárias à vida do executado portador de 80% de deficiência;
2. O executado necessita tanto da casa, como da cadeira de rodas em que se move;
3. Sendo ambos instrumentos indispensáveis à sua vida de deficiente, são, nessa medida, impenhoráveis (artigo 736º alínea f) do Código de processo Civil);
4. Mesmo que se entenda que o exequente tem direito a penhorar o imóvel, tal direito é abusivo porque violador de uma hierarquia de valores aceite em sociedade, nos termos da qual os valores pessoais sobrepõem-se aos patrimoniais;
5. Podendo o exequente dispor de outros bens dos demais executados, não deve obter a satisfação do seu crédito, violando o direito à saúde, à habitação, à proteção na deficiência previstos nos artigos 64º, 65º e 71º da Constituição da República Portuguesa;
6. Violação esta que o executado ora recorrente invocou e de que a douta sentença de que se recorre não conheceu, cometendo nulidade por omissão de pronúncia, que expressamente se invoca.
7. A douta sentença violou o disposto no artigo 736º, alínea f) do Código de Processo Civil, 64º, 65º e 71º da Constituição da República Portuguesa e artigo 615º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
Deve, por isso ser revogada e substituída por outra que determine a impenhorabilidade da casa de morada do executado AM por aplicação analógica do artigo 736º, alínea f) do Código de Processo Civil ou que declare ser abusivo o direito da penhora do imóvel invocado pelo exequente.

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O apelado B, apresentou resposta onde conclui entendendo dever ser negado provimento ao recurso e, em consequência, confirmar integralmente a douta sentença recorrida.

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D) Foram colhidos os vistos legais.

E) As questões a decidir neste recurso são as de saber:

1) Se a sentença recorrida é nula;

2) Se se verificam as invocadas inconstitucionalidades;

3) Se deverá ser alterada a decisão jurídica da causa.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Foi considerada provada a seguinte matéria de facto:

1) Por escritura de mútuo com hipoteca e fiança, de 06 de abril de 2011, a executada AC, ora embargante, confessou-se devedora ao Banco embargado da quantia de €135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros), que deste recebeu a título de empréstimo.

2) O referido empréstimo foi concedido pelo Banco embargado à mutuária AC, aqui embargante, para reestruturação de crédito, pelo prazo de trezentos e trinta e seis meses, obrigando-se a liquidá-lo em trezentas e trinta e seis prestações mensais e sucessivas de capital e juros.

3) Em garantia do pontual pagamento e liquidação da quantia mutuada, acrescida dos juros devidos e contratualmente fixados e, ainda, das despesas judiciais e extrajudiciais que o Banco mutuante houver de fazer para se ressarcir do seu crédito, as quais para efeitos de registo se fixaram em €5.400,00 (cinco mil quatrocentos euros), bem como do respetivo montante máximo de capital e acessórios, o executado AM, aqui embargante, constituiu uma hipoteca voluntária a favor do Banco embargado sobre o seguinte bem imóvel:

- Fração autónoma, designada pela letra “B”, correspondente ao rés-do-chão direito, quatro, destinada a habitação, com entrada pelo número 65, com logradouro e dois anexos, sendo um para arrumos e outro galinheiro, identificados na planta pela letra “B”, do prédio urbano sito na Rua de Ferrais, números …, Lugar da Conchada, freguesia de Mazarefes, concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….

4) A referida hipoteca encontra-se registada pela Ap. 3739 de 2011/04/06, até ao montante máximo assegurado de €209.250,00 (duzentos e nove mil, duzentos e cinquenta euros).

5) Os executados L e S constituíram-se principais pagadores e devedores por tudo quanto viesse a ser devido ao Banco embargado em consequência do empréstimo que a mutuária AC, ora embargante, contraiu junto do Banco embargado, titulado pela supra citada escritura notarial, com expressa renúncia ao benefício de excussão prévia.

6) Foi estipulado, ainda, que a referida fiança manter-se-ia plenamente em vigor enquanto subsistisse qualquer dívida de capital, de juros ou despesas, constituída por qualquer forma imputável à devedora AC.

7) Os executados, designadamente os aqui embargantes, não procederam ao pagamento das prestações conforme se obrigaram na referida escritura notarial.


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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).

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C) O recurso abrange unicamente a reapreciação da decisão jurídica da causa.

O apelante entende que a sentença é nula porque não apreciou a inconstitucionalidade invocada na oposição.

A questão tem a ver com o facto de o apelante ter defendido no requerimento de oposição que a casa dada como garantia deve ser considerada como impenhorável e que uma interpretação contrária é violadora dos artigos 64º, 65º e 71º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Vejamos.

No rigor dos princípios não foi invocada qualquer inconstitucionalidade no requerimento de oposição, apenas foi defendido que se não se entender como defende o oponente e ora apelante, tal hipotética posição é inconstitucional.

Ora, tal posição não pode ser reconduzida a qualquer invocação de inconstitucionalidade, na medida em que se trata de uma mera suposição, uma hipótese que, na altura em que foi considerada ainda não se verificava, sendo certo que não há invocações de inconstitucionalidade por antecipação.

Por antecipação existem, apenas, possibilidades, meras conjeturas, e não realidades.

Portanto, não se pode afirmar que tenha havido qualquer omissão de pronúncia, dado que as questões suscitadas foram – bem ou mal – apreciadas, pelo que improcede a arguição da nulidade.

Aliás, a questão da constitucionalidade foi colocada nas alegações de recurso e será apreciada neste acórdão.

O apelante vem alegar que a penhora incidiu sobre a casa de habitação do recorrente que sofreu adaptações para responder às necessidades especiais do executado que sofre de grave deficiência física, que lhe determina 80% de incapacidade permanente, entendendo serem impenhoráveis nos termos da alínea f) do artigo 736º do NCPC os instrumentos e objetos indispensáveis aos deficientes e ao tratamento de doentes, como sejam as cadeiras de rodas, as bengalas os andarilhos e os demais objetos adaptados ao executado.

Vejamos.

Dispõe o artigo 736º alínea f) NCPC que são absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial, os instrumentos e os objetos indispensáveis aos deficientes e ao tratamento de doentes.

Ora, como é bom de ver, ainda que se mostrasse demonstrada a factualidade alegada pelo apelante, o que não é o caso, nunca se poderia afirmar que o imóvel que pudesse constituir a sua residência, se pudesse considerar um objeto indispensável à condição de deficiente e ao tratamento de doentes, sem prejuízo de se reconhecer ao apelante, como aos demais cidadãos o direito à habitação.

O que se poderá admitir é que a cadeira de rodas em que o apelante se deslocará constitui um objeto indispensável à sua condição de deficiente (cfr. fls. 19) e, como tal, é impenhorável, mas o mesmo não se poderia considerar da sua habitação, por não preencher os requisitos do indicado normativo, pelo que improcede a pretensão do apelante.

Entende o apelante que a decisão recorrida ao ignorar esta realidade é violadora dos artigos 64º, 65º e 71º da CRP e, como tal inconstitucional.

O artigo 64º da CRP, consagra o direito à saúde, o artigo 65º refere-se à habitação e urbanismo e o artigo 71º é relativo aos cidadãos portadores de deficiência, tratando-se de direitos programáticos, isto é, que visam a imposição de metas a atingir, designadamente, por parte do Estado e não a atribuição, pelo menos a algumas situações, de direitos imediatamente realizáveis.

Numa sociedade no tempo e espaço atuais é uma imposição natural a obrigação de o Estado aplicar políticas que permitam aos cidadãos beneficiarem dos direitos constitucionalmente consagrados, sem prejuízo de se reconhecer que tais direitos programáticos são metas impostas ao Estado, que não podem ser vistos, todos eles, como direitos subjetivos dos cidadãos com aplicação imediata.

Expliquemo-nos.

O facto de estar consagrado na CRP o direito à habitação não confere, infelizmente, a qualquer cidadão o direito de exigir ao Estado que lhe seja disponibilizada uma casa de habitação, de imediato, o mesmo se podendo dizer de vários outros direitos.

Mas daí não se pode concluir que se trate de simples declarações políticas sem significado.

Trata-se, antes, de imposições legais programáticas que o Estado tem de prosseguir através de medidas que permitam aos cidadãos beneficiar de tais direitos e, não sendo os mesmos cumpridos por parte do Estado, pode este vir a ser responsabilizado, em determinadas condições, por omissão das medidas necessárias a alcançar os objetivos programáticos estabelecidos na CRP.

No caso que nos ocupa, não pode assacar-se qualquer inconstitucionalidade à decisão recorrida, tendo em conta o atrás exposto, que, assim, improcede.

Entende o apelante que o exercício do direito será abusivo na medida em que o valor patrimonial que pretende acautelar é inferior ao valor pessoal e à proteção na deficiência de qualquer cidadão.

Não obstante se seja sensível aos respeitáveis argumentos expendidos pelo apelante, a verdade é que o instituto do abuso de direito pressupõe a alegação e prova de factos que permitam concluir pela verificação dos respetivos pressupostos.

Conforme escrevemos no Acórdão desta Relação de Guimarães de 12/07/2010, na Apelação n.º 8331/07.2TBBRG-A.G1, “a este propósito importa ter em conta o disposto no artigo 334º do Código Civil, onde se estabelece que ”é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Conforme se pode ler no Acórdão do STJ de 02/07/96, no site da DGSI, no endereço www.dgsi.pt , “segundo o artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dum direito.

Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, 63 e seguintes; Almeida Costa Direito das Obrigações, 3.ª edição, 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, 299; Antunes Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de Novembro de 1966).

Manuel de Andrade acrescentou ainda “grosso modo” existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).

Por sua vez, Antunes Varela esclareceu que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjetivo e que se designa por abuso de direito o exercício de um poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (R.L.J. 114, página 75) e, por outro lado, não se esqueceu de salientar que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do dito artigo 334.º, “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo” (R.L.J. 128, página 241).

E há que ter presente que o atual Código Civil consagrou a conceção objetivista do abuso de direito e por isso não é necessário a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixa de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (Almeida Costa, loc. cit., Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit.).”

Da matéria de facto alegada e provada, não resultam quaisquer factos que nos permitam concluir existir abuso de direito, no que se refere à conduta do apelado, ónus cuja alegação e prova incumbia ao apelante.

Assim sendo, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência confirmar-se a douta decisão recorrida.


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D) Em conclusão:

- Existe abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Notifique.


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Guimarães, 25/05/2017



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1 - Relator: António Figueiredo de Almeida (62777051617)
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2º Adjunto: Desembargador Joaquim Espinheira Baltar